Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 206/2015-T
Data da decisão: 2016-02-01  IUC  
Valor do pedido: € 1.497,88
Tema: IUC – Incidência subjetiva; caducidade do direito de ação
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DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

A..., SA, contribuinte n.º..., com sede no..., Edifício..., ..., ...-... SINTRA, doravante designada Requerente, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º n.º 1 a) e 10.º n.º 1 a), ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, abreviadamente designado por RJAT), peticionando a declaração de ilegalidade dos atos de liquidação de Imposto Único de Circulação (IUC), identificados como Documentos n.ºs 1 a 14 da reclamação graciosa que integra o processo administrativo, que se dão por integralmente reproduzidos, efetuados pela Autoridade Tributária e Aduaneira, relativos aos anos de 2013 e 2014, no valor global de € 1.497,88, bem como o pagamento de juros indemnizatórios sobre os valores pagos.

 

  1. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 23-03-2015.

 

  1. Nos termos do disposto nos artigos 5.º, n.º 2, al. a), 6.º, n.º 1 e 11.º. n.º 1, al. a) do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

  1. Em 15-05-2015 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

  1. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral singular foi constituído em 31-07-2014.

 

  1. Em 29-10-2015, o tribunal realizou a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e inquirição da testemunha arrolada pela Requerente.

 

  1. O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

 

  1. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

  1. O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.

 

  1. As alegações que sustentam o pedido de pronúncia arbitral do Requerente são, em súmula, as seguintes:

 

Alegações da Requerente

           

10.1 O presente pedido é apresentado na sequência da decisão de indeferimento da reclamação graciosa relativa aos atos de autoliquidação de IUC referentes aos anos de 2013 e 2014, tendo o presente tribunal competência para declarar a ilegalidade dos atos de autoliquidação e da própria decisão de indeferimento da reclamação graciosa, nos termos da al a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT.

 

10.2 Atendendo a que a Requerente foi notificada da decisão da reclamação graciosa em 22-12-2014, o prazo de 90 dias para apresentação do pedido de constituição do tribunal arbitral terminou no dia 23-03-2015, razão pela qual o pedido é tempestivo.

 

10.3 Quanto à cumulação de pedidos, encontra-se cumprido o disposto no n.º 1 do artigo 13.º do RJAT por estarem em causa, essencialmente, as mesmas circunstâncias de facto e de direito na liquidação do IUC dos anos de 2013 e 2014

 

10.4 Acrescenta ainda, a título prévio, que a reclamação graciosa também foi apresentada tempestivamente, por se aplicar o prazo previsto no artigo 131.º do CPPT, pois estamos perante um imposto autoliquidado.

 

10.5 A Requerente é uma sociedade comercial que se dedica à compra, venda e aluguer de bens, equipamentos e veículos automóveis com ou sem condutor.

 

10.6 No exercício da sua atividade, a Requerente celebra contratos de aluguer de operacional de veículos automóveis com uma duração média de 42 meses, precedendo, uma vez findo o contrato, à sua venda, conforme cláusulas contratuais gerais comuns a todos esses contratos.

 

10.7 Estes contratos não preveem a possibilidade de o locatário adquirir o veículo no final do contrato

 

10.8 Além das vendas, ocorrem também perdas totais, decorrentes de furto ou sinistro, em que é indemnizada pela seguradora, prescindindo do direito ao veículo em caso de furto ou, em caso de sinistro, procedendo à venda do salvado, através da própria seguradora.

 

10.9 Quando recorria a canais de vendas (leiloeiras ou stands de vendas), na maior das vezes os compradores não registavam a transferência de propriedade, apesar dos esforços realizados pela Requerente.

 

10.10 Em todas esta situações, incluindo as de furto e sinistro, a Requerente envia, juntamente com a fatura, o requerimento de registo subscrito pelos seus representantes legais, de modo a que as entidades envolvidas possam proceder ao registo do veículo em nome do novo proprietário ou do cancelamento da matrícula em caso de furto ou abate.

 

10.11 A Requerente alienou os veículos automóveis em datas anteriores às datas limite de pagamento do IUC dos anos de 2013 e 2014.

