Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 372/2015-T
Data da decisão: 2015-11-24  IUC  
Valor do pedido: € 2.882,23
Tema: IUC - locação financeira, incidência subjetiva
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Decisão Arbitral

 

 

CAAD: Arbitragem Tributária

Processo nº 372/2015-T

Tema: IUC, locação financeira, incidência subjetiva

 

 

REQUERENTE: A…, SA

REQUERIDA: AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA

 

 

I – RELATÓRIO

 

A)    As Partes e a Constituição do tribunal Arbitral

 

1. A…, SA, Pessoa Coletiva nº …, com sede na Rua …, nº…, …, Lisboa, doravante designada por “Requerente”, requereu a constituição de Tribunal Arbitral singular, ao abrigo do disposto no artigo 2º, nº 1, a alínea a) e 10º, nº 1 e 2 do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, doravante designado por “RJAT” e da Portaria nº 112 – A/2011, de 22 de Março, pretendendo a declaração de ilegalidade das 21 liquidações de Imposto Único de Circulação (IUC) descritas no Anexo I, junto ao presente pedido arbitral, todas referentes aos períodos de tributação de 2013 a 2014, descritas na Tabela Anexa ao pedido arbitral, as quais constam no Processo Administrativo junto aos autos pela ATA, e que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os devidos efeitos legais, no montante global a pagar de €2.882,23.

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral, foi apresentado pela Requerente em 09-06-2015, foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 11-06-2015 e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 25-06-2015.

A Requerente optou por não designar árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no nº1 do artigo 6º do RJAT, foi designada, em 07-08-2015, pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa a ora signatária como árbitro singular. A nomeação foi aceite e as partes notificadas da designação do árbitro, não tendo manifestado a vontade de recusar a designação.

 

2. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c), do nº 1, do artigo 11º, do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro (RJAT), o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 26-08-2015. A AT foi notificada na mesma data para apresentar resposta no prazo legal, nos termos e para os efeitos do disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 17º do RJAT.

 

A AT apresentou a sua resposta em 02-10-2015, a qual se dá por integralmente reproduzida. Atendendo ao requerido na Resposta, pela ATA, quanto à dispensa de produção de prova e de realização da reunião a prevista no artigo 18º RJAT, a Requerente, por requerimento de 05-10-2015, veio prescindir da produção de prova testemunhal indicada, e, atendendo a que não foram invocadas exceções pela ATA, concordou com a dispensa de realização da reunião, bem assim como da apresentação de alegações. Nesta conformidade, foi proferido despacho arbitral, em 19-10-2015, a dispensar a realização da reunião prevista no artigo 18º do RJAT, bem assim como a apresentação de alegações. Foi fixada data para proferir decisão arbitral até 26-11-2015, e notificada a Requerente para té à data fixada efetuar o pagamento da taxa arbitral subsequente.

 

 

 

B) DO PEDIDO FORMULADO PELA REQUERENTE:

 

3. A Requerente formula o presente pedido de pronúncia arbitral pugnando pela ilegalidade, com a consequente anulação, das 21 liquidações de IUC, referentes aos períodos de 2013 e 2014, discriminadas no Anexo ao Pedido Arbitral, no valor global de €2.882,23.

Todas estas liquidações se encontram devidamente identificadas e discriminadas na tabela anexa ao pedido arbitral, com identificação da matrícula do veículo a que respeitam e da situação jurídica em que se encontram, pelo que se dá por integralmente reproduzido o teor da referida tabela anexa.

 

4. Em síntese, alega que é uma instituição de crédito sujeita à supervisão do Banco de Portugal, que prossegue a sua atividade no ramo do financiamento automóvel, designadamente sob a modalidade de concessão de empréstimos para a aquisição dos veículos ou da celebração de contratos de locação financeira, como sucede com todas as viaturas identificadas nos presentes autos, às quais se referem as liquidações de IUC impugnadas. A Requerente discorda de todas estas liquidações, porquanto não é sujeito passivo de IUC relativamente às viaturas e aos períodos em causa.

