Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 417/2014-T
Data da decisão: 2014-12-02  IUC  
Valor do pedido: € 59.143,67
Tema: IUC - Incidência subjetiva; locação financeira
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Decisão Arbitral

Processo n.º 417/2014-T

 

 

I. Relatório[1]

 

1. A… — …, LDA com sede no … Oeiras, pessoa colectiva n.º … (a seguir designada por Requerente), apresentou em 09.06.2014, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011 de 20 de janeiro, com as alterações posteriores (a seguir Regime Jurídico da Arbitragem Tributária ou RJAT), pedido de pronúncia arbitral com vista à anulação das decisões de indeferimento das reclamações graciosas n.º ...2014..., n.º ...2014..., n.º ...2014... e n.º ...2014..., sendo demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (a seguir, Requerida ou AT).

 

a) Constituição do Tribunal Arbitral

 

2. Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 2, al. a), 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1, al. a) do RJAT, o Conselho Deontológico deste Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou como árbitro singular o signatário, que aceitou o encargo.

 

3. Nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 e do n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral Singular ficou constituído em 13.08.2014.

 

b) História processual

 

4. No pedido de pronúncia arbitral (a seguir petição inicial ou PI), a Requerente peticiona a anulação, na parte em que não se deferiram as pretensões formulados, das decisões das reclamações graciosas n.º ...2014..., n.º ...2014..., n.º ...2014... e n.º ...2014... respeitantes a liquidações de Imposto Único de Circulação (IUC) dos anos de 2009, 2010, 2011, 2012 e 2013, a seguir identificadas.

Mais peticiona a Requerente que “em consequência da anulação das decisões da Autoridade Tributária e dos respetivos Documentos de cobrança dos IUCs (...), deve ser proferida decisão a ordenar o reembolso das importâncias indevidamente pagas, pela requerente, a título de IUC, juros compensatórios e respetivas coimas, no valor total de 59.143,67€ (cinquenta e nove mil cento e quarenta e três euros e sessenta e sete cêntimos), acrescido dos respetivos juros indemnizatórios, previstos nos art.ºs 43.º da LGT e no art.º 61.º do CPPT, bem como das coimas indevidamente pagas”.

 Para fundamentar o pedido de pronúncia arbitral, a Requerente sustenta, no essencial, que tais decisões se fundaram em “errada interpretação da lei, nomeadamente do disposto no art.º 3.º n.º 1 do CIUC, uma vez que a presunção resultante desse dispositivo admite prova em contrário, sendo certo que atenta a documentação junta em sede própria pela requerente e que consta dos respetivos processos administrativos, prova manifestamente que a propriedade dos veículos a data da incidência do Imposto Único de Circulação pertencia a terceiros e por conseguinte não devia ser a requerente considerada sujeito passivo da referida obrigação tributária”.

5. A AT apresentou resposta em que peticiona a improcedência das pretensões formuladas pela Requerente, sustentando a conformidade legal dos atos objeto do pedido de pronúncia arbitral.

 

6. Por despacho de 20.10.2014, o Tribunal Arbitral Singular, ao abrigo do disposto na al. c) do art. 16.º do RJAT, decidiu – o que teve a concordância expressa da Requerente conforme requerimento de 3.11.2014 e não foi objeto de qualquer oposição da Requerida – que não se mostrava necessário promover a reunião a que se refere o art. 18.º do RJAT, por não estarem presentes as circunstâncias previstas nas diversas alíneas do n.º 1 deste dispositivo. Mais decidiu, em conformidade com o n.º 2 do art. 18.º do RJAT, não ser necessária a produção de alegações orais, por estarem perfeitamente expostas as posições das partes nos respetivos articulados, e fixou como data para decisão arbitral o dia 3 de dezembro de 2014.

 

c) Questão a decidir

 

7. A questão fulcral a resolver sobre o mérito da causa prende-se com a conformidade legal dos atos tributários objeto do pedido de pronúncia arbitral quanto à qualificação da Requerente como sujeito passivo do Imposto Único de Circulação (IUC) relativo aos veículos e períodos de tributação identificados na PI.

Para a resolução desta questão é necessário, atentos os fundamentos expostos nas peças processuais das partes, enfrentar as seguintes matérias:

i) elucidar a configuração da incidência subjetiva do IUC objeto do art. 3.º, n.º 1 do Código do Imposto Único de Circulação (CIUC), o que envolve decidir, nos termos dos critérios jurídico-hermenêuticos pertinentes, se a sujeição tributária assenta estritamente na inscrição registal da titularidade, caso em que a pessoa em cujo nome se encontra registado o veículo constitui o sujeito passivo do imposto, ou se, diversamente, o registo opera apenas como uma presunção de incidência tributária, em atenção à propriedade ou a outra situação jurídica considerada tributariamente relevante, que é ilidível, em conformidade com o disposto no art. 73.º da Lei Geral Tributária, por quem não é titular do veículo, ainda que se encontre registado como tal, mediante prova em contrário realizada com recurso aos meios probatórios admitidos em Direito;

ii) a admitir que a lei consagrou apenas uma presunção de incidência tributária, verificar, em atenção aos meios de prova constantes dos autos, a situação jurídica de titularidade da Requerente em relação aos veículos e períodos de tributação em causa.

Cumpre, então, apreciar e decidir.

 

II. Saneamento

 

8. Preliminarmente, é necessário resolver as questões processuais que emergem dos autos.

Neste âmbito, a primeira questão a enfrentar prende-se com a competência deste Tribunal Arbitral tendo em conta que a Requerente, na sua PI, pede a condenação da AT no reembolso das “coimas indevidamente pagas” (vd. supra n.º 4).

A infração das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal, cujo conhecimento é oficioso (art. 16.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, als. a) e c) do RJAT) e deve preceder o de qualquer outra matéria (art. 13.º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, al. c) do RJAT).