 

10.12 Não lograram os respetivos compradores registar a sua propriedade.

 

10.13 Apesar de já não ser proprietária dos veículos, de não os ter na sua posse e de desconhecer o seu paradeiro e, ainda, de considera que o imposto não é devido, a Requerente procedeu à sua liquidação.

 

10.14 Simultaneamente, apresentou reclamação graciosa contra os respetivos atos de autoliquidação.

 

10.15 A Requerente demonstrou, elidindo a presunção constante do artigo 3.º do Código do IUC, que já não era proprietária dos veículos automóveis em causa na data em que o respetivo imposto se tornou exigível.

 

10.16 Alega também em sua defesa, o entendimento uniforme em várias decisões arbitrais, nomeadamente nos Processos n.ºs 170/2013-T e 265/2013-T.

 

10.17 Termina requerendo a anulação das liquidações de IUC objecto do presente processo e consequente reembolso das importâncias pagas a título de imposto e juros compensatórios, bem como a condenação da AT ao pagamento dos respectivos juros indemnizatórios.

 

 

Resposta da Requerida

 

11.1 Na Resposta, defende-se por exceção, invocando a caducidade do direito de ação, por a reclamação graciosa ter sido indeferida por extemporaneidade.

 

11.2 Ora, nesta circunstância, não poderia a Requerente deduzir o presente processo, pois não podem os impugnantes servir-se da notificação daquela decisão para efeitos de contagem de prazo para impugnar.

 

11.3 Em termos substantivos, a AT entende que as alegações da Requerente: a) constituem uma leitura enviesada da letra da lei; b) não atendem ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o IUC e, mais amplamente em todo o sistema jurídico-fiscal; e, por fim, c) decorrem ainda de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC.

 

11.2 O legislador tributário ao estabelecer no art.º 3.º, n.º 1 quem são os sujeitos passivos do IUC estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou nas situações previstas no n.º 2 as pessoas aí mencionadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

 

11.3 O legislador não usou a expressão “presume-se” como poderia ter feito, por exemplo, nos seguintes termos: “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”.

 

11.4 Assim, a redação do art.º 3.º do CIUC corresponde a uma opção clara de política legislativa acolhida pelo legislador, pelo que entender que aí se consagra uma presunção seria inequivocamente efetuar uma interpretação contra legem.

 

11.5 Em conformidade, este entendimento já foi adoptado pela Jurisprudência dos nossos tribunais, transcrevendo, para tanto, parte da sentença do tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, proferida no Processo nº 210/13.0BEPNF. (Cfr. art.º 34.º da Resposta)

 

11.6 Sobre o elemento sistemático de interpretação, a Requerente alega que a solução propugnada pela Requerente é intolerável, não encontrando o entendimento por esta sufragado qualquer apoio legal. (Art.º 36.º da Resposta)

 

11.7 Por fim, atentos à “ratio”, dos debates parlamentares em torno da aprovação do presente regime, resulta claramente que o regime de tributação automóvel aprovado estabelece que o IUC “passou a ser devido pelas pessoas que figuram no registo como proprietárias dos veículos” (artigo 64.º).

 

11.8 Acrescenta ainda que as facturas por si só não constituem documento idóneo para comprovar a venda dos veículos, uma vez que a mesma não é mais do que um documento unilateralmente emitido pela Requerente.

 

11.9 Cita, neste sentido, o sentido da jurisprudência do CAAD nos processos n.ºs 63/2014-T, 130/2014-T, 150/2014-T e 220/2014-T.

 

11.10 Quanto aos juros indemnizatórios, alega que, ainda que se entenda que o imposto não é devido, não há erro imputável ao serviço porque a AT limitou-se a dar cumprimento à norma do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, pelo que não estão preenchidos os pressupostos legais que conferem o direito aos requeridos juros indemnizatórios.

 

11.11 Semelhante argumento é utilizado quanto à responsabilidade pelo pagamento das custas judiciais: não foi a Requerida quem deu azo à dedução do pedido de pronúncia arbitral mas sim a Requerente que só subministrou prova documental relativa à pretensa transmissão da propriedade após a liquidação do imposto.