Em todos os casos abrangidos pelo presente pedido arbitral a Requerente não é sujeito passivo de imposto, na medida em que todas as viaturas se encontravam em regime de aluguer sem condutor, celebrado com os sujeitos identificados no Anexo I, que os utilizavam usufruindo as prerrogativas decorrentes dos contratos em vigor. Ocorre, assim, um motivo de exclusão da incidência subjetiva de imposto. Invoca, ainda, a ilegitimidade das locadoras para pagar o IUC, pelo que os atos impugnados enfermam de erro sobre os pressupostos do facto tributário, o que consubstancia vício de violação de lei. Junta dois pareceres como Anexos B e C, em defesa da sua tese, bem assim como numerosa jurisprudência arbitral.

Conclui peticionando a anulação das liquidações de IUC, no montante global de €2.882,23, o reembolso deste valor integralmente pago pela Requerente, bem como o pagamento de juros indemnizatórios pela privação do referido montante, nos termos do artigo 43º da LGT.

 

C – A RESPOSTA DA REQUERIDA

 

5. A Requerida ATA, devidamente notificada para o efeito, apresentou tempestivamente a sua resposta na qual, na qual por impugnação, alegou, em síntese, o seguinte:

a) Questiona o valor da jurisprudência arbitral bem assim como dos Pareceres juntos pela Requerente;

b) Alega, ainda, que não assiste razão à Requerente, cuja posição tem subjacente uma errada interpretação e aplicação das normas legais subsumíveis ao caso sub judice notoriamente errada. O artigo 3º do CIUC não comporta qualquer presunção legal, pelo que o sujeito passivo do imposto é o proprietário da viatura, tal como resulta das bases de dados que servem de base à ATA para proceder á liquidação, a saber: Instituto da Mobilidade dos Transportes Terrestres (IMTT) e Instituto de Registo e Notariado/Conservatória do Registo Automóvel (IRN).

c) O entendimento defendido pela requerente, incorre numa enviesada leitura da letra da lei, corresponde a uma interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal e decorre ainda de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o CIUC;

d) Conclui, pois, que o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal e que outra interpretação seria ignorar o elemento teleológico de interpretação da lei: a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o CIUC; reforça esta alegação invocando que este é o entendimento seguido pela jurisprudência dos nossos tribunais expressa na sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, no âmbito do Processo n.º 210/13.0BEPNF;

e) Pugna pela improcedência total do pedido arbitral, pelo que, não deve a AT ser responsabilizada pelo pagamento das custas processuais, por ser inteiramente imputável à Requerente a emissão das liquidações

 

 II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

 

 

6. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído. É materialmente competente, nos termos do artigo 2º, nº1, alínea a) do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro.

 

7. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (Cfr. 4º e 10º nº2 do DL nº 10/2011 e art. 1º da Portaria nº 112/2011, de 22 de Março).

 

8. Quanto à cumulação de pedidos, pretendendo-se a apreciação conjunta da legalidade das 131 liquidações de IUC, relativas aos anos de 2013 a 2014, apesar de constituírem atos autónomos, referentes a situações diferenciadas, verificando-se os pressupostos exigidos pelo disposto no nº 1, do artigo 3º, do RJAT e artigo 104º do CPPT, é de admitir a cumulação. Assim, aceita-se no mesmo pedido arbitral a cumulação de pedidos de declaração de ilegalidade de todos os atos tributários de liquidação de IUC e respetivos juros compensatórios que lhes estão associados, dada a identidade do imposto e a apreciação dos atos tributários em causa depender da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da aplicação das mesmas regras de direito. É o caso do presente pedido arbitral. Encontram-se, assim, preenchidos os pressupostos legais que permitem a cumulação de pedidos, nos termos previstos nos artigos 104º do CPPT e no artigo 3º, nº1 do RJAT, considerando a identidade do tributo e a competência do tribunal, a qual é aceite por este Tribunal.

 

9. O processo não padece de vícios que o invalidem.

 

 

III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

 

 

10. Tendo em conta a prova documental junta aos autos, cumpre agora apresentar a matéria factual relevante para a compreensão da decisão, que se fixa como segue.

