Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 637/2022-T
Data da decisão: 2023-06-06  IRC  
Valor do pedido: € 2.406.675,42
Tema: IRC; Determinação da Matéria Coletável; Dedutibilidade de Gastos de Financiamento.
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SUMÁRIO: O regime da limitação à dedutibilidade de gastos de financiamento previsto no artigo 67.º do Código do IRC, na parte relativa à limitação do reporte dos gastos de financiamento líquidos não dedutíveis remanescentes até ao quinto período de tributação posterior, visa combater, nomeadamente, a erosão da base tributária, não padecendo de qualquer ilegalidade ou desconformidade, face ao disposto na Diretiva (UE) 2016/1164, do Conselho, de 12 de julho de 2016, que estabelece regras contra as práticas de elisão fiscal no mercado interno, ou às liberdades fundamentais estabelecidas nos Tratados da União Europeia e na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, nem se afigura inconstitucional, face ao teor da Constituição da República Portuguesa, não infringindo os princípios da igualdade, da capacidade tributária, da tributação pelo lucro real e da proporcionalidade.

***

 

DECISÃO ARBITRAL

I.              Relatório

A A..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede na ..., n.º ..., ...-... Lisboa (doravante “Requerente”), notificada do ato de indeferimento expresso da reclamação graciosa com o n.º ...2022..., datado de 21 de julho de 2022, apresentada contra o ato de autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) relativo ao exercício de 2019, pretende que seja corrigida a matéria coletável de forma a relevar fiscalmente os gastos de financiamento líquidos incorridos no exercício de 2013, que não lhe foi permitido deduzir integralmente nesse exercício, nem em nenhum dos períodos subsequentes, face à limitação do período de reporte consagrado no n.º 2 do artigo 67.º do CIRC, sendo o período de tributação de 2018 o quinto período posterior a 2013, no qual findou o direito a reportar os sobreditos gastos.

A Requerente vem, nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e artigo 10.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Regime Jurídico da Arbitragem Administrativa ("RJAT") deduzir pedido de pronúncia arbitral contra o ato de indeferimento da reclamação graciosa acima referida, pedindo a sua anulação e consequente anulação da autoliquidação de IRC subjacente à apresentação da reclamação graciosa.

 

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 24-10-2022.

A Requerente e a Requerida não designaram árbitros, tendo os mesmos sido designados pelo Presidente do Conselho Deontológico do CAAD em 16-12-2022.

Por despacho de 03-01-2022 do Presidente do Conselho Deontológico do CAAD ficou constituído o Tribunal Arbitral.

A AT, devidamente notificada para o efeito em 03-01-2023, apresentou a sua Resposta, defendendo-se por exceção e impugnação, em 06-02-2023, tendo ainda junto o PA.

Por despacho de 07-02-2023 foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e facultando às partes a possibilidade de, querendo, apresentarem alegações escritas no prazo simultâneo de 20 dias, contados da notificação do mencionado despacho, podendo a Requerente pronunciar-se sobre a exceção invocada pela Requerida na Resposta no mesmo prazo.

Em 06-03-2023 a Requerente pronunciou-se sobre as exceções suscitadas pela Requerida e apresentou as suas alegaçõesescritas.

Em 07-03-2023 a Requerida apresentou as alegações escritas.

Por despacho de 23-05-2023, o Tribunal Arbitral procedeu à alteração do valor do processo. 

 

II.            Razões Aduzidas pelas Partes

 

II.1      Pela Requerente       

a)                 A Requerente é a sociedade dominante do Grupo B..., uma sociedade constituída segundo o direito português e residente em Portugal, sendo tributada em IRC no regime especial de tributação dos grupos de sociedades (abreviadamente RETGS). 

b)                 A C..., S.A. é uma sub-holding do Grupo B... cujo capital é detido por este grupo em 58,6%. 

c)                 Os 58,6% atualmente detidos pelo Grupo B... na C... são detidos através de duas empresas: a D..., Sociedade Unipessoal, Lda. em Portugal que detém 24,5% dos 58,6%, e o restante pela E..., S.L. em Espanha. 

d)                 Até 2016 a D..., Sociedade Unipessoal, Lda. denominou-se F...– Sociedade Unipessoal, Lda. (F...).

e)                 Em 2019 a F... era diretamente detida a 100% pela Requerente.

f)                  A Requerente financiou por via de suprimentos a F... para esta adquirir uma participação na C... . Esse financiamento, em 2008, montava a € 280.000.000,00 tendo, em 2016, este crédito da Requerente acabado por ser convertido em capital da F... mediante a realização de um aumento de capital em espécie. 

g)                 Na sequência dos gastos de financiamento incorridos em 2013 no valor de € 15.841.795,14 e no respeito do limite legal da dedução previsto no artigo 67.º do CIRC (à data, 70% do EBITDA do exercício de 2013, conforme a norma transitória da Lei do Orçamento do Estado para 2013), apenas foram deduzidos para efeitos de IRC € 11.565.020,63 do total de juros incorridos em 2013 pela F... .

h)                 Tendo sido acrescidos à declaração Modelo 22 os restantes € 4.276.774,51 em gastos de financiamento líquidos não deduzidos (concretamente, no quadro 7, linha 748 “Limitação à dedutibilidade de gastos de financiamento líquidos”).

i)                  Estes gastos de financiamento líquidos (não deduzidos) foram reportados no respetivo campo da declaração Modelo 22 para poderem ser deduzidos nos cinco períodos de tributação subsequentes a 2013.

j)                  A partir de 2014, com a alteração introduzida pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro ao artigo 67.º do CIRC (em particular ao número 5 deste normativo), o limite da dedutibilidade dos gastos de financiamento anuais começou a ser determinado com base no EBITDA do grupo abrangido pelo RETGS no qual se inclui a Requerente e a F... .

k)                 Todavia, por força do artigo 67.º, n.º 5, al. b) do CIRC, os gastos de financiamento líquidos de sociedades do grupo anteriores a 2014 e ainda não deduzidos apenas podem ser deduzidos ao EBITDA fiscal da sociedade a que respeitam, calculado individualmente.

l)                  O EBITDA fiscal do grupo abrangido pelo RETGS nos anos de 2014 a 2019 foi, respetivamente, de € 1.860.342.261,81; € 1.188.679.915,30; € 1.169.492.382,66; € 997.037.276,22; € 897.280.359,03 e € 670.187.810,33. Já o EBITDA fiscal da F... .

nos mesmos anos foi apenas de € 6.342.458,54; € 1.388.636,97; € 21.481.150,76; € 2.498.646,64; € 22.096.216,02 e € 12.756.613,83.

m)               Em 2014 e 2015 os juros pagos pela F... não conferiram direito a deduzir os gastos de financiamento líquidos não deduzidos que tinham sido reportados do exercício de 2013.

n)                 Em ambos os períodos, a F... incorreu em gastos de financiamento que ultrapassaram os limites legais e não lhe permitiram considerar fiscalmente os gastos de financiamento líquidos reportados do exercício de 2013.

o)                 Em 2016 a F... não incorreu em gastos de financiamento líquidos além dos limites legais da dedução, o que lhe permitiu considerar fiscalmente parte dos gastos de financiamento líquidos reportados do exercício de 2013.

p)                 Em concreto, a F... considerou o montante de € 1.870.099,09 (refletindo essa dedução na sua modelo 22 de 2016, no quadro 7, na linha 795 «Reporte dos gastos de financiamento líquidos de períodos de tributação anteriores»).

q)                 Pelo que, no final deste período a F... ficou ainda com um montante acumulado de gastos não dedutíveis respeitantes a 2013 no valor de € 2.406.675,42, potencialmente dedutíveis até ao 5.º período de tributação posterior a 2013.

r)                  Em 2017 e 2018 a F... não teve oportunidade de considerar os gastos de financiamento líquidos não deduzidos no exercício de 2013 – que tinham sido reportados (tal como tinha acontecido nos exercícios de 2014 e 2015).