 

11.12 Consequentemente, deverá a Requerente ser condenada ao pagamento das custas arbitrais, em linha com o decidido em questão similar no âmbito do Processo n.º 72/2013-T deste Centro de Arbitragem.

 

Tudo visto, cumpre proferir decisão final.

 

A. MATÉRIA DE FACTO

 

A.1. Factos dados como provados

 

1-A Requerente, no exercício da sua atividade, celebra contratos de aluguer operacional de veículos automóveis, procedendo, uma vez findo o contrato, à sua venda, conforme cláusulas contratuais gerais comuns a esses contratos;

 

2-Findo os contratos, a Requerente recorre a canais de vendas (leiloeiras e stands) que, na qualidade de intermediárias, optam por não proceder ao registo dos veículos em seu nome mas apenas dos terceiros adquirentes;

 

3-Nestas situações, bem como nos casos de furto ou sinistro, a requerente envia, juntamente com fatura, o requerimento de registo automóvel subscrito pelos seus representantes legais, de modo a que as entidades envolvidas possam proceder em conformidade, seja através de registo do veículo em nome do novo proprietário ou do cancelamento da matrícula em caso de furto ou abate.

 

4-Todavia, os respetivos compradores não registaram a propriedade.

 

5-A Requerente procedeu à liquidação e pagamento dos IUC, no valor global de € 1.497,88.

 

6-  Em sede de reclamação graciosa, a Requerente invocou a transmissão da propriedade das viaturas, juntando as respetivas faturas.

 

7-Em resposta, a Autoridade Tributária e Aduaneira indeferiu a reclamação e considerou que se mantinha a obrigação de pagamento do imposto

 

B. DO DIREITO

 

B.1 Da exceção de caducidade do direito de ação

 

Na resposta, a Requerida invoca a exceção de caducidade do direito de ação por considerar que, tendo a reclamação graciosa sido indeferida por extemporaneidade, a notificação deste indeferimento não admitir a posterior impugnação, pelo que se conclui pela intempestividade do pedido de constituição do tribunal arbitral (vide artigos 5.º a 13.º da Resposta).

 

A caducidade do direito de ação consubstancia uma exceção peremptória que dá lugar à absolvição parcial ou total do pedido, nos termos do n.º 2 do artigo 576.º do CPC.

 

A consideração da extemporaneidade da reclamação graciosa resulta, conforme alegado na respetiva resposta à reclamação graciosa, da aplicação do disposto no n.º 1 do artigo 70.º do CPPT em que se diz que a reclamação graciosa “será apresentada no prazo de 120 dias contados a partir dos factos previstos no n.º 1 do artigo 102.º”, no caso, a partir do “termo do prazo para pagamento voluntário das prestações tributárias legalmente notificadas ao contribuinte”.

 

Alega, no entanto, a Requerente que o prazo para a apresentação da reclamação graciosa é de dois anos, nos termos do artigo 131.º do CPPT, por se tratar de uma situação de autoliquidação.

 

Ora, estabelece o n.º 2 do artigo 16.º do Código do IUC que “A liquidação do imposto é feita pelo próprio sujeito passivo através da internet...”. Acrescenta-se ainda que, no ano da matricula ou registo do veículo, “o imposto é liquidado pelo sujeito passivo nos 30 dias posteriores ao termo do prazo legalmente exigido para o respetivo registo” (n.º 1 do artigo 17.º). Não haverá dúvidas que, à semelhança do IVA ou IRC, o IUC é um imposto autoliquidado pelo próprio sujeito passivo.

 

Em conformidade com estas disposições legais, a ora Requerente procedeu à autoliquidação do imposto. Assim não seria, caso a liquidação ora impugnada tivesse sido feita oficiosamente pela AT, o que, como se alegou e provou, não foi o caso.

 

Pelo exposto, a reclamação graciosa foi tempestiva relativamente a todos os atos de liquidação ora impugnados, pelo que improcede a exceção alegada.