 

A)    Factos Provados

 

11. Como matéria de facto relevante, dá o presente tribunal por assente os seguintes factos:

a) A Requerente é uma instituição de crédito cuja atividade substancial consiste no financiamento automóvel, através da celebração, entre outros, de contratos de locação financeira e de aluguer de longa duração (ALD) de veículos sem condutor, destinados à aquisição, por empresas e particulares, de veículos automóveis;

b) A Requerente foi notificada para proceder ao pagamento das 21 liquidações de IUC aqui impugnadas, relativamente aos anos de 2013 e 2014 e respetivos juros compensatórios, referentes aos veículos com as matrículas identificadas nas liquidações de IUC juntas aos autos como documentos nºs 1 a 21 em anexo ao pedido arbitral;

c) As liquidações impugnadas correspondem aos veículos identificados com matrícula, mês de matrícula, valor de imposto, valor de juros compensatórios, todos devidamente discriminados na tabela junta ao Pedido Arbitral Anexo I, que aqui se dá por integralmente reproduzido, a saber:

 

1-Veículo com matrícula … - liquidação IUC nº 2013…;

2-Veículo com matrícula … - liquidação IUC nº 2013…;

3-Veículo com matrícula … - liquidação IUC nº 2013…;

4-Veículo com matrícula … - liquidação IUC nº 2013…;

5-Veículo com matrícula … - liquidação IUC nº 2013…;

6-Veículo com matrícula … - liquidação IUC nº 2013…;

7-Veículo com matrícula … - liquidação IUC nº 2013…;

8-Veículo com matrícula … - liquidação IUC nº 2013…;

9- Veículo com matrícula … - liquidação IUC nº 2013…;

10-Veículo com matrícula … - liquidação IUC nº 2013…;

11-Veículo com matrícula … - liquidação IUC nº2013…;

12-Veículo com matrícula … - liquidação IUC nº 2014…;

13-Veículo com matrícula … - liquidação IUC nº 2014…;

14-Veículo com matrícula … - liquidação IUC nº 2014…;

15-Veículo com matrícula … - liquidação IUC nº 2013…;

16-Veículo com matrícula … - liquidação IUC nº 2013…;

17-Veículo com matrícula … - liquidação IUC nº 2013…;

18-Veículo com matrícula … - liquidação IUC nº 2013…;

19-Veículo com matrícula … - liquidação IUC nº 2013…;

20-Veículo com matrícula … - liquidação IUC nº 2013…;

21-Veículo com matrícula … – liquidação IUC nº 2013….

 

d) Para cada um destes veículos encontrava-se em vigor, à data dos factos tributários, contrato de locação financeira e contrato de PCV respetivo, conforme referido no supra mencionado Anexo A, e comprovado pelos documentos nºs 22 a 42 juntos ao pedido arbitral, nos quais se encontram devidamente identificados todos os locatários, pessoas singulares e coletivas, com nomes, respetivos NIF e moradas;

e) Com referência aos veículos identificados em c) e pela mesma ordem aí indicada, eram locatários, à data dos factos tributários, respetivamente, (1) B…, (2) C…, (3) D…, (4) E…LDA, (5) F… LDA, (6) G… LDA, (7) H…, (8) G… LDA, (9) I…, (10) J…, (11) K…, (12) L…, (13) M…, (14) N…, (15) O…, (16) P…, (17) Q… LDA, (18) R…, (19) S…, (20) T…LDA, (21) U… UNIPESSOAL LDA. - Cfr. Docs. Nºs 22 a 42 juntos aos autos pela requerente.

 

f) Da análise dos contratos de locação financeira juntos aos autos pela Requerente resulta que no mês da matrícula referente a cada uma das viaturas identificadas, se encontrava em vigor o respetivo contrato de locação;

g)Todos os valores constantes das liquidações de IUC impugnadas (IUC e juros compensatórios) foram pagos, como resulta dos documentos nºs 1 a 21 juntos aos autos, no valor total de €2.882,23;

h) À data dos factos tributários, as viaturas automóveis referenciadas nas liquidações de IUC impugnadas encontravam-se inscritas no registo automóvel na titularidade da ora Requerente, na qualidade de proprietária e dos respetivos locatários, nessa mesma qualidade;

i) À data dos factos tributários de liquidação a AT dispunha dos elementos de informação constantes das bases de dados da Conservatória do Registo Predial e do IMTT;

j) Em momento algum a Requerente teve o gozo dos veículos, com utilização exclusiva a cargo dos respetivos locatários.

