Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 222/2015-T
Data da decisão: 2015-12-08  IVA  
Valor do pedido: € 1.842,30
Tema: IVA - transmissão intracomunitária de bens isenta ao abrigo da alínea a) do art. 14.º do RITI
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Decisão Arbitral

 

Requerente: A… – …, Lda.

Requerida: Autoridade Tributária e Aduaneira

 

I.              RELATÓRIO

 

A… - …, Lda., NIPC …, com sede na Avenida …, n.º …, em Lisboa (doravante apenas designada por Requerente), apresentou, em 30-03-2015, um pedido de constituição do tribunal arbitral singular, nos termos dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em conjugação com as alíneas a) do art. 99.º do CPPT, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada apenas por Requerida).

A Requerente pede a declaração de ilegalidade do despacho de indeferimento do recurso hierárquico interposto da decisão proferida sobre a reclamação graciosa apresentada com referência à liquidação adicional de IVA do terceiro trimestre de 2012, no valor de € 1.842,30, e consequente anulação do acto de liquidação referido, com reembolso à Requerente do imposto indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios. A Requerente sustenta o seu pedido no facto de o IVA liquidado dizer respeito a uma transmissão intra-comunitária de bens isenta ao abrigo da alínea a) do art. 14.º do RITI por se verificarem os respectivos pressupostos.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 31-03-2015 e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nessa mesma data.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular a ora signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 26-05-2015 foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral singular foi constituído em 11-06-2015.

Notificada para se pronunciar sobre o pedido da Requerente, a Requerida apresentou resposta a 26-06-2015 alegando que a Requerente não havia comprovado devidamente o preenchimento dos requisitos de isenção de IVA nas transmissões intra-comunitárias de bens a que alude o art. 14.º, alínea a), do RITI. Acresce que, das diligências efectuadas pela própria Requerida, resultavam fortes indícios de que os bens em causa não haviam sido expedidos ou transportados para fora do território nacional por conta do vendedor ou do adquirente. Em complemento, a Requerida solicitou a suspensão dos presentes autos para reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeia (“TJCE”) de duas questões concretas relativas à interpretação e aplicação dos arts. 131.º e 138.º da Directiva 2006/112/CE, de 28 de Novembro.

Na sequência do agendamento da reunião do art. 18.º do RJAT para inquirição das testemunhas arroladas pela Requerente, esta veio alterar o rol das testemunhas e requerer, ao abrigo do n.º 1 do art. 421.º do CPC, o aproveitamento da prova produzida no proc. n.º 753/2014-T que correu termos pelo CAAD.

A Requerida não se opôs a este aproveitamento pelo que foi deferido o pedido de aproveitamento da prova e dispensada a produção de prova testemunhal nestes autos.

As Partes apresentaram as respectivas alegações sumárias, dando por reproduzido o alegado nos articulados.

Por requerimento de 19-11-2015, a Requerida veio juntar aos autos cópia da decisão proferida no processo arbitral que correu termos sob o n.º 164/2015-T em que a Requerente era parte.

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

 

II.      PEDIDO DA REQUERENTE

 

A Requerente contesta as decisões de indeferimento do recurso hierárquico e da reclamação graciosa proferidas relativamente à liquidação adicional de IVA do período de 2012-09, no valor de € 1.842,30 porquanto assentam numa errada interpretação da lei e análise da prova produzida.

Com efeito, na sequência de uma inspecção efectuada pela Autoridade Tributária, esta concluiu pela não aplicação da isenção do art. 14.º, alínea a), do RITI, à venda que a Requerente fez à B…, em 18-07-2012, formalizada pela factura n.º 2012…, no valor de € 8.010,00, porquanto a Requerente não terá comprovado devidamente a saída do bem do território nacional.

A Requerente contesta esta posição, juntando a guia de remessa n.º …, da C…, datada de 18-07-2012, e os comprovativos da transferência bancária efectuada pela entidade adquirente para pagamento do preço. Pela consulta do portal da transportadora, foi possível comprovar a recepção da encomenda em causa.