 

 

B.2 DA PRESUNÇÃO DA PROPRIEDADE DA VIATURA

 

Atenta as posições das Partes assumidas nos argumentos apresentados, a questão central é saber se, na data da ocorrência dos factos geradores do imposto (artigo 3.º n.º 1, do CIUC) os proprietários dos veículos não forem os que constam do registo, serão apesar disso estes que serão sempre considerados os sujeitos passivos do IUC, não sendo por consequência considerada presunção ilidível a titularidade revelada pelo registo ou, dito doutro modo, se a norma de incidência subjetiva constante do artigo 3º nº 1 do CIUC, estabelece ou não uma presunção.

 

Esta matéria foi já abundantemente tratada na Jurisprudência Arbitral Tributária. Veja-se, a título de exemplo, as diversas decisões do CAAD publicadas em www.caad.org.pt, nomeadamente as proferidas nos processos nºs 14/2013, 26/2013, 27/2013, 73/2013, 170/2013, 294/2013 e 216/2014. No presente acórdão seguiremos o entendimento e conclusões daquelas decisões.

 

Pela síntese e clareza de pensamento, aderimos, sem reservas, ao enquadramento feito na decisão arbitral no âmbito do Processo n.º 216/2014-T, que citamos e para a qual remetemos:

“O sentido geral e unânime de tal Jurisprudência é o de considerar que o artigo 3º-1, do CIUC, consagra presunção ilidível da titularidade da propriedade as menções ou inscrições constantes na Conservatória do Registo Automóvel e/ou da base de dados do IMTT à data do facto tributário.

Ou seja: liquidado o IUC em função das inscrições do registo ou de harmonia com os elementos que constam nas bases de dados do IMTT, pode o sujeito passivo exonerar-se do pagamento demonstrando a não correspondência entre a realidade e aquelas inscrições e elementos de que se socorreu a Autoridade Tributária para proceder às liquidações.

Não se antolham razões para inverter o alterar o sentido essencial desta Jurisprudência.

Vejamos então, de novo e mais de perto a questão:

Dispõe o artigo 3º do CIUC (Código do Imposto único de Circulação):

Artigo 3º

Incidência Subjetiva

             1 – São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

         2 – São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.

 

Estabelece, por seu lado, o nº1 do artigo 11º da LGT que “na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam, são observadas as regras e princípios gerais da interpretação e aplicação das leis”.

Resolver as dúvidas que se suscitem na aplicação de normas jurídicas pressupõe a realização de uma atividade interpretativa.

Há assim que ponderar qual a melhor interpretação[1] do art. 3º, nº 1 do CIUC, à luz, em primeiro lugar, do elemento literal, ou seja aquele em que se visa detetar o pensamento legislativo que se encontra objetivado na norma, para se verificar se a mesma contempla uma presunção, ou se determina, em definitivo, que o sujeito passivo do imposto é o proprietário que figura no registo.

A questão que se coloca é, no caso sub juditio, a de saber se a expressão “considerando-se” utilizada pelo legislador no CIUC, em vez da expressão “presumindo-se”, que era a que constava nos diplomas que antecederam o CIUC, terá retirado a natureza de presunção ao dispositivo legal em apreço.

A nosso ver e ao contrário do que defende doutamente a AT, a resposta tem necessariamente de ser negativa, uma vez que da análise do nosso ordenamento jurídico se retira de forma clara que as duas expressões têm sido utilizadas pelo legislador com sentido equivalente, seja ao nível de presunções ilidíveis, seja no quadro das presunções inilidíveis, pelo que nada habilita a extrair a conclusão pretendida pela Autoridade Tributária por uma mera razão semântica.

Na verdade, assim acontece em variadas normas legais que consagram presunções utilizando o verbo “considerar”, de que se indicam, meramente a título de exemplo, as seguintes:

~ no âmbito do direito civil - o nº 3 do art. 243º do Código Civil, quando estabelece que “considera-se sempre de má-fé o terceiro que adquiriu o direito posteriormente ao registo da ação de simulação, quando a este haja lugar”;

 ~  também no âmbito do direito da propriedade industrial o mesmo se passa, quando o art. 59º, nº 1 do Código da Propriedade Industrial dispõe que “(…)as invenções cuja patente tenha sido pedida durante o ano seguinte à data em que o inventor deixar a empresa, consideram-se feitas durante a execução do contrato de trabalho (…)”;

   ~ e, por último, no âmbito do direito tributário, quando os nºs 3 e 4 do art. 89-A, da LGT dispõem que incumbe ao contribuinte o ónus da prova que os rendimentos declarados correspondem à realidade e que, não sendo feita essa prova, presume-se (“considera-se” na letra da Lei) que os rendimentos são os que resultam da tabela que consta no nº 4 do referido artigo.

