Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 775/2014-T
Data da decisão: 2015-11-26  IUC  
Valor do pedido: € 3.315,12
Tema: IUC – Incidência subjetiva; locação financeira
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Decisão Arbitral

 

O árbitro Guilherme W. d’Oliveira Martins, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o presente Tribunal Arbitral, constituído em 30-01-2015, decide nos termos que se seguem:

 

I. Relatório

1. A sociedade A… Portugal, S.A., NIPC …, apresentou um pedido de constituição de tribunal arbitral singular, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), com vista à anulação de actos de liquidação do imposto único de circulação, no montante global de € 3 315,12.

 

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 20-11-2014 e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

3. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular o ora signatário, que comunicou a aceitação do correspondente encargo no prazo aplicável.

 

4. Em 15.01.2015 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

5. Assim, nos termos do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação introduzida pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral foi constituído em 30.01.2015.

 

6. No dia 09-07-2015 teve lugar a primeira reunião do Tribunal, nos termos e para os efeitos do artigo 18.º do RJAT, tendo sido lavrada ata da mesma, que igualmente se encontra junta aos autos.

 

7. Iniciada a reunião, foi dada a palavra aos Representantes da Requerente e da Requerida para se pronunciarem sobre (i) a tramitação processual, (ii) eventuais exceções que devessem ser apreciadas e decididas antes do tribunal conhecer do pedido, (iii) necessidade de serem feitas correções nas peças processuais apresentadas e (iv) a necessidade de marcação de uma nova reunião para a realização de alegações orais.

 

8. Ouvidas as partes, e com a concordância destas, o Tribunal decidiu prescindir da realização da diligência de inquirição de testemunhas e da produção de alegações finais.

 

9. O Tribunal designou o dia 30.07.2015 para a prolação da decisão arbitral.

 

10. Foram proferidos despachos de prorrogação de decisão em 29.07.2015, 01.10.2015 e 26.11.2015, ao abrigo do n.º 2 do artigo 21.º do RJAT.

 

 

11. Os fundamentos do pedido da Requerente são os seguintes:

- No âmbito da sua atividade de financiamento do sector automóvel, a Requerente procede à celebração de contratos de locação financeira, destinados à aquisição, por empresas e particulares, de veículos automóveis.

 

- A AT liquidou oficiosamente IUC à Requerente e notificou diversas notas de liquidação oficiosa de IUC relativas aos anos de 2013 e 2014.

 

- A Requerente invoca a legitimidade quanto à reclamação de todos os atos de liquidação, embora alguns tenham sido dirigidos à sociedade B… – …, S. A. uma vez que a referida sociedade extinguiu-se, tendo aqueles contratos de locação financeira passado a integrar a carteira de ativos da Requerente, que assumiu os direitos e obrigações inerentes à posição de locador.

 

- O mesmo se diga quanto aos atos de liquidação dirigidos à C… S. A. SUCURSAL EM PORTUGAL, anteriormente designada por D… – …, S. A., entretanto extinta e cujo conjunto de ativos e passivos foi incorporado na Requerente.

 

- A Requerente optou por liquidar os IUC’s em causa tendo pago o montante total de 3.315,12 Euros, valor este que vem peticionar nos presentes autos.

 

- Estão assim em causa os IUC’s dos anos de 2013 e 2014, referentes aos veículos identificados no processo administrativo, sob os quais incidiam contratos de locação financeira e perante os quais a Requerente assume a qualidade de locatária.

 

- Segundo a Requerente, à data do mês de matrícula dos respetivos automóveis, encontrava-se em vigor um contrato de locação financeira, ou seja, no momento em que se tornaram exigíveis dos IUC aqui em apreço, ao abrigo do n.º 3 do artigo 6.º e do n.º 2 do artigo 4.º do CIUC.

 

- Durante o período de vigência do contrato, o locatário mantém o gozo temporário do veículo – que permanece na propriedade da Requerente – mediante remuneração a entregar à Requerente sob a forma de rendas, podendo vir a adquirir o veículo, no termo do contrato, mediante o pagamento de um valor residual.