O facto de a guia de remessa conter no seu descritivo a referência a “documentos” e não a relógios justifica-se por uma imposição da seguradora que exclui da cobertura da apólice quaisquer perdas ocorridas na remessa de artigos se na guia de remessa constar qualquer referência a jóias, pratas, relógios, etc.

No entender da Requerente foi produzida prova suficiente e adequada para efeitos de aplicação da isenção da alínea a) do art. 14.º do RITI, improcedendo, assim, as decisões de indeferimento proferidas pela Requerida. Em consequência, deverá ser anulada a liquidação adicional de IVA reclamada, tendo a Requerente direito ao reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos legais.

 

III.    RESPOSTA DA REQUERIDA

 

A Requerida contesta o pedido da Requerente por considerar que não foi feita prova adequada e suficiente do preenchimento dos pressupostos legais da isenção prevista no art. 14.º, alínea a), do RITI, uma vez que a guia de remessa disponibilizada contém a referência a “documentos” e não a relógios. Tal facto impede a Autoridade Tributária de concluir pela veracidade da declaração efectuada pela Requerente.

A este facto, acresce que, da informação obtida junto das autoridades fiscais da Letónia relativamente às operações realizadas no primeiro semestre de 2012 entre a Requerente e a B…, a Requerida constatou haver divergências entre as operações declaradas pela Requerente e as operações declaradas pela adquirente, não havendo identidade nos dados fornecidos. Estas divergências indiciam que a B… mais não era que um centro formal de facturação, ficando por demonstrar que o bem indicado na factura em causa saiu efectivamente do território nacional. No entender da Requerida, o ónus de comprovar a saída dos bens de território nacional impende sobre a Requerente pelo que, não tendo esta cumprido com o mesmo, haverá que se concluir pela não verificação dos pressupostos necessários à aplicação da referida isenção. Nessa medida improcederá o pedido da Requerente, devendo manter-se os despachos de indeferimento e a liquidação adicional de IVA contestada.

Sem prejuízo da impugnação, e por considerar que a decisão a proferir nos presentes autos implica a aplicação de normas comunitárias (arts. 131.º e 138.º da Directiva n.º 2006/12/CE, de 28 de Novembro) a Requerida considera, ainda, que os presentes autos deverão ser suspensos para que seja efectuado um pedido de reenvio prejudicial ao TJUE para esclarecimento das seguintes questões:

1) Pode considerar-se que uma prática administrativa respeita o princípio da proporcionalidade quando faz recair sobre o vendedor o ónus de provar a autenticidade dos documentos de transporte e a recepção dos bens quando os documentos de transporte dos bens não identificam os bens objecto de transmissão?

2) Pode considerar-se que uma prática administrativa respeita o princípio da proporcionalidade quando faz recair sobre o vendedor o ónus de provar a efectividade das transmissões intra-comunitárias quando há contradição entre a documentação apresentada pelos diferentes operadores (vendedor e adquirente)?”.

 

IV.    MATÉRIA DE FACTO

 

          A. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

1.      A Requerente é uma sociedade comercial que se dedica, entre outras actividades, à importação, exportação, e comércio de artigos de ourivesaria e relojoaria.

2.      Para efeitos de IRC, a Requerente encontra-se enquadrada no regime geral de tributação, com contabilidade organizada.

3.      Para efeitos de IVA, a Requerente encontra-se inscrita no regime normal de periodicidade mensal desde 2012-01-01.

4.      Em 2012, a Requerente efectuou diversas transmissões intra-comunitárias de bens sem que tenha procedido à liquidação de IVA, ao abrigo da alínea a) do art. 14.º do RITI.

5.      A Requerente dispunha, para todas as exportações por si declaradas, de guias das transportadoras C… e a “boarding pass”.

6.      A 18-07-2012, a Requerente emitiu a factura n.º 2012…, no valor de € 8.010,00, em nome de B…, com morada na …, …/… – …, Riga, na Letónia, sem liquidar IVA.