 

 

B)    FUNDAMENTAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS

 

12. A decisão sobre a matéria de facto nos termos supra descritos tem por base a prova documental junta pela Requerente e que integra os presentes autos. O Tribunal considerou em particular o objeto social da Requerente e a natureza específica da sua atividade económica, relevante para a realidade factual subjacente às situações negociais respeitantes aos diversos contratos que têm por objeto os veículos supra identificados, comprovados pelos documentos juntos em anexo ao pedido arbitral.

 

C) FACTOS NÃO PROVADOS

 

13.Não existem outros factos dados como não provados, uma vez que todos os factos relevantes para a apreciação do pedido foram dados como provados.

 

IV – FUDAMENTAÇÃO DE DIREITO

 

14. Fixada a matéria de facto, importa conhecer das questões de direito relevantes para a decisão, correspondendo, em síntese, à ilegalidade suscitada pela Requerente no presente pedido arbitral, a qual se reconduz à questão da incidência subjetiva do IUC, nomeadamente durante a vigência dos contratos de locação financeira e, por força desta, a determinação dos efeitos do registo automóvel e da existência ou não de uma presunção ilidível.

 

15. Importa verificar se a Requerente deve ser qualificada como sujeito passivo do Imposto Único de Circulação, liquidado em relação aos anos de 2013 e 2014, quanto aos veículos identificados no pedido de pronúncia arbitral.

Como a própria Requerente refere no pedido arbitral a questão de fundo a decidir é a de saber se na vigência dos contratos de locação financeira sobre os veículos identificados na tabela junta como ANEXO A, deve ser a Requerente ou os locatários os sujeitos passivos de imposto.

 

Em primeiro lugar há que apreciar os termos da configuração da incidência subjetiva do IUC à luz do disposto no artigo 3.º, do Código do Imposto Único de Circulação (CIUC), nomeadamente, a questão de saber se a incidência subjetiva assenta estritamente na inscrição da titularidade do veículo no Registo Automóvel, ou se, o registo opera apenas como uma presunção de incidência tributária, ilidível, em conformidade com o disposto no artigo 73.º, da Lei Geral Tributária. Sobre esta matéria é já abundante e bastante definida a jurisprudência arbitral vertida em diversas decisões que já se pronunciaram sobre esta mesma questão. Importa, porém, analisar o caso concreto na sua especificidade.

 

16.O quadro jurídico fundamental aplicável nesta matéria é o previsto nos artigos 1º a 6º, do CIUC, aprovado pela Lei nº 22-A/2007, de 29 de Junho.

 O artigo 1º do CIUC define a incidência objetiva do imposto, distinguindo os veículos por categorias especificadas, norma que se afigura clara e sem dificuldades de aplicação. Porém, o mesmo já não sucede com a norma de incidência subjetiva contida no nº1, do artigo 3º do CIUC, a qual está na origem do presente litígio e constitui, assim, questão a decidir no caso em apreciação.

A análise de ambos os preceitos (artigos 1º e 3º) permitem concluir que no funcionamento do IUC o registo automóvel tem um papel fundamental, mas o que verdadeiramente importa é determinar qual o sentido e alcance da norma de incidência subjetiva constante do artigo 3º, nº 1, do CIUC e da eventual existência ou não de uma presunção ilidível, conexionada com a questão dos efeitos jurídicos do registo automóvel, suscitada pela Requerente.

 

Sobre esta questão, as posições das partes resumem-se do seguinte modo:

- Para a Requerente esta não pode ser considerada sujeito passivo de IUC, por força dos contratos de locação em vigor e da regra própria contida no nº 2 do artigo 3º do CIUC que prevê, especificamente para este caso, a responsabilidade pelo pagamento a cargo dos locatários;

- Para a Requerida o artigo 3º, nº1, do CIUC consagra uma norma de incidência tributária e não mera presunção ilidível, sendo que mesmo no caso em que se encontrem em vigor contratos de locação financeira, a proprietária não deixa de ser a locadora e, por força disso, esta é sujeito passivo de imposto.

 

Vejamos pois o que resulta do regime legal em vigor e a sua aplicação ao caso concreto dos autos. Dispõe o artigo 3º do CIUC:

 

“ARTIGO 3º

INCIDÊNCIA SUBJECTIVA

 

“1 – São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

 

2 – São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.