 

- Não podendo, por isso, ser considerada o seu respetivo sujeito passivo.

 

- A Requerente invoca que, quem assume a qualidade de sujeito passivo do IUC é quem tem à sua disposição o direito de utilizar um veículo – gerador de determinado nível de poluição, desgaste de vias – que aquele sujeito passivo tem um potencial acrescido de provocar danos ao ambiente e às infraestruturas.

 

- Tendo o critério determinante de tributação deixado de ser exclusivamente a cilindrada, passando a decorrer de “indicadores da capacidade poluidora de um veículo”.

 

- Para a Requerente, “o Imposto Único de Circulação não tem o veículo, em si mesmo, como objeto da sua incidência, mas antes a sua utilização (em ato ou em potência)”, pelo que, o encargo correspondente compete à pessoa ou entidade que tem o potencial de utilização do referido automóvel.

 

- Assim, uma vez que, num contrato de locação financeira, cabe ao locador o gozo exclusivo do veículo automóvel sobre o qual recai o contrato, cabe-lhes também a obrigação de pagar o imposto.

 

- O artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 25 de Junho (alterado pelos Decretos Leis 265/97, de 2 de outubro, e 30/2008, de 25 de fevereiro) define locação financeira como “o controlo pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados”.

 

- Finalmente invoca que, por estarem sujeitos a contratos de locação financeira os veículos automóveis cuja liquidação de IUC se contesta, é aos locatários, e não ao locador (ainda que sejam estes quem detém a propriedade do veículo), que compete liquidá-lo.

 

- Face ao exposto, requerem a procedência do pedido de pronúncia arbitral, nos termos e para os efeitos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, seguindo-se a tramitação prevista nos artigos 17.º e seguintes e aplicando-se os efeitos mencionados no artigo 13.º do referido diploma, e consequentemente, a declaração de ilegalidade e consequente anulação dos 37 atos de liquidação relativos ao IUC respeitantes aos 36 veículos identificados, o reembolso do montante de € 3.315,12, respeitante ao imposto e juros compensatórios indevidamente pagos pela Requerente e o pagamento de juros indemnizatórios, pela privação do montante de € 3.315,12, nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária.

 

 

12. Em resposta ao pedido da Requerente, a AT:

A AT mantém os atos objeto do requerimento inicial com os seguintes fundamentos:

 

- Requerente não juntou os contratos de locação financeira quando podia e devia tê-lo feito, ou seja, no requerimento do pedido de pronúncia arbitral, encontrando-se agora precludida a possibilidade de o fazer em momento ulterior, uma vez que determina perentoriamente o disposto na alínea d), do n.º 2, do art. 10.º, do RJAT, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que devem constar do pedido de pronúncia arbitral “Os elementos de prova dos factos indicados e a indicação dos meios de prova a produzir”.

 

- Neste contexto, a Autoridade Tributária e Aduaneira viu-se impedida de analisar o pedido, no sentido de eventualmente revogar o ato, nos termos do n.º 1 do artigo 13.º do RJAT, com todas as suas consequências.

 

- Não assiste razão à Requerente pois, em primeiro lugar, ainda que se concluísse estarmos perante contratos de locação financeira outorgados pela Requerente, sempre cabia a esta última demonstrar ter dado o devido e integral cumprimento à obrigação acessória imposta pelo artigo 19.º do CIUC.

 

- A Requerente incumpriu o disposto no artigo 3.º do CIUC, conjugado com o disposto no artigo 19.º do mesmo código, no qual se estabelece que «para efeitos do artigo 3.º do presente código (…), ficam as entidades que procedam à locação financeira, locação operacional ou ao aluguer de longa duração de veículos obrigadas a fornecer à Direcção-Geral dos Impostos os dados relativos à identificação dos utilizadores dos veículos locados.»

 

- A Requerente só se poderia exonerar do imposto caso tivesse dado cumprimento à obrigação específica prevista naquela norma do CIUC, pelo que não tendo a Requerente dado cumprimento àquela obrigação, forçoso é concluir que aquela é, também por isso, o sujeito passivo do imposto.

