Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 783/2014-T
Data da decisão: 2015-09-21   
Valor do pedido: € 91.795,12
Tema: IRC – Abates por quebras
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Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), Nuno Maldonado de Sousa e Luís Menezes Leitão, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral, na seguinte

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

1.     Relatório

 

  1. No dia 24 de Novembro de 2014, A… Comércio de Produtos Alimentares, Ld.ª, NIPC …, com sede na …, n.º …, …, …, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade do acto de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das pessoas Colectivas (IRC) e juros compensatórios referentes ao exercício de 2010, no valor total de € 91.795,12.

 

  1. Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que não se verificam os pressupostos de facto do artigo 38.º do CIRC, aplicado na liquidação contra a qual se insurge, e que, mesmo que assim não se entenda, atentas as circunstâncias concretas da sua actividade, o cumprimento literal daquele normativo seria impossível, tendo a Requerente, na medida do possível, dado cumprimento ao mesmo.

 

  1. No dia 24-11-2011, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

  1. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

  1. Em 15-11-2015, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

  1. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 30-01-2015.

 

  1. No dia 02-03-2015, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se unicamente por impugnação.

 

  1. No dia 07-05-2015, realizou-se a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, onde foram inquiridas as testemunhas, no acto, apresentadas pela Requerente, tendo aí, desde logo, sido prorrogado o prazo a que alude o artigo 21.º/1 do RJAT.

 

  1. Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.

 

  1. Foi fixado o prazo de 30 dias para a prolação de decisão final, após a apresentação de alegações da AT.

 

  1. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5º. e 6.º, n.º 1, do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

 

O processo não enferma de nulidades.

 

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir

 

2.     Decisão

 

3.       Matéria de facto

3.1.1.    Factos que se consideram provados

Nestes autos ficaram assentes os seguintes factos:

A.    A Requerente é uma sociedade comercial que tem como atividade principal a produção e venda de produtos de pastelaria, nomeadamente, pão e todo o tipo de bolos e a sua produção destina-se a ser comercializada, na sua maior parte embalada. [1ºRI[1] e PA1[2], p. 4].

B.    Os clientes da Requerente são empresas de catering ou de comércio de produtos alimentares. [1ºRI e PA, p. 4].

C.    A Requerente tem sede em … – …]. [2º RI; PA1, p. 3].

D.    A Requerente está enquadrada no regime de IVA normal, de periodicidade mensal. [3º RI e PA1, p. 4].

E.     Teve lugar por parte da AT[3] uma ação inspetiva à Requerente, ao abrigo da ordem de serviço identificada como OI 20140 …, que incidiu sobre o exercício do ano 2010, em cujo relatório, para além do mais se afirma que: [4º e 5º RI]

a.      No exercício de 2010 a Requerente registou perdas em inventários/regularização de existências relativas a abates de mercadorias no valor de 306.910,38 €; [PA1, p. 6]

b.     Os produtos, quantidades e valores, são similares em cada abate e as comunicações dos abates não se encontram certificadas por nenhuma pessoa independente dos órgãos de gestão da sociedade; [PA1, p. 6]

F.     A maior parte dos produtos constantes dos abates de inventários referem-se a produtos acabados, produzidos e embalados na empresa, com prazo de validade estabelecido, mas não havendo evidência de que esse prazo tivesse terminado; [PA1, p.7]

G.    A Requerente enviou, com 5 dias de antecedência, as correspondentes comunicações de abate ao Serviço de Finanças da área onde os abates iriam ocorrer, juntando as relações discriminativas com as quantidades e valorização dos bens a abater; [PA1, p.7]

a.      A documentação justificativa dos abates não integra o processo de documentação fiscal; [PA1, p.7]

b.     Constam do processo cópias de todos os requerimentos enviados ao Serviço de Finanças, relativos aos abates; [PA1, p.7]

H.    Conclui que o lucro tributável corrigido determinado por correções meramente aritméticas à matéria coletável, para o exercício de 2010, é de:

RESULTADO TRIBUTAVEL

2010

Resultado Tributável Declarado

€ 70.585,64

Valor a Corrigir

€ 306.910,38

Resultado Tributável Corrigido

€ 377.496,02

[PA1, p.13]

