Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 291/2015-T
Data da decisão: 2015-11-22  Selo  
Valor do pedido: € 13.661,70
Tema: Verba 28.1 da TGIS; Propriedade vertical
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Decisão Arbitral

A Árbitro Raquel Franco, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o tribunal arbitral singular constituído em 22 de julho de 2015, decide nos termos que se seguem:

 

 

I.                   RELATÓRIO

 

1. No dia 05-05-2015, os contribuintes … e …, NIF’s … e …, respetivamente, apresentaram um pedido de constituição do tribunal arbitral singular, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 07-05-2015.

3. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular a signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação em 07-07-2015.

4. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral singular ficou constituído em 22-07-2015, seguindo-se os pertinentes trâmites legais.

5. No presente processo, pretende a Requerente que o Tribunal Arbitral declare a ilegalidade e inconstitucionalidade de 46 atos tributários de liquidação de imposto do selo, relativos ao ano de 2014, incidentes sobre o prédio urbano sito…, n.ºs … e …, …-… Lisboa, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da atual freguesia de …, antigo artigo … da mesma freguesia, de que os requerentes são comproprietários, no valor total de € 13.661,70 (correspondente ao valor de € 6.830,85 apurado para cada um dos Requerentes, relativo a 23 liquidações, respetivamente). As liquidações em causa, emitidas ao abrigo da verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS) são as seguintes: 2015 …, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015 0…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…,  2015… .

6. Em concreto, as referidas liquidações de imposto do selo incidiram sobre os valores patrimoniais tributários de 23 frações com utilização independente e afetação habitacional do prédio urbano constituído em propriedade total supra referido, os quais se encontram compreendidos entre os valores de € 26.620,00 e € 65.830,00, mas, quando somados, ascendem ao valor de € 1.366.170,00.

7. Já depois de apresentado o pedido de pronúncia arbitral, a Requerente juntou ao processo comprovativos do pagamento das prestações em dívida das referidas liquidações.

8. Os Requerentes sustentam o seu pedido nos seguintes fundamentos: (i) errónea qualificação do facto tributário, (ii) erro sobre os pressupostos de direito e (iii) errónea quantificação dos rendimentos e valores patrimoniais em causa.

9. Alegam que as divisões independentes estão afetas a habitação e têm um VPT atribuído e separadamente determinado nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 7.º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), que nenhuma das suas partes ou andares com afetação habitacional tem um valor patrimonial tributário superior a € 1.000.000,00 e que foi sobre o valor patrimonial tributário total que a AT liquidou o imposto de selo da verba 28.1. da Tabela Geral.

10. Discordam do critério da AT de considerar que é o VPT global do prédio que determina a sua sujeição a imposto do selo, o qual consideram ilegal porquanto só deveria haver incidência deste imposto nos termos da verba 28.1 da TGIS se alguma das partes, andares ou divisões com utilização independente apresentasse um VPT igual ou superior a € 1.000.000,00. E isto porque não pode a AT estabelecer como valor de referência para incidência de imposto do selo o valor total do prédio quando o legislador estabeleceu regra diferente em sede de CIMI, sendo esse o normativo aplicável às matérias não reguladas no CIS no que toca à incidência da verba 28.1 da TGIS.

11. Entendem ainda que a interpretação que a AT dá à verba 28.1 da TGIS é inconstitucional por violação dos princípios da igualdade fiscal, da legalidade tributária, da capacidade contributiva, da justiça, da prevalência da verdade material sobre a realidade jurídico-formal, e da proporcionalidade em matéria fiscal, enunciados nos artigos 13.º, 18.º, 81.º alínea b), 103.º e 104.º, todos da Constituição da República Portuguesa.

12. Quanto à errónea quantificação dos rendimentos e valores patrimoniais, os Requerentes invocam ainda que casaram sob o regime de separação de bens, pelo que são comproprietários do prédio urbano em questão, sendo cada um deles apenas titular de metade do referido prédio. Assim, não só o prédio não tem um valor igual ou superior a € 1.000.000,00 como também cada um dos dois comproprietários não é proprietário de prédio desse valor, mas, no limite, de metade do mesmo.

