Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 301/2015-T
Data da decisão: 2016-04-18  IRS  
Valor do pedido: € 149.451,86
Tema: IRS - Rendimentos de atividade urbanística e de exploração de loteamento
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Decisão Arbitral

 

Acordam os Árbitros Maria Fernanda dos Santos Maçãs (Árbitro Presidente), Nuno Maldonado Sousa e Paulo Mendonça, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral constituído no CAAD – Centro de Arbitragem Administrativa nos termos do regime jurídico instituído pelo Decreto-Lei n.º 10/2011 de 20 de janeiro[1]:

 

1.1.Relatório

1.2.   Constituição do tribunal arbitral

A…, contribuinte nº…, residente em Rua … n.º…, em Coimbra, apresentou pedido de constituição do tribunal arbitral, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do RJAT e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 Março, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira[2].

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD em 13-05-2015 e foi notificado à AT em 26-05-2015.

Nos termos em que dispõem as normas do artigo 6.º, n.º 2, alíneas a), e do artigo 11.º, nº1, alínea b), do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as Partes dessa designação em 09-07-2015. Em conformidade com a regra constante do artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o tribunal arbitral ficou constituído em 24-07-2015.

 Por despacho de 20-01-2016, atento o facto de o prazo de seis meses para emitir a decisão arbitral, segundo o estatuído no n.º 1 do artigo 21.º do RJAT, incluir períodos de férias judiciais, foi prorrogado o prazo da arbitragem por dois meses nos termos do n.º 2 do mesmo preceito. Prazo este prorrogado com os mesmos fundamentos, por despacho de 21 de março de 2016, fixando-se como data limite para ser proferida decisão arbitral o dia 24 de maio de 2016.

1.3.   O pedido da Requerente

No seu Requerimento Inicial a Requerente peticionou a declaração de ilegalidade da liquidação de IRS e juros compensatórios, relativo ao ano de 2008 (liquidação nº 2011…, datada de 07/11/2011), no valor de 149.451,86 € e a sua consequente anulação.

A Requerente fundamenta o pedido, a título principal, na construção conceptual que faz a propósito do enquadramento dos rendimentos provenientes da promoção e venda de loteamento urbano, que considera estarem compreendidos na categoria G do IRS.

Para esse efeito, invoca, entre o mais, que por atividade “urbanística e exploração de loteamentos”, pressupõe o legislador que “com a realização dos actos - operações de loteamento - haja intenção de obtenção de lucro, conforme, aliás, é pressuposto no exercício de qualquer actividade comercial” (art.º 15.º do Pedido).

Ora, nem a Requerente “nem a sua sobrinha (comproprietária em 50% nos prédios, tiveram interesse, quer que fosse efectuado o loteamento do prédio (que era uma quinta da família), quer daí obter qualquer lucro” ( art.º 17.º do Pedido).

“A operação de loteamento foi imposta pela C.M. do…, sob ameaça de uma expropriação, cuja decisão, aliás, esteve pronta para publicação em Diário da República” (art. 18.º do Pedido).

Assim sendo, na ótica da Requerente “(…) não poderá considerar-se que os rendimentos obtidos são enquadráveis na Cat. G (mais valias) na medida em que lhe advieram de forma fortuita, isto é, fora da prática intencional de obtenção de ganhos” ( art. 27.º do Pedido).

 

A título subsidiário, a Requerente sustentou que «o rendimento real e efectivamente obtido foi o declarado no título de transmissão» (37.º RI) e que o imposto deve ser calculado sobre este valor, rejeitando que o VPT[3] constitua a base de incidência (51.º RI). Para justificar esta sua pretensão, estriba-se na natureza ilidível da presunção contida na norma do artigo 31.º-A do CIRS. No entanto, a Requerente não desencadeou, na altura própria, o procedimento previsto no art. 139.º do CIC para efetuar a ilisão da presunção, porque, entre o mais, em Janeiro do ano subsequente à transmissão não conjeturava que pudesse vir a ser confrontada com a questão (41.º RI) e considera que perdeu a oportunidade de o fazer (43.º RI).

Finalmente, defende a Requerente que, não lhe sendo admitido demonstrar o preço efetivo constante do contrato, “estamos perante uma tributação manifestamente exagerada e desproporcionada com a realidade e com a capacidade contributiva da requerente” (art. 52.º do Pedido), violadora dos mais elementares princípios da justiça, da legalidade e da tributação pelo rendimento real.

1.4.   A posição da AT

A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou a sua Resposta[4] sustentando a legalidade da liquidação e defendeu a improcedência do pedido e da sua fundamentação, entendendo que o rendimento originado pela venda dos lotes de terreno para construção que a Requerente constituiu, tem proveniência no exercício de atividade comercial e industrial, devendo ser enquadrado na categoria B do IRS.

Por seu turno, a AT defende que a demonstração do preço efetivo implica a realização de procedimento prévio junto dos seus serviços, seguindo a tramitação consignada no artigo 139.º do CIRC (5.º R-AT) e que sendo-lhe por lei atribuída essa competência, não tem o tribunal arbitral poderes para decidir em matéria de determinação ou prova do preço efetivo (8.º e 9.º R-AT). Acrescenta que o procedimento em causa é o meio adequado para ilidir a presunção firmada no artigo 64.º, n.º 2, do CIRC (13.º R-AT) e que este se encontra regulado no artigo 91.º da LGT (16.º R-AT), constituindo este o «mecanismo» para a ilisão da presunção, acrescentando ainda que «à luz do consignado no n.º 3 do Art.º 86.º da LGT a demonstração da prova do preço efectivo não é susceptível de impugnação contenciosa autónoma, sem que para o efeito exista o esgotamento de todos os meios graciosos» (artigo 19.º- R-AT).

Conclui a AT sustentando a legalidade da liquidação de IRS e a sua consequente a sua absolvição do pedido.

1.5.    Instrução do processo e alegações

A convite do tribunal, veio a Requerente aperfeiçoar o requerimento inicial, mediante indicação do valor da causa. 

Em 26-10-2015 foi junto pela AT o Processo Administrativo.

Em 11 de novembro de 2015, foi proferido despacho com o seguinte conteúdo: “Constando do processo factualidade que pode suscitar a ilegalidade dos actos tributários objecto do pressente processo por falta do elemento subjectivo indispensável à incidência do IRS, atenta a alegação pela Requerente da qualidade de comproprietária, notifiquem-se ambas as Partes para querendo, se pronunciarem sobre esta questão (...)”.

Quer a AR quer a Requerente exerceram o contraditório. 

No dia 20-11-2015 realizou-se a primeira reunião do tribunal com as partes, e, em 04-12-2016, foi realizada 2ª sessão, onde foram inquiridas as testemunhas apresentadas pela Requerente, tendo aí, desde logo, sido prorrogado por 2 meses o prazo a que alude o artigo 21.º/1 do RJAT.

Foi concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, que foram efetivamente apresentadas pelas Partes, reiterando e desenvolvendo as respetivas posições jurídicas.

1.6.   Saneamento

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e tem competência, em razão da matéria, segundo dispõem as regras do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.

As Partes são titulares de personalidade e capacidade judiciárias (sendo a da AT nos termos da disciplina constante do artigo 4.º, n.º 1 do RJAT e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e do artigo 1.º, al. a) da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março), são legítimas e estão regularmente representadas.

Como vimos, formula a Requerente um pedido principal e outro subsidiário. Quanto a este pedido suscita a AT a exceção dilatória de incompetência do Tribunal Arbitral para conhecer do preço efetivo das transmissões dos imóveis, que cumpre apreciar, em sede de saneamento.

Vejamos.

Defende a AT que a demonstração do preço efetivo implica a realização de procedimento prévio junto dos seus serviços, seguindo a tramitação consignada no artigo 139.º do CIRC (5º R-AT) e que sendo-lhe por lei atribuída a ela essa competência, não tem o tribunal arbitral poderes para decidir em matéria de determinação ou prova do preço efetivo (8.º e 9.º R-AT). Acrescenta que o procedimento em causa é o meio adequado para ilidir a presunção firmada no artigo 64.º, n.º 2, do CIRC (13.º R-AT) e que este se encontra regulado no artigo 91.º da LGT (16.º R-AT), acrescentando ainda que «à luz do consignado no n.º 3 do Art.º 86.º da LGT a demonstração da prova do preço efectivo não é susceptível de impugnação contenciosa autónoma, sem que para o efeito exista o esgotamento de todos os meios graciosos» (19.º R-AT).