s)                 Nestes últimos dois períodos, a F... incorreu em gastos de financiamento que ultrapassaram os limites legais e não lhe permitiram considerar fiscalmente os gastos de financiamento líquidos reportados de 2013.

t)                  Em 2018, sendo o 5.º período de tributação posterior a 2013, foi o último ano em que de acordo com o artigo 67.º, n.º 2, do CIRC, a F... poderia ter considerado fiscalmente os gastos de financiamento líquidos acumulados e reportados no exercício de 2013 por não os ter deduzido, nos termos do regime legal aplicável. 

u)                 No quadro resumo apresentado pela Requerente são os seguintes os gastos de financiamento líquidos incorridos entre 2013 e 2018:

 

 

 

v)                 Concluindo-se que do total de gastos de financiamento líquidos incorridos em 2013 (€ 15.841.795,14) só foi considerado fiscalmente o montante de € 13.435.119,72 (isto é € 11.565.020,63 em 2013 e € 1.870.099,09 em 2016), ficando por deduzir fiscalmente a quantia de € 2.406.675,42 em gastos de financiamento líquidos incorridos em 2013.

w)               Em razão deste financiamento, no exercício de 2013, o Grupo B... foi tributado duas vezes pela mesma realidade: 

(a)           Aquando do reconhecimento contabilístico dos rendimentos / juros (na esfera da Requerente); e 

(b)           Pela não aceitação fiscal dos gastos de financiamento (na esfera da F...). 

x)                 O regime jurídico português da limitação à dedutibilidade dos juros resulta de uma incorreta transposição da Diretiva ATAD, violando o Direito da União Europeia, nomeadamente a liberdade de circulação de capitais, bem como o princípio da igualdade consagrado na CDFUE.

y)                 O regime jurídico viola, também, o princípio da igualdade, capacidade tributária e tributação pelo lucro real constitucionalmente consagrados na CRP.

 

II.2      Pela Requerida

a)                 A A... S.A. apresentou, nos termos previstos nos artigos 68.º e 131°, ambos do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), Reclamação Graciosa contra o ato tributário de autoliquidação de IRC, respeitante ao período de tributação de 2019.

b)                 Nesse meio gracioso pretendia ver reconhecido como gasto fiscal do período de tributação o montante de € 2.406.675,42 respeitante a encargos de financiamento com empréstimos obtidos, nomeadamente, relativa ao contrato de suprimento existente entre a Requerente e a sua sociedade participada D..., Sociedade Unipessoal Lda., com fundamento em violação do direito constitucional e direito comunitário da norma contemplada no n.º 2 do art.º 67.º do CIRC que limita o reporte dos gastos de financiamento líquidos não deduzidos no período de tributação aos cinco seguintes.

c)                 Solicitou por isso a revisão do ato tributário de liquidação, corrigindo a matéria coletável de modo a refletir como gasto o montante de € 2.406.675,42.

d)                 Por despacho de 2022-07-21 do Exmo. Sr. Chefe da Divisão do Serviço Central, por subdelegação de competências, o pedido foi indeferido.

e)                 Na sua Resposta a Requerida vem refutar o valor da causa atribuído pela Requerente, por um lado e, por outro, vem defender-se por exceção, invocando a incompetência do Tribunal Arbitral para julgar o presente processo.

f)                  A Requerida defende a legalidade da sua atuação administrativa, assim como a legalidade do  n.º 2 do artigo 67.º do CIRC, considerando a plena conformidade desta norma com o direito comunitário e com o direito constitucional.

 

III.         Exceções invocadas pela Requerida

 

III. 1        Quanto ao Valor da Causa 

O Tribunal pronunciou-se sobre esta exceção em despacho arbitral próprio, para o qual  se remete, replicando abaixo o seu conteúdo, para os devidos efeitos:

“1. A Requerente indica como valor do processo € 505.401,84 que determinou pela aplicação da taxa de IRC de 21% à importância de € 2.406.675,42 de juros não deduzidos, sem apresentar qualquer suporte documental que o justifique. 

2. A Requerente pretende que seja corrigida a matéria coletável de forma a relevar fiscalmente os gastos de financiamento líquidos incorridos no exercício de 2013. 

3. A utilidade económica do pedido terá de ser determinada com base nos critérios legais, e não poderá́ corresponder a uma liquidação incerta que a Requerente ficciona no PPA, para efeitos de fixação do valor da causa. 

4. O RJAT não contém qualquer critério de determinação do valor aplicável aos caso de pedidos de declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável. Esse valor terá de ser determinado nos termos do CPPT e CPC, enquanto legislação subsidiária nos termos do artigo 29.º n.º 1 do RJAT.

5. Assim, o valor do Processo arbitral terá de ser determinado nos termos do artigo 97.º-A do CPPT ex vi artigo 29.º, n.º 1, c) do RJAT, o qual determina: "1 - Os valores atendíveis, para efeitos de custas ou outros previstos na lei, para as ações que decorram nos tribunais tributários, são os seguintes: a) Quando seja impugnada a liquidação, o da importância cuja anulação se pretende; b) Quando se impugne o acto de fixação da matéria colectável, o valor contestado; c) Quando se impugne o acto de fixação dos valores patrimoniais, o valor contestado; d) No recurso contencioso do indeferimento total ou parcial ou da revogação de isenções ou outros benefícios fiscais, o do valor da isenção ou benefício. Também o artigo 296, n.º 1 do CPC dispõe: “A toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido.” Assim, para efeitos de fixação do valor da causa, devemos aplicar o disposto na alínea b) do n.º 1 do art. 97.º-A do CPPT, dado que o ato que a requerente impugna é a correção da matéria tributável de forma a relevar fiscalmente os gastos de financiamento líquidos incorridos no exercício de 2013 e não, no ficcionamento da aplicação da taxa de IRC de 21% à importância de € 2.406.675,42. 

6. O valor da causa deve ser fixado pelo juiz - artigo 306º, n.º 1 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1 e) do RJAT, e dado o caráter menos formal do processo arbitral, e não havendo despacho saneador, o valor da causa pode ser feito por Despacho Arbitral, (art.º 306º, n.º 2, parte final, do CPC).

7. Ambas as partes já se pronunciaram sobre o valor deste processo arbitral. Cfr. artsº 5 a 25 da Resposta e artº 6 das Alegações da Requerente, onde refere: “De todo o modo, caso se entenda que o valor a considerar para efeitos de custas deve ser o custo cuja não dedução para efeitos fiscais se reputa de ilegal, então que se considere o valor de € 2.406.675,42”. 

8. Considerando o exposto supra este Tribunal fixa o valor do Processo em €2.406.675,42. 

9. As custas do Processo são fixadas em € 31.212,00 sendo as custas iniciais de €15.606,00 e a taxa subsequente de €15.606,00. 

10. Tendo a Requerente já pago a quantia de €3.978,00 a título de taxa de arbitragem inicial e €3.978,00 de taxa de arbitragem subsequente, no valor total de €7.956,00, determina-se que a Requerente proceda ao pagamento do valor da taxa de arbitragem em falta, no montante de €23. 256,00 que deverá fazer antes da publicação da decisão arbitral.

Comunique-se ao Senhor Presidente do CAAD no sentido da alteração do valor do Processo no SGP. Notifique-se (…)”.

 

III. 2        Da Incompetência do Tribunal Arbitral

a)                 A Requerida na sua Resposta invoca a exceção de incompetência do Tribunal Arbitral, sendo que, em função das razões invocadas pela Requerida importa analisar as mesmas em ordem a tomar sobre a exceção uma decisão. Vejamos, então:

b)                 A competência dos tribunais arbitrais tributários encontra-se limitada às matérias enunciadas no artigo 2.º, n.º 1 do RJAT, englobando a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta, e a declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais, não estando excluída a apreciação da legalidade de atos de segundo ou de terceiro graus.

c)                 A Requerente pede anulação do ato de liquidação, com fundamento na ilegal desconsideração de gastos de financiamento.

d)                 Tendo a Requerente impugnado o ato de liquidação de IRS, bem como a decisão de indeferimento da reclamação graciosa deduzida, afigura-se que o ato tributário em causa é impugnável, nos termos legalmente aplicáveis, sendo o Tribunal Arbitral competente.

e)                 Afigura-se que a matéria controvertida é essencialmente jurídica, não constando do pedido a fixação do montante de gastos de financiamento a relevar eventualmente para efeitos da fixação da matéria coletável no exercício de 2019.

f)                  Pretendendo a Requerente a apreciação da legalidade da liquidação em causa, o meio de tutela adequado é efetivamente a impugnação, de onde resulta a competência, em razão da matéria, deste Tribunal Arbitral.

g)                 Assim sendo, não deverá julgar-se verificada a exceção de incompetência do Tribunal Arbitral, como acima explanado.