13. A Requerente solicita, ainda, o pagamento de juros indemnizatórios, em virtude de terem sido pagas liquidações de imposto ilegais, por erro imputável aos serviços, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 43.º e dos artigos 100.º e 102.º, n.º 2, da LGT e artigo 24.º, n.º 5, do RJAT.

14. A Requerida respondeu nos seguintes termos:

-        A título de exceção, a AT vem invocar a inimpugnabilidade do objeto do processo. Refere, a esse respeito, que o ato de liquidação da verba 28 do IS é único, e o facto de poder ser pago em várias prestações não implica que tenham ocorrido várias liquidações. A natureza das prestações de uma liquidação deste imposto é a de divisão da liquidação global, efetuada anualmente, não podendo cada prestação per se ser impugnada autonomamente, pois o objeto da impugnação judicial ou do processo arbitral tributário é o ato tributário de liquidação. Assim sendo, atendendo à manifesta inimpugnabilidade autónoma das prestações dos atos de liquidação constantes das notas de cobrança que constituem o objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, ocorre a exceção dilatória prevista al. c), do nº1, do art. 89.º do CPTA, subsidiariamente aplicável pelo art. 29.º, n.º 1, al, c), do RJAT, o que obsta ao conhecimento do mérito e acarreta a absolvição da AT da instância.

-        Sem prescindir, a Requerida alega, em sede de impugnação, o seguinte:

·         Foi a riqueza advinda da propriedade imobiliária que a Lei n.º 55-A/2012, veio, de forma inovadora, tributar, sujeitando a IS a propriedade e outros direitos reais sobre prédios urbanos cujo VPT viesse a revelar-se igual ou superior a € 1.000.000.

·         A AT tem reiterado o entendimento de que, se o edifício for constituído em propriedade total com partes ou divisões susceptíveis de utilização independente (propriedade dita total), integra o conceito jurídico tributário de “prédio”, ou seja, uma única unidade, e o valor patrimonial tributário do mesmo é determinado pela soma das partes com afetação habitacional, e sendo este igual ou superior a €1.000. 000,00, há sujeição ao imposto de Selo da verba 28 da Tabela Geral anexa ao CIS. De acordo com a AT, essa posição tem os seguintes fundamentos:

·         No CIS não há qualquer definição sobre os conceitos de prédio urbano, pelo que terá que se aplicar o disposto no CIMI, para aferir da eventual sujeição a IS (cfr. artigo 67.°, n.° 2 do CIS na redação dada pela Lei n.° 55- A/2012);

·         O artigo 2.° n.° 1 do CIMI define o conceito de prédio;

·         O artigo 2° n.° 4 do CIMI ressalva as fracções autónomas de prédios constituídos em regime de propriedade horizontal, as quais considera, excepcionalmente, como prédios;

·         Ao contrário, sendo um prédio constituído em propriedade total com partes ou divisões susceptíveis de utilização independente, é o prédio no seu todo, e já não cada uma daquelas partes, que integra o conceito de “prédio”, para efeitos de IMI e de IS, por remissão do artigo 1°, n° 6 do CIS;

·         A tal não obsta o facto de cada andar/divisão constar separadamente na inscrição matricial, e com os respectivos valores patrimoniais tributários, pois tal discriminação apenas releva, para efeitos fiscais, face ao conceito de matrizes prediais constante do artigo 12° do CIMI e na matéria regulada neste Código para a organização das matrizes;

·         A imposição de organizar desta forma as matrizes deve-se à necessidade de relevar a autonomia que, dentro do mesmo prédio, cabe a cada uma das suas partes, as quais podem ser funcional e economicamente independentes;

·         Esta autonomização apenas se justifica porque no mesmo prédio pode ocorrer a utilização para comércio ou habitação, com ou sem arrendamento, o que é determinante nas regras da avaliação fiscal no âmbito do CIMI, face aos diferentes coeficientes de afetação previstos no artigo 41.° desse código.