O art. 2.º, n.º 1 do RJAT prescreve que a competência dos tribunais arbitrais se prende com a apreciação das seguintes pretensões: “a) A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta; b) A declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria colectável e de atos de fixação de valores patrimoniais”. Em face desta delimitação legal da competência dos tribunais arbitrais tributários, é manifesto que não estão abrangidos os litígios relativos à aplicação de coimas no âmbito de processos contraordenacionais tributários (cfr. art. 101.º, al. c) da LGT). Trata-se aqui, aliás, de conclusão já devidamente sinalizada na doutrina – vd. assim JORGE LOPES DE SOUSA, Guia da Arbitragem Tributária, Coimbra, Almedina, 2013, p. 105: “Ficam, assim, fora da competência destes tribunais arbitrais a apreciação de litígios gerados (...) em processos contraordenacionais tributários”.

Deste modo, declara-se este Tribunal incompetente para conhecer a matéria relativa à pretensão formulada pela Requerente de reembolso das importâncias pagas a título de coimas no montante total de €13.205,82.

 

9. A cumulação de pedidos relativa aos atos de indeferimento expresso das reclamações graciosas acima indicadas e aos atos tributários de liquidação de Imposto Único de Circulação (IUC) e de juros compensatórios por aqueles mantidos que são objeto da PI mostra-se admissível em face do art. 3.º, n.º 1 do RJAT, dada a procedência dos pedidos depender da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação das mesmas regras de direito.

 

10. No mais, o Tribunal foi regularmente constituído e é competente para apreciar a questão de fundo acima indicada (art. 2.º, n.º 1, al. a) do RJAT), as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (arts. 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

III. Decisão da matéria de facto e sua motivação

 

11. Examinada a prova documental produzida e os processos administrativos tributários juntos relativos às reclamações graciosas n.º ...2014..., n.º ...2014..., n.º ...2014... e n.º ...2014... (a seguir designados por PA1, PA2, PA3 e PA4), o Tribunal julga provados, com relevo para a decisão da causa, os seguintes factos:

 

I. A Requerente é uma sociedade comercial por quotas que tem por objeto social a compra, venda e aluguer de máquinas e de veículos automóveis (conforme certidão permanente com a senha de acesso …-…-… junta como doc. n.º 1 à PI).

II. A Requerente foi objeto das liquidações oficiosas de IUC e de juros compensatórios conforme documentos que se mostram juntos de fls. 27 a 209 do PA1, de fls. 27 a 189 do PA2, de fls. 30 a 254 do PA3, de fls. 29 a 227 do PA4, os quais se dão aqui por reproduzidos, referentes às viaturas e aos anos e nos termos que constam dos quadros 1 a 14 que se apresentam nas páginas subsequentes:

 

Sem nome 2

Sem nome 3

Sem nome 4

Sem nome

Sem nome 2

Sem nome 3

Sem nome

Sem nome 2

Sem nome 3

Sem nome 4

Sem nome

Sem nome 2

III. Todos os veículos identificados nos quadros constantes do ponto antecedente encontram-se registados em nome da Requerente no Registo Automóvel (facto reconhecido nos n.ºs 15 e 30 da PI).

IV. Os veículos identificados nos quadros constantes do ponto n.º II foram objeto de venda a clientes da Requerente e, em três casos (veículos com as matrículas …-…-…, …-…-…, …-…-…), de perda total, em momento anterior ao mês e ano de tributação relativo ao IUC liquidado, conforme cópias das faturas/recibos e documentos constantes a fls. 210 a 300 do PA1, a fls. 190 a 290 do PA2, a fls. 254 a 205 do PA3, a fls. 228 a 335 do PA4 (que se reportam a “venda de viatura usada”, “venda de salvado” e, nos três casos mencionados, a “indemnização por perda total”).

V. A Requerente procedeu, entre Julho e Outubro de 2013, ao pagamento do imposto e dos juros compensatórios resultantes das liquidações identificadas nos quadros reproduzidos no ponto n.º II, conforme documentos que se mostram juntos de fls. 27 a 209 do PA1, de fls. 27 a 189 do PA2, de fls. 30 a 254 do PA3, e de fls. 29 a 325 do PA4.

VI. A Requerente deduziu em 17.12.2013, em relação aos atos de liquidação identificados nos quadros constantes do ponto n.º II, as reclamações graciosas com os nºs de procedimento n.º ...2014..., n.º ...2014..., n.º ...2014... e n.º ...2014..., conforme requerimentos constantes de fls. 2 a 20 do PA1, de fls. 2 a 20 do PA2, de fls. 2 a 23 do PA3 e de fls. 2 a 22 do PA4.

VII. A Requerente foi notificada no dia 9.4.2014 da decisão de deferimento parcial da reclamação graciosa n.º ...2014..., conforme doc. n.º 2 junto à PI, nos termos da qual se considerou que foi demonstrado, por certidão da Conservatória do Registo Automóvel, que a Requerente não era proprietária do veículo com a matrícula …-…-.., indeferindo-se, no que concerne aos demais veículos, os pedidos objeto da reclamação graciosa.

VIII. A Requerente foi notificada no dia 14.4.2014 da decisão de deferimento parcial da reclamação graciosa n.º ...2014..., conforme doc. n.º 3 junto à PI, nos termos da qual se considerou que foi demonstrado, por certidão da Conservatória do Registo Automóvel, que a Requerente não era proprietária do veículo com a matrícula …-…-…, indeferindo-se, no que concerne aos demais veículos, os pedidos objeto da reclamação graciosa.

IX. A Requerente foi notificada no dia 14.4.2014 da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2014..., conforme doc. n.º 4 junto à PI.

X. A Requerente foi notificada no dia 14.4.2014 da decisão de deferimento parcial da reclamação graciosa n.º ...2014..., conforme doc. n.º 5 junto à PI, nos termos da qual se considerou que foi demonstrado, por certidão da Conservatória do Registo Automóvel, que a Requerente não era proprietária do veículo com a matrícula …-…-…, indeferindo-se, no que concerne aos demais veículos, os pedidos objeto da reclamação graciosa.