 

IV.          Saneamento

a)                 O Tribunal Arbitral é materialmente competente, atento o disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.

b)                 As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e têm legitimidade nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

c)                 O processo não enferma de nulidades.

d)                 Em face do disposto no normativo da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, o pedido de pronúncia arbitral foi apresentado tempestivamente.

e)                 Não se verificam quaisquer circunstâncias que obstem ao conhecimento do mérito da causa ou que impeçam o Tribunal de apreciar e de decidir.

 

V.                   Matéria de facto

V.1           Factos Provados

a)                     A A..., S.A. é a sociedade dominante do Grupo B..., constituída segundo o direito português e residente em Portugal.

b)                    A C..., S.A. é uma sub-holding do Grupo B..., cujo capital é detido por este grupo em 58,6%, através da D..., Sociedade Unipessoal, Lda., em Portugal, que detém 24,5% dos 58,6%, e o restante através da E..., S.L., em Espanha. 

c)                     A A..., S.A. financiou, em 2008, por via de suprimentos a D..., Sociedade Unipessoal, Lda. para esta adquirir uma participação na C..., S.A.

d)                    Até 2016, a D..., Sociedade Unipessoal, Lda. denominou-se F..., Sociedade Unipessoal, Lda.

e)                     Em 2019 a D..., Sociedade Unipessoal, Lda. era diretamente detida a 100% pela A..., S.A.

f)                     Na sequência dos gastos de financiamento incorridos, em 2013, apenas foi deduzida, para efeitos de IRC, a quantia € 11.565.020,63 do total de juros incorridos D..., Sociedade Unipessoal, Lda.

g)                    Os restantes gastos de financiamento líquidos não deduzidos foram inscritos na declaração anual submetida pelo sujeito passivo.

h)                    Em 2016, a D..., Sociedade Unipessoal, Lda. considerou o montante de € 1.870.099,09, para efeitos de IRC.

i)                      Após esse período, a D..., Sociedade Unipessoal, Lda. permaneceu, ainda, com um montante acumulado de gastos não dedutíveis respeitantes a 2013.

j)                      Em 2019, a A... S.A. pretendeu deduzir fiscalmente a quantia de € 2.406.675,42 em gastos de financiamento líquidos incorridos em 2013, mas não foi possível. 

k)                    Em 26-05-2022, a A... S.A. apresentou Reclamação Graciosa contra o ato tributário de autoliquidação de IRC respeitante ao período de tributação de 2019.

l)                      Nesse meio gracioso, a A... S.A. solicitou a correção do ato tributário de liquidação, revendo a matéria coletável para considerar o montante € 2.406.675,42 como gasto de financiamento dedutível.

m)                   Após audição prévia, por despacho do Exmo. Sr. Chefe da Divisão do Serviço Central, por subdelegação de competências, o pedido da A... S.A. foi indeferido, em 21-07-2022.

n)                    Inconformada, a A... S.A. apresentou em 2022-10-21 pedido de constituição de tribunal arbitral.

 

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal Arbitral não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe apenas selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada (artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, al. a) e e) do RJAT.

Os factos provados assentam, por um lado, na ausência de divergência entre as partes quanto aos factos alegados pela Requerente no Pedido de Pronúncia Arbitral e, por outro lado, em documentos escritos juntos aos autos pela Requerente, que não foram formalmente impugnados pela Requerida.

 

V.2           Factos Não Provados

Não há factos não provados com relevância para a decisão.

 

VI.                 Matéria de Direito           

 

Ao ato tributário de liquidação de IRC impugnado não é imputada pela Requerente qualquer ilegalidade direta, mas sim reflexamente decorrente do regime jurídico-fiscal português aplicável à fixação da matéria tributável por limitação à dedutibilidade de gastos de financiamento.

Façamos, desde já, um breve enquadramento à legislação fiscal relevante para estes efeitos.

Até ao ano de 2013, o Código do IRC previa um regime de subcapitalização, que foi substituído por um novo regime de limitação à dedutibilidade dos gastos de financiamento, sendo que poderia até ser deduzida a totalidade dos juros suportados com eventual financiamento.

Em 2013, após publicação da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2013, o artigo 67.º do Código do IRC foi profundamente alterado.

O artigo 67.º, n.º 1 do Código do IRC previa que “Os gastos de financiamento líquidos são dedutíveis até à concorrência do maior dos seguintes limites: a) (euro) 3 000 000; ou, b) 30 % do resultado antes de depreciações, gastos de financiamento líquidos e impostos.”

O artigo 67.º, n.º 2 do Código do IRC determinava ainda que “Os gastos de financiamento líquidos não dedutíveis nos termos do número anterior podem ainda ser considerados na determinação do lucro tributável de um ou mais dos cinco períodos de tributação posteriores, conjuntamente com os gastos financeiros desse mesmo período, observando-se as limitações previstas no número anterior.”

O artigo 67.º, n.º 3 do Código do IRC dispunha que “Sempre que o montante dos gastos de financiamento deduzidos seja inferior a 30 % do resultado antes de depreciações, gastos de financiamento líquidos e impostos, a parte não utilizada deste limite acresce ao montante máximo dedutível, nos termos da mesma disposição, em cada um dos cinco períodos de tributação posteriores, até à sua integral utilização.”

Com relevância para os grupos societários, o artigo 67.º, n.º 4 do Código do IRC previa que “No caso de entidades tributadas no âmbito do regime especial de tributação de grupos de sociedades, o disposto no presente artigo é aplicável a cada uma das sociedades do grupo.”

Concomitantemente, o artigo 192.º, n.º 2 da Lei de Orçamento do Estado para 2013 continha uma disposição transitório no âmbito do Código do IRC: “Nos períodos de tributação iniciados entre 2013 e 2017, o limite referido na alínea b) do n.º 1 do artigo 67.º do Código do IRC, sem prejuízo do limite máximo dedutível previsto no n.º 3 do mesmo artigo, é de 70 % em 2013, 60 % em 2014, 50 % em 2015, 40 % em 2016 e 30 % em 2017 (N.º 2 do Artigo 192.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro”.

A partir de 2014, o limite da dedutibilidade foi reformulado e o artigo 67.º, n.º 5 do Código do IRC passou a prever que “Nos casos em que exista um grupo de sociedades sujeito ao regime especial previsto no artigo 69.º, a sociedade dominante pode optar, para efeitos da determinação do lucro tributável do grupo, pela aplicação do disposto no presente artigo aos gastos de financiamento líquidos do grupo nos seguintes termos: a) O limite para a dedutibilidade ao lucro tributável do grupo corresponde ao valor previsto na alínea a) do n.º 1, independentemente do número de sociedades pertencentes ao grupo ou, quando superior, ao previsto na alínea b) do mesmo número, calculado com base no resultado consolidado antes de depreciações, amortizações, gastos de financiamento líquidos e impostos, relativo à totalidade das sociedades que o compõem; b) Os gastos de financiamento líquidos de sociedades do grupo relativos aos períodos de tributação anteriores à aplicação do regime e ainda não deduzidos apenas podem ser considerados, nos termos do n.º 2, até ao limite previsto no n.º 1 correspondente à sociedade a que respeitem, calculado individualmente; c) A parte do limite não utilizado, a que se refere o n.º 3, por sociedades do grupo em períodos de tributação anteriores à aplicação do regime apenas pode ser acrescido nos termos daquele número ao montante máximo dedutível dos gastos de financiamento líquidos da sociedade a que respeitem, calculado individualmente; d) Os gastos de financiamento líquidos de sociedades do grupo, bem como a parte do limite não utilizado a que se refere o n.º 3, relativos aos períodos de tributação em que seja aplicável o regime, só podem ser utilizados pelo grupo, independentemente da saída de uma ou mais sociedades do grupo.”