 

- O legislador tributário ao estabelecer no artigo 3.º, n.º 1 quem são os sujeitos passivos do IUC estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

 

Fundamenta amplamente na resposta que o entendimento propugnado pela requerente decorre de uma enviesada leitura da letra da lei:

 

·  Como a adoção de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC, e,

·  Mais amplamente em todo o sistema jurídico-fiscal;

·  Mas também de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o CIUC.

 

- O legislador não usou a expressão “presumem-se”, como poderia ter feito, por exemplo, nos seguintes termos: são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

 

- Para tal a requerida socorre-se de exemplos do ordenamento, bem como à exposição de motivos referente à Proposta de Lei n.º 118/X, ou seja, à proposta de reforma global da tributação automóvel.

 

- Mesmo admitindo que, do ponto de vista das regras do direito civil e do registo predial, a ausência de registo não afeta a aquisição da qualidade de proprietário e que o registo não é condição de validade dos contratos com eficácia real, nos termos estabelecidos no CIUC (que no caso em apreço constitui lei especial, a qual, nos termos gerais de direito derroga a norma geral), o legislador tributário quis intencional e expressamente que fossem considerados como proprietários, locatários, adquirentes com reserva de propriedade ou titulares do direito de opção de compra no aluguer de longa duração, as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados.

 

- Nestes termos, requer a AT que o pedido de pronúncia arbitral seja considerado improcedente quanto aos atos de liquidação do IUC que se mantêm.

 

 

II. SANEAMENTO

1.      O Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, todos do RJAT.

2.      As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

3.      O processo não enferma de nulidades e não foram suscitadas questões prévias que importe analisar.

4.      Estão, pois, reunidas as condições para se apreciar o mérito do pedido.

 

 

III. FUNDAMENTAÇÃO

III.A. FACTOS PROVADOS

Antes de entrar na apreciação das questões de mérito, cumpre apresentar a matéria factual relevante para a respetiva compreensão e decisão, a qual, examinada a prova documental e o processo administrativo tributário junto aos autos e tendo ainda em conta os factos alegados, se fixa como segue:

 

- No âmbito da sua atividade de financiamento do sector automóvel, a Requerente procede à celebração de contratos de locação financeira, destinados à aquisição, por empresas e particulares, de veículos automóveis.

 

- A AT liquidou oficiosamente IUC à Requerente e notificou diversas notas de liquidação oficiosa de IUC relativas aos anos de 2013 e 2014.

 

- Os atos de liquidação dirigidos à sociedade B… – …, S. A. transitam para a esfera jurídica da Requerida, uma vez que a referida sociedade extinguiu-se, tendo aqueles contratos de locação financeira passado a integrar a carteira de ativos da Requerente, que assumiu os direitos e obrigações inerentes à posição de locador.

 

- O mesmo se diga quanto aos atos de liquidação dirigidos à C… S. A. SUCURSAL EM PORTUGAL, anteriormente designada por D… – …, S. A., entretanto extinta e cujo conjunto de ativos e passivos foi incorporado na Requerente.

 

- Estão assim em causa os IUC’s dos anos de 2013 e 2014, referentes aos veículos identificados no processo administrativo.

 

- A Requerente celebrou contratos de locação financeira sobre os veículos identificados no processo, sobre os quais incidem os IUC’s.

 

 

III.B FACTOS NÃO PROVADOS

Não há, alegados ou de conhecimento oficioso, factos relevantes para a decisão que não tenham sido dados como provados.

 

 

III.C MOTIVAÇÃO

A fixação da matéria de facto baseou-se no processo administrativo, nos documentos juntos à petição inicial ou no decurso do presente processo e em afirmações da Requerente que não são impugnadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

 

III.D Da cumulação de pedidos

Considerada a identidade dos factos tributários, do tribunal competente para a decisão e dos fundamentos de facto e de direito invocados, nada obsta, face ao disposto nos arts. 104.º do CPPT e 3.º do RJAT, à cumulação de pedidos verificada in casu.