I.       Conclui também no que concerne ao IVA, que a Requerente não entregou nos cofres do Estado o imposto que deveria ter liquidado relativamente aos ajustamentos em inventários / abates, no montante de € 36.934,62; [PA1, pp.14-15]

J.      Sobre o relatório de inspeção tributária incidiu despacho de confirmação do teor pelo Chefe de Equipa e concordância pela Chefe de Divisão, no uso de competência subdelegada pelo Diretor de Finanças Adjunto, que determinou a alteração do prejuízo fiscal / lucro tributável / matéria tributável nos termos propostos [13º RI; doc. 1 RI, pp. 2-3].

K.    No exercício de 2010 a Requerente registou perdas em inventários/regularização de existências relativas a abates de mercadorias no valor de 306.910,38 € [7º RI; PA1, p. 6].

L.     A Requerente enviou ao Serviço de Finanças da área onde os abates iriam ocorrer as correspondentes comunicações de abate, juntando as relações discriminativas com as quantidades e valorização dos bens a abater. [8º e 49º RI; PA1, p.7].

M.   As comunicações de abate enviadas pela Requerente ao Serviço de Finanças mencionaram a data e a hora previstas e a relação dos bens a destruir e a inutilizar. [49º RI; PA2, pp. 3-31].

N.    A Requerente foi notificada da liquidação de IRC do exercício de 2010 feita em 11-09-2014, da qual resulta valor a pagar até 12-11-2014, no montante de 91.795,12 €, que inclui 10.463,87 € de juros compensatórios relativos ao período que decorre entre 04-06-2011 e 20-08-2014. [16º RI e seu doc. 2].

O.    Na atividade da Requerente são normais e recorrentes as percas de mercadoria, designadamente bolos de pastelaria, semifrios, ovos e natas que rapidamente se degradam e se estragam ou que ultrapassam os prazos de qualidade e validade. [28º-30º RI e prova testemunhal].

P.     Na atividade da Requerente há artigos que são devolvidos pelos clientes por não terem sido por estes vendidos dentro dos respetivos prazos de validade [31º RI e prova testemunhal].

Q.    A Requerente procede a ajustamentos em inventários por perdas de mercadoria fácil e rapidamente perecível de forma regular e periódica [32º RI, prova testemunhal].

R.    Os ajustamentos em inventário registados pela Requerente, que deram lugar à dedução no apuramento do lucro tributável, corresponderam às comunicações a que se referem os documentos constantes de folhas 3 a 16 e 19 a 31 da parte 2 do processo administrativo. [34º RI; PA1, p. 7 e PA2, pp. citadas].

S.     A Requerente registou essas perdas contabilisticamente como perdas em inventário (quebras) movimentando as contas 38 e 68 [39º RI, prova testemunhal].

T.     Relativamente à destruição das mercadorias referidas no ponto anterior e reportada a 26-06-2010 foram elaborados autos, que foram assinados pelas pessoas neles identificadas, como a tendo presenciada [35º, 45º e 51º RI; PA2, p. 17].

U.    As testemunhas que subscreveram o referido documento datado de 26-06-2010 são nele identificadas como os gerentes da requerente B… e C… [41.º R-AT[4]; PA2, p. 17].

V.    Em cada um dos exercícios entre 2008 e 2011, a Requerente declarou regularizações de existências cujos valores oscilam entre os €270.000,00 e €320.000,00, representando entre 17,00% e 24,79% do total das existências iniciais acrescidas das compras [RIT[5], p. 5].

W.  No caso do exercício de 2010, a ora Requerente declarou regularizações de existências no montante de €320.200,98 que representam 18.10% do total das existências iniciais acrescidas das compras [RIT, p. 6].