Mais tarde, a Lei n.º 32/2019, de 3 de maio, transpôs para o ordenamento jurídico português a Diretiva (UE) 2016/1164, do Conselho, de 12 de julho de 2016, que estabelece regras contra as práticas de elisão fiscal que tenham incidência direta no funcionamento do mercado interno.

Ora, a referida Diretiva (UE) 2016/1164 tem como objetivo “imperativo restabelecer a confiança na equidade dos sistemas fiscais e permitir que os governos possam exercer eficazmente a sua soberania fiscal”, com medidas concretas “contra a erosão da base tributável” e “contra o planeamento fiscal agressivo no mercado interno”, visando, assim, “uma tributação justa e eficaz das sociedades na União Europeia”. A Diretiva e o respetivo regime nacional procuram, assim, combater “práticas fiscais abusivas”, a elisão e evasão fiscais, mas, também, desencorajar o endividamento excessivo das empresas, beneficiando os capitais próprios.

Para esse efeito, estabelecendo um nível mínimo de harmonização, o disposto no artigo 4.º, n.º 1 da Diretiva veio prever que “Os gastos excessivos com empréstimos obtidos são dedutíveis no período de tributação em que são incorridos apenas até 30 % dos resultados dos contribuintes antes de juros, impostos, depreciações e amortizações (EBITDA)”.

O artigo 4.º, n.º 3 da Diretiva determinava que “Em derrogação do n.º 1, o contribuinte pode dispor do direito a: a) deduzir os gastos excessivos com empréstimos obtidos até 3 000 000 de euros”.

Simultaneamente, e com maior relevo para o presente processo arbitral, o artigo 4.º, n.º 6 da Diretiva dispunha que “O Estado-Membro do contribuinte pode prever regras para: a) reportar a exercícios posteriores, sem limite de tempo, os gastos excessivos com empréstimos obtidos que não possam ser deduzidos no período de tributação em curso nos termos dos n.ºs 1 a 5; ou, b) reportar a exercícios posteriores, sem limite de tempo, e a exercícios anteriores, até um máximo de três anos, os gastos excessivos com empréstimos obtidos que não possam ser deduzidos no período de tributação em curso nos termos dos n.ºs 1 a 5; ou, c) reportar a exercícios posteriores, sem limite de tempo, os gastos excessivos com empréstimos obtidos, e, até um máximo de cinco anos, a capacidade de dedução de juros não utilizada, que não possam ser deduzidos no período de tributação em curso nos termos dos n.ºs 1 a 5.”

A acima mencionada Lei n.º 32/2019, de 3 de maio, que transpôs a Diretiva para o ordenamento jurídico nacional, demostrava antes na respetiva “Exposição de Motivos” da proposta legislativa, que o regime jurídico-fiscal de limitação à “dedutibilidade dos juros, mediante a consagração de um mecanismo que, para além de minimizar efeitos fiscais favoráveis no endividamento face ao financiamento das empresas através de capitais próprios, previne e desencoraja esquemas de financiamento entre empresas que (…) reduzem o nível de tributação que lhes deve ser exigido”

Em concreto, as alterações ao Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC), começando por, em matéria de limitação da dedutibilidade de gastos de financiamento, ajustar apenas a definição de “gastos de financiamento líquidos», visto que o regime consignado no artigo 67.º do Código do IRC, que estabelece que os gastos de financiamento líquidos apenas concorrem para a determinação do lucro tributável até ao montante de 1 milhão de euros ou, quando superior, até ao montante que corresponder a 30% do resultado antes de depreciações, amortizações, gastos de financiamento líquidos e impostos, já se afigura estar, nos restantes aspetos, em conformidade com o previsto na Diretiva (UE) 2016/114 e até com maior exigência do que esta no que respeita à possibilidade de reporte dos gastos que não sejam dedutíveis por força da aplicação deste regime e da parte do limite que não seja utilizada.”

Não obstante as alterações legislativas ocorridas, no ano de tributação de 2019, os limites máximos de dedução de gastos de financiamento líquidos e os períodos máximos de possibilidade de dedução permaneceram inalterados face ao anterior enquadramento normativo vigente desde 2014. 

O artigo 67.º, n.º 1 do Código do IRC previa que “Os gastos de financiamento líquidos concorrem para a determinação do lucro tributável até ao maior dos seguintes limites: a) (euro) 1 000 000; ou, b) 30 % do resultado antes de depreciações, amortizações, gastos de financiamento líquidos e impostos”

O artigo 67.º, n.º 2 do Código do IRC determinava, ainda, que “Os gastos de financiamento líquidos não dedutíveis nos termos do número anterior podem ainda ser considerados na determinação do lucro tributável de um ou mais dos cinco períodos de tributação posteriores, após os gastos de financiamento líquidos desse mesmo período, observando-se as limitações previstas no número anterior.”

O artigo 67.º, n.º 5 do Código do IRC dispunha que “Nos casos em que exista um grupo de sociedades sujeito ao regime especial previsto no artigo 69.º, a sociedade dominante pode optar, para efeitos da determinação do lucro tributável do grupo, pela aplicação do disposto no presente artigo aos gastos de financiamento líquidos do grupo nos seguintes termos:a) O limite para a dedutibilidade ao lucro tributável do grupo corresponde ao valor previsto na alínea a) do n.º 1, independentemente do número de sociedades pertencentes ao grupo ou, quando superior, ao previsto na alínea b) do mesmo número, calculado com base na soma algébrica dos resultados antes de depreciações, amortizações, gastos de financiamento líquidos e impostos apurados nos termos deste artigo pelas sociedades que o compõem; b) Os gastos de financiamento líquidos de sociedades do grupo relativos aos períodos de tributação anteriores à aplicação do regime e ainda não deduzidos apenas podem ser considerados, nos termos do n.º 2, até ao limite previsto no n.º 1 correspondente à sociedade a que respeitem, calculado individualmente; c) A parte do limite não utilizado, a que se refere o n.º 3, por sociedades do grupo em períodos de tributação anteriores à aplicação do regime apenas pode ser acrescido nos termos daquele número ao montante máximo dedutível dos gastos de financiamento líquidos da sociedade a que respeitem, calculado individualmente; d) Os gastos de financiamento líquidos de sociedades do grupo, bem como a parte do limite não utilizado a que se refere o n.º 3, relativos aos períodos de tributação em que seja aplicável o regime, só podem ser utilizados pelo grupo, independentemente da saída de uma ou mais sociedades do grupo.”

Face ao disposto no artigo 67.º do Código do IRC, resulta claro que, em Portugal, o regime jurídico-fiscal aplicável à dedutibilidade de juros suportados com financiamentos só permite a dedução de gastos no respetivo ano e, no máximo, durante os 5 anos subsequentes. Daqui decorre que, à luz da redação do Código do IRC, não seria possível à Requerente considerar os restantes juros não deduzidos. 

Verifiquemos, assim, a conformidade do artigo 67.º do Código do IRC face ao disposto na Diretiva (UE) 2016/1164. Existirá uma transposição incorreta da referida Diretiva? Afirme-se, desde já, que o presente Tribunal Arbitral entende que a resposta deve ser negativa.

A Direita (UE) 2016/1164 não impede a adoção do regime jurídico fiscal português nos moldes em que está consagrado no Código do IRC. Vejamos. 

O artigo 3.º da Diretiva expressa que “A presente diretiva não obsta à aplicação das disposições nacionais ou convencionais destinadas a garantir um nível de proteção mais elevado da matéria coletável do imposto sobre as sociedades a nível nacional.”