·         Preconizar um entendimento contrário, segundo a AT, é confundir realidades teleologicamente distintas, a propriedade total, por um lado, e a propriedade horizontal, por outro, cuja destrinça encontra desde logo o seu fundamento no direito civil.

·         A Requerente, para efeitos de IMI e também de imposto selo, por força da redação da referida verba, não é proprietária de fracções autónomas, mas sim de um único prédio, considerando a AT que este é o entendimento que melhor se coaduna com o princípio da legalidade ínsito no artigo 8º da LGT, a que está votada toda a sua atividade.

·         Refere ainda que a AT se encontra vinculada ao princípio da prossecução do interesse público no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos contribuintes, devendo agir com todos com a mesma adequação e proporcionalidade, até porque num Estado de Direito, o princípio da igualdade fiscal é um elemento constitutivo do direito tributário, que traduz a ideia de que todos os cidadãos se encontram adstritos ao cumprimento do dever de pagar impostos aferido por um mesmo critério – a capacidade contributiva e esta é aferida pelo legislador atendendo a indicadores que averiguam a sua força económica, e consequentemente identificam a sua capacidade para os pagar.

 

II.                APRECIAÇÃO DE QUESTÕES PRÉVIAS

 

De acordo com o disposto no artigo 608º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por força do disposto no artigo 22º do RJAT, “(…) a sentença conhece, em primeiro lugar, das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica” devendo o juiz “resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (…)” (sublinhado nosso).

Tendo a Requerida invocado a exceção de inimpugnabilidade dos atos objeto do pedido de pronúncia arbitral, impõe-se que este Tribunal Arbitral se pronuncie, previamente, sobre as mesmas.

Em primeiro lugar, importa salientar que, caso se considerem inimpugnáveis os atos que constituem o objeto do processo, então verificar-se-á uma exceção de incompetência absoluta deste tribunal, sendo o tribunal incompetente para apreciar o pedido. Ora, sendo a determinação da competência dos tribunais uma matéria de ordem pública e o seu conhecimento preceder o de qualquer outra matéria, [conforme se extrai da leitura conjugada do disposto nos artigos 16.º do CPPT, do 13.º do CPTA e do 96.º do CPC, subsidiariamente aplicáveis ex vi o n.º 1 do artigo 29.º do RJAT], deverá esta exceção ser analisada desde logo pois, caso seja julgada procedente, ficará prejudicado o conhecimento do mérito da causa, justificado com uma decisão de absolvição da instância [artigo 89.º, n.º 2 do CPTA, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c) do RJAT].

Em termos gerais, de acordo com o disposto no artigo 2.º do RJAT, a competência dos tribunais arbitrais compreende “a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta”, bem como “a declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais”.

Por outro lado, determina o artigo 95.º da Lei Geral Tributária (LGT) que “o interessado tem o direito de impugnar ou recorrer de todo o ato lesivo dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, segundo as formas de processo prescritas na lei”, podendo ser lesivos, nomeadamente, “a liquidação de tributos (…)”.

Entende a Requerida que “a liquidação é só uma e só ela constitui ato lesivo, susceptível de ser impugnado que só pode, evidentemente, ser objeto de uma única impugnação, independentemente do imposto poder ser pago em várias prestações, como sublinha a recente Decisão Arbitral tirada no processo nº 138/2015-T.”

A questão que importa aqui apreciar é, pois, a de saber se poderão ser objeto de pronúncia arbitral a impugnação “de cada prestação de forma autónoma, na medida em que as datas e os prazos de impugnação são autónomos”, conforme é sustentado pela Requerente ou se, pelo contrário, conforme defende a Requerida, verificando-se que “existe uma única liquidação”, sendo o seu “pagamento (…) concretizado em prestações”, não se permite “a impugnação de uma só prestação ou documento de cobrança nesse valor parcelar”.