Em consonância com os princípios que regulam toda a tributação, a lei fiscal está impedida de criar presunções inilidíveis, estabelecendo que é sempre possível efetuar prova em contrário (73.º LGT[5]). A admissão da ilisão em qualquer situação é a forma que a lei consagra para garantir ao contribuinte que a sua tributação é feita pelo valor real dos rendimentos, afastando valores que tenham sido presumidos. É afinal a forma de harmonizar a existência de presunções que a lei fiscal estabelece com os citados princípios, que têm inclusivamente fonte constitucional.

Veja-se a situação dos autos com maior proximidade. Para as transmissões onerosas de direitos reais sobre bens imóveis, a lei estabelece uma presunção para os casos em que o valor constante do contrato seja inferior ao VPT[6] definitivo do imóvel, na norma do artigo 31.º-A, n.º 1, do CIRS. Mais concretamente estabelece este preceito que, nas situações em que o valor constante do contrato seja inferior ao VPT, deverá considerar este – mais elevado – na determinação do lucro tributável.

Como já se referiu, esta presunção é ilidível, i.e., admite prova em contrário, embora essa prova não seja livre, devendo seguir um determinado procedimento.

Com efeito, a lei desenhou um regime próprio para ilisão daquela presunção no CIRC e mandou aplicá-lo por expressa disposição da norma do mencionado artigo 31.º-A, do CIRC, ainda que sujeito às “necessárias adaptações”. Esse regime encontra-se regulado no artigo 139.º, n.ºs 3 a 6, do CIRC, traçando nestas normas e complementarmente na regulamentação constante dos artigos 86.º, n.º 4, 91.º e 92.º da LGT, a disciplina respetiva. Parece assim claro que a lei não se basta com os meios gerais de prova para que o contribuinte demonstre que o preço efetivo foi menor que o VPT. Mais do que isso, optou por criar um procedimento regulamentado para afastar a presunção, cuja tramitação está devidamente estruturada na LGT e que passa pelo requerimento da sua abertura, indicação de perito pelo contribuinte, designação de perito pela AT, a nomeação de perito independente, reunião de peritos, debate contraditório entre os peritos e decisão por acordo ou pelo órgão competente (artigos 91.º e 92.º da LGT).

É ponto assente que a Requerente não deu início a este procedimento e a lei não se basta com o envio de elementos à AT, nem na manifestação da disponibilidade para permitir o acesso à informação bancária; a lei exige que seja iniciado procedimento formal, com apresentação de requerimento dirigido ao diretor de finanças competente (artigo 139.º, n.º3, do CIRC) e seguindo a tramitação estipulada nos artigos 91.º, 92.º e 84.º, n.º3 da LGT, com as necessárias adaptações (artigo 139.º, n.º5, do CIRC).

Em sintonia com a fixação de procedimento próprio para ilisão da presunção, a lei fixou também a impossibilidade de impugnar as liquidações feitas com base na presunção de preço, sempre que o contribuinte não tenha recorrido ao procedimento estabelecido. É assim que a norma do artigo 139.º, n.º7, do CIRC subordina a possibilidade de impugnar a liquidação de imposto efetuada com base na presunção estabelecida no artigo 64.º, n.º 2, do CIRC ou no artigo 31.º-A, n.º1, à prévia tramitação do procedimento. Dito de outro modo; o contribuinte só pode impugnar liquidações corretivas feitas com base na presunção estabelecida no artigo 31.º-A, n.º1, do CIRS se previamente instruir o procedimento de prova estabelecido no artigo 91.º CIRC.

O procedimento de prova do preço constitui assim condição de impugnabilidade da liquidação feita com fundamento na presunção do artigo 31.º-A, n.º1, do CIRS. Sem que ele tenha existido a impugnação não pode ser apreciada[7].

Haverá assim que absolver a AT da instância (278.º, n.º1, alínea e), do CPC, ex-vi 29.º, n.º1, alínea e), do RJAT) do pedido de anulação das liquidações com este fundamento.

Fica em qualquer caso prejudicada a apreciação da liquidação de juros compensatórios, atendendo à dependência que tem da liquidação do imposto.

 

   Não há nulidades que inquinem o processo, nem questões prévias de natureza processual.

Não há qualquer outro obstáculo à apreciação do mérito da causa pelo que se impõe decidir.

 

1.7.Do mérito

1.8.   Matéria de facto

1.8.1.     Factos que se consideram provados

Nestes autos ficaram assentes os seguintes factos:

A.           A Requerente foi notificada, da liquidação de IRS nº 2011…, datada de 07/11/2011, referente a rendimentos do ano de 2008 que incluindo juros compensatórios totalizava o valor a pagar de 149.451,86 €. [RI:1º; RI: doc. 1].

B.            A Requerente foi também notificada da liquidação, com data de compensação de 10-11-2011, de juros compensatórios dos períodos de 19-01-2010 a 10-10-2011 e de 27-05-2009 a 10-10-2011, relativos à liquidação referida em A), nos valores de, respetivamente, 53,91 € e de 12.963,16 € [RI:1º; RI: doc. 2].

C.            Em 13-04-2012 a Requerente deduziu pedido de revisão da liquidação referenciada em A), tendo sido determinada a sua convolação em reclamação graciosa, por despacho de 14-10-2013, que foi notificado à Requerente. [RI:2º; RI: doc. 3; PA10: pp. 24-30].

D.           A reclamação graciosa referenciada em C) foi indeferida por despacho de 17-07-2014, que foi notificado à Requerente. [RI:2º; RI: doc. 4].

E.            Em 14-08-2014 a Requerente interpôs recurso hierárquico da decisão referida em D), tendo-lhe sido negado provimento por despacho de 17-07-2014, que foi notificado à Requerente. [RI:5º e 6º; RI: doc. 5].

F.             A liquidação de IRS referida em A) resulta de correções introduzidas à declaração de rendimentos em consequência de inspeção externa que teve por base a ordem de serviço n.º O12011…, que são as constantes do respetivo Relatório de Inspeção Tributária, datado de 10/10/2011, onde para além do mais que dele consta, se consignou que: [RI:9º e 10º; RI: doc. 4: p. 9; PA4: pp. 23-35].

Da análise aos elementos enviados pela Direção de Finanças de…, constata-se o seguinte:

- a existência do Alvará de Loteamento n.º …/2000, emitido pela Câmara Municipal de … em 10 de Março de 2000, em nome de A…e B…, através do qual foi licenciado o loteamento e as respetivas obras de urbanização, que incidiram sobre os prédios sitos em… . Quinta … ou Quinta…, concelho de …e Freguesia de…, inscrito na matriz rústica sob os números … e…, os quais provieram dos artigos acima referidos;

- a existência de uma escritura de compra e venda, lavrada no Cartório Notarial de … em 28 de Novembro de 2008, na qual consta que A… e sua sobrinha. B… venderam 50 lotes de terreno pertencentes ao referido loteamento.

 

Ora, os rendimentos resultantes da venda dos prédios referidos, por estarem inseridos numa operação de loteamento, reúnem os pressupostos de incidência na categoria B do Código do IRS.

  1. No Relatório de Inspeção Tributária, datado de 10/10/2011 constam também os seguintes quadros síntese: [PA4: p. 26]

 

Declarado

Correção

Proposto

Categoria A – rendimentos de Trabalho Dependente

 

 

 

Rendimento

79.899,39 €

 

79.899,39 €

Retenção na fonte

17.947,00 €

 

17.947,00 €

Categoria B – Anexo B

 

 

- €

Rendimento

 

332.952,00 €

332.952,00 €

Retenção na Fonte

- €

 

 

Categoria F – Rendimento Prediais

 

 

 

- €

Rendimento

1.082,40 €

 

1.082,40 €

Retenção na Fonte

- €

 

- €

Total das correções

 

332.952,00 €

 

 

Rendimento coletável

Valor

1 – Declarado

71.428,48 €

3 – Correções

332.952,00 €

4 = (2+3) Proposto

404.380,48 €

 

  1. Em 14-04-1998 foi celebrado entre a Requerente e B… por um lado e pelo Município de … pelo outro lado, “contrato” cujo título consta incluso no processo administrativo, onde para além do mais, se pode ler que: [RI:37º; PA7: pp. 17-20].

CLÁUSULA B – As primeiras outorgantes obrigam-se a lotear todo o prédio (…);

CLÁUSULA C – O segundo outorgante [o Município de…] obriga-se a urbanizar toda a área a lotear referida na cláusula B.

CLÁUSULA F – Como contrapartida mediata as primeiras outorgantes obrigam-se a ceder ao segundo outorgante metade dos lotes (…), no total de trinta e um lotes.