 

No caso dos presentes autos, importa, não apenas determinar o sentido e alcance da norma contido no nº 1, mas, sobretudo, a norma contida no seu nº 2, especialmente destinada a regular o caso concreto dos locatários financeiros, adquirentes com reserva de propriedade e outros titulares de direitos de opção de compra.

A interpretação e aplicação de qualquer norma jurídica, pressupõe a realização de uma atividade interpretativa, a qual deve ser objetiva, equilibrada, e conforme com a letra e o espírito da lei. Qualquer texto, e a lei não é exceção, comporta múltiplos sentidos e contém com frequência expressões ambíguas ou obscuras. Por essa razão, embora a letra da lei seja “o fio condutor” do intérprete, ela deve ser interpretada tendo em conta os objetivos subjacentes, “a ratio” ou a motivação do legislador ao estabelecer a norma em análise.[1]

Neste sentido, estabelece o nº1, do artigo 11º, da LGT que “na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam, são observadas as regras e princípios gerais da interpretação e aplicação das leis”.

A estes elementos acresce um outro, segundo o qual a interpretação da norma jurídica deve respeitar a “unidade do sistema jurídico”, a sua coerência e lógica intrínseca. O artigo 9º, do Código Civil (CC), fornece as regras e os elementos fundamentais para a interpretação da norma jurídica, ao qual também obedece a interpretação da lei fiscal deve obedecer ao disposto naquele normativo, o qual começa por dizer que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dela o “pensamento legislativo”.[2]

 

A estes princípios gerais acrescem, ainda, os previstos na LGT, nomeadamente no artigo 73º, que estabelece que as presunções contidas em normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário.

 

No que se refere à questão em análise, há que salientar o contributo das decisões arbitrais já proferidas nos processos nºs 14/2013-T, de 15 de Outubro, 26/2013-T de 19 de Julho, 27/2013-T, de 10 de Setembro, 217/2013-T de 28 de Fevereiro e, mais recentemente, nas decisões proferidas nos processos 286/2013-T, de 2 de Maio de 2014 e 293/2013-T, de 9 de Junho de 2014, 46/2014-T e 89/2014-T de 5 de Setembro, entre outros, revelando uma apurada reflexão sobre a questão fundamental em apreciação, quer no que respeita ao sentido e alcance do disposto no nº 1, quer no nº2 deste normativo. Em todas, o entendimento quanto a esta questão é unânime: estamos perante uma presunção ilidível.

No mesmo sentido se pronunciou, recentemente, o Supremo Tribunal Administrativo (STA), de 19-03-2015, proferido no processo nº08300/14, no qual se decidiu, no mesmo sentido da jurisprudência arbitral invocada, que “o citado artigo 3º, nº1 do CIUC consagra uma presunção legal de que o titular do registo automóvel é o seu proprietário, sendo que tal presunção é ilidível, por força do artigo 73º, da LGT.”

 

 Pelo que, quanto à questão de saber, face ao teor literal do disposto no nº1, do artigo 3º, do CIUC, qual o alcance da expressão “considerando-se como tais”, dado que na atual versão o legislador não usou o termo “presumem-se” (o qual constava do extinto Regulamento do Imposto Sobre Veículos), entende este Tribunal, em sintonia com a jurisprudência arbitral e do STA supra citada, que só pode ser o seguinte: o legislador presume (considera) que os proprietários são as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados. Significa isto que, tal presunção, implícita, é naturalmente ilidível nos termos previstos no artigo 73º da LGT.

A presunção estabelecida no artigo 3º, nº1, do atual CIUC, já estava consagrada nas versões anteriores dos códigos abolidos com a entrada em vigor do CIUC. Já o artigo 3.º do Regulamento do Imposto Sobre Veículos (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 143/78) estabelecia que “o imposto é devido pelos proprietários dos veículos, presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas em nome de quem os mesmos se encontrem matriculados ou registados”.

 

 Do mesmo modo, o art. 2.º, do Regulamento dos Impostos de Circulação e de Camionagem (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 116/94) estabelecia que “são sujeitos passivos do imposto de circulação e do imposto de camionagem os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas singulares ou colectivas em nome das quais os mesmos se encontram registados”.