7.      A B… era, à data, sujeito passivo de IVA registado como tal na Letónia.

8.      Para efeitos de emissão da factura, a B… indicou o número fiscal de IVA da Letónia (LV…).

9.      Para efeitos de comprovação dos pressupostos da isenção da alínea a) do artigo 14.º do RITI, a Requerente apresentou a guia de remessa n.º …, da C…, de 18-07-2015.

10.  No descritivo da guia de remessa n.º …, da C…, consta a referência a “Documents”.

11.  Por consulta da página da internet da C… confirma-se que a encomenda remetida com a guia de remessa identificada foi entregue.

12.  A morada de facturação corresponde à morada indicada na guia de remessa da C… apresentada pela Requerente.

13.  A B… efectuou o pagamento a 13-07-2012 por transferência bancária da sua conta no ... Bank, em Riga, Letónia.

14.  Na sequência de pedido de reembolso de IVA com referência ao período 2012-09, foi efectuada inspecção externa parcial à Requerente, sob a ordem de serviço n.º OI2012….

15.  Para controlo das isenções praticadas pela Requerente nas transmissões intra-comunitárias de bens foi solicitada a colaboração das autoridades fiscais dos Estados membros de residência dos adquirentes.

16.  Na sequência da informação recolhida, a Autoridade Tributária concluiu que:

Em relação às transmissões para os clientes D… (França), E… (Itália) e F… (Reino Unido) não foram reportados factos susceptíveis de pôr em causa a isenção aplicada pela A… nas transmissões intra-comunitárias de bens respectivas;

Relativamente às transmissões para o cliente G… (Espanha) não estamos nesta data na posse de elementos susceptíveis de colocar em causa a isenção invocada nas operações, embora as operações suscitem dúvidas fundadas quanto ao circuito real dos bens;

Em relação as transmissões para o cliente B… (Letónia) foram reportados factos que podem ser resumidos como se segue:

·      Não há qualquer evidência que os relógios deram entrada no Estado membro que consta no documento de transporte exibido;

·      A sociedade cliente não passará de mero entreposto documental.

17.  A informação recolhida junto das autoridades fiscais da Letónia com referência às operações entre a Requerente e a B… dizem respeito ao primeiro semestre de 2012.

18.  Durante o primeiro semestre de 2012, a Requerente vendeu à B… um total de 35 relógios pelo valor global de € 246.405,00.

19.  A B… declarou às autoridades fiscais da Letónia a aquisição de apenas 3 relógios pelo valor total de € 80.257,00.

20.  Na sequência do procedimento inspectivo, a Autoridade Tributária efectuou a liquidação adicional de IVA n.º 2013 … relativa ao período de 2012-09.

21.  Da demonstração de acerto de contas n.º 2013 … efectuada na sequência da liquidação adicional identificada, apurou-se imposto a pagar no montante de € 1.842,30.

22.  O imposto foi pago a 04-09-2013.

23.  A Requerente apresentou reclamação graciosa da liquidação adicional de IVA em 21-11-2013.

24.  A reclamação graciosa foi indeferida por despacho de 31-12-2013.

25.  A Requerente interpôs recurso hierárquico da decisão de indeferimento da reclamação graciosa.

26.  O recurso hierárquico veio a ser indeferido por decisão notificada à Requerente a 29-12-2014.

 

B. Factos não provados

 

Não se comprovou que a descrição “Documents” aposta na guia de remessa n.º …, da C…,  tenha sido feita por estar vedada a menção a “relógios” ao abrigo do contrato de seguro contratado pela Requerente.

Também não se comprovou que os serviços de inspecção hajam solicitado a colaboração das autoridades fiscais da Letónia com vista à validação da transmissão intra-comunitária de bens identificada nos autos, ao contrário do que fora efectuado para as operações efectuadas no primeiro semestre de 2012.

 

C. Fundamentação da matéria de facto

 

A matéria de facto dada como provada assenta na prova documental apresentada nos presentes autos e no depoimento da testemunha H…, por reprodução do depoimento prestado no processo arbitral n.º 753/2014-T.