Conforme o disposto nos considerandos da Diretiva, “Uma vez que essas regras terão de se enquadrar em (…) sistemas diferentes de tributação das sociedades, deverão circunscrever-se às disposições gerais, deixando a execução aos Estados-Membros, uma vez que estes estão em melhor posição para definir os elementos específicos dessas regras da forma que melhor se adeque aos seus sistemas de tributação das sociedades. Este objetivo poderá ser alcançado mediante a criação de um nível mínimo de proteção dos sistemas nacionais de tributação das sociedades contra as práticas de elisão fiscal em toda a União. (…) É, por conseguinte, necessário estabelecer um nível mínimo comum de proteção do mercado interno em domínios específicos. (…) É necessário estabelecer regras contra a erosão das bases tributáveis no mercado interno (…). A fim de contribuir para a realização desse objetivo, são necessárias regras nos seguintes domínios: limitações à dedutibilidade dos juros (…).”

Em especial, atente-se, também, que “A regra relativa à limitação dos juros é necessária para desencorajar essas práticas limitando a dedutibilidade dos gastos excessivos com empréstimos obtidos por parte dos contribuintes. É, por conseguinte, necessário estabelecer um rácio de dedutibilidade respeitante aos resultados tributáveis dos contribuintes antes de juros, impostos, depreciações e amortizações (EBITDA — earnings before interest, tax, depreciation and amortization). Os Estados-Membros poderão reduzir este rácio ou fixar prazos ou restringir o montante dos empréstimos obtidos não compensados que podem ser reportados a exercícios posteriores ou anteriores para assegurar um nível de proteção mais elevado. Uma vez que o objetivo é estabelecer normas mínimas, poderá ser dada aos Estados-Membros a possibilidade de adotarem uma medida alternativa (…)”.

Daqui resulta, claramente, que as “medidas contra a elisão fiscal”, onde se inclui a “regra da limitação dos juros”, configuram um nível mínimo de proteção conferido pelo Direito da União Europeia no âmbito das regras contra as práticas de elisão fiscal em causa. Isto significa que cada Estado-Membro da União Europeia, incluindo Portugal, está permitido a adotar regras jurídicas nacionais mais apertadas que as medidas previstas na Diretiva.

Recordemos, agora, o disposto no artigo 4.º, n.º 6, c) da Diretiva: “O Estado-Membro do contribuinte pode prever regras para: (…) reportar a exercícios posteriores, sem limite de tempo, os gastos excessivos com empréstimos obtidos, e, até um máximo de cinco anos, a capacidade de dedução de juros não utilizada, que não possam ser deduzidos no período de tributação em curso”.

Esta regra alternativa proposta pela Diretiva configura-se, na verdade, como “nível mínimo de proteção” da matéria coletável do imposto sobre as sociedades a nível nacional. Com efeito, nada impede que Portugal adote e aplique disposições nacionais destinadas a um nível de proteção mais elevado da matéria coletável de IRC. 

O mesmo sucede com os limites de valor considerados para limitação da dedutibilidade. Os Estados-Membros poderão reduzir o limiar financeiro fixado a fim de assegurar um nível de proteção mais elevado da sua base tributável nacional.”

Tal como Portugal pode fixar (e fixa) um limiar quantitativo inferior ao definido na Diretiva ATAD, também pode prever e aplicar (como faz atualmente) um limite à dedução de gastos de financiamento a reportar em exercícios passados e futuros, não violando automaticamente o disposto na mencionada Diretiva.

Vejamos, ainda, que a própria Comissão Europeia, que é considerada a “guardiã dos Tratados”, expressou, em 2020, em sede do Relatório da Comissão ao Parlamento Europeu e ao Conselho sobre a execução da Diretiva (UE) 2016/1164, que “A fim de reduzir os encargos administrativos e de conformidade das regras sem diminuir significativamente a sua eficácia, o artigo 4.º prevê que os Estados-Membros são livres de prever uma margem de segurança. Esta margem de segurança pode ir até um montante fixo de 3 milhões de EUR de gastos excessivos com empréstimos obtidos como dedutíveis, independentemente do limite de dedutibilidade baseado no rácio do EBITDA. Os Estados-Membros podem reduzir o limiar fixo, a fim de assegurar um nível mais elevado de proteção da sua base tributável interna”.

Acresce que A fim de fazer face à volatilidade da rendibilidade do contribuinte, os Estados-Membros podem permitir que o montante dos empréstimos obtidos não compensados ou da capacidade de dedução de juros seja reportado a exercícios anteriores ou posteriores. Os Estados-Membros são livres de fixar um prazo para o reporte a exercícios posteriores ou anteriores para assegurar um nível de proteção mais elevado.”

Ora, no que respeita ao disposto no artigo 4.º, n.º 6 da Diretiva ATAD, afigura-se que os Estados-Membros, incluindo Portugal, podem, querendo, optar entre uma das alíneas do n.º 6 do referido artigo 4.º da Diretiva, e até ir mais além - e Portugal, como vimos, foi mais além. Os Estados-Membros têm o direito de estabelecer normas mais rigorosas do que as previstas na Diretiva.

Efetivamente, a legislação nacional restringiu o limite de valor de dedutibilidade máxima acima de 30% do EBITDA, bem como restringiu o limite temporal aplicável à possibilidade de reporte para dedutibilidade de juros em períodos de tributação posteriores àquele em que os gastos de financiamento se verificam. 

A Diretiva não impede estas limitações no âmbito do regime jurídico-fiscal aplicável à dedução de juros pelas sociedades financiadas, sendo que estas restrições presentes na legislação fiscal portuguesa caracterizam-se pela maior proteção face ao mínimo estabelecido na Diretiva, produzindo efeitos contra a erosão da base tributária, dado que garantem, potencialmente, o aumento concreto da matéria coletável de imposto.

Não se afigura, por conseguinte, qualquer ilegalidade do artigo 67.º, n.º 2 do Código do IRC, em face do disposto nos artigos 3.º e 6.º, n.º 4, alínea c) da Diretiva (UE) 2016/1164.

Embora se conclua pela não incorreta transposição da Diretiva, analisemos, agora, se o enquadramento jurídico-fiscal português de limitação à dedutibilidade de gastos de financiamento viola a livre circulação de capitais previstas nos Tratados da União Europeia.

A livre circulação de capitais é uma das quatro liberdades fundamentais do mercado único da UE. Genericamente, as restrições aos movimentos de capitais e aos pagamentos, tanto entre os Estados-Membros, como entre os Estados-Membros e os países terceiros, são proibidas, embora possam existir algumas exceções.

Ora, o artigo 26.º do TFUE dispõe que “A União adota as medidas destinadas a estabelecer o mercado interno e a assegurar o seu funcionamento, em conformidade com as disposições pertinentes dos Tratados” e que “O mercado interno compreende um espaço sem fronteiras internas no qual a livre circulação das mercadorias, das pessoas, dos serviços e dos capitais é assegurada de acordo com as disposições dos Tratados”. Com especial relevância, o artigo 63.º do TFUE determina que “(…) são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros”.

Não obstante, o artigo 65.º do TFUE admite expressamente que O disposto no artigo 63.º não prejudica o direito de os Estados-Membros: (…) b) Tomarem todas as medidas indispensáveis para impedir infrações às suas leis e regulamentos, nomeadamente em matéria fiscal (…), ou tomarem medidas justificadas por razões de ordem pública ou de segurança pública”, sendo que tal “não prejudica a possibilidade de aplicação de restrições ao direito de estabelecimento que sejam compatíveis com os Tratados”.

A livre circulação de capitais não é, portanto, absoluta. Existem mecanismos expressamente previstos nos Tratados da UE que permitem a adoção de restrições à livre de circulação de capitais.

No caso da Diretiva ATAD, a restrição fiscal imposta ao nível da dedutibilidade de juros é justificada pela necessidade imperiosa de combater a “erosão da base tributária” do mercado interno e respetivos Estados-Membros. E, como vimos anteriormente, as regras de limitação adotadas no ordenamento jurídico portuguesa não contrariam o disposto na Diretiva em causa.

O presente Tribunal Arbitral entende, assim, que inexiste qualquer violação atendível quanto à livre circulação de capitais tutelada no mercado interno da União Europeia. Vejamos.