 

III.E Do Direito

a)     Quanto à ilisão da presunção de sujeito passivo de IUC que recai sobre a Requerente

No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente invoca circunstâncias que, no seu entender, a desqualificam da posição de sujeito passivo do IUC relativamente aos veículos e períodos de tributação em causa circunstância de, à data a que se reporta o facto tributário que originou a liquidação, ter celebrado contratos de locação financeira sobre os respetivos veículos, assumindo a posição de locatária dos mesmos.

Entende, assim, a Requerente não ser sujeito passivo do IUC em virtude de não estarem satisfeitos os requisitos de incidência subjetiva do imposto previstos no artigo 3.º do CIUC, conjugado com os artigos 4.º e 6.º do mesmo Código.

O cerne da discussão que subjaz aos presentes autos prende-se com a definição da incidência subjetiva do IUC: de acordo com a tese da AT, o sujeito passivo deste imposto é a pessoa em nome da qual o veículo se encontra registado; para a Requerente, a norma de incidência prevista no n.º 1 do artigo 3.º do IUC estabelece uma presunção, derivada do registo, ilidível por força do disposto no artigo 73.º da LGT.

Assim, sobre a qualidade de sujeito passivo da obrigação de imposto que lhe é imputada, alega a Requerente que, à data da ocorrência dos factos tributários, havia celebrado contratos de locação financeira, pelo que quem goza do uso exclusivo do veículo serão os locatários, e não a Requerida, que assume a posição de locadora. Como prova do alegado, junta ao pedido de decisão arbitral cópias dos contratos de locação financeira celebrados, referentes aos veículos sobre os quais incidem os IUC’s liquidados.

O artigo 3.º do CIUC, sob a epígrafe “incidência subjetiva”, prevê o seguinte:

1 – São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

2 – São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.

 

Com relevância para a decisão a proferir no presente processo, a questão a analisar centra-se, portanto, na interpretação da norma do n.º 1 daquele art. 3.º do CIUC, no sentido de determinar quem assume a qualidade de sujeito passivo de IUC devido na vigência de um contrato de locação financeira: se o locatário, ou se a entidade locadora (ainda que proprietária).

Ora, sendo verdade que o legislador do CIUC elegeu o registo automóvel como elemento estruturante deste imposto (o que resulta, desde logo, do artigo 6.º do código, relativo à definição do facto gerador da obrigação de imposto, cujo n.º 1 prevê ser constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional), sendo, além disso, dos elementos do registo automóvel que se extrai o momento do início do período de tributação (artigo 4.º, n.º 2, do CIUC), bem como o momento até ao qual o imposto é devido (artigo 4.º, n.º 3, do CIUC) e a respetiva base tributável (artigo 7.º do CIUC), outra questão é a da interpretação que deve ser dada à norma de incidência subjetiva prevista no artigo 3.º do CIUC, a qual deve obedecer a princípios gerais da interpretação das normas tributárias, não se cingindo apenas ao ambiente normativo criado pelas restantes normas do CIUC.

 

 

Nos termos do disposto no artigo 73.º da LGT, as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário. Porém, para ser detetada a consagração de uma presunção numa norma de incidência tributária, será que esta tem sempre que a prever expressamente, ou poderá, pelo contrário, extrair-se de uma norma de incidência tributária uma presunção que nela não esteja expressamente enunciada?

 

Por exemplo, no âmbito do regulamento do Imposto Municipal de Veículos[1], que o atual IUC substituiu, estabelecia-se uma presunção de forma expressa, dizendo a lei que “o imposto é devido pelos proprietários dos veículos, presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas em nome de quem os mesmos se encontrem matriculados ou registados”. Ora, no âmbito do CIUC, o legislador entendeu substituir a palavra “presumindo-se” pela palavra “considerando-se”. Será que esse facto deve ser relevado da forma defendida pela AT, ao ponto de se dizer que a norma não prevê uma presunção, mas antes estabelece que os proprietários dos veículos como tal constante do registo automóvel são sempre os sujeitos passivos do imposto?