 

3.1.2.    A Factos que se consideram não provados

Em 44º do seu RI a Requerente afirmou que as mercadorias discriminadas nas relações juntas aos requerimentos de comunicação dos abates e aos autos de destruição respetivos, foram destruídas e não comercializadas. A Requerente não produziu qualquer prova relativamente à destruição concreta das mercadorias que afirma ter abatido, pois não foi prestado depoimento por qualquer dos intervenientes nas comunicações citadas. Esta alegação de facto trazida pela Requerente é de algum modo impugnada pela AT na sua Resposta (66º a 72º), onde sustenta que os procedimentos utilizados pela Requerente não permitem fazer aquela afirmação, uma vez que não são estruturados de modo a garantir a identificação e controlo rigorosos das matérias destruidas. Sustenta a sua posição em experiência adquirida  em 13-10-2012, quando os inspetores tributários D… e E… compareceram na empresa em resultado do requerimento prévio apresentado pela Requerente, a fim de conferir a inutilização dos produtos de pastelaria a abater e que verificaram a existência no local de vários caixotes de lixo e que no interior dos mesmos se encontravam produtos indistintamente misturados, impossibilitando o confronto dos produtos e respectivas quantidades existentes dentro dos contentores de plástico, com a relação enviada pelo sujeito passivo ao serviço de finanças, tendo ainda obtido informação do sócio gerente da Requerente C…, de ser aquela a forma como habitualmente juntam os resíduos de forma a poderem ser recolhidos pelos serviços municipalizados, em contentores de 1.000 litros. A informação dos referidos inspetores constitui o documento n.º 1 junto com a R-AT, que não foi impugnado. Também a testemunha F…, licenciada em engenharia biológica e alimentar que faz o controlo do produto para a Requerente, afirmou que os excessos de produtos e matérias primas impróprias constituem resíduos, separados diariamente para depósito em contentores especiais, para remoção quinzenal pelos Serviços Municipalizados. Resulta evidente que a metodologia utilizada não permite aferir que produtos foram destruidos no exato momento em que esta tecnicamente ocorre. Não tendo a Requerente produzido qualquer prova em benefício da sua versão, não é possível considerar como assente esta matéria (nem o seu contrário). Ressalva-se a inutilização de produtos efetuada em 26-06-2010, relatada em documento constante do PA2 (p. 17), cuja veracidade não foi posta em causa pela AT.

            Em 67º do RI, a Requerente afirma que as comunicações relativas aos abates integram o processo de documentação fiscal. A AT impugna expressamente essa alegação em 18º. A Requerente acrescenta (68º) que a AT teve acesso aos documentos durante a ação de inspeção, tendo deles extraído cópia. Pela consulta do processo administrativo, verifica-se que nele se encontram cópias dos requerimentos, com sinais de terem sido extraídas de exemplares do arquivo da contabilidade da Requerente (veja-se a numeração e vestígios de carimbos em PA2, pp. 3-31, em especial pp. 6, 7 e 9). No entanto, não se logra afirmar, com a necessária segurança que tais documentos integrassem o processo de documentação fiscal organizado nos termos do artigo 130.º do CIRC, ou qualquer outra pasta de arquivo da Requerente. Em todo o caso, deveria a Requerente, pretendendo demonstrar o que alegou, juntar o Processo de Documentação Fiscal, em causa, o que esclareceria qualquer dúvida.

 

3.1.3.    Formação da convicção quanto aos factos que se consideram provados

A convicção do tribunal assentou na prova documental constante dos autos e na posição tomada relativamente a cada facto pelas Partes nos articulados, devidamente identificada[6].

Em especial foram ainda relevantes os seguintes elementos, relativamente aos factos seguintes:

1.   Facto K: No mesmo sentido e com conhecimento sobre o tema depuseram as testemunhas G…, H… e I…, técnica oficial de contas da Requerente há mais de 10 anos.

2.   Facto L: Depuseram em sentido coincidente, com conhecimento sobre a matéria, as testemunhas G… e H….

3.   Factos M e O: No sentido consignado depôs a testemunha I…, conhecedora do tema.

 

4.       Matéria de Direito

 

Ao contrário do enquadramento feito pela AT, não impugna a Requerente a legalidade das liquidações em questão no presente processo, invocando o vício de falta de fundamentação, mas, antes, contesta a conformidade dos referidos actos tributários com a lei, por erro nos seus pressupostos de facto e de direito.