Conforme acima explanado, as restrições à livre circulação de capitais são admissíveis, nos termos compatíveis com o TFUE, nomeadamente para tutela de outros interesses legítimos dos Estados-Membros. E embora a fiscalidade direta seja da competência dos Estados-Membros, a mesma deve ser exercida no respeito do Direito da União Europeia, sem qualquer discriminação em razão da nacionalidade ou da residência.

No caso em análise, a Diretiva ATAD indica que “A regra relativa à limitação dos juros é necessária para desencorajar essas práticas que erodem a base tributária, limitando a dedutibilidade dos gastos excessivos com empréstimos obtidos por parte dos contribuintes.”

Esta restrição fiscal, que se encontra refletida na legislação nacional, é justificada por razões imperiosas ao regular “funcionamento do mercado interno”, desencorajando-se “práticas de elisão fiscal” e garantindo-se uma “tributação justa e eficaz”, a que acresce, também, o cumprimento dos compromissos assumidos pelos Estados-Membros no âmbito da BEPS, evitando-se possíveis situações de “abuso”, sem que o princípio da proporcionalidade seja ferido de forma sensível.

Ao nível do Código do IRC, o regime jurídico adotado não resulta na impossibilidade de dedução de juros, mas apenas na limitação, como limites máximos, em consonância com a Diretiva, para prevenir situações de abuso e, essencialmente, combater a erosão da base tributária nacional, funcionando, também, para fins de limitação do indesejável endividamento excessivo das empresas, justificando-se por objetivos de interesse público. 

Não se identifica, portanto, qualquer limitação assinalável à circulação de capitais com países, nomeadamente terceiros. Nem se verifica qualquer impossibilidade ou especial limitação à liberdade de estabelecimento ou de circulação de capitais entre EM e com países terceiros. 

Ademais, contrariamente ao defendido pela Requerente, o artigo 67.º, n.º 2 do Código do IRC não prejudica a dedução de custos incorridos por empresas portuguesas com a aquisição de participações sociais no capital social de uma sociedade residente num Estado terceiro. O artigo 67.º do Código do IRC, à semelhança do disposto na Diretiva ATAD, não prejudica certas operações face a outras - o regime jurídico-fiscal em causa afigura-se ser subjetiva e objetivamente “neutro” quanto às implicações que produz na esfera dos contribuintes sujeitos passivos de IRC. 

Atente-se que a mencionada Diretiva (UE) 2016/1164 aplica-se a todos os contribuintes sujeitos a imposto sobre as sociedades num ou mais Estados-Membros da União Europeia, como Portugal, sendo que a regra da limitação de dedução dos juros decorrentes de empréstimos aplica-se a operações internas e internacionais, sem distinção entre si.

Conforme disposto nos considerandos da Diretiva em causa, “A regra da limitação dos juros deverá ser aplicada aos gastos excessivos com empréstimos obtidos do contribuinte, independentemente de os gastos provirem de uma dívida contraída a nível nacional, a nível transfronteiras no interior da União ou junto de um país terceiro, ou de provirem de terceiros, de empresas associadas ou de terem origem intragrupo.”

Em conformidade com a Diretiva, e não comportando ilícita violação da livre circulação de capitais, o artigo 67.º do Código do IRC não apresenta regimes diferenciados consoante os empréstimos ocorram a nível nacional, ou com envolvimento de entidades de outros Estados-Membros ou de países terceiros, não introduzindo, a partir de Portugal, entraves no mercado interno. 

Ou seja, a operação de financiamento ocorrida entre duas empresas portuguesas, como sucede no presente caso arbitral, não merece, assim, qualquer diferenciação face às demais operações, ainda que os gastos excessivos decorram de empréstimo obtido para aquisição de participações sociais no capital social de uma sociedade cotada em bolsa e residente num Estado terceiro.

 

Relativamente à alegada violação do artigo 20.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, reiteramos, desde já, o anteriormente exposto quanto à inexistência de diferenciação no âmbito da regra da limitação de dedução dos juros, a qual potência o aumento das bases tributárias.

O artigo 20.º da CDFUE consagra o princípio da igualdade, que se aplica, naturalmente, no âmbito do Direito da União Europeia e, por conseguinte, no próprio ordenamento jurídico nacional.

É certo que a Diretiva (UE) 2016/1164 visa responder ao fenómeno BEPS, mas não só. A referida Diretiva assume objetivos mais amplos, determinando, aliás, a adoção de regras contra a erosão das bases tributáveis no mercado interno e o financiamento excessivo por dívida, a todos contribuintes, conforme reconhecido nacionalmente. 

Não se consideram, assim, apenas “situações internacionais”. Para o efeito, repetimos, o regime de limitação à dedutibilidade de juros aplica-se, “independentemente de os gastos provirem de uma dívida contraída a nível nacional, (…) ou de provirem (…) de empresas associadas ou de terem origem intragrupo”, conforme disposto nos considerados da Diretiva. Sendo que “Se o grupo integrar mais do que uma entidade num Estado-Membro, o Estado-Membro, ao aplicar regras que limitam a dedutibilidade dos juros, pode considerar a situação global de todas as entidades do grupo no mesmo Estado”

Assim, o regime jurídico-fiscal do artigo 67.º do Código do IRC aplica-se a empresas portuguesas, ainda que pertençam ao mesmo grupo societário, quando tenham entre si operado financiamento com empréstimo que gera gastos como juros, cuja dedutibilidade é limitada à semelhança de qualquer outra empresa, embora com as especificidades aplicáveis aos grupos de sociedades.

A lei nacional trata todas empresas de forma igual, sem diferenças injustificadas, à semelhança do teor da Diretiva relevante, conforme anteriormente exposto, aplicando-se a todos os contribuintes. Se a referida Diretiva não diferencia, o legislador nacional também não tinha de o fazer. 

Afigura-se, mais uma vez, que o regime português não diverge da Diretiva ATAD, não violando os Tratados da União Europeia, nem infligindo a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

 

De notar até a contrariedade na argumentação da própria Requerente, que, ao mesmo tempo que se funda na Diretiva a alegada errada transposição desta no ordenamento nacional, coloca em crise, por razões de proporcionalidade, os mesmos critérios objetivos, com variações, que tanto a lei nacional como a referida Diretiva acolhem, incluindo o EBITDA. Acresce que a própria Requerente, ao mesmo tempo que alega que o financiamento para atividades no estrangeiro e o movimento de internacionalização da economia é prejudicado pelo regime do artigo 67.º do Código do IRC, defende que a regra de limitação de juros deve ser aplicada a operações transfronteiras, distinguindo-se de operações meramente nacionais ou internas. Contrariedades estas que demonstram fragilidades internas na própria posição defendida pela Requerente.

Efetivamente, ao presente Tribunal Arbitral não lhe assaltam dúvidas razoáveis quanto à solução a dar à questão de direito da União, porquanto o sentido das normas invocadas se afigura claro e evidente, dispensando-se, assim, o recurso ao mecanismo do reenvio prejudicial.

 

Vejamos.

O reenvio prejudicial é um mecanismo fundamental do direito processual da União Europeia, que tem por finalidade fornecer aos órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros o meio de assegurar a uniformização do ordenamento jurídico eurocomunitário em toda a União. Por força do artigo 19.º, n.º 3, alínea b) do Tratado da União Europeia e do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, o TJUE é competente para decidir, a título prejudicial, sobre a interpretação do direito da União e sobre a validade dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.

Por sua vez, os tribunais nacionais são considerados como tribunais comuns da ordem jurisdicional da União Europeia, cabendo aos tribunais nacionais dos Estados-Membros aplicar o quadro normativo europeu nos litígios que lhes sejam submetidos para apreciação. 

Sem prejuízo, para recorrer ao processo de reenvio de questões a título prejudicial, para interpretação de normas jurídicas de direito eurocomunitário, originário ou derivado, face ao direito nacional, é necessário que prevaleçam dúvidas sobre a interpretação do texto legislativo em causa.