 

 

Não é esta a nossa interpretação do texto legal. Com efeito, não existindo razões substantivas que permitam detetar uma razão para a alteração de postura do legislador relativamente a este ponto – ou seja, não havendo razões para crer que o legislador quis efetivamente afastar a possibilidade de outras pessoas, além do proprietário do veículo, serem sujeitos passivos do IUC, parece-nos que se deve ler a referida alteração semântica como isso mesmo – uma mera alteração semântica, sem impacto na norma que decorre do texto legal. Assim, entendemos que a norma que decorre do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC continua a ser uma presunção de incidência subjetiva relativamente ao proprietário do veículo como tal registado junto da Conservatória do Registo Automóvel, que não afasta a possibilidade de prova em contrário. Com efeito, parece-nos que a norma consagrada no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC tem a estrutura de uma norma de presunção tal como esta é descrita no artigo 349.º do Código civil, ou seja, como uma ilação que a lei, ou o julgador, tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido. No caso concreto, a lei retira do facto conhecido (a propriedade do veículo nos termos do registo automóvel), a presunção acerca do sujeito que deve suportar o encargo tributário relativo ao veículo em causa. No entanto, será sempre possível ao proprietário constante do registo afastar a aplicação a si próprio da norma de incidência, posto que faça prova de que a capacidade contributiva que justifica a imposição tributária pertence a outrem, por exemplo, em função da venda do veículo em momento prévio ao da ocorrência do facto tributário, ou da celebração de contrato de locação financeira do qual o mesmo seja objeto, como é o caso em apreço.

As presunções de incidência tributária podem ser ilididas através do procedimento contraditório próprio previsto no art. 64.º do CPPT ou, em alternativa, pela via de reclamação graciosa ou de impugnação judicial dos atos tributários que nelas se baseiem. No presente caso, a Requerente não utilizou aquele procedimento próprio, pelo que o presente pedido de decisão arbitral é meio próprio para ilidir a presunção de incidência subjetiva do IUC que suporta as liquidações tributárias cuja anulação constitui objeto do pedido, pois que se trata de matéria que se situa no âmbito da competência matéria deste tribunal arbitral nos termos do disposto nos artigos 2.º e 4.º do RJAT.

 

 

Como melhor desenvolvido na Decisão Arbitral proferida no Processo n.º 14/2013-T: “Examinando o ordenamento jurídico português, encontramos imensas normas que consagram presunções utilizando o verbo considerar, muitas das quais empregues no gerúndio (“considerando” ou mesmo “considerando-se”). São disso exemplos as normas a seguir enumeradas: No Código Civil, entre outras, os artigos 314.º, 369.º n.º 2, 374.º n.º 1, 376.º n.º 2, 1629.º. No Código da Propriedade Industrial, referimos a título de exemplo, o artigo 98.º onde também o termo “considerando” é usado num contexto presuntivo. Também no ordenamento jurídico tributário se pode encontrar o verbo “considerar”, nomeadamente o termo “considera-se” com um sentido presuntivo. Como explicam Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, na anotação n.º 3 ao artigo 73.º da LGT “as presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, revelada pela utilização da expressão presume-se ou semelhante (…). No entanto, as presunções também podem estar implícitas em normas de incidência, designadamente de incidência objectiva, quando se consideram como constituindo matéria tributável determinados valores de bens móveis ou imóveis, em situações em que não é inviável apurar o valor real” (sublinhado nosso), dando de seguida alguns exemplos de normas em que é utilizado o verbo “considerar” como no n.º 2 do artigo 21.º do CIRC acontece, ao estabelecer que “para efeitos de determinação do lucro tributável, considera-se como valor de aquisição dos incrementos patrimoniais obtidos a título gratuito o seu valor de mercado não podendo ser inferior ao que resultar da aplicação das regras de determinação do valor tributável previstas no código do Imposto do Selo”. (sublinhados nossos). (…). Tendo em conta que o sistema jurídico deve formar um todo coerente, os exemplos acima referidos, acompanhados da doutrina e jurisprudência indicadas, por apelo ao elemento sistemático (contexto da lei e lugares paralelos), autorizam a conclusão que não é só quando é usado o verbo “presumir” que estamos perante uma presunção, mas também o uso de outros termos ou expressões podem servir de base a presunções, nomeadamente o termo “considera-se”, mostrando-se desta forma cumprida a condição estabelecida no n.º 2 do artigo 9.º do CC, o qual exige que o pensamento legislativo tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.” (in www.caad.pt).