XI. O indeferimento dos pedidos objeto das reclamações graciosas referidas nos pontos antecedentes assentou na seguinte fundamentação essencial (ponto n.º 3 das informações constantes dos docs. n.º 2, 3, 4 e 5 juntos à PI):

 “O IUC incide sobre a propriedade dos veículos, tal como é atestada pelo registo (cf. n.º 1 do art. 6.º do CIUC), e não sobre o uso ou fruição dos mesmos.

Por outro lado, o imposto é devido enquanto a matrícula não for cancelada.

Ora, sendo o cancelamento da matrícula o ato administrativo pelo qual se retira a autorização para o veículo circular na via pública (cf. al. b) do art. 2.º do DL 128/2006, de 5/7, a contrario), e o IMT a entidade com competência exclusiva para a manutenção do Registo nacional de Matrículas (cf. art. do mesmo diploma), enquanto aquele instituto não proceder a esse cancelamento da matrícula, o IUC será devido.

Não obstante poder admitir-se que, do ponto de vista das regras do direito civil e do registo predial, a ausência de registo não afeta a aquisição da qualidade de proprietário e que o registo não é condição de validade dos contratos com eficácia real, nos termos estabelecidos no CIUC (que no caso em apreço constitui lei especial, a qual, face aos termos gerais de direito derroga a norma geral), o legislador tributário quis intencional e expressamente que fossem considerados proprietários dos veículos, aqueles em nome dos quais se encontram registados”.

 

12. Não existe factualidade relevante para a decisão da causa dada como não provada.

 

13. A convicção do Tribunal sobre a factualidade dada como provada resultou do reconhecimento de factos pela Requerente, dos documentos juntos aos autos com a PI e dos documentos constantes dos PA, tudo conforme se especifica nos pontos da matéria de facto acima enunciados.

Assinala-se, em especial, que a factualidade atinente às vendas e perda total dos veículos a que respeitam as liquidações impugnadas, que foi dada como provada no ponto n.º IV, assentou nos documentos emitidos pela Requerente que se consideram elementos probatórios bastantes para formar a convicção do Tribunal sobre a realidade dos contratos verbais de alienação da propriedade dos veículos a que se reportam, bem como, nos casos indicados, da sua perda total. Tais documentos, pelo seu significado contabilístico e fiscal, titulam, de modo preciso, as operações a que fazem referência, pelo que são suficientes para se julgar demonstrada a factualidade indicada no mencionado ponto n.º IV.

 

IV. Do Direito

 

a) Quadro jurídico

 

14. O quadro jurídico imediatamente relevante para a decisão de mérito respeita às normas constantes da causa prende-se com o disposto nos arts. 2.º, n.º 1, 3.º, 4.º e 6.º, n.º 1 do Código do Imposto Único de Circulação (CIUC), aprovado pela Lei n.º 22-A/2007, de 29/06, com as alterações posteriores relevantes ratione temporis.

Estabelece, então, o n.º 1 do artigo 2.º do CIUC, epigrafado “Incidência objetiva”, o seguinte:

O imposto único de circulação incide sobre os veículos das categorias seguintes, matriculados ou registados em Portugal:

a) Categoria A: Automóveis ligeiros de passageiros e automóveis ligeiros de utilização mista com peso bruto não superior a 2500 kg matriculados desde 1981 até à data da entrada em vigor do presente código;

b) Categoria B: Automóveis de passageiros referidos nas alíneas a) e d) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do Imposto sobre Veículos e automóveis ligeiros de utilização mista com peso bruto não superior a 2500 kg, matriculados em data posterior à da entrada em vigor do presente código;

c) Categoria C: Automóveis de mercadorias e automóveis de utilização mista com peso bruto superior a 2500 kg, afetos ao transporte particular de mercadorias, ao transporte por conta própria, ou ao aluguer sem condutor que possua essas finalidades;

d) Categoria D: Automóveis de mercadorias e automóveis de utilização mista com peso bruto superior a 2500 kg, afetos ao transporte público de mercadorias, ao transporte por conta de outrem, ou ao aluguer sem condutor que possua essas finalidades;

e) Categoria E: motociclos, ciclomotores, triciclos e quadriciclos, tal como estes veículos são definidos pelo Código da Estrada, matriculados desde 1992;

f) Categoria F: Embarcações de recreio de uso particular com potência motriz igual ou superior a 20 kW, registados desde 1986;

g) Categoria G: Aeronaves de uso particular”.

Depois, prevê o art. 3.º do CIUC, sobre “Incidência subjetiva”, que:

1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.

Por seu lado, o art. 4.º, sobre “Incidência temporal” refere o seguinte:

1 - O imposto único de circulação é de periodicidade anual, sendo devido por inteiro em cada ano a que respeita.

2 - O período de tributação corresponde ao ano que se inicia na data da matrícula ou em cada um dos seus aniversários, relativamente aos veículos das categorias A, B, C, D e E, e ao ano civil, relativamente aos veículos das categorias F e G”.

Determina, por fim, o n.º 1 do art. 6.º do CIUC, sobre “Facto gerador e exigibilidade” que:

O facto gerador do imposto é constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional”.