Esta conclusão de haver total equivalência de significados entre as duas expressões, que o legislador utiliza indiferentemente, satisfaz a condição estabelecida no art. 9º, nº 2 do Código Civil, uma vez que se encontra assegurado o mínimo de correspondência verbal para efeitos da determinação do pensamento legislativo.

Importa, de seguida, submeter a norma em apreço aos demais elementos de interpretação lógica, designadamente, o elemento histórico, o racional ou teleológico e o de ordem sistemática.

Dissertando sobre a atividade interpretativa diz Francisco Ferrara que esta “é a operação mais difícil e delicada a que o jurista pode dedicar-se, e reclama fino trato, senso apurado, intuição feliz, muita experiência e domínio perfeito não só do material positivo, como também do espírito de uma certa legislação. (…) A interpretação deve ser objetiva, equilibrada, sem paixão, arrojada por vezes, mas não revolucionária, aguda, mas sempre respeitadora da lei” (Cfr. Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, tradução de Manuel de Andrade, (2ª ed.), Arménio Amado, Editor, Coimbra, 1963, p. 129).

Como refere Batista Machado “a disposição legal apresenta-se ao jurista como um enunciado linguístico, como um conjunto de palavras que constituem um texto. Interpretar consiste evidentemente em retirar desse texto um determinado sentido ou conteúdo de pensamento.

O texto comporta múltiplos sentidos (polissemia do texto) e contém com frequência expressões ambíguas ou obscuras. Mesmo quando aparentemente claro à primeira leitura, a sua aplicação aos casos concretos da vida faz muitas vezes surgir dificuldades de interpretação insuspeitadas e imprevisíveis. Além de que, embora aparentemente claro na sua expressão verbal e portador de um só sentido, há ainda que contar com a possibilidade de a expressão verbal ter atraiçoado o pensamento legislativo – fenómeno mais frequente do que parecerá à primeira vista “ (Cfr. Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, pp.175/176).

“A finalidade da interpretação é determinar o sentido objetivo da lei, a vis potestas legis (…) A lei não é o que o legislador quis ou quis exprimir, mas tão somente aquilo que ele exprimiu em forma de lei. (…) Por outro lado, o comando legal tem um valor autónomo que pode não coincidir com a vontade dos artífices e redatores da lei, e pode levar a consequências inesperadas e imprevistas para os legisladores. (…) O intérprete deve buscar não aquilo que o legislador quis, mas aquilo que na lei aparece objetivamente querido: a mens legis e não a mens legislatoris (Cfr. Francesco Ferrara, Ensaio, pp. 134/135).

Entender uma lei “não é somente aferrar de modo mecânico o sentido aparente e imediato que resulta da conexão verbal; é indagar com profundeza o pensamento legislativo, descer da superfície verbal ao conceito íntimo que o texto encerra e desenvolvê-lo em todas as suas direções possíveis”(loc. cit., p.128).

Com o objetivo de desvendar o verdadeiro sentido e alcance dos textos legais, o intérprete lança mão dos fatores interpretativos que são essencialmente o elemento gramatical (o texto, ou a “letra da lei”) e o elemento lógico, o qual, por sua vez, se subdivide em elemento racional (ou teleológico), elemento sistemático e elemento histórico. (Cfr. Baptista Machado, Loc. Cit., p. 181; Oliveira Ascensão, O Direito – Introdução e Teoria Geral 2ª Ed., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, p.361).

Entre nós, é o artigo 9º do Código Civil (CC) que fornece as regras e os elementos fundamentais à interpretação correta e adequada das normas.