Efectivamente, a Requerente não contesta a exposição do iter decisório percorrido pela AT nos actos contra os quais se insurge, mas, antes, apreendendo-o e compreendendo-o, discorda do mesmo, alegando, em suma que foi incorrecto o processo de aplicação do direito aos factos, ali encetado.

      Vejamos se tem razão.

*

Na parte relativa à motivação decisória, e para o que releva no presente processo, no seguimento do exposto no ponto E.d. dos factos acima dados como provados, do RIT consta que:

No entanto, tal prazo torna-se exíguo, no sentido de permitir aos Serviços da Administração Tributária de procederem À verificação presencial de tais abates, pelo que, o sujeito passivo deveria cumprir o prazo estipulado no Art.º 38º do CIRC, utilizado para efetuar tais comunicações em casos análogos.

Logo ficou impossibilitada a comprovação dos correspondentes abates, bem assim como da efetiva destruição/inutilização dos bens constantes das relações discriminativas desses abates.

Acresce referir que estes ajustamentos não integram o processo de documentação fiscal nos termos do Art.º 130º do CIRC.

Atendendo a que tais gastos não se consideram "comprovadamente indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora", nos termos do Art.º 23º do CIRC, bem como, não tendo sido cumpridos os requisitos estipulados no Art.º 28º do CIRC, para que tais ajustamentos sejam considerados como gasto do período de tributação, estes terão que ser acrescidos ao Resultado Tributável do exercício de 2010, sendo o seu montante de €306.910,38 (Vide Anexo I).

Refere-se que se encontram nos papéis de trabalho, junto ao processo, cópias de todos os requerimentos enviados ao Serviço de Finanças, relativos aos abates.

            Conforme resulta de forma meridianamente clara da leitura do RIT, a decisão da AT assenta, basilarmente, na aplicação ao caso do artigo 38.º do CIRC, vigente à data dos factos, e no não acatamento, pela Requerente, quer do prazo fixado no n.º 3/c) daquela norma, no que diz respeito à comunicação dos abates realizados, quer da obrigação de documentação imposta pelo n.º 6 da mesma, daí concluindo pelo não preenchimento dos pressupostos do artigo 28.º e 23.º do CIRC.

            A redacção do artigo 38.º do CIRC, em causa no presente processo, era a seguinte:

 

“Artigo 38.º

Desvalorizações excepcionais

1 — Podem ser aceites como perdas por imparidade as desvalorizações excepcionais referidas na alínea c) do n.º 1 do artigo 35.º provenientes de causas anormais devidamente comprovadas, designadamente, desastres, fenómenos naturais, inovações técnicas excepcionalmente rápidas ou alterações significativas, com efeito adverso, no contexto legal.

2 - Para efeitos do disposto no número anterior, o sujeito passivo deve obter a aceitação da Direcção-Geral dos Impostos, mediante exposição devidamente fundamentada, a apresentar até ao fim do primeiro mês do período de tributação seguinte ao da ocorrência dos factos que determinaram as desvalorizações excepcionais, acompanhada de documentação comprovativa dos mesmos, designadamente da decisão do competente órgão de gestão que confirme aqueles factos, de justificação do respectivo montante, bem como da indicação do destino a dar aos activos, quando o abate físico, o desmantelamento, o abandono ou a inutilização destes não ocorram no mesmo período de tributação.

3 - Quando os factos que determinaram as desvalorizações excepcionais dos activos e o abate físico, o desmantelamento, o abandono ou a inutilização ocorram no mesmo período de tributação, o valor líquido fiscal dos activos, corrigido de eventuais valores recuperáveis pode ser aceite como gasto do período, desde que:

a) Seja comprovado o abate físico, desmantelamento, abandono ou inutilização dos bens, através do respectivo auto, assinado por duas testemunhas, e identificados e comprovados os factos que originaram as desvalorizações excepcionais;

b) O auto seja acompanhado de relação discriminativa dos elementos em causa, contendo, relativamente a cada activo, a descrição, o ano e o custo de aquisição, bem como o valor líquido contabilístico e o valor líquido fiscal;

c) Seja comunicado ao serviço de finanças da área do local onde aqueles bens se encontrem, com a antecedência mínima de 15 dias, o local, a data e a hora do abate físico, o desmantelamento, o abandono ou a inutilização e o total do valor líquido fiscal dos mesmos.