 

V.      QUESTÕES A DECIDIR

 

De tudo o que vem exposto supra, cumpre a este tribunal decidir as seguintes questões:

a)             do reenvio prejudicial para o TJUE;

b)             da ilegalidade do acto de liquidação de IVA do período de 2012-09.

 

a)             Do reenvio prejudicial para o TJUE

 

Na resposta apresentada a Requerida conclui que a decisão a proferir nos presentes autos requer uma interpretação conjugada dos artigos 131.º e 138.º, n.º 1, da Directiva n.º 2006/112/CE, de 28 de Novembro, pelo que propõe a submissão ao TJUE, a título de reenvio prejudicial, das seguintes questões:

1) Pode considerar-se que uma prática administrativa respeita o princípio da proporcionalidade quando faz recair sobre o vendedor o ónus de provar a autenticidade dos documentos de transporte e a recepção dos bens quando os documentos de transporte dos bens não identificam os bens objecto de transmissão?

2) Pode considerar-se que uma prática administrativa respeita o princípio da proporcionalidade quando faz recair sobre o vendedor o ónus de provar a efectividade das transmissões intra-comunitárias quando há contradição entre a documentação apresentada pelos diferentes operadores (vendedor e adquirente)?”.

 

            Sobre estes pedidos de reenvio prejudicial, este tribunal subscreve a decisão de indeferimento proferida no processo arbitral n.º 164/2015-T, em que a Requerida havia efectuado pretensão igual

Com efeito, como se refere no ponto 7. das recomendações aos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais (2012/C 338/01), do TJUE[1], “o papel do Tribunal no âmbito de um processo prejudicial consiste em interpretar o direito da União ou pronunciar-se sobre a sua validade, e não em aplicar este direito à situação de facto subjacente ao processo principal. Esse papel incumbe ao juiz nacional e, por isso, não compete ao Tribunal pronunciar-se sobre questões de facto suscitadas no âmbito do litígio no processo principal nem sobre eventuais divergências de opinião quanto à interpretação ou à aplicação das regras de direito nacional”.

            Nessa medida, o pedido de reenvio a título prejudicial impõe-se sempre que, não sendo a decisão a proferir passível de recurso judicial no direito interno, se suscitem dúvidas interpretativas do direito da União, excepto quando já exista jurisprudência na matéria quando o modo correcto de interpretar a regra jurídica em causa seja inequívoco (cfr. ponto 12. da recomendação).

Consequentemente, “um órgão jurisdicional nacional pode, designadamente quando se considere suficientemente esclarecido pela jurisprudência do Tribunal, decidir ele próprio da interpretação correta do direito da União e da sua aplicação à situação factual de que conhece” (cfr. ponto 13 da recomendação).

            Este é, precisamente, o presente caso, na medida em que este tribunal considera que relativamente à legislação comunitária e à legislação interna sobre a matéria não se suscitam quaisquer dúvidas interpretativas não clarificadas por jurisprudência do TJUE. Como se refere decisão arbitral proferida no processo n.º 164/2015-T “Com efeito, ponderados os factos e o exacto sentido, teor e alcance das disposições comunitárias e da jurisprudência já promanada pelo TJUE parece claro que elas são suficientemente claras para dirimir com mediana clareza, as questões em apreço. Com efeito, tal jurisprudência é tão clara que possibilitou a AT a promanar Doutrina Administrativa igualmente clara – Of. Circulado 30009, de 10.12.2009 – onde verte entendimento que reflecte apropriadamente a jurisprudência firmada, o que, de resto, é confirmado no Parecer junto”.

Acresce que, no entender deste tribunal, mesmo que o pedido de reenvio fosse deferido, as respostas que viessem a ser dadas pelo TJUE às questões colocadas pela Requerida não teriam impacto na decisão final a proferir nos presentes autos.