Conforme refere José Casalta Nabais, “a liquidação lato sensu, ou seja, enquanto conjunto de todas as operações destinadas a apurar o montante do imposto, compreende o lançamento subjetivo destinado a determinar ou identificar o contribuinte ou sujeito passivo da relação jurídico-fiscal, o lançamento objetivo através do qual se determina a matéria coletável ou tributável do imposto (e, bem assim, se determina a taxa a aplicar, no caso de pluralidade de taxas)” enquanto “a liquidação stricto sensu” se traduz “na determinação da coleta através da aplicação da taxa à matéria coletável ou tributável e as (eventuais) deduções à coleta”[1].

Desta noção de liquidação decorre que, para cada facto tributário haverá, em princípio, uma única liquidação pela qual se determinará a coleta a pagar, entendimento este que também resulta do disposto no artigo 23.º, n.º 7, do Código do Imposto de Selo, nos termos do qual se refere que “tratando-se do imposto devido pelas situações previstas na verba nº 28 da Tabela Geral, o imposto é liquidado anualmente (…) aplicando-se, com as necessárias adaptações, as regras contidas no Código do IMI”.

Por sua vez, de acordo com o disposto no artigo 113.º, n.º 2 do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), a liquidação é efetuada nos meses de fevereiro e março do ano seguinte àquele a que o imposto diga respeito e ainda que possa ser paga em várias prestações, não decorre desse facto que ocorram várias liquidações.

Na verdade, a liquidação de imposto é só uma e só ela constituirá um ato lesivo, susceptível de ser objeto de uma única impugnação, pelo que quando a lei prevê o seu pagamento em várias prestações, escalonadas no tempo, a anulação do ato tributário terá consequências relativamente a todas elas, fazendo cessar a obrigação de pagar ou impondo a obrigação de restituição dos montantes de imposto já pagos pelo sujeito passivo.

Para se determinar a competência do tribunal arbitral para decidir da pretensão objeto dos presentes autos torna-se fundamental averiguar se o pedido de declaração de ilegalidade e consequente anulação de uma das prestações de uma liquidação de Imposto do Selo, efetuada ao abrigo da verba 28, da TGIS, equivale a um pedido de anulação total ou parcial da mesma liquidação ou, não equivalendo, se uma daquelas prestações poderá configurar um ato suscetível de impugnação autónoma.

Quanto à primeira questão, uma prestação não equivale a uma liquidação de imposto, como resulta do n.º 7 do artigo 23.º do CIS: a expressão aí contida de que “o imposto é liquidado anualmente” indicia que é efetuada uma única liquidação anual, embora a mesma possa ser dividida, para efeitos de pagamento, em prestações, e não tantas liquidações quantas as prestações em que o débito deva ser satisfeito – a divisão de uma liquidação em prestações não é mais do que uma técnica de arrecadação de receitas.

Por outro lado, a questão de saber se uma prestação pode ser havida como parte autonomamente impugnável da liquidação remete-nos para a da divisibilidade do ato tributário de liquidação e consequente possibilidade da sua anulação parcial. A este respeito, tem a jurisprudência entendido que a liquidação é um ato divisível, quer por natureza, por respeitar a uma obrigação de natureza pecuniária, quer por definição legal, uma vez que o artigo 100.º da LGT admite a “procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo”, situação em que a administração fiscal, fica obrigada “à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei”. No entanto, para que haja anulação parcial do ato tributário, necessário se torna que a ilegalidade o afete apenas em parte[2].  Assim, nos casos em que o ato tributário é divisível, “se for pedida a anulação parcial de um ato tributário, o tribunal não poderá, em princípio, anulá-lo totalmente”[3]; se for pedida a sua anulação integral e o ato for apenas parcialmente anulável, o pedido será parcialmente improcedente.