4 - O disposto nas alíneas a) a c) do número anterior deve igualmente observar-se nas situações previstas no n.º 2, no período de tributação em que venha a efectuar-se o abate físico, o desmantelamento, o abandono ou a inutilização dos activos.

5 — A aceitação referida no n.º 2 é da competência do director de finanças da área da sede, direcção efectiva ou estabelecimento estável do sujeito passivo ou do director dos Serviços de Inspecção Tributária, tratando-se de empresas incluídas no âmbito das suas atribuições.

6 — A documentação a que se refere o n.º 3 deve integrar o processo de documentação fiscal, nos termos do artigo 130.º “

            Conforme a leitura da norma legal em análise desvela, a mesma dirige-se a situações qualificadas como “desvalorizações excepcionais”, referidas na al. c) do n.º 1 do artigo 35.º do CIRC (“verificadas em activos fixos tangíveis, activos intangíveis, activos biológicos não consumíveis e propriedades de investimento”), provenientes de causas anormais (“desastres, fenómenos naturais, inovações técnicas excepcionalmente rápidas ou alterações significativas, com efeito adverso, no contexto legal”).

            Ora, face à factualidade apurada no presente processo, e já no próprio RIT, afigura-se evidente que não estamos perante “desvalorizações excepcionais”, nos termos pressupostos pela norma aplicada pela AT, no acto tributário impugnado.

            Com efeito, constava já do RIT que a Requerente procedia regularmente a abates, e que os produtos, quantidades e valores, são similares em cada abate.

            Também na sua resposta, e relativamente aos referidos abates, a Requerida neste processo reconhece, por exemplo, “a sua constância (alegada destruição – sempre situada nos mesmos valores e tipos de bens), e realização quinzenal, independentemente de qualquer alteração de quotidiano - calendário – dias festivos – feriados.” (artigo 48.º), o que é, julga-se, incompatível com o carácter excepcional manifestamente pressuposto pelo artigo 38.º do CIRC, aplicado no acto tributário em crise neste processo.

            Por fim, resulta dos factos dados como provados que:

- Na atividade da Requerente são normais e recorrentes as percas de mercadoria, designadamente bolos de pastelaria, semifrios, ovos e natas que rapidamente se degradam e se estragam ou que ultrapassam os prazos de qualidade e validade;

- Na atividade da Requerente há artigos que são devolvidos pelos clientes por não terem sido por estes vendidos dentro dos respetivos prazos de validade;

- A Requerente procedeu a ajustamentos em inventários por perdas de mercadoria fácil e rapidamente perecível de forma regular e periódica;

- Os ajustamentos em inventário registados pela Requerente, que deram lugar à dedução no apuramento do lucro tributável, corresponderam às comunicações a que se referem os documentos de folhas 3 a 16 e 19 a 31 da parte 2 do processo administrativo.

- A Requerente registou essas perdas contabilisticamente como perdas em inventário (quebras) movimentando as contas 38 e 68.

            Neste contexto, não restarão dúvidas que não se encontram demonstrados os pressupostos de aplicação das normas do artigo 38.º do CIRC, vigente á data, e acima transcritas, maxime, dos seus n.ºs 3/c) e 6. Ou seja, e em suma, não estamos perante “desvalorizações excepcionais”, mas, antes, perante a eliminação de produtos perecíveis resultantes do normal processo produtivo da Requerente, e insusceptíveis de reaproveitamento naquele.