 

b) Argumentos das partes

 

15. Tendo em atenção este quadro jurídico, a Requerente na sua PI alega, no essencial, o seguinte:

i) “O registo de propriedade do veículo automóvel é obrigatório (cfr. art.ºs 1.º e 5.º do diploma que regula o Registo Automóvel) e visa apenas "dar publicidade" a situação jurídica de bens. Não existe (...) qualquer norma no ordenamento jurídico português sobre o caráter constitutivo do registo da propriedade automóvel”(n.º 29).

ii) “Os veículos automóveis, constantes dos IUCs supra identificados estão efetivamente inscritos em nome da ora requerente, na sequência de aquisição dos mesmos. Logo, o registo constitui uma presunção de que existe e pertence ao titular inscrito nos precisos termos definidos no registo – cfr. art.º 7.º do Código de Registo Predial aplicável por força do art.º 29.º do Registo Automóvel” (n.º 30).

iii) “a expressão" considerando-se como tais" constante do teor do n.º 1 do art.º 3.º do CIUC, configura uma presunção legal e a mesma é ilidível, atento o disposto no art.º 73.º da LGT, que admite que as presunções consagradas admitem sempre prova em contrário” (n.º 49).

iv) para ilidir esta presunção é necessário, ou fazer prova da nulidade do registo, ou demonstrar a invalidade do negócio, ou ainda, que a titularidade do direito inscrito pertence a outrem” – “foi exatamente esta demonstração – de que a titularidade do veículo pertence a um terceiro – que a reclamante fez, ao juntar faturas de venda das viaturas e dos respetivos salvados, constantes dos IUCS, todas elas datadas de meses anteriores à obrigação fiscal exigida” (n.ºs 32 e 33).

v) “Das cópias das faturas, podemos extrair que a venda das viaturas se efetuou em momento anterior ao que ocorreu o facto gerador e a consequente exigibilidade do imposto (cfr. art.ºs 4.º e 6.º do CIUC)”, pelo que “à data da exigibilidade do imposto, a requerente já não era proprietária dos veículos acima identificados nos processos administrativos, por já ter operado as respetivas transmissões, nos termos da lei civil” (n.ºs 54 e 55).

 

16. Pelo seu lado, na sua resposta, sustenta a AT, no essencial, o seguinte:

i) o entendimento propugnado pela Requerente “incorre não só de uma enviesada leitura da letra da lei, como da adoção de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal e decorre ainda de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o CIUC” (art. 8.º).

ii) “O legislador tributário ao estabelecer no artigo 3º, nº 1 quem são os sujeitos passivos do IUC estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou nas situações previstas no nº 2, as pessoas aí enunciadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontram registados”; “Mesmo admitindo que, do ponto de vista das regras do direito civil e do registo predial, a ausência de registo não afeta a aquisição da qualidade de proprietário e que o registo não é condição de validade dos contratos com eficácia real), nos termos estabelecidos no CIUC (que no caso em apreço constitui lei especial, a qual, nos termos gerais de direito derroga a norma geral), o legislador tributário quis intencional e expressamente, que fossem considerados como proprietários, locatários, adquirentes com reserva de propriedade ou titulares do direito de opção de compra no aluguer de longa duração, as pessoas em nome das quais (os veículos) se encontrem registados”. (arts. 13.º e 58.º).

iii) “(...) o legislador não usou a expressão “presumem-se”, como poderia ter feito, por exemplo, nos seguintes termos: são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”, pelo que “entender que o legislador consagrou aqui uma presunção seria inequivocamente efetuar uma interpretação contra legem” (arts. 14.º e 23.º);

iv) “o normativo fiscal está repleto de previsões análogas à consagrada na parte final do nº1 do artigo 3º, em que o legislador fiscal, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, expressa e intencionalmente, consagra o que deve considerar-se legalmente, para efeitos de incidência, de rendimento, de isenção, de determinação e de periodização do lucro tributável, para efeitos de residência, de localização, entre muitos outros” (art. 15.º).

v) “Em face desta redação [do art. 3.º, n.º 1 do CIUC] não é manifestamente possível invocar que se trata de uma presunção (...)”. “Trata-se, sim, de uma opção clara de política legislativa acolhida pelo legislador, cuja intenção, adentro da sua liberdade de conformação legislativa, foi a de que, para efeitos de IUC, sejam considerados proprietários, aqueles que como tal constem do registo automóvel” (arts. 24.º e 25.º).

vi) O elemento sistemático da interpretação, dado o disposto no art. 6.º do CIUC, revela que a solução propugnada pela Requerente não tem fundamento, pois da “articulação entre o âmbito da incidência subjetiva do IUC e o facto constitutivo da correspondente obrigação de imposto decorre inequivocamente que só as situações jurídicas objeto de registo (sem prejuízo, da permanência de um veículo em território nacional por mais período superior a 183 dias, previsto no n.º 2 do artigo 6.º) geram o nascimento da obrigação de imposto” e, por outro lado, resulta do n.º 3 do mesmo artigo que “o momento a partir do qual se constitui a obrigação de imposto apresenta uma relação direta com a emissão do certificado de matrícula, no qual devem constar os factos sujeitos a registo” (arts. 36.º a 41.º).

vii) “a própria ratio do regime consagrado no Código do IUC (...) constitui prova clara de que o que o legislador fiscal pretendeu foi criar um imposto assente na tributação do proprietário do veículo tal como consta do registo automóvel”, pois o “CIUC procedeu a uma reforma do regime de tributação dos veículos em Portugal, alterando de forma substancial o regime de tributação automóvel, passando os sujeitos passivos do imposto a ser os proprietários constantes do registo de propriedade, independentemente da circulação dos veículos na via pública” (arts. 60.º e 62.º da resposta).

viii) “dos debates parlamentares em torno da aprovação do DL n.º 20/2008 de 31 de janeiro (...) resulta inequivocamente que o IUC é devido pelas pessoas que figuram no registo como proprietárias dos veículos” (arts. 64.º a 68.º).

ix) a interpretação veiculada pela Requerente mostra-se “contrária à Constituição, na medida em que viola o princípio da confiança e segurança jurídica, o princípio da eficiência do sistema tributário e o princípio da proporcionalidade” pois “desvaloriza a realidade registal em detrimento de uma “realidade informal” e insuscetível de um controlo mínimo por parte da Requerida”, traduz-se “num entorpecimento e encarecimento das competências atribuídas à Requerida, com óbvio prejuízo para os interesses do Estado Português”, e desconsidera que “a Requerente dispõe dos mecanismos legais necessários e adequados à salvaguarda daquela sua capacidade [contributiva] (v.g., o registo automóvel), sem que, contudo, os tenha exercitado em devido tempo” (arts. 72.º a 78.º).