 

 

Conforme também refere a citada Decisão arbitral, a ratio legis do IUC aponta no sentido de serem tributados os efetivos proprietários ou os utilizadores dos veículos, como os locatários financeiros, pois são estes que têm o potencial poluidor causador dos custos ambientais à comunidade (cf. artigo 3.º, n.º 1 e 2, do Código do IUC).

Assim, o IUC procura onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária, conforme expresso no seu artigo 1.º.

Consagrando o artigo 3.º, n.º 1 do CIUC uma presunção, ilidível, a entidade que está inscrita no registo como proprietária do veículo e que, por essa razão foi considerada pela AT como sujeito passivo do imposto, pode apresentar elementos de prova visando demonstrar que o titular da propriedade é outra pessoa, para quem a propriedade foi transferida.

Ao contrário do alegado pela Requerida o cumprimento ou não do disposto no artigo 19.º do Código do IUC, que obriga as entidades que procedam à locação financeira, à locação operacional ou ao aluguer de longa duração de veículos obrigadas a fornecer à Direcção-Geral dos Impostos os dados relativos à identificação fiscal dos utilizadores dos veículos locados, não afasta o carácter ilidível da presunção em apreciação, em conformidade com o invocado do art. 73.º da LGT.

Admitindo-se a ilisão da presunção, cumpre agora analisar se no caso sub judice é suficiente para afastar a presunção constante do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC.

Para ilidir a presunção derivada da inscrição do registo automóvel, a Requerente oferece os como elementos relativos aos veículos que estão agora em apreciação cópias dos contratos de aluguer de veículos sem condutor relativos aos automóveis cujas liquidações de IUC se contestam.

Assim, verifica-se, que as viaturas em causa, no período que ora nos ocupa, se encontravam cedidas a terceiros, ao abrigo de contratos de locação financeira.

Deste modo, constata-se o preenchimento das previsões, quer do n.º 1, quer do n.º 2, do artigo 3.º do CIUC.

 

A questão que se coloca, então, é a de saber se a verificação daquele n.º 2 afasta ou não a sujeição resultante do n.º 1.

Veja-se a Decisão Arbitral do CAAD proferida no Processo n.º 232/2014-T:

“Não sendo questão de solução linear, podendo elaborar-se argumentos quer num quer noutro dos possíveis sentidos de resposta, entende-se que a resposta a dar deverá ser positiva, ou seja, que no caso de existir um “equiparado” a proprietário, a sujeição deste (do proprietário) ver-se-á afastada, sendo apenas o “equiparado” sujeito passivo do imposto.

Esta resposta impor-se-á, julga-se, essencialmente e para além do mais, por razões de coerência do sistema, tendo em conta, sobretudo, que no caso do IMI (cfr. artigo 8.º/2 e 3) a sujeição a imposto por não-proprietário afasta a sujeição do proprietário.

Assim, não obstante a distinta –e, porventura, pouco feliz – terminologia utilizada no CIUC, tendo em conta os critérios interpretativos formulados no artigo 9.º do Código Civil, e em especial a falta de motivos para que um legislador razoável regule em termos distintos a equiparação à propriedade nos casos do IUC e do IMI, entende-se que, efectivamente, a definição do sujeito passivo daquele imposto se fará, alternativamente (e não cumulativamente), nos termos do n.º 1 ou do n.º 2 do artigo 3.º do respetivo Código.

Este entendimento, de resto, é reforçado pela obrigação consagrada no artigo 19.º do CIUC, que impõe “às entidades que procedam à locação financeira” a obrigação “fornecer à Direcção-Geral dos Impostos os dados relativos à identificação fiscal dos utilizadores dos veículos locados”. Naturalmente que esta obrigação apenas se compreenderá, na perspectiva de que as entidades locadoras vejam a sua sujeição afastada por força da locação, já que, se assim não fosse, aquela não faria sentido, uma vez que a AT poderia sempre cobrar o imposto em causa à locadora, entidade que será, de resto e por regra, mais solvente que o locatário.