Relativamente às prestações de pagamento de uma liquidação de IMI ou de uma liquidação de Imposto do Selo, nos termos da Verba 28, da TGIS, de acordo com Braz Teixeira, não são as mesmas autonomamente sindicáveis, por terem origem numa única obrigação anual: “É necessário não confundir as prestações periódicas, que, embora realizando-se por atos sucessivos, em momentos diversos, têm origem numa mesma obrigação e constituem as várias parcelas de uma mesma prestação que se cindiu, com as prestações que devem efetuar-se periodicamente, não devido a uma divisão da prestação global, mas sim ao nascimento, também periódico, de novas obrigações, pela permanência dos pressupostos de facto da tributação.[4]” No mesmo sentido já se pronunciaram tribunais arbitrais constituídos juntos do CAAD, nomeadamente nos processos 120/2012-T e 205/2013-T.

Concluindo-se que as prestações de uma liquidação de imposto não são autonomamente impugnáveis, por consubstanciarem parcelas de uma prestação global, com origem numa mesma obrigação, cumpre averiguar se uma daquelas prestações pode ser considerada como um “ato de impugnação autónoma”, a que se refere o artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, com remissão para os n.ºs 1 e 2 do artigo 102.º, do CPPT.

Em anotação ao artigo 102.º, do CPPT, e relativamente à alínea e) do seu n.º 1, em que se prevê o termo inicial do prazo de impugnação judicial na data da “notificação dos restantes atos que possam ser objeto de impugnação autónoma nos termos deste Código”, escreve Jorge Lopes de Sousa: “(…) aplica-se esta regra não só aos casos de impugnação autónoma previstos neste Código [decisões de recurso hierárquico que comportem a apreciação da legalidade de atos de liquidação (art. 76.º, n.º 2), atos de autoliquidação (art. 131.º), atos de retenção na fonte (art. 132.º) e atos de fixação de valores patrimoniais (art. 134.º)], mas também aos outros casos de impugnação de atos de avaliação direta (artigo 86.º, n.º 1, da LGT)”.

O facto de a declaração de ilegalidade dos atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, dos atos de determinação da matéria coletável e de fixação de valores patrimoniais integrarem a competência dos tribunais arbitrais, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea b), do RJAT, devendo o pedido de constituição do tribunal arbitral, quanto a eles, ser apresentado no prazo de 30 dias a contar da data da respetiva notificação, nos termos do artigo 10.º, n.º 1, alínea b), do RJAT, leva à conclusão necessária de que os atos de impugnação autónoma a que se refere o artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, são os atos de liquidação, de autoliquidação e de pagamentos por conta, ainda que, relativamente a estes, tenha sido apresentada reclamação graciosa ou recurso hierárquico, expressa ou tacitamente indeferidos.

Tendo-se excluído a possibilidade de uma prestação configurar um ato tributário de liquidação, muito menos se lhe poderá atribuir a natureza de autoliquidação ou de pagamento por conta.

Não sendo cada uma das prestações das liquidações de Imposto do Selo identificadas nos autos autonomamente impugnáveis, pelos motivos antes expostos, estar-se-á perante um caso de incompetência do tribunal arbitral para apreciação e declaração da sua ilegalidade e consequente anulação.

Esta conclusão não é, no entanto, válida quanto às liquidações referentes à divisão suscetível de utilização independente “RC F”, na medida em que aí a liquidação é feita através de uma prestação única (cf. os documentos 13 e 36 juntos pela Requerente, que consubstanciam as notas de liquidação do imposto do selo liquidado com referência a essa divisão, no valor de € 133,10, relativamente a cada um dos Requerentes, consubstanciando também prova do respetivo pagamento, ocorrido em 04.05.2015). Assim, quanto a estes dois atos de liquidação, o presente tribunal é competente porque os atos são impugnáveis.