 

c) Apreciação do Tribunal

 

17. A discordância entre as partes no que concerne à questão jurídica de fundo acima descrita no n.º 7 – a qual, refira-se, tem sido objeto de diversas decisões de Tribunais Arbitrais deste CAAD[2] – prende-se, antes de mais nada, com a “letra da lei” (cfr. art. 9.º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil e art. 11.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária), mais especificamente com o teor semântico a atribuir ao vocábulo “considerando-se” que consta, como se citou (supra n.º 14) do n.º 1 do art. 3.º do CIUC (“São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”).

Para a Requerida, em oposição à Requerente, que considera que o art. 3.º, n.º 1 consagra uma presunção legal, o uso da expressão “considerando-se” inviabilizaria, de modo absoluto, uma leitura em chave presuntiva do disposto no art. 3.º, n.º 1 do CIUC (cfr. supra n.º 16, ii), iii), iv), v)).

 

18. Entende-se que não é possível acolher a exclusão semântica que a Requerida pretende imputar, nos termos indicados, à locução “considerando-se”. Esta locução, bem como outras palavras com a mesma base lexical como “considera-se”, “considerar” ou “considerando”, são frequentemente adotadas no nosso ordenamento jurídico precisamente para consagrar presunções, possuindo, pois, um valor de uso presuntivo. Para dar um exemplo no campo tributário, cite-se o art. 191.º, n.º 6 do CPPT que menciona o seguinte: “A citação considera-se efetuada no 25.º dia posterior ao seu envio caso o contribuinte não aceda à caixa postal eletrónica em data anterior”, estabelecendo depois o n.º 7 do mesmo preceito que: “A presunção do número anterior só pode ser ilidida pelo citado quando, por facto que não lhe seja imputável, a citação ocorrer em data posterior à presumida e nos casos em que se comprove que o contribuinte comunicou a alteração daquela nos termos do artigo 43.º”. 

Deste modo, tal como já se encontra assinalado em outras decisões arbitrais proferidas neste CAAD em relação à mesma matéria (cfr., por exemplo, as decisões proferidas nos processos n.ºs 14/2013-T, 27/2013-T, 73/2013-T, 170/2013-T, nas quais é possível encontrar exemplos de outras disposições legislativas em que igualmente ocorre o uso da expressão “considerando-se” ou “considera-se” com o significado de presunção), não só não se pode dizer que a atribuição de um significado presuntivo à expressão “considerando-se” não possui “um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso” (n.º 2 do art. 9.º do Cód. Civil), como, mais do que isso, deve mesmo reconhecer-se a tal vocábulo uma correspondência corrente e normal a esse sentido presuntivo. 

Por isso, não assume peso decisivo o facto de, diferentemente do que sucedia com a enunciação literal “presumindo-se” que antes se encontrava no artigo 3.º do Regulamento do Imposto Sobre Veículos, o legislador ter passado a usar no CIUC a fórmula “considerando-se” que consta do atual art. 3.º desse Código, porquanto esta expressão tem perfeita virtualidade semântica para envolver a consagração de uma presunção.

Evidentemente, este mesmo vocábulo “considerando” também é normalmente utilizado fora de contextos presuntivos, pelo que afirmar que possui uma correspondência normal com esse sentido não implica sustentar, de modo algum, que o tenha sempre, antes pelo contrário. Destaque-se por isso, atento o que a Requerida alega sobre outras previsões normativas fiscais em que o legislador utilizou a fórmula “considera-se” ou “consideram-se” (vd. supra n.º 16, iv)), que estas expressões possuem uma pluralidade de sentidos, pelo que entender que, no caso específico do art. 3.º, n.º 1 do CIUC, a expressão em causa implica uma presunção, não significa que isso suceda em todo e qualquer outro caso. É uma regra de ouro da interpretação que o sentido de um vocábulo está na dependência do contexto em que surge, em termos de coerência pragmático-funcional – como escreve OLIVEIRA ASCENSÃO: “Nenhum preceito pode ser interpretado isoladamente do contexto”; “Atender ao contexto é situar uma disposição”.

Desta forma, nada obsta, no ponto de vista do elemento literal da interpretação, ao entendimento de que, no quadro do art. 3.º do CIUC, está em causa, no segmento normativo constante da segunda parte do n.º 1 dessa disposição, a consagração de uma presunção. 

 

19. Julga-se que este entendimento sobre a presença de uma presunção no n.º 1 do art. 3.º do CIUC, para além de encontrar, como se disse, perfeita cobertura na letra da lei, é o que se deve ter como adequado em face da ratio legis subjacente à regulação tributária em apreço.

Conforme resulta logo do art. 1.º do CIUC, segundo o qual o IUC “obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que este provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”, constitui relevante escopo a que se dirige tal tributo, para além da obtenção de receitas, fazer suportar pelos titulares de direitos de utilização dos veículos (n.ºs 1 e 2 do art. 3.º do CIUC) os custos viários e ambientais que por eles são causados. Veja-se, a este respeito, o que se consignou no texto introdutório do CIUC anexo à Proposta de Lei n.º 118/X, que está na base da Lei n.º 22-A/2007, de 29.06 que procedeu à reforma global da tributação automóvel, aprovando o Código do Imposto sobre Veículos e o Código do Imposto Único de Circulação e abolindo, em simultâneo, o imposto automóvel, o imposto municipal sobre veículos, o imposto de circulação e o imposto de camionagem: “Como elemento estruturante e unificador destas categorias, consagra-se o princípio da equivalência, deixando-se assim claro que o imposto, no seu conjunto, se subordina à ideia de que os contribuintes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária. É este princípio que dita a oneração dos veículos em função da respetiva propriedade e até ao momento do abate, o emprego comum de uma base tributável específica, a revisão do quadro de benefícios fiscais vigente e a afetação de uma parcela da receita aos municípios da respetiva utilização”.