O texto do nº 1 do artigo 9º do CC começa por dizer que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dela o “pensamento legislativo”.

Sobre a expressão “pensamento legislativo” diz-nos Batista Machado que o artigo 9º do CC “não tomou posição na controvérsia entre a doutrina subjetivista e a doutrina objetivista. Comprova-o o facto de se não referir, nem à “vontade do legislador” nem à “vontade da lei”, mas apontar antes como escopo da atividade interpretativa a descoberta do “pensamento legislativo” (artº. 9º, 1º). Esta expressão, propositadamente incolor, significa exatamente que o legislador não se quis comprometer” (loc. cit., p. 188).

No mesmo sentido se pronunciam P. de Lima e A. Varela, em anotação ao artigo 9º do CC (Cfr. Código Civil Anotado – vol. I, Coimbra ed., 1967, p. 16).

E sobre o nº 3 do artigo 9º do CC refere ainda Batista Machado: “(…) este nº 3 propõe-nos, portanto, um modelo de legislador ideal que consagrou as soluções mais acertadas (mais corretas, justas ou razoáveis) e sabe exprimir-se por forma correta. Este modelo reveste-se claramente de características objetivistas, pois não se toma para ponto de referência o legislador concreto (tantas vezes incorreto, precipitado, infeliz) mas um legislador abstrato: sábio, previdente, racional e justo” (Obra e loc. cit. p. 189/190).

Logo a seguir este insigne Mestre chama a atenção de que o nº 1 do artigo 9º, refere mais três elementos de interpretação a “unidade do sistema jurídico”, as “circunstâncias em que a lei foi elaborada” e as “condições específicas do tempo em que é aplicada” (loc. cit, p. 190).

Quanto às “circunstâncias do tempo em que a lei foi elaborada”, explica ainda Batista Machado que esta expressão “representa aquilo a que tradicionalmente se chama a occasio legis: os fatores conjunturais de ordem política, social e económica que determinaram ou motivaram a medida legislativa em causa” (loc. cit., p.190).

Relativamente às “condições específicas do tempo em que é aplicada”. este elemento de interpretação “tem decididamente uma conotação atualista (loc. cit., p. 190) no que coincide com a opinião expressa por P. de Lima E A. Varela, nas anotações ao artigo 9º do CC.

No que respeita à “unidade do sistema jurídico”, Baptista Machado considera este o fator interpretativo mais importante: “ (…) a sua consideração como fator decisivo ser-nos-ia sempre imposta pelo princípio da coerência valorativa ou axiológica da ordem jurídica” (loc. cit., p. 191).

É também este autor que nos diz, relativamente ao elemento literal ou gramatical (texto ou “letra da lei”) que este “é o ponto de partida da interpretação. Como tal, cabe-lhe desde logo uma função negativa: a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou pelo menos uma qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei.

Mas cabe-lhe igualmente uma função positiva, nos seguintes termos: se o texto comporta apenas um sentido, é esse o sentido da norma – com a ressalva, porém, de se poder concluir com base noutras normas que a redação do texto atraiçoou o pensamento do legislador” (loc. cit., p. 182).

Referindo-se ao elemento racional ou teleológico, diz este autor que ele consiste “na razão de ser da lei (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao elaborar a norma. O conhecimento deste fim, sobretudo quando acompanhado do conhecimento das circunstâncias (políticas, sociais, económicas, morais, etc.,) em que a norma foi elaborada ou da conjuntura política-económica-social que motivou a decisão legislativa (occasio legis) constitui um subsídio da maior importância para determinar o sentido da norma. Basta lembrar que o esclarecimento da ratio legis nos revela a valoração ou ponderação dos diversos interesses que a norma regula e, portanto, o peso relativo desses interesses, a opção entre eles traduzida pela solução que a norma exprime” (loc. cit., pp. 182/183).

No que respeita ao elemento sistemático (contexto da lei e lugares paralelos) que “este elemento compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos).Compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico.

Baseia-se este subsídio interpretativo no postulado da coerência intrínseca do ordenamento, designadamente no facto de que as normas contidas numa codificação obedecem por princípio a um pensamento unitário” (Batista Machado, loc.cit., p. 183).