 

III.                APRECIAÇÃO DE MÉRITO QUANTO À LIQUIDAÇÃO REFERENTE À DIVISÃO SUSCETÍVEL DE UTILIZAÇÃO INDEPENDENTE R/C F

III.1. Factos provados

 

a.       Os Requerentes são proprietários do prédio urbano em propriedade total inscrito na matriz predial urbana da…, em …, sob o artigo …;

b.      O prédio é composto por doze andares que constituem divisões com utilização independente, encontrando-se constituído em propriedade total;

c.       As divisões independentes estão afetas a habitação e têm um VPT atribuído e separadamente determinado nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 7.º do CIMI.

d.      Nenhuma das suas partes ou andares com afetação habitacional tem um valor patrimonial tributário igual ou superior a € 1.000.000,00.

e.       O prédio tem um VPT total de € 5.261.570,00.

f.       A AT emitiu as liquidações de imposto do selo n.ºs 2014…, 2015…, 2014…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015… 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015…, 2015… sobre o prédio referido nos pontos anteriores, com referência ao exercício de 2014.

g.      As referidas liquidações foram pagas pela Requerente.

 

III.2. Factos não provados

 

Não existem factos relevantes para a decisão que tenham sido dados como não provados.

 

IV. THEMA DECIDENDUM

 

A questão essencial em causa no presente processo passa por determinar, com referência a um prédio urbano não constituído em regime de propriedade horizontal, integrado por diversas áreas com utilização independente, com afetação habitacional, se o VPT relevante para efeitos da tributação em sede de imposto do selo ao abrigo da verba 28.1 da TGIS deve ser o correspondente ao somatório do valor patrimonial tributário atribuído às diferentes partes ou andares independentes ou se, pelo contrário, deve ser tido em conta para efeitos de incidência do imposto do selo ao abrigo da verba 28.1 da TGIS o VPT atribuído a cada andar ou divisão com utilização independente.

 

V. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

 

A verba 28 da TGIS prevê o seguinte:

28. “Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a (euro) 1.000.000 - sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI:

28.1 Por prédio com afetação habitacional – 1%

28.2 – Por prédio, quando os sujeitos passivos que não sejam pessoas singulares sejam residentes em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças – 7,5%.”

 

No presente processo há que decidir se o VPT relevante como critério de incidência do imposto do selo nos termos da verba 28.1 da TGIS é o correspondente ao somatório do valor patrimonial tributário atribuído às diferentes partes ou andares (VPT global) ou, antes, o VPT atribuído a cada uma das partes ou andares habitacionais.

 

Esta questão já foi apreciada em diversos processos de arbitragem tributária, não se vislumbrando motivos para adotar entendimento diferente daquele que foi adotado em decisões proferidas anteriormente[5].

Assim:

 

Nos termos do n.º 2 do artigo 67.º do CIS, quanto “às matérias não reguladas no presente código respeitantes à verba 28 da Tabela Geral aplica-se subsidiariamente o CIMI.” Reportando-se a norma de incidência da verba 28.1 da, TGIS a prédios urbanos importa buscar o conceito de prédio urbano no CIMI.

 

O CIMI estabelece, no artigo 2.º, n.º 1, o conceito de prédio. Define-o como “toda a fração de território, abrangendo as águas, plantações, edifícios e construções de qualquer natureza nela incorporados ou assentes, com caráter de permanência, desde que faça parte do património de uma pessoa singular ou coletiva e, em circunstâncias normais, tenha valor económico, bem como as águas, plantações, edifícios ou construções, nas circunstâncias anteriores, dotados de autonomia económica em relação ao terreno onde se encontrem implantados, embora situados numa fração de território que constitua parte integrante de um património diverso ou não tenha natureza patrimonial”.

 

Já o artigo 4.º do CIMI estabelece que são prédios urbanos “todos aqueles que não devam ser classificados como rústicos, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte”.

 

Por sua vez, o artigo 6.º do mesmo Código procede à classificação das diversas espécies de prédios urbanos, distinguindo-os, no n.º 1, em quatro subcategorias: “a) Habitacionais; b) Comerciais, industriais ou para serviços; c) Terrenos para construção; d) Outros”. Por sua vez, o n.º 2 positiva o critério utilizado para essa distinção, definindo que os “Habitacionais, comerciais, industriais ou para serviços são os edifícios ou construções para tal licenciados ou, na falta de licença, que tenham como destino normal cada um destes fins”.