            Note-se, de resto, que a própria AT, no RIT, parece reconhecer isso mesmo, e entender que as normas em causa se aplicarão por analogia, ao referir que “o sujeito passivo deveria cumprir o prazo estipulado no Art.º 38º do CIRC, utilizado para efetuar tais comunicações em casos análogos”. Contudo, nada adianta a AT no sentido de sustentar e consubstanciar tal analogia, em termos de se poderem considerar demonstrados os pressupostos dessa putativa aplicação analógica das normas em causa, sendo certo que, como se escreveu no Ac. do STA de 18/06/2015, proferido no processo 0808/14[7], citando o Prof. José Carlos Vieira de Andrade, “há-de caber, em princípio, à Administração o ónus da prova da verificação dos pressupostos legais [vinculativos] da sua actuação, designadamente agressiva [positiva ou desfavorável]; em contrapartida, caberá ao impugnante apresentar prova bastante da ilegitimidade do acto, quando se mostrem verificados esses pressupostos. Por outras palavras ainda, deve ser a Administração a suportar a desvantagem de não ter sido feita a prova [de o juiz não se ter convencido] da verificação dos pressupostos legais que permitem à Administração agir com autoridade [pelo menos, quando produza efeitos desfavoráveis para os particulares];”.

            Para além disso, será de notar também que, no fundo, a AT parece reconhecer o quadro factual subjacente aos registos contabilísticos efectuados pela Requerente, ou seja, a ocorrência efectiva de perdas ou quebras regulares decorrentes da perecibilidade das matérias primas e produtos empregues pela Requerente no seu processo produtivo, o que, diga-se, será até um facto notório, atento o sector de actividade onde aquela opera. O que a AT contestará, no fundo, será a quantificação de tais perdas ou quebras[8]. Ou seja, desde a própria motivação da acção inspectiva, até ao elenco de factos realçados por esta, tudo aponta no sentido de que aquilo que a AT pretenderia questionar não seria a ocorrência ou não do tipo de perdas ou quebras registadas, inquestionavelmente – julga-se – correntes ou ordinárias (por contraposição a excepcionais), mas o quantitativo das mesmas, suspeitando que a Requerente declarará e registará quebras superiores às efectivamente decorrentes da sua actividade normal. Ora, a ser esse o entendimento da AT, como parece que será, deveria ter sido, evidentemente, outro o trilho percorrido por aquela[9].

            Em todo o caso, como se escreveu no Acórdão do STA de 04-09-2013, proferido no processo 0164/12[10],  “São estes os fundamentos que a AT utilizou para fundamentar a referida correcção do lucro tributável declarado e a consequente liquidação adicional. É à luz desses fundamentos, e exclusivamente à luz dos mesmos, que deve aferir-se a legalidade da liquidação adicional impugnada, pois para este efeito não podem considerar-se outros fundamentos que não os que foram externados aquando da prática do acto. Na verdade, em sede de contencioso de mera anulação, como o é o presente, e em que o pedido seja de anulação do acto recorrido, a legalidade deste acto deve aferir-se, atentos os vícios que lhe são assacados (as causas de pedir invocadas) ou os que sejam do conhecimento oficioso, em face dos fundamentos externados pela Administração para a prática do acto e quando da prática deste”.

            À luz desta jurisprudência[11], serão irrelevantes as considerações formuladas pela AT, já em sede de contencioso arbitral, segundo a qual “não existe uma declaração/auto de uma qualquer entidade independente a atestar que aqueles alimentos, naquelas quantidades, não poderiam ser comercializados ou utilizados no processo produtivo, atestando que esse prazo de validade teria terminado, justificando, desse modo, a inutilização dos produtos” (artigo 40.º da resposta), inexiste “justificação para a falta de introdução de medidas, de gestão para diminuir, mesmo que gradualmente, estes desperdícios/destruições optando, vg, por compras de menores quantidades.” (artigo 55.º da resposta), ou “não foi de todo comprovado: - A natureza e quantidade dos bens destruídos (que seriam aqueles que constavam da relação de bens enviada); -Que estes já não estavam em condições de serem comercializados – que tinha sido ultrapassado o prazo de validade; -A destruição efectiva - não foi comprovada aquela destruição devido à falta de comparência dos serviços municipalizados, no local e hora marcados, que aliás eram sempre os mesmos, e com frequência bimensal;” (artigo 71.º da resposta), já que não foi em tais circunstâncias de facto que assentou o acto tributário em crise no presente processo arbitral.