  1. Nos termos do Alvará de Loteamento n.º …/2000 da Câmara Municipal de…, datado de 10.03.2000, emitido em nome da Requerente e de B…, foi licenciado o loteamento com referência aos prédios sitos em…, Quinta … ou Quinta…, …, inscritos na matriz predial rústica sob os artigos … e… . [R-AT[8]:3º-vii; PA6: pp. 7-15].
  2. Em reunião ordinária a Câmara Municipal de…, deliberou aprovar a alteração/1.º adiamento ao alvará de loteamento urbano …/2000 de 10 de Março, tendo como objetivo principal a divisão em lotes do prédio designado por “Área Restante – Reserva Urbanística”, com a criação de mais 16 de lotes. [R-AT:3º-ix; PA6: pp. 16-24]
  3. Na sessão ordinária da Assembleia Municipal de…, realizada em 28-04-2003 foi aprovada a proposta apresentada para “alteração ao contrato relativo à urbanização da Câmara Municipal e zona envolvente, aprovado na sessão ordinária da Assembleia Municipal de …, realizada em 30-06-1998”, constando da respetiva ata, para além do mais, que: [RI:37º; PA8: pp. 20-21].

Usou da palavra o senhor presidente da Junta de Freguesia de…, C…para clarificar que a alteração da alínea f) do contrato se destinava exclusivamente a dar autorização para que a venda dos lotes pudesse ser feita na totalidade pelas proprietárias, pela melhor proposta, arrecadando a Câmara 50% do produto da venda.

  1. Em 28-11-2008 a Requerente e B… venderam à “D…, Lda.”, pelo preço de 1.250.000,00 €, 50 lotes de terreno para construção sitos ao…, Quinta … ou Quinta…, freguesia de…, concelho de…, [RI:37º; R-AT: 62º; PA5: pp. 1-20].
  2. O valor patrimonial dos prédios vendidos à “D…, Lda.” é de 3.329.520,00 €. [R-AT:3º-xi e 63º; PA6: p. 2].
  3. Em 02-12-2008 a Requerente pagou à Câmara Municipal de … a quantia de 625.000,00 € “referente a 50% do produto da venda dos lotes da Urbanização (…) conforme melhor consta do Protocolo celebrado (…) em 14-04-1998, complementado com a deliberação da Assembleia Municipal de 28 de abril de 2003”. [RI:37º; PA8: p. 26].
  4. Em 27-11-2008 os valores patrimoniais dos lotes vendidos à “D…, Lda.” encontravam-se inscritos nas respetivas cadernetas prediais. [RI:40º; 64º R-AT; 74º R-AT; PA5: pp. 1-20].
  5. Em 13-07-2011 a Requerente subscreveu autorizações de acesso à sua informação bancária por parte da Direção de Finanças de …  relativamente a contas bancárias na E… e no Banco F…[RI:44º; RI: doc. 6].

1.8.2.     Factos que se consideram não provados

Não foi produzida qualquer prova relativamente à falta de interesse da Requerente e da sua sobrinha em que fosse efetuado o loteamento referido nos autos ou que não tivessem intenção de auferir rendimento dessa operação ou que o preço lhes tenha sido imposto (17º e 50º RI).

Também não foi produzida qualquer prova no sentido de a operação de loteamento ter sido imposta pela CM… à Requerente ou de ter estado iminente a publicação de expropriação pública, ou de terem sido obrigadas (ameaçadas) a aceitar o loteamento sob pena de ficarem sem nada (18º, 20º e 26º RI).

Não foram alegados outros factos com interesse para a decisão da causa.

1.8.3.     Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

A convicção do tribunal assentou na prova documental constante dos autos, na posição tomada relativamente a cada facto pelas Partes nos articulados, especificamente identificada em cada ponto, e na prova testemunhal.

Os factos dados como não provados assentam, para além dos documentos constantes dos autos, da prova testemunhal, que se revelou assertiva, manifestando as testemunhas efetivo e coerente conhecimento da situação. A testemunha G… depôs sobretudo sobre os antecedentes do loteamento e sobre os eventos de natureza pessoal que rodearam o desenvolvimento da urbanização bem como da visão que teve do procedimento enquanto presidente da Câmara Municipal. O depoimento da testemunha H…sobre versou sobre a origem familiar dos imóveis e questões conexas.

Com efeito, a testemunha G…, arrolada pela Requerente e que era Presidente da Câmara em causa na época em que a urbanização teve génese e se desenvolveu, afirmou claramente que a ideia da urbanização foi da sua autoria. Esclareceu ainda que tudo foi tratado de forma amigável, que lhes propôs que entregassem o assunto à Câmara que trataria de tudo, incluindo das infra-estruturas. Nesse acordo, as proprietárias ficavam com metade da urbanização e o Município, que suportou todos os custos com a urbanização, ficaria com outra metade. Referiu, por outro lado, não ter ideia de ter sido pedida, no tempo do anterior presidente, a declaração de utilidade pública para a expropriação dos terrenos. Também a testemunha H…, arrolada pela Requerente, afirmou que esta aceitou os termos propostos pela Câmara Municipal por não querer contrariar o seu pai, uma vez que o imóvel tinha origem no seu ramo familiar.

 

1.9.   Matéria de direito

Em consequência, as questões suscitadas pelas Partes, quanto ao mérito, que importa resolver são as seguintes:

 

·         A natureza da invalidade que é imputada à liquidação de IRS, impondo que se determine se se trata de nulidade ou de anulabilidade;

·         A legalidade da liquidação impugnada quanto à proveniência dos rendimentos, o que pressupõe a determinação do regime de IRS aplicável, designadamente se os rendimentos são enquadráveis na categoria B ou na categoria G;

·         A legalidade da liquidação impugnada, tendo em conta as exigências dos princípios da proporcionalidade, da capacidade contributiva e da justiça.

 

Ainda antes de entrar na análise das questões a resolver importa tecer considerações relativamente aos poderes de cognição que estão cometidos a este tribunal arbitral neste processo em concreto. Nesta matéria há que ter presente que o regime fixado no artigo 123.º do CPPT, que deverá ser integrado com as normas do Código de Processo Civil([9]), designadamente com as que atualmente constam do seu artigo 607.º e seguintes. O tema reveste-se de particular importância pois a pronúncia do tribunal sobre questões que não deva conhecer fere a decisão com a sua nulidade (125.º, n.º1, CPPT).

             Nos termos da norma do artigo 608.º, n.º 2, do CPC([10]), aplicável nos termos expostos, o tribunal só pode ocupar-se das questões suscitadas pelas partes, salvo nos casos em que a lei lhe permitir ou impuser diferente comportamento. Essas questões hão de ter sido apresentadas pelo requerente na sua petição, tendo ele o ónus de identificar o acto que pretende impugnar e de expor os factos e as razões de direito que fundamentam o seu pedido (108.º, n.º1, CPPT, ex-vi 29.º, n.º1, alínea a), do RJAT) ([11]).

Parece pacífico na doutrina processual civil que com maior profundidade se tem debruçado sobre a norma em causa, que esse conjunto de factos e fundamentos constitui afinal a causa de pedir. Pode pois afirmar-se que a causa petendi é composta pelo «conjunto dos fundamentos de facto e de direito da pretensão alegada pelo autor. Integra a norma ou normas alegadas, os factos principais alegados como substrato concreto dessas normas e os factos instrumentais alegados como substrato concreto desses factos principais» ([12]). Há também que reter que a causa de pedir foi delimitada pelo proponente no seu requerimento de propositura, sendo indiferente para esse efeito, o que foi dito nos articulados subsequentes pois «apenas integram a causa de pedir os factos alegados como fundamento da pretensão alegada» ([13]).

De igual modo, no contencioso tributário, o processo de impugnação judicial está, nas palavras de JORGE LOPES DE SOUSA (ob. cit., p. 325), estruturado como processo de mera anulação, que tem em vista apurar da legalidade do ato impugnado e anulá-lo ou declarar a sua inexistência ou nulidade, à semelhança do que sucedia com o recurso contencioso, previsto na LPTA”. Neste contexto, cada um dos vícios imputados ao ato impugnado constitui uma causa de pedir, valendo o que se conclui do preceituado na parte final do n.º 4 do artigo 581.º do CPC, em que se estabelece nas ações de anulação a causa de pedir é «a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido».