  Com efeito, mesmo que o TJUE viesse a considerar que as práticas administrativas descritas pela Requerida nas questões colocadas respeitam os princípios da segurança e da proporcionalidade, a verdade é que tal conclusão não teria relevância directa no presente caso uma vez que a decisão a tomar por este tribunal terá sempre que ter por base o direito nacional e as regras internas em matéria de repartição do ónus da prova. E será em face do direito nacional que se terá que apurar se tal prática administrativa – ainda que conforme ao direito comunitário – se impõe ao órgão judicial decisor e se é ou não legal face ao direito nacional.   

Daí que, sendo as regras de repartição do ónus da prova as que decorrem da lei e não aquelas que a prática administrativa determine, é irrelevante apurar se tal prática administrativa é ou não conforme ao direito comunitário. Mesmo que se viesse a concluir que tal prática administrativa seria conforme ao direito comunitário, não se imporia, por si só, a este tribunal que sempre terá que decidir em função do direito constituído e não de práticas administrativas.

Face a tudo o que vem exposto, entende-se que não se justifica o requerido reenvio prejudicial para o TJUE, estando este tribunal em plenas condições para se pronunciar sobre o objecto do litígio, pelo que se indefere o pedido apresentado pela Requerida.

 

b)             Da ilegalidade do acto de liquidação de IVA do período de 2012-09

 

A questão a decidir nos presentes autos prende-se com a aplicação da isenção prevista na alínea a) do art. 14.º do RITI à venda efectuada pela Requerente à B…, em 18-07-2012, e formalizada na factura n.º 2012…, no valor de € 8.010,00.

Nos termos da referida norma, estarão isentas de IVA as transmissões intra-comunitárias de bens efectuadas por um sujeito passivo residente em Portugal desde que:

- o adquirente seja também um sujeito passivo de IVA, residente num outro Estado Membro;

- o adquirente sujeito passivo noutro Estado Membro utilize o respectivo número de identificação para efectuar a aquisição; e

- os bens sejam efectivamente expedidos ou transportados para outro Estado Membro com destino ao adquirente.

Em discussão nos presentes autos está, precisamente, a verificação deste último requisito. No entender da Requerida, a Requerente não logrou demonstrar a saída efectiva dos bens facturados de território nacional dado que a guia de remessa apresentada não refere “relógios” mas antes “documents”. Cabendo à Requerente o ónus de comprovar, em concreto, a verificação dos pressupostos da alínea a) do art. 14.º do RITI, a insuficiência da prova apresentada implicará a não aplicação de tal isenção, havendo fundamento legal para a liquidação efectuada pela Requerida.

Vejamos, então:

 

  Tendo em conta que se discute o direito do contribuinte a uma isenção de imposto, será pacífico que, ao abrigo do art. 74.º da LGT, impenderá sobre ele o ónus da prova dos pressupostos do direito que pretende exercer.

  Esta norma tem, contudo, que ser conjugada com o disposto no n.º 1 do art. 350.º do Código Civil, aplicável por remissão do art. 2.º da LGT, que determina que “Quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz.”; e com o previsto n.º 1 do art. 344.º do Código Civil que estabelece a inversão do ónus da prova sempre que haja presunção legal.

            Isto mesmo é subscrito por Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa[2], ao defenderem que a regra do n.º 1 do art. 74.º da LGT “(…) deverá ser afastada nas situações em que se estabelece inversão do ónus da prova indicadas no art. 344.º, isto é, “quando haja presunção legal, dispensa ou liberação da prova””.

  No âmbito tributário, determina o n.º 1 do art. 75.º da LGT que “Presumem-se verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal, sem prejuízo dos demais requisitos de que depende a dedutibilidade dos gastos.”

Como referem os autores supra mencionados[3], trata-se de uma presunção legal que competirá à Autoridade Tributária contrariar pelo que “(…) se a administração tributária não demonstrar a falta de correspondência entre o teor de tais declarações, contabilidade ou escrita e a realidade, o seu conteúdo terá de se considerar como verdadeiro”, dispensando-se o contribuinte da sua prova, ao abrigo do referido art. 350.º do Código Civil.