 

Na verdade, na versão atual do Código apenas mudou o verbo, optando agora o legislador pela expressão “considerando-se”. Certo é que, entre as versões legislativas anteriores e a atual entrou em vigor a LGT, que consagrou expressamente o princípio contido no artigo 73º, do qual resulta que em matéria de incidência tributária qualquer presunção admite sempre prova em contrário. Logo, torna-se indiferente a adoção de uma presunção expressa ou implícita, porquanto, uma como a outra são igualmente ilidíveis.

Assim, entende-se que o facto de o legislador, na atual versão do CIUC, ter optado por uma presunção implícita (usando a expressão “considerando-se”) em vez de uma presunção expressa (com recurso à expressão “presumindo-se”), como acontecia anteriormente, não traduz uma alteração substancial no que respeita à incidência subjetiva do imposto. Não é, pois, a titularidade constante do registo automóvel condição, por si só determinante de incidência tributária em sede de IUC, mas sim mera presunção de que a propriedade pertence ao titular inscrito no registo, presunção naturalmente ilidível.

 

Acresce que, contrariamente ao que vem alegado pela Requerida, podemos facilmente apontar diversos exemplos, extraídos do ordenamento jurídico tributário, em que o legislador optou pela utilização do verbo “considerar”, com um sentido presuntivo.

De resto, como já se disse supra, tratando-se de norma de incidência tributária, nunca seria admissível a consagração de uma presunção inilidível. Como afirmam, Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, na anotação ao nº 3, do artigo 73º, da LGT, “as presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, reveladas pela utilização da expressão presume-se ou semelhante (…). No entanto, as presunções também podem estar implícitas em normas de incidência, designadamente de incidência objetiva, quando se consideram como constituindo matéria tributável determinados valores de bens móveis ou imóveis, em situações em que não é inviável apurar o valor real”. E, são muitos os exemplos de normas em que é utilizado o verbo “considerar” para estabelecer presunções ilidíveis, como sucede com o disposto nº 2 do artigo 21º do CIRC, no artigo 89-A da LGT ou no artigo 40º, nº1 do CIRS entre outros.

Alega, porém, a Requerida na resposta apresentada, que este mesmo vocábulo “considerando-se” também é normalmente utilizado, pelo ordenamento jurídico fiscal, para definir situações distintas de presunções. Ora, tal afigura-se normal, nomeadamente, no caso de outras normas fiscais em que o legislador utilizou a fórmula “considera-se” ou “consideram-se”, mas atribuindo-lhe outro sentido, já que se trata de expressões que, dependendo do contexto, podem assumir uma pluralidade de sentidos, sem que daí possa extrair-se a conclusão que pretende a Requerida.

Tendo em conta que o sistema jurídico deve formar um todo coerente, os exemplos acima referidos, bem como a doutrina e jurisprudência indicadas, permitem concluir que não é só quando é usado o verbo “presumir” que estamos perante uma presunção, mas também o uso de outros termos ou expressões, como o termo “considera-se” podem servir de base a presunções.

Como se referiu supra, sendo o elemento literal o primeiro instrumento de interpretação da norma jurídica, em busca do pensamento legislativo, importa confrontá-lo com os demais elementos de interpretação, nomeadamente o elemento racional ou teleológico, o elemento histórico e o sistemático.

E, também, nesta linha de reflexão o Tribunal não pode acompanhar a argumentação aduzida pela Autoridade Tributária. No que toca ao elemento histórico, há que referir, que desde a origem do imposto de circulação, com a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 599/72 de 30 de Dezembro, foi, explicitamente, consagrada uma presunção, relativamente aos sujeitos passivos do imposto como sendo aqueles em nome de quem os veículos se encontravam matriculados ou registados. Essa versão da lei usava a expressão literal “presumindo-se como tais”.