O CPPT não segue, nesta matéria, o regime atualmente constante do artigo 95.º, n.º3, do CPTA, introduzido com a reforma de 2002, e segundo o qual o tribunal “deve pronunciar-se sobre todas as causas de invalidade que tenham sido invocadas contra o ato impugnado, exceto quando não possa dispor dos elementos indispensáveis para o efeito assim como deve identificar a existência de causas de invalidade diversas das que tenham sido alegadas, ouvidas as partes para alegações complementares pelo prazo comum de 10 dias, quando o exija o respeito pelo princípio do contraditório”.

Na verdade, apesar de a LGT e o CPPT terem sido alterados por várias vezes desde que entrou em vigor aquela reforma do contencioso administrativo, o artigo 99.º da LGT continuou a estabelecer a limitação dos poderes de cognição dos tribunais pelos factos alegados e o artigo 124.º do CPPT continuou a falar, para além dos vícios do ato impugnado de conhecimento oficioso (inexistência e nulidade), nos «vícios arguidos que conduzam à sua anulação», o que revela que, quanto a vícios geradores de mera anulabilidade, se limitou os poderes de cognição dos tribunais tributários os invocados pelo impugnante, não se adotando, assim, o conceito mais amplo de objeto do processo impugnatório que se pode encontrar no CPTA.

Neste modelo de contencioso tributário em que o conhecimento de vícios geradores de anulabilidade depende de arguição dos interessados, tem-se entendido uniformemente que só pode conhecer-se de vícios não invocados na petição inicial quando eles tiverem chegado ao conhecimento do impugnante em momento posterior ao da sua apresentação[14] ou tratando-se de vícios de conhecimento oficioso, como acontece com as invalidades que tenham como consequência a nulidade.

Traçados que estão os limites em que o tribunal deve exercer os seus poderes, importa ver como neles se enquadra a matéria dos autos.

 

1.9.1.     A natureza da invalidade imputada à liquidação de IRS

Notificada do despacho de 11 de Novembro de 2015, veio, em exercício do contraditório, a Requerente alegar que, em síntese, a incidência de imposto deveria ter recaído sobre a sociedade irregular, e não sobre ela própria, “Faltando, assim, ao acto tributário objecto do presente processo o seu elemento subjectivo, o sujeito passivo, pois o sujeito passivo da relação jurídica tributária configurada pela AT é a sociedade irregular que é sujeito passivo de IRC”. Na ótica da Requerente, a falta “de elementos essenciais do acto tributário, como é o caso do elemento subjectivo, é um vício gerador de nulidade, nos termos do disposto, à data em que o acto foi praticado, no art. 133.º, n.º1 do CPA (…)”, sendo a nulidade invocável a todo o tempo.

Por sua vez, a AT veio alegar, entre o mais, que “em momento algum, quer no procedimento gracioso –  reclamação graciosa – quer no âmbito do pedido de pronúncia arbitral, a Requerente suscitou a ilegalidade das liquidações com fundamento na não verificação do elemento subjectivo de IRS, por ser comproprietária dos imóveis”, razão pela qual se encontra “vedado ao Tribunal emitir pronúncia acerca de factos e fundamentos que não foram invocados pela Recorrente”.

Vejamos.

Nos termos do disposto no artigo 99.º do CPPT, constitui fundamento de impugnação qualquer ilegalidade, constituindo ilegalidade e, consequentemente, vício do ato administrativo ou ato tributário, qualquer ofensa dos princípios ou normas jurídicas aplicáveis, que poderá envolver a anulabilidade, a nulidade ou a inexistência.

Por sua vez, o artigo 102.º do mesmo Código estabelece que a impugnação judicial é apresentada no prazo de 90 dias contados a partir dos factos indicados nas várias alíneas do seu n.º 1, bem como nos prazos indicados nos seus nºs. 2 e 4, embora possa ser deduzida a todo o tempo, se o fundamento for a nulidade (n.º 3 do mesmo artigo).

Não fornecendo a LGT ou o CPPT qualquer noção do que sejam atos tributários nulos, impõe-se recorrer ao que dispõe nesta matéria (atos administrativos nulos) o CPA[15], subsidiariamente aplicável por força do disposto nos artigos 2.°, alínea d), do CPPT e 2.°, alínea c), da LGT.

Os vícios do ato impugnado[16] são, em regra, fundamento da sua anulabilidade, só implicando a sua nulidade quando se verifique a falta de qualquer dos elementos essenciais do acto ou quando houver lei que expressamente preveja esta forma de invalidade (cfr. artigos 133.°, n.º 1, e 135.° do CPA)[17].

Nos termos do artigo 133.º do CPA (segundo a redacção em vigor à data dos factos) «são nulos os actos a que falte qualquer dos elementos essenciais ou para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade».

Optou-se, ali, por um regime misto na previsão dos vícios que conduzem à nulidade do ato administrativo: admitiu-se o critério da nulidade por natureza (princípio da cláusula geral), mas, por outro lado, combinou-se este critério com o da enumeração exemplificativa - a chamada nulidade por determinação da lei.

Como ensinam MÁRIO AROSO DE ALMEIDA/ CARLOS FERNANDES CADILHA[18] «a nulidade constitui o regime de excepção, ao passo que a anulabilidade é o regime-regra. É o que se depreende do disposto no artigo 135.° do CPA, segundo o qual são anuláveis os “actos administrativos praticados com ofensa dos princípios ou normas jurídicas aplicáveis para cuja violação se não preveja outra sanção.”

(...) A anulabilidade constitui uma forma de invalidade do acto administrativo que se reconduz à violação de uma regra ou de um princípio jurídico de natureza formal (de competência, de forma ou de trâmite) ou substantiva. No primeiro grupo, incluem-se: (a) a violação de regras relativas à competência do autor do acto, quando não envolvam as situações extremas de falta de atribuições, geradoras de nulidade (incompetência relativa); (b) vícios de forma, que poderão consistir na preterição de formalidades no âmbito do procedimento administrativo (arts. 54° e segs. do CPA), na omissão ou deficiência respeitante à forma do acto (art. 120º do CPA), desde que não se reconduza à carência absoluta da forma legal, ou na omissão ou deficiência atinente à enunciação do objecto e dos elementos do acto (art. 123º do CPA)».

Sobre a estrutura e requisitos de validade do acto administrativo, VIEIRA DE ANDRADE[19] adopta o modelo prático e teológico, no qual se procura identificar os momentos que sejam relevantes para os efeitos de localização dos diversos vícios, destacando como tais: “o sujeito, o objecto e a estatuição, distinguindo, dentro desta, os aspectos substanciais relativos ao fim e ao conteúdo, e os aspectos formais, que incluem o procedimento de formação e a forma de exteriorização”.

Tendo por referência este modelo, o Autor[20], ao referir-se o conceito de “elementos essenciais” para efeitos do artigo 133.º, n.º1, do CPTA, pondera que são “os indispensáveis para que se constitua qualquer acto administrativo, não podendo valer como tal, uma decisão sem autor, sem destinatário, sem fim público, sem conteúdo, sem forma ou com vícios graves equiparáveis a tais carências absolutas”, e, função do tipo de acto”.

Referindo-se em especial ao requisito de validade quanto ao sujeito, temos que os sujeitos típicos do ato administrativo, embora se admitam outros sujeitos, incluindo entidades privadas que exerçam poderes públicos, são as pessoas coletivas que integram a Administração Pública e que atuam através dos respetivos órgãos.

Aplicando o exposto ao caso dos autos, conclui-se que o ato de liquidação em causa não sofre da falta do elemento subjetivo nem de qualquer outro elemento ou momento essencial.

Com efeito, o ato de liquidação objeto do presente processo consubstancia uma estatuição autoritária, produzida por um órgão da administração (o sujeito), ao abrigo de normas de direito público, para produzir efeitos concretos (em relação à Requerente). Não falta assim ao ato de liquidação qualquer elemento essencial nem o mesmo enferma de qualquer outro tipo de invalidade de tal modo grave[21] que possa ter como consequência a nulidade.

Estamos sim, perante uma errada qualificação dos factos quanto à natureza dos rendimentos em causa e a definição da incidência subjetiva, erro este que conduz à mera anulabilidade.

Acresce que, mesmo a entender-se aplicável o regime do artigo 95.º, n.º3, do CPTA, a verdade é que não foram trazidos aos autos elementos que permitam ao tribunal identificar a existência de uma sociedade irregular entre a Requerente e a sobrinha.

Improcede pois, o alegado vício do ato de liquidação em causa gerador de nulidade, tal como invocado pela Requerente.