Ora, pretender, como o faz a Requerida, que o legislador, no art. 3.º, n.º 1 do CIUC, fixou, seja qual for o meio técnico subjacente, a incidência subjetiva do imposto nas pessoas em nome de quem os veículos se encontram registados, com total independência de serem ou não, no período tributário relevante, titulares do direito de utilização do veículo, maxime da sua propriedade, implicaria desprezar a indicada finalidade que preside à normatividade tributária, bem manifestada na incidência objetiva e na base tributável associada às diversas categorias de veículos (cfr. arts 2.º e 7.º do CIUC). É que uma inscrição registal, sem correspondência com a titularidade subjacente, nenhuma valia possui para dar satisfação e cumprimento a tal finalidade, pois não são as pessoas em nome de quem os veículos se encontrem inscritos quando não sejam titulares de direitos sobre a sua utilização que provocam custos ambientais e viários, mas antes tais custos ambientais e viários são causados pelos efetivos utilizadores dos veículos, nos termos das situações jurídicas substantivas pertinentes, mesmo que não constem, como deviam, do registo automóvel. O registo, na verdade, em nada depõe ou serve quanto ao princípio da equivalência estabelecido no art. 1.º do CIUC.

Por outro lado, assumir que o elemento determinativo da incidência tributária subjetiva é simples e exclusivamente o registo automóvel também não permite afirmar uma ligação com uma qualquer manifestação de capacidade contributiva relevante, o que, via de regra, nos tributos não estritamente comutativos, é imprescindível, já que deve existir, sem prejuízo de exigências de praticabilidade, uma qualquer ligação efetiva entre o imposto e um pressuposto económico materialmente relevante capaz de fundamentar o tributo.

A razão de ser da figura tributária afasta, pois, a ideia de que a incidência respetiva se prende estrita e exclusivamente com a própria inscrição registal da titularidade dos veículos tributários e não com as situações substantivas atributivas do direito de utilização dos veículos (art. 3.º, nºs 1 e 2 do CIUC) a que o registo se destina a dar publicidade (cfr. art. 1.º e art. 5.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de fevereiro, com as alterações posteriores, que regula o registo automóvel).

 

20. A lógica do imposto, a ratio legis da normatividade tributária em apreço conduz, pois, a concluir que o legislador considerou como sujeitos passivos do imposto os efetivos proprietários dos veículos ou, então, os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação, servindo o registo simplesmente como presunção da propriedade ou dos outros direitos sujeitos a registo a que se atribuiu relevância para efeitos da subordinação ao imposto.

E bem se compreende – na sequência, aliás, de sólida tradição (recorde-se, apenas, o antecedente representado pelo artigo 3.º do Regulamento do Imposto Sobre Veículos) – que o legislador tributário tenha consagrado uma tal presunção, pois, precisamente, é esse o efeito essencial associado ao registo. Destaque-se, na verdade, que, segundo o n.º 1 do art. 1.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de fevereiro, “o registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respetivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico”, sendo que, nos termos do art. 7.º do Código do Registo Predial, aplicável ao registo automóvel por força do disposto no art. 29.º do referido Decreto-Lei n.º 54/75 (que determina que: “São aplicáveis, com as necessárias adaptações, ao registo de automóveis as disposições relativas ao registo predial, mas apenas na medida indispensável ao suprimento das lacunas de regulamentação própria e compatível com a natureza de veículos automóveis e das disposições contidas neste diploma e no respetivo regulamento”): “O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito nos precisos termos em que o registo o define”.

Assim, deve-se entender que o legislador, ao definir a incidência subjetiva do imposto no art. 3.º, n.º 1 do CIUC, consagrou, em ordem à respetiva demonstração, uma presunção pela qual, na base do facto conhecido do registo, se deduz o facto presumido da propriedade ou da titularidade de outro direito relevante para efeitos do IUC.

 

21. Acrescenta-se que este entendimento tem também por si o elemento sistemático da interpretação. É que, se não estivesse em causa no art. 3.º, n.º 1 do CIUC uma presunção, relevante, como tal, para efeitos probatórios, não se compreenderia que no art. 18.º, n.º 2 do CIUC, relativo à liquidação oficiosa, se diga que isso é realizado pela AT “com base nos elementos de que disponha”, não se limitando a remeter para o que resulta do registo.

Por outro lado, explicite-se, a este respeito, que não é relevante para contrariar o caráter presuntivo assim assumido no competente segmento normativo do art. 3.º, n.º 1 do CIUC o disposto no art. 6.º, n.º 1 do CIUC. É que esta disposição, ao regular o facto gerador do imposto, surge dirigida simplesmente a determinar o momento constitutivo da relação jurídico-tributária (cfr. art. 36.º, n.º 1 da LGT), o facto a partir do qual nasce originariamente a obrigação de imposto, cujo fundamento objetivo (veículos “matriculados ou registados em Portugal”) e subjetivo (“proprietários dos veículos”, “locatários financeiros”, “adquirentes com reserva de propriedade”, “outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”) se estabelece nos arts. 2.º e 3.º do CIUC. Assim, o art. 6.º, n.º 1 do CIUC serve estritamente para fixar o momento a partir do qual passa a ocorrer a sujeição a IUC em território nacional (“a propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional”).