Deste modo, estando os veículos em questão em regime de locação financeira, o sujeito passivo do respetivo IUC será o locatário, nos termos do n.º 2 do artigo 3.º do CIUC, e não a Requerente, enquanto proprietária, nos termos do n.º 1 do mesmo artigo.

Não obsta ao que vem de se concluir, a circunstância de a Requerente poder não ter dado o devido cumprimento ao disposto no atrás referido artigo 19.º do CIUC. Com efeito – e como é bom de ver – a sanção pelo incumprimento de qualquer obrigação que a esse respeito caiba ou coubesse à requerente, ter-se-ia sempre que procurar em sede do Regime das Infracções Tributárias, e não, naturalmente, na sujeição a um imposto”.

 

 

Confirma explica E… no parecer junto pela Requerente como ANEXO D “As normas referidas revelam à saciedade que o Imposto Único de Circulação não tem o veículo, em si mesmo, como objecto da sua incidência, mas, antes, a sua utilização (em acto ou em potência).”

Ou seja, concordamos com o entendimento do referido autor ao referir que “é o uso poluente que constitui o pressuposto ambiente como é este (…)” e que “as pessoas indicadas no artigo 3.º, segunda parte do CIUC – locatários financeiros, adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação – são sujeitos passivos do IUC”.

Face ao exposto, as liquidações a que se refere o presente processo em erro de direito, devendo, como tal, ser anuladas.

 

 

b)     Quanto à admissão dos contratos de locação financeira

Conforme já referido em Despacho arbitral datado de 31.03.2015, atentos os princípios constantes dos artigos 16.º e 19.º, ambos do RJAT, e tendo em conta que se tratam de documentos relevantes para a formulação da decisão, admite-se a junção dos documentos, indeferindo-se a pretensão da AT quanto à não admissão dos mesmos.

 

c)       Relativamente aos juros indemnizatórios

Apreciando, ao abrigo do art. 24.º, n.º 5, do RJAT, o pedido de pagamento de juros indemnizatórios a favor da requerente (art. 43.º da LGT e 61.º do CPPT):

 

 

A este respeito, lembrou a DA n.º 26/2013-T, de 19/7/2013 (que tratou de situação muito semelhante à ora em apreciação): “O direito a juros indemnizatórios a que alude a norma da LGT supra referida pressupõe que haja sido pago imposto por montante superior ao devido e que tal derive de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da AT. […] ainda que se reconheça não ser devido o imposto pago pela requerente, por não ser o sujeito passivo da obrigação tributária, determinando, em consequência, o respectivo reembolso, não se lobriga que, na sua origem, se encontre o erro imputável aos serviços, que determina tal direito [a juros indemnizatórios] a favor do contribuinte. Com efeito, ao promover a liquidação oficiosa do IUC considerando a requerente como sujeito passivo deste imposto, a AT limitou-se a dar cumprimento à norma do n.º 1 do art. 3.º do CIUC, que, como acima abundantemente se referiu, imputa tal qualidade às pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados.”

 

 

Atendendo a esta justificação, com a qual se concorda, conclui-se, também no presente caso, pela improcedência do mencionado pedido de pagamento de juros indemnizatórios.

 

 

IV. Decisão

 

 

Nestes termos, e com os fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide:

 

- Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, com a consequente anulação, com todos os efeitos legais, dos atos de liquidação impugnados e o reembolso das importâncias indevidamente pagas;

 

- Julgar improcedente o pedido na parte que diz respeito ao reconhecimento do direito a juros indemnizatórios a favor da Requerente.

 

Fixa-se o valor do processo em € 3.315,12 (três mil, trezentos e quinze euros e doze cêntimos), nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 612,00, nos termos da Tabela I do Regulamento de Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar totalmente pela Requerente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

 

Lisboa, 26 de Novembro de 2015

O árbitro,

 

 

 

Guilherme W. d’Oliveira Martins



[1] Cfr. o artigo 3.º, n.º 1, do Regulamento do Imposto Municipal sobre Veículos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 143/78, de 12 de junho.