 

No que concerne à questão concreta objeto da presente decisão, importa atender ao artigo 12.º, n.º 3, do CIMI, nos termos do qual “cada andar ou parte de prédio suscetível de utilização independente é considerado separadamente na inscrição matricial, a qual discrimina também o respetivo valor patrimonial tributário.”.

 

Por fim, nos termos do artigo 119.º n.º 1 do CIMI, “Os serviços da Direcção-Geral dos Impostos enviam a cada sujeito passivo, até ao fim do mês anterior ao do pagamento, o competente documento de cobrança, com discriminação dos prédios, suas partes suscetíveis de utilização independente, respetivo valor patrimonial tributário e da coleta imputada a cada município da localização dos prédios.”

 

Conforme reconhece a doutrina, o conceito fiscal de prédio afasta-se do conceito civilista de prédio, ao contrário do que sustenta a Requerida, sendo que, “Para efeitos fiscais, o n.º 1 deste artigo [2.º do CIMI] prevê a existência de três requisitos necessários para que se possa estar perante o conceito de prédio, a saber, a estrutura física, a patrimonialidade e o valor económico.”

(Cf. J. Silvério Mateus e L. Corvelo de Freitas, Os Impostos sobre o Património Imobiliário, o Imposto do Selo, Anotados e Comentados, Engifisco, 1.ª edição, 2005, pág. 101).

 

Assim, “o elemento físico vem definido pela referência a “toda a fração de território”, abrangendo águas, plantações e construções de qualquer natureza nela incorporadas ou assentes com carácter de permanência. No plano jurídico, é atribuída relevância à patrimonialidade. O bem, no sentido físico, deve ser passível de integração no património de uma pessoa singular ou colectiva. (…) O requisito do valor económico encontra-se, naturalmente, associado ao requisito da patrimonialidade, decorrendo daí a susceptibilidade de gerar rendimentos ou outro tipo de utilidades para o seu titular.” (op.cit.).

 

No caso concreto, parece-nos que todos os três requisitos mencionados se verificam, na medida em que as partes ou divisões suscetíveis de utilização independente objeto dos atos de liquidação em causa têm correspondência física com a realidade, integram o património da Requerente e possuem um valor económico que, quanto mais não seja, decorre do VPT que lhes foi atribuído pela avaliação realizada pela AT.

 

Assim, parece-nos que as partes ou divisões suscetíveis de utilização independente, preenchendo todos os requisitos para que possam qualificar como um “prédio”, em termos económicos, físicos e de patrimonialidade, deverão ser consideradas autonomamente para efeitos da incidência da verba 28.1 da TGIS.

 

Acresce que, na regra de incidência constante da verba 28.1 da TGIS, o legislador não entendeu relevante distinguir entre os prédios em propriedade horizontal e os prédios em propriedade vertical. E isto, em nosso entender, porque o que releva, em última análise, é o destino económico do imóvel, como decorre, também, do artigo 6.º do CIMI, em face dos princípios constitucionais ínsitos nos artigos 103.º n.º 1 e 104.º n.º 3 da CRP. Na verdade, em termos de substância económica, não existe qualquer diferença entre um edifício em propriedade horizontal e um edifício em propriedade vertical ou total constituído por partes ou divisões suscetíveis de utilização independente, justificando-se, portanto, em termos de regras de incidência – e, em particular, da regra constante da verba 28.1 da TGIS – o tratamento igual destas duas situações. Aliás, também o legislador fiscal determina esse tratamento igualitário, no artigo 119.º do CIMI, quando estabelece que o imposto deverá ser liquidado individualmente sobre cada parte ou divisão suscetível de utilização independente, tendo em consideração o VPT de cada parte ou divisão suscetível de utilização independente, individualmente considerada.

 

Resulta do exposto que deverá aplicar-se indistintamente, quer aos prédios urbanos habitacionais constituídos em propriedade horizontal, quer os que se encontram em propriedade total ou vertical, a regra constante da verba 28.1 da TGIS, devendo o imposto incidir sobre o VPT atribuído pela Requerida, através de avaliação geral, a cada uma das partes ou divisões suscetíveis de utilização independente (aliás, a Requerida emitiu, no caso objeto dos presentes autos, tantos atos de liquidação quantas as partes ou divisões suscetíveis de utilização independente afetas a habitação).