Diga-se ainda que, no que concerne ao elemento histórico da interpretação, mais especificamente em sede de trabalhos preparatórios, na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 118/X e no texto introdutório ao CIUC não se encontra nenhuma explícita indicação de que o legislador tenha pretendido que o registo automóvel passasse a funcionar como facto constitutivo da incidência tributária do IUC e não como simples presunção da propriedade dos veículos probatoriamente relevante para efeitos da sujeição tributária. Alude-se, é certo, no texto introdutório ao CIUC constante dessa Exposição de Motivos, às “inúmeras faltas e atrasos na regularização dos registos de aquisição ou transmissão de veículos ou nos cancelamentos das respetivas matrículas, em caso de abate entretanto ocorrido” e à necessidade de “mecanismos simplificados e menos onerosos que permitam uma regularização dos registos de propriedade das viaturas e garantam a fiabilidade necessária à futura liquidação do novo imposto”, mas não se declara que o registo não opera apenas como presunção da titularidade relevante para efeitos da tributação. Pelo contrário, a preocupação com o adequado funcionamento e fiabilidade do registo automóvel evidencia que, para o legislador, o que é decisivo são as situações substantivas a que o registo se destina a dar publicidade e que faz presumir, e não propriamente a inscrição registal em si mesma considerada.

Acrescente-se que a invocação que a Requerida faz dos debates parlamentares em torno da aprovação do Decreto-Lei n.º 20/2008 de 31 de janeiro (vd. supra n.º 16, viii)) não parece pertinente, porquanto o que assim se convoca são materiais que não dizem diretamente respeito à história da legislação tributária aqui em aplicação, mas sim a normatividades distintas, já que esse diploma se dirigiu a introduzir diversas alterações às regulações atinentes ao certificado de matrícula e ao registo automóvel, mas não no âmbito de matéria fiscal. De qualquer modo, não parecem conclusivas as posições assumidas no âmbito desses debates parlamentares a que alude a Requerida no art. 68.º da sua resposta.

Deste modo, este Tribunal considera que o art. 3.º, n.º 1 do CIUC deve ser interpretado no sentido de que nele se consagra uma presunção legal para efeitos da determinação da incidência subjetiva do imposto.

 

22. Segue-se imediatamente declarar que a presunção assim consagrada no art. 3.º, n.º 1 do CIUC é ilidível.

As presunções legais, consabidamente, podem ser ilidíveis (iuris tantum) ou inilidíveis (iure et de iure) consoante admitem ou proíbem a prova do facto contrário e, portanto, possibilitam ou impedem a demonstração de que o facto presumido não é verdadeiro (art. 350.º, n.º 2 do Código Civil).

Como resulta do n.º 2 do art. 350.º do Cód. Civil, como regra as presunções legais são iuris tantum, constituindo as presunções inilidíveis a exceção (“as presunções legais podem ser ilididas mediante prova em contrário, excepto nos casos em que a lei o proibir”). Nestes termos, quando a lei não proíba a prova em contrário, deve-se entender que a presunção é ilidível.

Isto mesmo é atualmente objeto de explícita prescrição normativa em sede de sistema jurídico-tributário já que, como é sabido, o art. 73.º da LGT estabelece o caráter necessariamente ilidível das presunções em matéria de incidência tributária ao afirmar que: “As presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário”.

Acrescente-se mesmo que a consideração como presunção ilidível do disposto no art. 3.º, n.º 1 do CIUC se deve ter como exigência resultante de uma interpretação conforme à Constituição, pois este Tribunal não pode deixar de dar relevo ao conhecido entendimento do Tribunal Constitucional, afirmado no acórdão n.º 348/97, de 29.4.1997 e reiterado no acórdão n.º 311/2003, de 28.4.2003, quanto à inconstitucionalidade do “estabelecimento pelo legislador fiscal de uma presunção juris et de jure” já que “veda por completo aos contribuintes a possibilidade de contrariarem o facto presumido, sujeitando-os a uma tributação que pode fundar-se numa matéria coletável fixada à revelia do princípio da igualdade tributária”.

Nesta sequência, a solução aqui perfilhada mostra-se perfeitamente respaldada no paradigma constitucional relevante, pelo que não se alcança como se pode considerar que a mesma contraria a Constituição, não se vendo que sejam afetados, em termos razoáveis e efetivos, “o princípio da confiança e segurança jurídica, o princípio da eficiência do sistema tributário e o princípio da proporcionalidade”.

 

23. Atento o exposto, decide-se que o art. 3.º, n.º 1 do CIUC consagra uma presunção ilidível (iuris tantum), pelo que, não obstante o registo da titularidade do veículo se encontrar em nome da Requerente, é possível ilidir essa presunção, mediante a demonstração, pelos meios de prova admitidos em Direito, de que não é proprietária do veículo ou titular de outra situação tributariamente relevante (art. 3.º, n.ºs 1 e 2 do CIUC) à data do período de tributação (art. 4.º do CIUC), não constituindo, consequentemente, o sujeito passivo do IUC e não respondendo, pois, pelo respetivo pagamento.

 

d) Aplicação ao caso sub judice

 

24. Em face do acima referido, sintetizado no número antecedente, resta verificar, em atenção à factualidade dada como provada, a qualificação como sujeito passivo de IUC da Requerente (vd. supra n.º 11 e facto provado sub II) relativamente aos veículos objeto das liquidações oficiosas de IUC em causa nos presentes autos.

Ora, a este propósito, impõe-se simplesmente destacar que foi dado como provado no n.º IV do probatório que os veículos a que respeitam as liquidações de IUC em causa nestes autos foram objeto de venda a clientes da Requerente ou de perda total em momento anterior ao mês e ano de tributação relativo ao IUC liquidado correspondente.

Deste modo, verifica-se que, nos períodos de tributação em causa, não obstante o que possa continuar a constar do registo, os veículos automóveis a que respeitam as liquidações impugnadas já não eram da titularidade da Requerente.