1.9.2.     A legalidade da liquidação impugnada quanto à proveniência dos rendimentos

A questão de fundo consiste afinal em determinar quais são as normas que regulam a liquidação dos rendimentos auferidos pela Requerente com a venda dos prédios dos autos. Em confronto estão a tese da Requerente que sustenta que os rendimentos devem ser enquadrados em IRS na categoria G e a tese da AT que afirma que é através da categoria B que deve ser feita a tributação.

Em sede de matéria de facto, com especial interesse para determinar o regime aplicável, ficou assente que a Requerente celebrou com o Município de … contrato pelo qual se obrigou a lotear o seu prédio identificado nos autos. Por seu lado, o Município de … obrigou-se a urbanizar toda a área a lotear, recebendo em contrapartida metade dos lotes a constituir. O loteamento foi licenciado à Requerente pela Câmara Municipal de… . Complementarmente foi clarificado que a venda dos lotes fosse feita na totalidade pela Requerente e pela outra comproprietária, arrecadando a Câmara 50% do produto da venda.

Em 28-11-2008 a Requerente e a outra comproprietária venderam à “D…, Lda.”, pelo preço de 1.250.000,00 €, 50 lotes de terreno para construção e em 02-12-2008 a Requerente pagou à Câmara Municipal de …a quantia de 625.000,00 €, referente a 50% do produto da venda dos lotes da urbanização.

Seguindo a tese da Requerente os factos seriam subsumíveis às seguintes normas de incidência do CIRS[22]:

Artigo 9.º Rendimentos da categoria G

1 - Constituem incrementos patrimoniais, desde que não considerados rendimentos de outras categorias:

a) As mais-valias, tal como definidas no artigo seguinte;

(…)

Artigo 10.º Mais-Valias

1 - Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de:

a) Alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis e afectação de quaisquer bens do património particular a actividade empresarial e profissional exercida em nome individual pelo seu proprietário;

(…)

Seguindo a tese da AT os factos seriam subsumíveis às seguintes normas de incidência do CIRS:

Artigo 3.º Rendimentos da categoria B

1 - Consideram-se rendimentos empresariais e profissionais:

a) Os decorrentes do exercício de qualquer actividade comercial, industrial, agrícola, silvícola ou pecuária;

(…)

Artigo 4.º Actividades comerciais e industriais, agrícolas, silvícolas e pecuárias

1 - Consideram-se actividades comerciais e industriais, designadamente, as seguintes:

a) Compra e venda;

b) Fabricação;

c) Pesca;

d) Explorações mineiras e outras indústrias extractivas;

e) Transportes;

f) Construção civil;

g) Urbanísticas e exploração de loteamentos;

h) Actividades hoteleiras e similares, restauração e bebidas, bem como venda ou exploração do direito real de habitação periódica;

i) Agências de viagens e de turismo;

j) Artesanato;

l) As actividades agrícolas e pecuárias não conexas com a exploração da terra ou em que esta tenha carácter manifestamente acessório;

m) As actividades agrícolas, silvícolas e pecuárias integradas noutras de natureza comercial ou industrial.

 

Numa análise isolada das normas em causa dir-se-ia que os factos apurados são suscetíveis de ser enquadrados em qualquer dos regimes.

Não obstante há que recorrer às regras próprias da interpretação jurídica e estas exigem que se reconstitua o pensamento legislativo tendo em conta a unidade do sistema (artigo 9.º, n.º1, do Código Civil), o que implica (i) que se considere a inter-relação entre as normas do mesmo segmento do ordenamento, estipulada pelo próprio legislador, designadamente quando indica precedência ou subsidiariedade; (ii) que na interpretação de determinada norma se tenha em consideração a interpretação de todas as outras em geral mas muito em particular daquelas com que se relacionam diretamente, por serem complementares e juntamente preencherem determinado sector do ordenamento.

As normas que regem as mais-valias não deixam margem para dúvidas num aspeto: só são aplicáveis a rendimentos que não sejam considerados noutras categorias (artigo 9.º, n.º1, do CIRS). Este princípio é reafirmado a propósito de rendimentos suscetíveis de serem considerados rendimentos empresariais e profissionais que resultem da alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis, que ficam excluídos do regime das mais-valias (artigo 10.º, n.º1, do CIRS). Tudo parece indicar que o rendimento originado por operações de alienação de imóveis só será tributado através da categoria G, se não tiver enquadramento na categoria B, que preferirá. A aplicação do regime da categoria G aos rendimentos provenientes da alienação de imóveis é, desta forma, residual; tributar-se-ão em mais-valias se não forem abrangidas por outro regime (artigos 9.º, n.º1 e 10.º, n.º1, do CIRS). Neste sentido, ficou consignado no Acórdão do STA, de 24/2/2016, Proc n.º 0580/2016 que “(…) os acréscimos patrimoniais tenham origem que tiverem, só são enquadráveis na categoria G, como claramente expressa o artigo 10.º do IRS se preencherem um primeiro e fundamental requisito legal negativo - «não serem considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais», pelo que o enquadramento legal da situação deve iniciar-se pela verificação da possibilidade de enquadramento do «acréscimo patrimonial», numa das demais categorias de tributação de rendimentos - A a E”.  

Defende a Requerente que não exerceu qualquer atividade comercial ou industrial passível de tributação em sede de IRS pela categoria B.

Falta então analisar uma última questão, que é a de saber se os atos praticados pela Requerente constituem atividades urbanísticas e exploração de loteamentos, nos termos e para os efeitos do artigo 4.º do CIRS.

Também aqui se impõe fazer uma interpretação da norma tendo em conta a existência de outras com as quais se relaciona no sistema em que está inserida.

A norma do artigo 3.º, n.º1, alínea a), do CIRC regula no sentido de serem tributados através da categoria B os rendimentos decorrentes do exercício de qualquer actividade comercial e industrial. Por sua vez, a norma do artigo 4.º, n.º 1, do CIRS diz-nos quais são essas atividades, referindo entre elas (na sua alínea g) as actividades urbanísticas e de exploração de loteamentos. É claro que se pode sempre alegar que a categoria B abrangerá os rendimentos auferidos com atividades de urbanização e de loteamento, quando estas sejam resultado do exercício habitual desse negócio mas já não quando apenas esteja em causa uma única operação própria do exercício daquela atividade.

Crê-se que o argumento da falta de habitualidade não colhe. A norma básica que delimita a incidência objetiva é, afinal, a que consta do artigo 3.º, n.º1, alínea a) do CIRS, cuja previsão é densificada pela norma do artigo 4.º, n.º1, alínea g), daquele corpo normativo.

Ora, os rendimentos das atividades a que se reporta a referida norma [3.º, n.º1, alínea a)] estão compreendidos na categoria B ainda que sejam provenientes da prática de actos isolados, como estipula o mesmo artigo 3.º, no seu n.º 2, alínea h).

Parece assim claro que os rendimentos resultantes das atividades de urbanização e de loteamento são rendimentos de atividades comerciais e/ou industriais e consequentemente rendimentos empresariais, mesmo quando essas actividades não sejam desenvolvidas reiteradamente, ou até quando resultem de um ato isolado. Crê-se ser essa a melhor interpretação conjugada das normas dos artigos 3.º, n.º1, alínea a), 3.º, n.º 2, alínea h), e 4.º, n.º1, alínea g), em interação com as disposições dos artigos 9.º, n.º 1 e 10.º, n.º1, do CIRS.

É também neste sentido que se tem pronunciado de forma uniforme e reiterada a jurisprudência do STA, como ficou consignado em recentes Acórdãos de 09-09-2015, processo 0810/14 e de 24-02-2016, processo 580/15. No primeiro acórdão, tendo por referência ganhos da alienação de lotes de terreno, resultantes de uma operação de loteamento, pode ler-se, designadamente que “(…) a venda de terrenos, nestas circunstâncias e condições (após as operações de loteamento) configura manifestamente actividade comercial, pressupondo a realização intencional de todo um conjunto de actos transformadores tendentes a potenciar o valor dos terrenos em questão…”.

No mesmo acórdão, o STA distingue a diferente natureza destes ganhos, enquadráveis na citada alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º, em conjugação com a alínea g) do n.º 1 do artigo 4.º, ambos do CIRS, dos acréscimos patrimoniais que a lei considera como mais valias tributáveis na categoria G, os quais “(…) correspondem, essencialmente, aos ganhos resultantes de uma valorização de bens devida a circunstâncias exteriores, independentemente de uma atividade produtiva do seu titular :correspondem a ganhos trazidos pelo vento” (windfall gains)”.