O afastamento desta presunção legal operará por duas vias:

(i) pela demonstração de qualquer das circunstâncias elencadas no n.º 2 do mesmo artigo 75.º da LGT; ou

(ii) pela sua ilisão, mediante prova em contrário do que se presume, nos termos do n.º 2 do artigo 350.º do Código Civil.

Aplicando estas regras ao caso concreto, teremos que presumir verdadeiras e de boa-fé, quer as declarações periódicas de IVA apresentadas, nos termos da lei, pela Requerente, onde apurou o reembolso inicialmente requerido, quer os dados descritos na sua contabilidade, incluindo facturação, nas quais não foram identificadas quaisquer divergências pela Requerida.

Aqui chegados, cumpre então analisar se os serviços de inspecção e a Requerida lograram afastar tal presunção legal de veracidade, seja por via do n.º 2 do art. 75.º da LGT, seja por prova em contrário, nos termos do n.º 2 do art. 350.º do Código Civil.

 

Analisando-se o n.º 2 do art. 75.º da LGT, concluímos que seriam razão para afastamento da presunção legal de veracidade das declarações da Requerente (i) a existência de omissões, erros, inexactidões ou indícios fundados de que a contabilidade e as declarações da Requerente não reflectem a situação real ou (ii) a falta de cooperação por parte da Requerente no sentido do esclarecimento da sua situação tributária.

Sobre a eventual falta de cooperação da Requerente, considera-se que a Requerente correspondeu, na medida do que lhe foi possível, às solicitações de cooperação formuladas pela Autoridade Tributária, disponibilizando a documentação em seu poder com referência à operação em causa. Refira-se, também, que, em momento algum, a Requerida invocou ou alegou a falta de cooperação por parte da Requerente. Não se pode, por isso, concluir pelo afastamento da presunção do n.º 1 do art. 75.º da LGT com este fundamento.

Resta, então, a análise da situação à luz da alínea a) do n.º 2 do art. 75.º da LGT e do n.º 2 do art. 350.º do Código Civil.

Ora, tendo por base a documentação disponibilizada, conclui-se que, relativamente à operação em questão no presente processo, a Autoridade Tributária não apurou nada em concreto que contrarie a versão da Requerente, ou indicie a falta de verdade da contabilidade da Requerente e das declarações de IVA submetidas com base nessa mesma contabilidade.

Com efeito, as informações obtidas junto das autoridades fiscais da Letónia relativamente às operações efectuadas entre a Requerente e a B… dizem respeito ao primeiro semestre de 2012 pelo que as divergências detectadas entre a informação prestada pela Requerente e pelas autoridades fiscais da Letónia se cingem a esse mesmo período. E mesmo em relação a essas divergências, ficou por demonstrar - não resultando quer do relatório de inspecção quer de qualquer uma das informações que sustentaram o indeferimento da reclamação graciosa e do recurso hierárquico – quem é que teria a informação correcta e completa: se a Requerente, se as autoridades da Letónia.

Acresce que, no entender deste tribunal, esta invocada divergência entre os dados recolhidos da contabilidade da Requerente – e integralmente reportados à Autoridade Tributária – e a informação prestada pelas autoridades fiscais letãs, segundo a qual a adquirente não terá declarado a totalidade das operações declaradas pela Requerente, não poderá, por si só, consubstanciar um fundado indício de que a contabilidade da Requerente não reflecte a situação real. 

E não pode, desde logo, porquanto a decisão de declarar ou não a aquisição intracomunitária é exclusivamente determinada pelo adquirente, sendo a Requerente de todo alheia à mesma, em termos de não a poder determinar ou controlar. Por outro lado, mesmo que assim não se entendesse, sempre se haveria que concluir que, no limite, tal circunstância seria unicamente susceptível de gerar uma situação de dúvida que, para ter relevância juridico-tributária, teria que ser conjugada com outros elementos de facto.