 Destaque-se que, nos termos dos arts. 408.º, n.º 1, 874.º e 879.º, al. a) do Cód. Civil, a transmissão da propriedade opera por mero efeito do contrato, pelo que, a partir desse momento, a Requerente não é proprietária dos veículos objeto das liquidações em causa, não constituindo, em consequência, sujeito passivo do IUC respeitante a tais veículos nos termos do n.º 1 do art. 3.º do CIUC.

Mostra-se, pois, ilidida a presunção estabelecida no art. 3.º, n.º 1 do CIUC.

 

25. Em consequência, a Requerente não pode ser considerada, em atenção ao disposto no art. 3.º, n.º 1 do CIUC, sujeito passivo do IUC liquidado em relação aos veículos identificados e nos termos que constam dos quadros constantes do n.º II do probatório, pelo que as decisões das reclamações graciosas n.º ...2014..., n.º ...2014..., n.º ...2014... e n.º ...2014..., na parte em que não consideraram procedente as pretensões da Requerente, e os atos tributários de liquidação de IUC e de juros compensatórios que, assim, mantiveram, padecem de vício de violação de lei, o que implica a sua anulação nos termos do art. 135.º do Código do Procedimento Administrativo, como se decide.

 

e) Dos juros indemnizatórios

 

26. Em consequência da anulação dos atos tributários objeto do processo, peticiona a Requerente (vd. supra n.º 4) a condenação da AT no reembolso das importâncias indevidamente pagas a título de IUC e de juros compensatórios, cujo montante total perfaz €45.937,85, bem como no pagamento dos juros indemnizatórios previsto no art. 43.º da LGT e no art. 61.º do CPPT.

Prescreve a alínea b) do art. 24.º do RJAT que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito, o que se deve entender, em conformidade com o art. 100.º da LGT, aplicável ex vi alínea a) do n.º 1 do art. 29.º do RJAT, como abrangendo o pagamento de juros indemnizatórios, em consonância, aliás, com o disposto no n.º 5 deste mesmo art. 24.º do RJAT.

Prescreve, então, o art. 43.º, n.º 1 da LGT que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”, estabelecendo o n.º 4 do art. 61.º do CPPT, que “se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea”.

 

27. A este respeito, sustenta a Requerida (art. 110.º da PI) que se limitou a dar estrito cumprimento ao art. 3.º, n.º 1 do CIUC, que imputa a qualidade de sujeito passivo do IUC às pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, pelo que não se deve reconhecer o direito ao pagamento de juros indemnizatórios.

O direito a juros indemnizatórios depende, como se viu, do apuramento de erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

Cumpre reconhecer que, com as liquidações emitidas, a Requerida se limitou apenas, como lhe é imposto (arts. 55.º da LGT e 10.º, n.º 1, al. a) do CPPT), a dar cumprimento ao disposto no art. 3.º, n.º 1 do CIUC, que presume a qualidade de sujeito passivo na entidade em nome de quem se encontra registado o veículo.

Ora, dada a obrigatoriedade do registo automóvel estabelecida pelo art. 5.º, n.º 2 do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro (com as alterações subsequentes), não pode deixar de se conferir relevância à imputabilidade à Requerente da situação resultante da não atualização do registo automóvel (cfr. arts. 25.º e 42.º do Regulamento do Registo de Automóveis objeto do Decreto n.º 55/75, de 12 de Fevereiro, com as alterações posteriores) e da consequente atuação administrativo-tributária.

Acresce que a Requerente procedeu ao pagamento do imposto e dos juros compensatórios, aqui julgados indevidos, em data anterior à da apresentação das reclamações graciosas (cfr. os n.ºs V e VI do probatório), em momento, pois, em que não tinha sido feita perante a Requerida qualquer prova em contrário suscetível de permitir ilidir a presunção registal e detetar o pagamento indevido (n.º 5 do art. 61.º do CPPT).

Impõe-se, pois, em face deste circunstancialismo, declarar que não se pode considerar verificado erro imputável aos serviços no pagamento indevido da prestação tributária.

Deste modo, decide-se, atento o disposto no n.º 1 do art. 43.º da LGT, não assistir à Requerente o direito ao pagamento de juros indemnizatórios.

 

V. Decisão  

 

Termos em que este Tribunal Arbitral decide:

a) Declarar-se incompetente para conhecer o pedido formulado de reembolso das importâncias pagas a título de coimas no montante de €13.205,82;

b) Julgar procedente, por provado, o pedido de pronúncia arbitral de anulação dos atos tributários impugnados respeitantes às liquidações de IUC e de juros compensatórios dos anos de 2009 a 2013 referentes aos veículos automóveis identificados nos autos, no valor total de €45.937,85, e, consequentemente, condenar a Requerida no respetivo reembolso à Requerente, em conformidade com os arts. 24.º, n.º 1, al. b) do RJAT e 100.º da LGT;

c) Julgar improcedente o pedido de condenação da Requerida no pagamento dos juros indemnizatórios;

d) Condenar a Requerida nas custas do processo.

 

 VI. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.º 1 e 2 do CPC, no artigo 97.º-A, n.º 1, al. a), e n.º 2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicáveis por força das alíneas a), c) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de €45.937,85, que constitui o montante total objeto das liquidações impugnadas.

 

VII. Custas

 

De harmonia com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e no artigo 4.º, n.º 4 do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €2.142,00, nos termos da Tabela I do mencionado Regulamento, a cargo da Requerida, dada a procedência do pedido de anulação dos atos tributários objeto dos autos.

 

 Notifique-se.

 

 

Lisboa, 2 de dezembro de 2014.

 

 

 

O Árbitro

 

(João Menezes Leitão)



[1] Adota-se a ortografia resultante do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, tendo sido atualizada, em conformidade, a grafia constante das citações efetuadas.

[2] Incluindo decisões subscritas pelo signatário, pelo que, em conformidade com o art. 8.º, n.º 3 do Código Civil, retomam-se aqui fundamentos já explicitados em decisões anteriores, desde logo a decisão emitida no proc. 286/2013-T, em cuja valia se continua a crer.