 No caso dos autos, é pacífico – até para a Requerente – que ela própria desenvolveu efetivamente operação de urbanização e loteamento do seu prédio, ainda que, por contrato, tenha cometido à Câmara Municipal de …o encargo de executar as tarefas de urbanização. Os rendimentos que auferiu resultam dessa atuação e já não da venda do prédio preexistente de que foi dona. Por conseguinte, qualquer que fosse a motivação da Requerente, ela não procedeu à venda do terreno que possuía, tendo antes procedido à sua transformação (em sentido jurídico), retalhando-o em lotes. Além do mais, foi a Requerente que fez o pedido de loteamento e que beneficiou dele, razão pela qual, resultando os rendimentos daquela atividade da Requerente, ainda que sem caráter de habitualidade, é na categoria B que eles se enquadram.

Acresce que, ainda que tais argumentos pudessem relevar, o que já se demonstrou não ser admissível, não é de todo possível concluir no sentido pretendido pela Requerente quanto a ter sido coagida a concluir um negócio que não pretendia fazer, que não teve interesse em que fosse efetuado o loteamento do prédio e que a «operação de loteamento, foi imposta pela C.M. do …», com os elementos que constam nos autos, quer pelos carreados pela AT, quer pelos trazidos por si própria, incluindo em resultado da prova testemunhal.

Finalmente, não colhem também os argumentos de natureza jurídica alinhados pela Requerente, designadamente de não ter tido o propósito de exercer qualquer atividade comercial, pois nunca teve intencionalidade de obtenção de ganhos ou de lucro. Viram-se já quais são os requisitos de aplicação das normas tributárias em causa, que se encontram em oposição com a solução defendida pela Requerente.

Não procede pois o pedido da Requerente, na parte em que imputa a ilegalidade da liquidação ao erro na determinação das normas de incidência do CIRS que são aplicáveis para esse efeito.

1.9.3.     A legalidade da liquidação impugnada, tendo em conta as exigências dos princípios da proporcionalidade, da capacidade contributiva e da justiça.

 

Invoca a Requerente que a não tributação com base no preço que consta do contrato, consubstancia, entre o mais, grave e notória injustiça da tributação efetuada, por manifestamente exagerada e desproporcionada. 

Ora, a circunstância de no presente processo não ter havido lugar a revisão do valor patrimonial deve-se, contudo, a razões exclusivamente imputáveis à Requerente, que não fez uso do meio procedimental que a lei coloca à sua disposição para esse efeito. Meio esse que constitui, como vimos, não só pressuposto de prova do preço efetivo, como ainda requisito de impugnação judicial com base nesse fundamento.

Improcede, assim, a posição sustentada pela Requerente.

 

Em face do exposto, improcedendo o pedido da Requerente, com a consequente manutenção da liquidação impugnada, fica prejudicada a apreciação da liquidação de juros compensatórios, atendendo à dependência que têm da liquidação do imposto.

 

1.10.        Decisão

Considerando os elementos de facto e de direito coligidos e expostos, este tribunal arbitral decide julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral. Em consequência:

 

a) Absolve-se a AT da instância relativamente ao pedido de anulação da liquidação de IRS com base no erróneo valor atribuído aos rendimentos.

b) Absolve-se a AT do pedido de anulação com base na ilegalidade da liquidação de IRS, quanto à proveniência dos rendimentos.

c) Julga-se prejudicada a apreciação do pedido de anulação da liquidação de juros compensatórios, face às decisões antecedentes.

 

1.11.        Valor do processo

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC, ex-vi 29.º, n.º1, alínea e), do RJAT e artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT ex-vi 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de 149.451,86 €.

 

1.12.        Custas

Nos termos do artigo 22.º, n.º4, do RJAT e Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas que ficam a cargo da Requerente em 3.060,00 €.

 

Notifique.

 

Lisboa, 18 de Abril de 2016

 

Os árbitros,

 

 

 

(Maria Fernanda dos Santos Maçãs, Árbitro Presidente),

 

 

 

(Nuno Maldonado Sousa)

 

 

 

(Paulo Mendonça, com declaração de voto vencido, anexa)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Declaração de voto vencido

Apresento em seguida os argumentos que me levam a concluir, no que respeita ao Processo n° 301/2015-T-CAAD, que o enquadramento dos rendimentos auferidos pela requerente deve ser feito no âmbito da categoria G do IRS e não, como defende a requerida, na categoria B.

A lei, na parte relevante para a questão em apreço, dispõe o seguinte:

Artigo 3.º
Rendimentos da categoria B

1 - Consideram-se rendimentos empresariais e profissionais:

a) Os decorrentes do exercício de qualquer atividade comercial, industrial, agrícola, silvícola ou pecuária;

(…)

2 - Consideram-se ainda rendimentos desta categoria:

a) Os rendimentos prediais imputáveis a atividades geradoras de rendimentos empresariais e profissionais;

Artigo 4.º
Atividades comerciais e industriais, agrícolas, silvícolas e pecuárias

 

1 - Consideram-se atividades comerciais e industriais, designadamente, as seguintes:

(…)


g) Urbanísticas e exploração de loteamentos;
 

(…)

Artigo 9.º
Rendimentos da categoria G

 


1 - Constituem incrementos patrimoniais, desde que não considerados rendimentos de outras categorias:

a) As mais-valias, tal como definidas no artigo seguinte;

(…)

Artigo 10.º
Mais-valias

 


1 - Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de:

a) Alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis e afetação de quaisquer bens do património particular a atividade empresarial e profissional exercida em nome individual pelo seu proprietário;

(…)”

No que concerne às anteditas normas, o princípio geral, consagrado no nº 1º do artº 11º da Lei Geral Tributária, de que se observarão as regras e os princípios gerais de interpretação e aplicação das leis, mostra-se objetivamente insuficiente pois, através desse processo, e tendo nomeadamente em conta os elementos literal, histórico, sistemático e teleológico, não se consegue retirar, de forma minimamente esclarecedora, qualquer conclusão que possibilite a correta aplicação do normativo geral ao caso concreto.

Impõe-se então o recurso ao disposto no n° 3 do art° 11° da Lei Geral Tributária, onde se determina que persistindo a dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar, deve atender-se à substância económica dos factos tributários.

Sendo claro que a lei não prevê, por regra, a sobreposição da substância económica à forma jurídica, essa sobreposição não deixará de se manifestar e imperar nos casos de dúvida sobre o sentido das normas de incidência. Ora, a matéria em análise é prolífica no que respeita a dúvidas de interpretação.

Comenta António Lima Guerreiro (Lei Geral Tributária Anotada - Rei dos Livros - pág. 86) que "a interpretação das normas de direito fiscal segundo a substância económica atua como elemento corretivo da tributação em caso de violação do princípio da igualdade, por manifestações idênticas de capacidade contributiva poderem ser tratadas discriminatoriamente pela lei fiscal".

E concretiza J. L. Saldanha Sanches (Manual de Direito Fiscal - Coimbra Editora - pág. 212) que "não significa isto que a lei deve garantir, na sua aplicação, um resultado igual para cada um dos destinatários; significa antes que a diferenciação dos resultados deve corresponder à efetiva diferença entre os destinatários. A diferenciação dos resultados deve ser uma função da situação concreta de cada contribuinte e constituir, deste modo, uma diferenciação que é objeto de tutela específica pela ordem jurídica".

A interpretação segundo a substância económica dos factos, de acordo com Ana Paula Dourado (Direito Fiscal-Lições, Almedina, pág . 259) justifica-se como reação a modelos de tributação “(…) de cada contribuinte não segundo a sua capacidade contributiva individual, mas segundo a medida do tipo médio, presumindo-se os rendimentos e a capacidade contributiva e legitimando tributações confiscatórias”.

A controversa temática dos rendimentos comerciais ou industriais, levou a que o legislador, segundo Manuel Faustino (IRS – Teoria e Prática, Fisco, pág. 132) procurasse “esquivar-se à polémica utilizando uma dupla técnica: por um lado, deixou de fazer referência a atividades de natureza comercial ou industrial para mencionar atividades comerciais ou industriais; e por outro, embora não correndo os riscos de uma enumeração taxativa, elencou um grande número de atividades consideradas comerciais ou industriais, no qual se incluem todas aquelas cuja qualificação poderia ainda suscitar dúvidas. Dir-se-á, então, que o critério material continua a ser essencialmente um critério económico e não um critério estritamente jurídico”.