Se o enquadramento legal e o regime jurídico em causa são claros, há que aplicar a lei fiscal, o que é competência do presente Tribunal Arbitral, que está incumbido de julgar o caso concreto, interpretando e aplicando a legislação nacional e/ou eurocomunitária relevante, pelo que não se vislumbram razões significativas para reenvio prejudicial e suspensão da instância dos autos.

 

Adiante, em termos constitucionais, ao nível do ordenamento jurídico português, cabe, ainda, averiguar se ocorre violação dos princípios da igualdade, da capacidade contributiva e da tributação pelo lucro real, conforme disposto na Constituição da República Portuguesa.

O artigo 104.º, n.º 2 da CRP consagra um princípio jurídico-constitucional, em matéria tributária, determinando que “A tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real”. Este princípio reconduz-se à tributação do rendimento real das empresas, enquanto concretização do princípio da capacidade contributiva. Por sua vez, o princípio da capacidade contributiva é a concretização, nos impostos, do princípio da igualdade. 

É um princípio de “justiça fiscal”, com reflexo no objeto de tributação e nos próprios sujeitos passivos, em que a capacidade contributiva corresponde à “medida de igualdade económica que rege a tributação dos impostos”, sendo que “a tributação (…) tem de aplicar-se ao universo de sujeitos que manifestam essa capacidade e não apenas a alguns”,como nos ensina a Prof. Ana Paula Dourado in Direito Fiscal, Lições, 2ª Edição, 2018, Almedina.

Ora, atendendo ao elemento literal do artigo 104.º, n.º 2 da CRP acima replicado, desde logo, “fundamentalmente” não significa “exclusivamente”, tendo o mesmo alcance que, por exemplo, a expressão “principalmente” – é, assim, óbvia a relatividade deste princípio jurídico-constitucional. Ou seja, este princípio, à semelhança de tantos outros, não é absoluto.

Por outro lado, na prática, a tributação pelo lucro real admite a aplicação de métodos diretos, mas, também, de métodos indiretos para esse efeito, considerando a complexidade dos regimes fiscais e da própria contabilidade empresarial. Aliás, o artigo 17.º, n.º 1 do Código do IRC, que concretiza a exigência constitucional decorrente do disposto no artigo 104.º, n.º 2 da CRP, dispõe que “O lucro tributável das pessoas colectivas (…) é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código.”

Segundo a Prof. Ana Paula Dourado, “De entre os princípio jurídico-fiscais que guiam as correções ao lucro contabilístico pelo Código do IRC, estão os princípios constitucionais finais da igualdade e capacidade contributiva nas suas manifestações de tributação do rendimento real e de proibição de abuso fiscal. O Direito Fiscal não pode aceitar sem reservas o conceito de lucro contabilístico, porque a tributação do rendimento real das empresas é balizado por um critério de capacidade contributiva transversal a todos os sujeitos passivos de IRC. A lei fiscal tem por isso de encontrar forma de prevenir o abuso fiscal, estabelecendo limites às deduções de gastos (bem como limites a transmissões de prejuízos)”, sendo que “sempre que os gastos possam ser utilizados abusivamente pelo sujeito passivo, provocando a erosão das bases tributáveis, é legítimo ao legislador impedir ou limitar a dedução desses gastos. Disso são exemplo a dedutibilidade de juros entre empresas associadas”, em que “o legislador frequentemente estabelece limites à dedução, (…) e por vezes mesmo, a impossibilidade da dedução”.

O regime dos limites à dedução de gastos de financiamento é uma das conhecidas restrições à tributação pelo rendimento real, assim como as normas antiabuso. Objetivamente, não se vislumbra, assim, qualquer violação evidente ao princípio da capacidade tributária. A excecionalidade deste regime encontra justificações necessárias ao seu lícito enquadramento.

Embora não por referência concreta ao artigo 67.º do Código do IRC, o próprio Tribunal Constitucional já expressou, genericamente, que “rendimento real fiscalmente relevante não é, em si próprio, uma realidade de valor fisicamente apreensível, mas antes um conceito normativamente modelado e contabilisticamente mensurável, sendo constituído (…) pela soma algébrica do resultado líquido do exercício e das variações patrimoniais positivas e negativas (…) previstas na lei (…). Por outro lado, a injunção constitucional da tributação segundo o rendimento real não pode deixar de atender, necessariamente, aos princípios da praticabilidade e de operacionalidade do sistema, pelo que não pode deixar de se lhes reconhecer natureza constitucional, sob pena dos arquétipos legalmente construídos não conseguirem realizar, com a aproximação possível, o princípio da universalidade e da igualdade no pagamento de os impostos. Um sistema inexequível ou um sistema que não permita o controlo dos rendimentos e da evasão fiscal, na medida aproximada à realidade existente, conduz em linha recta à distorção, na prática, do princípio da capacidade contributiva e da tributação segundo o rendimento real. São estas as dificuldades que explicam que a Constituição se tenha limitado a prever que a imposição fiscal deve incidir fundamentalmente sobre o rendimento real, não (…) excluindo com tal disposição o recurso a outras formas fiscais estranhas ao mito do apuramento declarativo-contabilístico do rendimento real” (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 127/2004, acessível em www.tribunalconstitucional.pt).

Também, em apreciação da conformidade do regime de não dedutibilidade de gastos e encargos, averiguando se se tratava de um “desvio desproporcionado ao princípio da tributação segundo o lucro tributável da empresa, consagrado no artigo 104.º, n.º 2, da Constituição, na medida em que contempla uma norma anti-abuso concebida de forma ampla de modo a abranger, não apenas as operações suscetíveis de gerar um resultado fiscal abusivo ou desconforme ao ordenamento jurídico, mas também comportamentos legítimos dos contribuintes que tenham sido adotados no âmbito da sua liberdade de iniciativa económica”, o Tribunal Constitucional concluiu que “a tributação segundo o lucro real não impede que a Administração Tributária possa efetuar correções administrativas à declaração do sujeito passivo que possam levar à desconsideração de custos comprovados como custos fiscais e à consequente alteração da quantificação do lucro tributável”, admitindo que “a desconsideração fiscal dos custos, sem a possibilidade de contraprova, por parte do sujeito passivo, de que não existiu uma vantagem fiscal abusiva não viola desproporcionadamente o direito do contribuinte à tributação segundo o lucro real”. O Tribunal Constitucional esclareceu, também, que “ainda que, em tese geral, o princípio da capacidade contributiva implique que deva ser considerado como tributável apenas o rendimento líquido, com a consequente exclusão de todos os gastos necessários à produção ou obtenção do rendimento, o certo é que não pode deixar de reconhecer-se ao legislador (…) uma certa margem de liberdade para limitar a certo montante, ou mesmo excluir, certas deduções específicas (…). O ponto é que tais limitações ou exclusões tenham um fundamento racional adequado e se apliquem à generalidade dos rendimentos em causa. Trata-se de opções de política fiscal que assentam numa ideia de praticabilidade, que exige ao legislador a elaboração de leis cuja aplicação e execução seja eficaz e económica ou eficiente, e que conduzam a resultados consonantes com os objetivos pretendidos. Com essa finalidade, com que se pretende também assegurar os princípios materiais da igualdade e da justiça fiscal, é constitucionalmente justificável que o legislador possa recorrer não apenas às referidas presunções legais, mas também a técnicas de tipificação e de simplificação, que permitam disciplinar certos aspetos do direito dos impostos segundo critérios de normalidade, afastando as situações atípicas ou anormais”, sendo que “o artigo 104.º, n.º 2 não institui um critério absoluto e rigoroso de tributação das empresas segundo o lucro real, apontando antes para uma aproximação tendencial entre a matéria coletável e os lucros efetivamente auferidos”. Ademais, o Tribunal Constitucional, não concebendo aqui a existência de qualquer “presunção em sentido próprio”, refletiu, também, que “essa desqualificação pode determinar um aumento do imposto a liquidar por virtude de não ser possível refletir na matéria coletável as perdas imputáveis à operação. Mas essa é a necessária decorrência de um mecanismo legal de funcionamento automático que incide sobre os critérios de dedutibilidade dos custos ou perdas. Tratando-se de um critério legal de apuramento da matéria coletável, e não de um facto tributário presumível que seja imputável ao sujeito passivo, não tem cabimento a admissão da prova em contrário” (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 753/2014, acessível em www.tribunalconstitucional.pt).