Efectivamente, e aplicando-se aqui a ratio do acórdão Teleos (proc. C-409/04), dever-se-á entender que o facto de o adquirente não ter apresentado uma declaração às autoridades fiscais do Estado-Membro de destino relativa à aquisição intracomunitária, pode constituir uma prova suplementar para demonstrar que os bens não saíram efectivamente do território do Estado-Membro de envio, mas não constitui uma prova determinante para efeitos de não aplicação da isenção de IVA nas transmissões intra-comunitárias de bens.

Também, no acórdão do TJUE, proferido no processo C-587/10, se afirmou que “com excepção das condições relativas à qualidade dos sujeitos passivos, à transferência do poder de dispor de um bem como proprietário e à deslocação física de bens de um Estado-Membro para outro, não se pode impor nenhuma outra condição para qualificar uma operação de entrega ou de aquisição intracomunitária de bens.”.

Nesse sentido, e contrariamente ao que pretendeu a Requerida, o facto de, no primeiro semestre de 2012, a entidade adquirente dos relógios vendidos pela Requerente não ter declarado tais aquisições intra-comunitárias de bens na Letónia, não é indício suficientemente relevante de que a contabilidade da Requerente não merece credibilidade.

E não será indício suficiente porquanto, como a própria Requerida apurou, a Requerente cumpriu com todas as suas obrigações contabilísticas e fiscais, tendo demonstrado que (i) todas as vendas efectuadas foram devidamente declaradas, (ii) foram recolhidos os documentos comprovativos da saída da mercadoria de território nacional, (iii) o preço foi efectivamente pago pelo adquirente por transferência bancária de conta por si detida. Todo o circuito financeiro e formal e todos os registos efectuados pela Requerente permitem indiciar, exactamente, a veracidade do que foi declarado pela Requerente.

Acresce que a transmissão intra-comunitária de bens questionada pela Autoridade Tributária ocorreu em Julho de 2012, ou seja, no segundo semestre de 2012. E sobre este período, a Autoridade Tributária não recolheu qualquer informação junto das autoridades fiscais da Letónia que confirme ou infirme a declaração da Requerente.

Relativamente à operação objecto dos presentes autos, o único fundamento invocado pela Requerida para recusar a aplicação da isenção da alínea a) do art. 14.º do RITI resulta apenas e só do facto de a guia de remessa conter o descritivo “documents” e não “relógios”.

Ora, para efeitos de aplicação da isenção de IVA própria das transmissões intra-comunitárias de bens, cumpria à Requerente demonstrar que:

- o adquirente era sujeito passivo de IVA residente num outro Estado Membro;

- o adquirente utilizou o respectivo número de identificação para efectuar a aquisição; e

- os bens foram efectivamente expedidos ou transportados para outro Estado Membro com destino ao adquirente.

Não se verificando, no caso e como se viu, quaisquer dúvidas relativamente aos dois primeiros requisitos, e estando o terceiro, em primeira linha, presuntivamente provado (por aplicação do n.º 1 do art. 75.º da LGT), cumpriria então à Requerida demonstrar algum facto obstativo àquela presunção ou, simplesmente, elidi-la.

            Analisada a questão, é entendimento deste tribunal que, no caso concreto, a resposta deverá ser, a ambas as questões, negativa.

Como referido supra, não foi recebida das autoridades fiscais da Letónia qualquer informação concreta relativa a esta operação pelo que não existe aqui qualquer informação oficial – ainda que estrangeira e susceptível de prova em contrário, nos termos do n.º 4 do art. 76.º da LGT – que infirme ou confirme os dados da Requerente.

Acresce que, a tónica importante para se estar perante uma transmissão intracomunitária (TIB) do ponto de vista do transmitente é, para além de se assegurar que o adquirente é um sujeito passivo de IVA que efectua operações intracomunitárias, assegurar-se que os bens saíram fisicamente do Estado Membro do sujeito passivo transmitente.

Assim, para elidir a presunção de veracidade da transmissão intracomunitária regularmente declarada, seria necessário demonstrar que os bens não saíram do território nacional, o que a Requerida não logrou fazer – o que lhe competiria, ao abrigo do art. 344.º do Código Civil. Em cumprimento das regras de repartição do ónus da prova, a Requerida não se pode bastar com uma alegada ausência de prova da saída dos bens do território nacional por parte da Requerente resultante do facto de o documento de transporte apresentado pela Requerente conter a descrição “Documentos” e não relógios.