Posição, aliás, em consonância com a jurisprudência dos tribunais portugueses, como decorre, por exemplo, do acórdão 0371/04 do Supremo Tribunal Administrativo (relator: Pimenta do Vale) ao dispor que “na falta de uma definição legal do conceito de atividade comercial ou industrial, para efeitos tributários, tem vindo a doutrina e a jurisprudência a entender como aplicável o conceito económico de comércio e indústria, que abrange atividades de mediação entre a oferta e a procura e atividades de incorporação de novas utilidades na matéria, em ambos os casos com fins especulativos, ou seja, com o objetivo de obtenção de lucros”.

Numa perspetiva mais abrangente, o acórdão 00085/01 do Tribunal Central Administrativo Norte (relator: Moises Rodriques), aponta para que “(…) o complexo de atos praticados pelo proprietário de um terreno para construção no sentido de proceder ao loteamento de um terreno para construção e à venda dos lotes assim constituídos (designadamente, a realização de infraestruturas necessárias, a promoção do processo burocrático indispensável à obtenção das licenças requeridas para essa operação e todo o conjunto de diligências necessárias à própria venda dos lotes) com vista à obtenção do lucro, seja qualificada como atividade comercial ou industrial. Na verdade, em toda essa atividade ressalta o seu caráter comercial ou industrial, quer se reporte ao critério económico (ou seja, o de mediação entre a oferta e a procura ou o de incorporação de novas utilidades na matéria, com o objetivo de obtenção de lucros (…), que parece ser o subjacente ao artº 4º do CIRS, quer ao critério jurídico”.

 

 

Entrando, concretamente, na tipificação fiscal dos rendimentos, como bem explicita José Guilherme Xavier de Basto (IRS-Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos- Coimbra Editora - pág. 187) "a categoria B é uma categoria dominante, no sentido em que rendimentos de outra natureza que não a profissional ou empresarial, mas obtidos no âmbito de uma atividade profissional ou empresarial, tornam-se rendimentos da categoria e são a ela imputados e considerados no resultado tributável respetivo".

Ou seja, para que um determinado rendimento se possa configurar como decorrendo de uma atividade comercial e industrial urbanística e, mais especificamente, da exploração de loteamentos, será necessário assegurar que o mesmo foi, pelo menos, obtido no âmbito de uma atividade profissional ou empresarial. Ou, como clarifica J.L. Saldanha Sanches (obra citada - pág. 316-317) "(...) a inclusão dos rendimentos na categoria B pressupõe uma atividade que lhe subjaza, ou seja, uma prática de um número mínimo de atos enquadrados por uma estrutura, ou pelo menos, a apetência para tal, declarada através do início de atividade".

Se não se conseguir atingir esse grau de certeza, e centrando agora a nossa atenção, em particular, no rendimento auferido pela requerente, cair-se-á, naturalmente, no âmbito da Categoria G do IRS ou, como refere J.G. Xavier de Basto (obra citada, pag. 379), estaremos no campo dos "(...) aumentos inesperados do valor dos ativos patrimoniais. Aumentos inesperados porque, por definição, as mais-valias não são rendimento-produto, por não constituírem a contrapartida da participação na atividade produtiva (do esforço laboral, da aplicação de capital, da assunção de riscos) são, por definição, esperados, correspondendo afinal ao valor acrescentado na produção".

 

A requerente obteve os rendimentos objeto do litígio no âmbito de uma atividade profissional ou empresarial? Tal não ficou de forma alguma provado. É que o empresário, como explica António Menezes Cordeiro (Manual de Direito Comercial-Almedina- pág. 223) "surgirá, tecnicamente, como qualquer agente económico-jurídico que ocupe uma posição como produtor ou distribuidor. E isso independentemente de surgir como comerciante ou de deter qualquer empresa".

Paralelamente, e seguindo de perto J.G. Xavier de Basto (obra citada-pág. 379 e ss) não podemos perder de vista alguns elementos distintivos associados aos rendimentos qualificados como mais-valias, nomeadamente a natureza inesperada do aumento do valor do ativo e o reduzido período de detenção dos bens.

 

Bens adquiridos, produzidos ou conservados com intenção de revenda normalmente não gerarão rendimentos enquadráveis no conceito de mais-valias. Os aumentos de valor dos bens detidos por quem não é produtor nem comerciante são de presumir inesperados e, como tal, de qualificar como mais- valias.

O referido autor apresenta um exemplo elucidativo: "O aumento de valor de um prédio de que é proprietário quem se dedica à atividade de mediação imobiliária não constitui mais-valia, já o sendo, porém, o mesmo aumento para um proprietário de imóveis que o detém sem exercer aquela atividade". No que tange ao período de detenção dos bens, se o mesmo foi relativamente curto são qualificados como rendimentos da produção, ao contrário dos aumentos de valor em ativos em que foi longo o período de detenção, que são considerados mais-valias.

Ora, no caso concreto, os factos provados mediante prova testemunhal, levam a concluir que a propriedade que gerou os rendimentos objeto do litígio pertencia à família da requerente há, pelo menos, duas gerações, à data dos eventos. E que a requerente nunca teve qualquer intenção de lotear a propriedade. Nem sequer a queria vender. Ao longo do tempo foi alvo de diversas tentativas, mais ou menos diretas, de expropriação. Até que, no mandato do presidente da Câmara em funções à data dos acontecimentos, este se movimentou no sentido de, através do pai da requerente, convencer esta última a permitir o loteamento. Tendo logrado esse objetivo.

A Câmara Municipal determinou o modelo do loteamento, que foi apresentado à requerente como um facto consumado, providenciou toda a infraestrutura necessária e realizou, por sua iniciativa, os trabalhos necessários, encontrou uma empresa imobiliária que adquiriu a totalidade dos lotes e, por fim, fixou o preço de venda (tendo recebido metade dos proveitos assim gerados).

Ora, não se vislumbra aqui qualquer resquício de empresarialidade (exceto do lado da Câmara Municipal). E este seria um fator fundamental para a equiparação dos rendimentos gerados a rendimentos da categoria B.

De acordo com o Acórdão 6804/02 do Tribunal Central Administrativo Sul (relator: Gomes Correia) "não tendo o dono do terreno vendido o terreno que adquiriu, situação em que eventuais ganhos teriam de considerar-se como inesperados ou fortuitos, mas tendo vendido os lotes resultantes da operação de loteamento do terreno no qual realizou infraestruturas, havendo desencadeado o competente processo junto da autarquia local por forma a obter as necessárias licenças, tudo isso em vista do lucro, tem de considerar- se que desenvolveu uma atividade de natureza comercial por referência ao conceito económico de comércio constante no art. 4° do CIRS". O critério de comércio a que o acórdão alude não poderia afastar-se mais da realidade dos factos em litígio. Na verdade, a requerente não desencadeou qualquer processo junto da Câmara Municipal nem, de acordo com a testemunha António Manuel Gomes da Costa,  alguma vez manifestou interesse em gerar qualquer lucro com a venda de lotes.

Na mesma linha, o acórdão 0624/03 do Supremo Tribunal Administrativo (relator: Lúcio Barbosa) sentenciou que "o impugnante, ora recorrido, desenvolveu uma atividade, ocasional embora, que teve como fito o loteamento de um terreno para o vender seguidamente com ganhos. Ou seja, estamos perante uma atividade comercial. (...) Aliás, e num parêntesis final, pensamos até, na esteira da recorrente, que as múltiplas operações necessárias ao loteamento, levadas a cabo pela impugnante, integram-se no conceito de ato de comércio, com definição no art. 2° do Código Comercial". No litígio que nos ocupa, já ficou claro que a requerente nunca pretendeu efetuar qualquer loteamento, tendo o mesmo sido idealizado, conduzido e executado, pela Câmara Municipal.

Aprecie-se agora o teor do acórdão 0772/03 do Supremo Tribunal Administrativo (relator: Vitor Meira) onde se conclui no sentido que "analisando os factos provados constata-se que o terreno em causa foi objeto de loteamento antes da venda e só três anos após a obtenção do alvará que autorizava a construção de 18 lotes foi vendido. Quer isto dizer que, independentemente da intenção inicial de construir uma vivenda, foram praticados atos no sentido de permitir a venda do terreno em lotes, o que não pode deixar de ser considerado uma atividade de carácter comercial ou industrial mesmo que tal venda possa ter constituído um ato isolado. (...) o que vem provado é que foram praticados todos os atos relativos ao loteamento no sentido de vender mais tarde os 18 lotes permitidos (...)". Ora, mais uma vez se evidencia a relevância de uma intenção de lotear tendo como fito o lucro, o que ficou subejamente provado que não aconteceu no caso em litígio.