“A jurisprudência deste Tribunal vem, assim, reconhecendo que, se o princípio da tributação do rendimento real prima facie impõe a consideração de todas as componentes positivas e negativas dos resultados obtidos pelas empresas, tal como refletidos na contabilidade de determinado período – uma tal exigência há de conviver com os mais diversos condicionamentos impostos, seja por razões técnicas e práticas, seja pela prevalência de outros interesses de ordem económica e social dignos de tutela constitucional, cabendo ao legislador assumi-los e harmonizá-los no exercício dos poderes de conformação que a Constituição lhe atribui. (…) As regras que definem os custos ou perdas a considerar e a desconsiderar para efeitos de apuramento da matéria coletável constituem, na verdade, um claro exemplo da complexidade inerente à modelação do lucro tributável em IRC” (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 395/2021, acessível em www.tribunalconstitucional.pt). Complementarmente, o Tribunal Constitucional até já ponderou que “tendo embora por efeito um real agravamento da carga fiscal e tributária suportada pelos sujeitos passivos (…), parece pressupor - o que não se mostra manifestamente irrazoável - que (…) se mostra especialmente capaz de suportar, não só o encargo (…), como o imposto liquidado sobre o lucro tributável apurado sem a concorrência desse custo” (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 394/2021, acessível em www.tribunalconstitucional.pt).

Refira-se, ainda, que, ao contrário do caso jurisdicional alemão invocado pela Requerente, o regime jurídico-fiscal português não abrange restrições de dedutibilidade de juros para casos específicos em detrimento da generalidade dos demais. Na verdade, o artigo 67.º, n.º 2 do Código do IRC contempla uma limitação objetiva, de cariz temporal, a que todos os sujeitos passivos estão condicionados, sem qualquer distinção, muito menos injustificada, e sem que se afigure desproporcional. 

De facto, a medida fiscal em causa, embora restritiva, é apta a realizar os fins por si prosseguidos, contribuindo para os alcançar numa forma sensível, recorrendo, para o efeito, a meios que se afiguram necessários, exigíveis e indispensáveis, com causa que se afigura justa, adequada, razoável e proporcionada, não afetando excessivamente os princípios e bens jurídico-constitucionais relevantes.

Aliás, abstratamente, os sujeitos passivos continuam a poder contrair empréstimos e a assumir os respetivos gastos, como sejam os juros, que até podem deduzir na totalidade, desde que dentro do limites fixados na lei fiscal. Não há nenhuma impossibilidade ad initio ou excessividade desproporcional que impeça a contração de empréstimos e a posterior dedução dos respetivos juros. Efetivamente, continua a ser possível, na prática, os juros serem todos deduzidos, desde que dentro dos limites fixados pelo Estado-Membro, em consonância com a Diretiva ATAD, enquanto medidas necessárias e adequadas aos fins visados, inexistindo qualquer jurisprudência, nacional ou eurocomunitária, que tenha entendido, direta ou indiretamente, o contrário.

O regime português não distingue, nem prejudica ou beneficia umas empresas em detrimento de outras, quer através do critério do EBITDA, quer através do critério do valor máximo alternativo, quer através do critério temporal de reporte, os quais se baseiam na própria Diretiva.

Como acima explanado, o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da CRP, de onde decorre o princípio da capacidade contributiva, segundo o qual todos devem contribuir na medida da sua capacidade económica, ao abrigo do disposto no artigo 103.º, n.º 1 da CRP, que integra o princípio da tributação pelo lucro real, não se afigura afetado, na medida em que se entenda que a noção de lucro real é um conceito normativo contabilisticamente mensurável e legalmente modelado em função de interesses fiscais específicos que visam acautelar, por exemplo, a limitação do uso de instrumentos privilegiados de erosão da base tributável. 

Estes importantes princípios tributários não são absolutos e podem ser excecionados, proporcionalmente, para evitar, sobretudo, abusos, sendo certo que a limitação que se trata nos presentes autos é expressamente permitida pela própria UE, cujo Direito é fonte de direito internacional, nos termos do artigo 8.º da CRP – “As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União”.

Sendo compatíveis com as exigências decorrentes dos princípios da igualdade, da capacidade contributiva e da tributação do rendimento real, a limitação à dedutibilidade de gastos de financiamento constam de expressa previsão legal, que se ocupa de critérios objetivos, indiferenciados e economicamente racionais, como seja o recurso ao EBITDA e ao critério temporal máximo, e resultam de específica e especial motivação intrínseca, afigurando-se visíveis e facilmente identificáveis os interesses fiscais (e económicos) específicos que se visam acautelar.

O princípio da capacidade contributiva, enquanto princípio constitucional de repartição da carga tributária, depende da sua concretização pelo legislador ordinário, o qual tem discricionariedade legislativa. Desde que o critério legislativo não seja arbitrário - e não se afigura que seja -, cabe à lei determinar como concretizar a repartição da carga fiscal, não se evidenciando, ainda, que o recurso a esta regra de determinação da matéria coletável se funde unicamente numa resposta a abuso fiscal que careça de mecanismo probatório de salvaguarda do contribuinte.

No entendimento do presente Tribunal Arbitral, o enquadramento jurídico legal e constitucional do regime fiscal nacional de limitação à dedução de juros, além de se basear em ato normativo eurocomunitário, permissivo da solução adotada em Portugal, apoia-se em expressos fundamentos racionais, nos termos da própria Diretiva ATAD, aplicando-se à generalidade dos sujeitos e gastos em causa. Com efeito, não se vislumbra qualquer violação da Lei Fundamental.

Reafirme-se, sinteticamente, que (i) a Diretiva acima mencionada permite a adoção do regime jurídico-fiscal português aqui controvertido; (ii) a própria Comissão Europeia admite variações nacionais, entre Estados-Membros, reconhecendo-lhes a liberdade de fixar outras regras internas, como prazos mais apertados para reporte de juros em exercícios posteriores; (iii) inexiste qualquer orientação jurisprudencial, nacional ou eurocomunitária, que afaste a licitude do referido regime. Assim sendo, e reproduzindo toda a fundamentação acima vertida, incluindo ao nível dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, e seus derivados, não verificamos qualquer contrariedade do artigo 67.º do Código do IRC com a Diretiva, com os Tratados e demais legislação aplicável, nem com a Constituição da República Portuguesa. A limitação à dedutibilidade de juros afigura-se admissível, incluindo através da imposição de critério temporal objetivo, evitando a erosão da base tributável e obstando à excessiva alavancagem das empresas, por exemplo.

Na verdade, não se identificando qualquer desconformidade com as diferentes fontes de Direito acima tratadas, afigura-se que a ilicitude apontada pela Requerente, a existir, seria, no limite, imputável à própria Diretiva, que não foi objeto de decisão jurisprudencial que a invalidasse.

 

Por conseguinte, face ao exposto, a Requerente não poderá considerar os juros remanescentes nos períodos subsequentes ao ano de 2018, por força da limitação temporal prevista no artigo 67.º, n.º 2 do Código do IRS, que se afigura legalmente admissível, conforme acima melhor explanado.

 

VII.       Decisão

Nestes termos, o presente Tribunal Arbitral decide:

a)             Julgar totalmente improcedente o pedido da Requerente, com as devidas consequências legais.

 

VIII.     Valor do Processo

Fixa-se o valor do processo em € 2.406.675,42, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, b) do CPPT, aplicável por força da alínea a) do n. º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

VII. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 31.212,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5 do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 6 de junho de 2023

 

Os Árbitros 

 

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(Prof. Doutora Regina de Almeida Monteiro - Árbitro Presidente)

 

 

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(Dra. Adelaide Moura -Árbitro Adjunta - Relatora)

 

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(José Carreira - Árbitro Adjunto)