A este respeito, note-se que, a Requerente dispunha, para todas as exportações por si declaradas de guias das transportadoras C… ou “boarding pass”, não se demonstrando que entre as situações que foram aceites pela Autoridade Tributária (transacções com D…, E… e F...), não existam outras em que a descrição constante daqueles documentos fosse precisamente a mesma (“Documentos”).

De resto, demonstrativo da não decisividade desta circunstância é o facto de, resultando ele, desde logo, da documentação apresentada pela Requerente, a Autoridade Tributária concluiu não ser tal suficiente para, desde logo, proceder à liquidação adicional de imposto.

Por outro lado, e não se tendo provado qual a concreta causa da aposição da menção em questão, não se dá a tal facto, desacompanhado de quaisquer outros que apontem no sentido de que a remessa em questão não haja, na realidade, ocorrido, relevância decisiva nesse sentido, tanto mais que, como aventa a Requerente, se o sentido da sua actuação fosse no sentido de criar uma encenação de remessa, teria, seguramente, feito constar da documentação em questão a menção “relógios”, e não “documentos”.

Ora, na medida em que, no seguimento da fundamentação precedente, era a Requerida quem, no sentido de impedir o accionamento da presunção consagrada no n.º 1 do art. 75.º da LGT, estava onerada com o encargo de reunir “indícios fundados” de que a contabilidade e declaração apresentadas pela Requerente, em questão no presente processo, não reflectiam a sua matéria tributável real, a dúvida em questão haveria imperativamente de ser resolvida em sentido desfavorável à posição daquela autoridade.

Deste modo, e por todo o exposto, conclui-se pela vigência, no caso, da presunção consagrada no n.º 1 do art. 75.º da LGT, relativa à declaração periódica e inscrições contabilísticas apresentadas pela Requerente, respeitante à transmissão intracomunitária de bens em questão, pelo que, nos termos do n.º 1 do artigo 350.º do Código Civil, está aquela dispensada de provar os pressupostos de facto daquela, que se presumem.

Não é, assim e em suma, possível validar o juízo de que estamos perante factos concretos objectivos, baseados em provas concretas, que segundo as regras de experiência comum sejam fortemente indiciadores da existência do facto tributário. Daí que, por todo o exposto, se haja de considerar que não cumpriu a Requerida o ónus de demonstrar factos impeditivos da presunção de veracidade da declaração da Requerente, consagrada no n.º 1 do art. 75.º da LGT.

Do mesmo modo, haverá que concluir que os elementos aportados pela Autoridade Tributária são insuficientes para elidir a presunção de veracidade formada nos termos da referida norma, pelo que, na presente parte, haverá o pedido arbitral de ser julgado procedente.

 

VI.         DECISÃO

 

De harmonia com o exposto, decide este Tribunal Arbitral considerar integralmente procedente o pedido da Requerente e, em consequência, anular os despachos de indeferimento do recurso hierárquico e da reclamação graciosa relativos à liquidação adicional de IVA do período de 2012-09, bem como a liquidação adicional n.º 2013 …, que deu origem à dívida de imposto no montante de € 1.842,30, condenando a Requerida a reembolsar o imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios, contados desde a data de pagamento até à data da sua efectivação.

 

Valor do processo: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 1.842,30.

 

Custas: Nos termos do n.º 4 do art. 22.º do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 306,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

 

Registe-se e notifique-se esta decisão arbitral às partes.

 

Lisboa, 08-12-2015

 

O Árbitro Singular

 

 

(Maria Forte Vaz)

 

 



[1] Publicada no Jorna Oficial da União Europeia, C 338/1, de 06-11-2012.

[2] Cfr. Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, 4.ª Edição, 2012, Editora Encontro da Escrita, pág. 656.

[3] Obra citada, pág. 664.