 

O acórdão 00573/03 do Tribunal Central Administrativo Sul (relator: Pereira Gameiro) enfatiza que “o impugnante não vendeu o terreno que adquiriu sem qualquer transformação, caso em que os respetivos ganhos haveriam de ser considerados como inesperados ou fortuitos e, por isso, mais-valias para efeitos de tributação em IRS. Vendeu, isso sim, os lotes resultantes da operação de loteamento que levou a cabo no referido terreno. Para essa operação, efetuaram no terreno diversas infraestruturas, desencadearam o competente processo junto da autarquia local com vista à obtenção das licenças necessárias e desenvolveram as diligências necessárias à venda dos lotes, o que tudo fizeram animados pelo espírito do lucro”. Contraste-se esta descrição com a absoluta falta de animus lucrandi na operação em que esteve envolvida a requerente.

 

Aliás, como bem se explicita no acórdão 00128/02 do Tribunal Central Administrativo Norte (relator: Anibal Ferraz), “no corpo do artigo 10º, nº 1 do CIRS, exclui-se a possibilidade de constituírem mais-valias os rendimentos comerciais e industriais, porque nos rendimentos da categoria G (mais-valias), para efeitos de tributação apenas cabem os ganhos inesperados ou fortuitos, ou seja, os resultantes das valorizações produzidas nos bens independentemente de qualquer esforço ou vontade do respetivo titular”. Os proveitos auferidos pela requerente foram exatamente obtidos desta forma, ou seja, sem qualquer esforço ou vontade da mesma. Todo esse esforço e essa vontade foram assumidos e concretizados pela Câmara Municipal.

 

Haverá casos, como aquele expendido no acórdão nº 01681/07 do Tribunal Central Administrativo Sul (relator: Eugénio Sequeira), em que a inação de um proprietário em todo o processo associado ao loteamento, realização das infraestruturas e venda dos lotes poderá não ser motivo suficiente para afastar o enquadramento na categoria B. Mas, nestes casos pontuais, assistir-se-á necessariamente a uma delegação proativa e voluntária de tais tarefas, por exemplo, noutros comproprietários. Ou, como bem determina o acórdão “Em suma, uma longa actividade não pode deixar de ser desenvolvida, durante quase dez anos, por todos esses comproprietários, ainda que algum ou alguns deles apenas pudesse ter dado a sua anuência (…). Na prática, tal delegação, tendo subjacente uma vontade de concretizar o loteamento, vender e gerar lucro, encontra-se totalmente ausente no processo em análise.

 

Tratadas as questões que me parecem pertinentes, importa sumariar os pontos-chave que sustentam a minha convição que os rendimentos auferidos devem ser enquadrados na Categoria G, e não na B, do IRS.

 

1-      O recurso à substância económica dos factos, como meio subsidiário de interpretação da lei, mas imprescindível neste caso pelas razões apresentadas, convoca e justifica uma perspetiva de análise enquadrada na realidade económica particular da requerente. Ou seja, todas as especificidades da situação concreta deverão ser consideradas à luz do seu propósito último, inserido num contexto essencialmente economicista. E tal propósito, no que tange à requerente, não configurou uma atuação tendente à valorização do seu património imobiliário. Antes, e manifestamente contra a sua vontade, foi “arrastada” pela Câmara Municipal para um processo em que nunca se reviu e ao qual, na maior parte, foi alheia.

 

2-      E não se utilize o argumento que o mesmo resultado prático poderia ter sido atingido se a Câmara Municipal decidisse avançar com a expropriação por interesse público. É verdade que o poderia ter feito, mas nesse caso, por um lado, os proveitos auferidos pela requerente seriam, inequivocamente, tributados na Categoria G do IRS e, por outro, o preço que no caso em análise foi estabelecido pela Câmara Municipal e pela empresa imobiliária que acabou por adquirir a totalidade dos lotes, teria sido necessariamente outro, de acordo com a legislação aplicável.

 

3-      Falha, em todo o processo, a justificação de que os rendimentos auferidos pela requerente, derivam de uma atividade empresarial. E não é credível que um processo de loteamento, feito completamente ao arrepio da requerente, por si só, uma vez concluído, transforme aquela numa empresária. Nem a venda por atacado dos ditos lotes a uma empresa e pelo preço indicado pela Câmara Municipal.

 

4-      Não se provou qualquer intervenção voluntária da requerente nos atos fundamentais que a jurisprudência associa à realização de uma atividade comercial e industrial de exploração de loteamentos, no sentido da consideração dos rendimentos gerados como integrando a Categoria B do IRS, designadamente o loteamento, a instalação das infraestruturas necessárias e toda a estratégia de venda (definição do modelo de venda lote a lote ou por atacado, como aconteceu, promoção e fixação do preço). Não só não se provou tal intervenção da requerente como, por via da prova testemunhal, ficou absolutamente claro que todos esses atos fundamentais foram executados pela Câmara Municipal.

 

5-      E não se verifica a circunstância de todo o processo mencionado no parágrafo anterior, não tendo sido conduzido pela requerente, o ter sido através de um processo voluntário, visando o fim último do lucro, de delegação de todas as tarefas numa ou várias pessoas interessadas no negócio. Na verdade, da prova testemunhal percebeu-se que a Câmara Municipal estaria sempre uns quantos passos à frente da requerente, e que esta iria sendo informada, quando muito, dos factos consumados.
 

Em conclusão, reitero a minha convição que os rendimentos auferidos pela requerente foram por esta corretamente considerados, para efeitos de tributação, na Categoria G do IRS, não tendo justificação legal a pretensão da requerida que o tratamento adequado seria no âmbito da categoria B.

 

 

Paulo Manuel dos Santos Barra Mendonça

 



[1] Nesta decisão designado pela forma abreviada de uso comum “RJAT" (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária).

[2] Nesta decisão designada pela forma abreviada “AT” como é de uso generalizado.

[3] Nesta peça utiliza-se o acrónimo “VPT” para designar o valor patrimonial tributário.

[4] Nesta peça designa-se também este requerimento da AT por “R-AT”.

[5] Nesta peça utiliza-se o acrónimo LGT para designar a Lei Geral Tributária.

[6] Nesta peça utiliza-se o acrónimo “VPT” para designar o valor patrimonial tributário

[7] Veja-se neste sentido o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 06-12-2013, processo 0989/12 [Francisco Rhotes], acessível em www.dgsi.pt.

[8] Nesta peça utiliza-se também a sigla “R-AT” para designar o requerimento de resposta a que se refere o artigo 17º-1 RJAT.

[9] Neste sentido veja-se JORGE LOPES DE SOUSA - Código de procedimento e de processo tributário: anotado e comentado. Vol. II. 6ª Edição, Lisboa: Áreas Editora, 2011, página 316.

[10] Nesta peça também se designa o Código de Processo Civil por “CPC”.

[11] Em termos idênticos à disciplina prevista no artigo 552º-1-d) do CPC.

[12] Mariana França Gouveia, A causa de pedir na ação declarativa, Almedina, Coimbra, 2004, pp. 523-524.

[13] Mariana França Gouveia, ob. cit, p. 529.

[14] Neste sentido, cfr., entre outros, o Acórdão da SCT do STA, de 5-45-2010, processo n.º 1246/09, em que se entendeu que «no domínio do direito tributário, ao juiz incumbe apenas pronunciar-se sobre os vícios que surgem imputados pela impugnante e/ou Recorrente ao acto tributário sufragado, em face dos fundamentos deste último, não podendo aquele, substituir-se ao papel da administração fiscal e sanar tais vícios, fundamentando de forma diferente as correcções por esta realizadas».

[15] Nesta peça também se designa o Código do Procedimento Administrativo por “CPA”.

 [16] Cfr., entre outros, os acs. de 22/3/2011, rec. nº 749/10 e 16/5/2012, rec. nº 275/12.

 [17] Cfr., entre outros, os Acórdãos do STA, de 23/11/2005, rec. nº 612/05; de 13/2/2008, rec. nº 886/07; de 21/5/2008, rec. nº 220/08; de 25/5/2011, rec. nº 91/11; de 21/9/2011, rec. nº 63/11; de 16/5/2012, rec. nº 275/12; e de 21/11/2012, rec. nº 210/12.

[18] Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, vol. I, pag. 247.

[19] Cfr. ob. cit., p. 166.

[20] Cfr. ob. cit., p. 177.

[21] Como, por exemplo, carência absoluta de forma legal, falta de procedimento, etc. Para maiores desenvolvimentos sobre outras situações de vícios graves geradoras de nulidade, cfr. VIEIRA DE ANDRADE, ob. cit., p. 177.

[22] Redação vigente em 28-11-2008.