            Do mesmo modo, não serão atendíveis, as considerações, igualmente aportadas pela AT na presente sede, relativas a disposições do Regulamento (CE) n.º 178/2002, de 28 de Janeiro (regulamento base da segurança alimentar europeia) e do Regulamento (CE) nº1069/2009, de 21 de Outubro (cfr. artigos 75.º e ss. da Resposta), já que tais normas não integram os fundamentos de direito do acto tributário cuja legalidade ora cumpre sindicar.

            Deste modo, carecendo de fundamento de facto a aplicação das normas do artigo 38.º do CIRC, vigente à data, efectuada no acto tributário objecto da presente acção arbitral, deverá aquele ser considerado ilegal, não se validando, consequentemente, as conclusões retiradas no RIT, e atrás transcritas, pelo que deverá o referido acto ser anulado, nos termos peticionados pela Requerente.

           

5.     Dispositivo

 

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência, anular a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das pessoas Colectivas (IRC) e juros compensatórios referentes ao exercício de 2010 da Requerente, no valor total de € 91.795,12, objecto do presente processo.

 

6.     Valor do processo

 

Fixa-se o valor do processo em €91.795,12, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

7.     Custas

 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €2.754,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela AT, uma vez que o pedido foi totalmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

 

Notifique-se.

 

Lisboa

 

21 de Setembro de 2015

 

 

O Árbitro Presidente

(José Pedro Carvalho)

 

O Árbitro Vogal

(Nuno Maldonado de Sousa)

 

 

O Árbitro Vogal

(Luís Menezes Leitão)

 



[1] Nesta peça utiliza-se a sigla “R.I.” para designar o requerimento inicial apresentado pelo Requerente e “R.S.” para referenciar o seu requerimento trazendo aos autos factos supervenientes.

[2] Nesta peça utiliza-se a sigla “PA.” para designar o processo administrativo junto aos autos.

[3] Nesta decisão também designada pela forma abreviada “AT” como é de uso generalizado.

[4] Nesta peça utiliza-se a sigla “R-AT” para designar o requerimento de resposta a que se refere o artigo 17º-1 RJAT

[5] Nesta peça utiliza-se a sigla “RIT” para designar o relatório de inspecção tributária.

[6] Referenciação entre parênteses retos.

[7] Disponível para consulta em www.dgsi.pt.

[8] O que se evidencia, para além do mais, nas constatações veiculadas pela AT, segundo a qual “Em cada um dos exercícios entre 2008 e 2011, a Requerente declarou regularizações de existências cujos valores oscilam entre os €270.000,00 e €320.000,00, representando entre 17,00% e 24,79% do total das existências iniciais acrescidas das compras.” e “No caso do exercício de 2010, a ora Requerente declarou regularizações de existências no montante de €320.200,98 que representam 18.10% do total das existências iniciais acrescidas das compras.”.

[9] Sendo esse o caso, deveria a AT ter procurado determinar, de forma directa, se possível, ou indirecta, se necessário, o quantitativo que entendesse ser o que melhor corresponderia, na sua óptica à realidade tributária da Requerida.

[10] Disponível em www.dgsi.pt.

[11] Que se subscreve, com a precisão de que se deverá ter sempre presente a distinção entre fundamentação (também referida como “fundamentação formal”) e fundamento (também referido como “fundamentação substancial”), estando o Tribunal vinculado aos fundamentos (de facto e de direito) em que assentou o acto impugnado, mas não há fundamentação utilizada naquele. A propósito da distinção entre “fundamentação formal” e “fundamentação substancial”, cfr. o Ac. do TCA-Sul de 19-06-2012, proferido no processo n.º 03096/09 (disponível em www.dgsi.pt), onde, para além do mais, se pode ler que “uma coisa é saber se a Administração deu a conhecer os motivos que a determinaram a actuar como actuou, as razões em que fundou a sua actuação, questão que se situa no âmbito da validade formal do acto; outra, bem diversa e situada já no âmbito da validade substancial do acto, é saber se esses motivos correspondem à realidade e se, correspondendo, são suficientes para legitimar a concreta actuação administrativa”.