 “(…) Em particular havemos de tomar em consideração o encandeamento das diversas leis do país, porque uma exigência fundamental de toda a sã legislação é que as leis se ajustem umas às outras e não redundem em congérie de disposições desconexas (Joseph Kohler, citado por Manuel de Andrade, in Ensaio, p. 27).

Descendo ao caso dos autos e ao enquadramento legal e jurídico que lhe subjaz:

Através da análise do elemento histórico, extrai-se a conclusão que, desde a entrada em vigor do Decreto-Lei 59/72, de 30 de Dezembro, o primeiro a regular esta matéria, até ao Decreto-Lei nº 116/94, de 3 de Maio, o último a anteceder o CIUC [cfr Lei nº 22-A/2007, com as alterações da Lei 67-A/2007 e 3-B/2010], foi consagrada a presunção [grifado nosso] dos sujeitos passivos do IUC serem as pessoas em nome das quais os veículos se encontravam matriculados à data da sua liquidação.

            Verifica-se, portanto, que a lei fiscal teve, desde sempre, o objetivo de tributar o verdadeiro e efetivo proprietário e utilizador do veículo, afigurando-se indiferente a utilização de uma ou outra expressão que, como vimos, têm na nossa ordem jurídica um sentido coincidente.

            O mesmo se diga quando nos socorremos dos elementos de interpretação de natureza racional ou teleológica.

            Com efeito, o atual e novo quadro da tributação automóvel consagra princípios que visam sujeitar os proprietários dos veículos a suportarem os prejuízos por danos viários e ambientais causados por estes, como se alcança do teor do art. 1º do CIUC.

            Ora a consideração destes princípios, designadamente, o princípio da equivalência, que merecem tutela constitucional e consagração no direito comunitário, e são também reconhecidos em outros ramos do ordenamento jurídico, determina que os aludidos custos sejam suportados pelos reais proprietários, os causadores dos referidos danos, o que afasta, de todo, uma interpretação que visasse impedir os presumíveis proprietários de fazer prova de que já não o são por a propriedade estar na esfera jurídica de outrem[5].

Assim, também, da interpretação efetuada à luz dos elementos de natureza racional e teleológica, atento aquilo que a racionalidade do sistema garante e os fins visados pelo novo CIUC, resulta claro que o nº 1 do art. 3º do CIUC consagra uma presunção legal ilidível.

Em face do exposto, importa concluir que a ratio legis do imposto aponta no sentido de serem tributados os efetivos proprietários-utilizadores dos veículos pelo que a expressão “considerando-se” está usada no normativo em apreço num sentido semelhante a “presumindo-se”, razão pela qual dúvidas não há que está consagrada uma presunção legal.

Por outro lado, estabelece o art. 73º da LGT que “(…) as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário, pelo que são ilidíveis (…)”.

Assim sendo, consagrando o art. 3º, nº 1 do CIUC uma presunção juris tantum [e, portanto, ilidível], a pessoa que está inscrita no registo como proprietária do veículo e que, por essa razão foi considerada pela Autoridade Tributária como sujeito passivo do imposto, pode apresentar elementos de prova visando demonstrar que o titular da propriedade, na data do facto tributário, é outra pessoa, para quem a propriedade foi transferida.”

 

2. Da prova da transmissão das viaturas automóveis

 

Face ao exposto supra, concluímos que o n.º 1 do art.º 3º do CIUC consagra uma presunção ilidível, nos termos do artigo 73.º da LGT, de que o titular do registo automóvel é o seu proprietário. In casu, a Requerente tem de provar, a fim de ilidir a presunção do artigo 3º, n.º 1 do CIUC (e até do Registo Automóvel) que não era proprietária dos veículos em causa no período a que dizem respeito as liquidações impugnadas.

 

Para provar que ocorreram tais transmissões de propriedade através de contratos de compra e venda, a Requerente apresenta cópia das faturas.

 

Nas suas alegações, a Requerida alega que as faturas, enquanto documentos particulares e unilaterais, não constituem prova bastante para ilidir a presunção.

 

Discordamos deste entendimento.