 

Em face do que antecede, e atento o facto de que nenhuma das partes ou divisões suscetíveis de utilização independente objeto dos atos de liquidação impugnados tem um valor patrimonial tributário igual ou superior a € 1.000.000,00, como ficou demonstrado nos presentes autos, conclui-se pela procedência do pedido da Requerente, considerando-se ilegais os atos de liquidação impugnados, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito e violação do artigo 1.º n.º 1 do Código do Imposto do Selo e da verba 28.1 da TGIS, devendo os referidos atos ser anulados.

 

Quanto aos juros indemnizatórios, o artigo 43.º da LGT estipula que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.

 

Quanto à existência, no caso, de erro imputável aos serviços, considera-se o mesmo verificado, segundo jurisprudência uniforme do STA (vejam-se, neste sentido, os Acórdãos do STA de 22-05-2002, Proc. n.º 457/02; de 31.10.2001, Proc. n.º 26167 e de 2.12.2009, Proc. n.º 0892/09).

 

Assim, não há dúvidas de que a Requerente tem direito a ser ressarcida através do recebimento de juros indemnizatórios, calculados nos termos do artigo 43.º, n.º 1 da LGT e do artigo 61.º, números 2, 3 e 5, sobre as quantias pagas referentes às liquidações anuladas.

 

 

 

VI. DECISÃO

A conclusão de que a liquidação de Imposto de Selo, da verba 28 da TGIS, é incindível, não podendo cada uma das suas prestações ser autonomamente impugnada, determina a incompetência do tribunal arbitral e obsta ao prosseguimento do processo, bem como a apreciação de mérito da causa. Motivos pelos quais se decide absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira da instância.

 

Valor: em conformidade com o disposto no n.º 2 do art. 315.º do CPC, conjugado com a alínea a) do n.º 1 do art. 97.º-A do CPPT e com o n.º 2 do art. 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 13.661,70.

 

Custas: nos termos do disposto no artigo 22.º, n.º 4, do RJAT e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € …, a suportar integralmente pela Requerida nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

Registe-se e notifique-se.

 

Lisboa, 22 de novembro de 2015

A Árbitro,

 

Raquel Franco

 

 



[1]                Cf. Direito Fiscal, 3ª Edição, Almedina, 2005, página 318.

[2]                Cfr., neste sentido, o Acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do STA, proferido em 10 de abril de 2013, no recurso n.º 0298/12, disponível em http://www.dgsi.pt, em cujo sumário se lê: “Sumário: I - O ato tributário, enquanto ato divisível, tanto por natureza como por definição legal, é suscetível de anulação parcial. II - O critério para determinar se o ato deve ser total ou parcialmente anulado passa por determinar se a ilegalidade afeta o ato tributário no seu todo, caso em que o ato deve ser integralmente anulado ou apenas em parte, caso em que se justifica a anulação parcial.”

[3]              Jorge Lopes de Sousa, “Código de Procedimento e de Processo Tributário – anotado e comentado” I Volume, Áreas Editora, 2006, pág. 875.

[4]              António Braz Teixeira, “Princípios de Direito Fiscal”, Vol. I, 3.ª Edição, Almedina, Coimbra, 1995, págs. 243 e 244.

[5]              Cfr. as decisões proferidas nos processos 50/2013T;132/2013-T;181/2013-T;182/2013-T;183/2013-T;185/2013-T;240/2013-T; 248/2013-T; 268/2013-T; 272/2013-T; 280/2013-T; 14/2014-T; 26/2014-T, 30/2014-T; 72/2014-T; 88/2014-T; 100/2014-T; 177/2014-T, 193/2014-T; 194/2014-T, 206/2014-T, 238/2014-T; 290/2014-T; 292/2014-T; 372/2014-T; 428/20014-T; 450/2014-T.