 

Não pode deixar de ser assinalado, desde logo, que o contrato de compra e venda de veículo automóvel é contrato verbal, não sujeito, por conseguinte, a forma específica. Deste enquadramento resulta, inevitavelmente, uma especial importância do documento fiscal não só para efeitos tributários mas também para efeitos civis ou outros.

 

No caso, a Requerente apresentou faturas, emitidas nos termos legais, comprovativas da operação de venda. As faturas constituem, para efeitos fiscais, os documentos legalmente exigidos para comprovar as operações de vendas e prestações de serviços, conforme resulta expressamente dos vários códigos fiscais (veja-se o disposto no n.º 6 do artigo 23.º do Código do IRC, al. b) do n.º 1 do artigo 29.º e artigo 36.º do Código do IVA e artigo 115.º do Código do IRS).

 

Estranho seria, portanto, que uma fatura constitua, na ótica do transmitente, prova suficiente para apurar um rendimento da venda de uma viatura, tributável em sede de IRS (no regime de contabilidade organizada) ou IRC mas, em sentido contrário, não constitua prova suficiente para comprovar a mesma transmissão, agora para efeitos de IUC.

 

Esta afirmação não obsta a que a AT demonstre que se trata de um documento falso por não existir qualquer transmissão (com todas as consequências fiscais e penais).

 

In casu, não há qualquer prova ou sequer indícios que ponham em causa a presunção de boa fé do contribuinte e dos documentos apresentados, conforme resulta expressamente do disposto no artigo 75.º da Lei Geral Tributária.

 

Em conclusão, estão reunidos os pressupostos necessários para a procedência do pedido de anulação das liquidações, com fundamento em ilegalidade e erro nos pressupostos.

 

C. Juros indemnizatórios e custas arbitrais

 

A Impugnante procedeu ao pagamento integral das referidas liquidações de IUC, pelo que pede o reembolso desses montantes indevidos, acrescido de juros indemnizatórios, à taxa legal, nos termos do art. 43.º da LGT e 61.º do CPPT.

 

No caso em apreço, é manifesto que, na sequência da ilegalidade dos atos de liquidação, há lugar a reembolso do imposto, por força dos referidos arts. 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado”.

 

No que concerne aos juros indemnizatórios, é também claro que, contrariamente ao alegado pela Requerida, o erro não é imputável à Requerente, a partir do momento em que, em sede de reclamação graciosa, informou que já não era proprietária da viatura. Está-se, a partir deste momento, perante um erro nos pressupostos de direito, imputável à Administração Tributária.

 

Consequentemente, a requerente tem direito a juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT e do artigo 61.º do CPPT, calculados sobre a quantia que pagou indevidamente, desde a data do indeferimento da apresentação das reclamações graciosas até ao integral reembolso dessa mesma quantia.

 

Com os mesmos fundamentos, a responsabilidade pelas custas é da parte vencida porque, ao contrário do alegado, a AT poderia ter procedido à revogação dos actos de liquidação identificados quando tomou conhecimento da reclamação graciosa ou nos 30 dias seguintes ao do conhecimento do pedido de constituição do Tribunal Arbitral (artigo 13.º n.º 1 do RJAT).

 

*

D. DECISÃO

 

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

a)      Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade das liquidações identificadas como Documentos 1 a 14 da reclamação graciosa que integra o processo administrativo, no montante global de € 1.497,88;

b)      Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira na restituição à Requerente dos valores pagos, com juros indemnizatórios desde a data da apresentação da reclamação graciosa até ao integral reembolso do imposto indevido;

c)      Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira ao pagamento das custas do processo, no montante de € 306,00.

 

E. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em €1.497,88, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

F. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 306,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi integralmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 1 de fevereiro de 2016

 

O Árbitro

 

 

(Amândio Silva)

 



[1] A génese da relação jurídica de imposto pressupõe a verificação cumulativa dos três pressupostos necessários ao seu surgimento, a saber: o elemento real, o elemento pessoal e o elemento temporal. (Neste sentido, veja-se, entre muitos outro autores, Freitas Pereira, M.H., Fiscalidade, 3.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2009).