Porém, atendendo aos fins do imposto em presença, há que reconhecer que o uso da expressão “considera-se”, na atual versão, contempla uma expressão com um efeito semelhante àquela, consubstanciando, igualmente, uma presunção. Isso mesmo sucede na formulação contida no nº 1, do art.º 3º, do CIUC, em que se consagrou uma presunção, revelada por via do uso da expressão “considerando-se”, de significado semelhante e de valor equivalente à expressão “presumindo-se”, em uso desde a criação do imposto em questão. O uso da expressão “considerando-se” justifica-se apenas por se afigurar mais em sintonia com o reforço conferido à propriedade do veículo, que passou a constituir o facto gerador do imposto, nos termos constantes do artigo 6º do CIUC.

Pelo que, à luz do elemento literal da interpretação, nada obsta ao entendimento de que, o disposto no nº1, do art. 3.º, do CIUC, consagra uma presunção ilidível. Entendimento este que tem, também acolhimento na jurisprudência recente do STA sobre esta matéria.

Assim, quanto à incidência subjetiva do imposto, é de concluir que não se verificam alterações relativamente à situação anteriormente em vigor no âmbito do Imposto Municipal sobre Veículos, Imposto de circulação e Imposto de Camionagem, como aliás é amplamente reconhecido pela doutrina, continuando a valer uma presunção ilidível nesta matéria.[3]

 

17. A tudo o que se deixa exposto importa acrescentar que este entendimento é, ainda, o único que se afigura adequado e conforme ao princípio da verdade material e da justiça, subjacente à relação jurídica fiscal, No caso concreto, isso é evidenciado na letra e na ratio legis do artigo 3º, nº 1 e 2 do CIUC, porquanto de ambos resulta o objetivo claro do legislador tributar o real e efetivo proprietário e não aquele que, por circunstâncias de diversa natureza, não passa, por vezes, de um aparente e falso proprietário, por constar do registo automóvel. Como aliás se refere no Acórdão arbitral nº 63-2014-T de 15 de Setembro “… se o legislador tivesse, como pretende a Requerida, estabelecido na lei uma qualificação não presuntiva sobre quem é proprietário dos veículos (uma ficção legal), estaria com isso a estabelecer, através de uma diferente formulação, uma regra em tudo idêntica à regra hipotética referida. Estaria a fazer assentar a incidência subjetiva do imposto numa ficção legal, em total desconexão com uma qualquer substância económica como base da incidência subjetiva. (…) Mas o princípio da eficiência da tributação não pode sobrepor-se em absoluto ao princípio da capacidade contributiva, ao ponto de o eliminar como critério de incidência subjectiva. E também é certo que o legislador fiscal teria ao seu dispor outros meios de responsabilizar o vendedor do veículo, faltoso quanto ao seu dever de comunicar a venda do veículo, pelo pagamento do imposto, sem ser como contribuinte directo (configurando, v.g., um caso de responsabilidade tributária por dívida de terceiro). E, se assim é, forçoso será também concluir que o artigo 3º, n.º 1 só pode estabelecer uma presunção de propriedade do veículo, mesmo com todas as consequências negativas que essa conclusão acarretará, decerto, em termos de eficiência da administração do imposto.”

 

Por ser assim, tem de se permitir ao titular inscrito no registo automóvel a possibilidade de apresentar elementos probatórios bastantes para a demonstração de que o efetivo proprietário é, afinal, pessoa diferente da que consta do registo, e que inicialmente, e em princípio, se supunha ser o verdadeiro proprietário. Caso contrário, aceitar-se-ia a supremacia da verdade formal do registo sobre a verdade material, e seria admitir a violação grosseira dos princípios fundamentais fiscais enunciados e, ainda, do princípio contido no artigo 73º, da LGT segundo o qual não existem presunções inilidíveis em matéria de incidência fiscal. O legislador não sentiu a necessidade de manter na nova norma de incidência uma presunção expressa e ilidível, uma vez que após a entrada em vigor da Lei Geral Tributária (1999) “as presunções consagradas nas normas de incidência admitem sempre prova em contrário”. Logo, face ao teor do artigo 73º, da LGT, seria tecnicamente incorreto usar a expressão “presumindo-se como tais, até prova em contrário”, constante da anterior versão em vigor.

De resto, é possível extrair, ainda, um outro argumento do disposto no artigo 7º do Código de Registo Predial (o qual constitui a base jurídica fundamental em matéria de registo de propriedade) o qual dispõe que “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.”. À luz do princípio da uniformidade e coerência intrínseca do sistema jurídico, nenhum fundamento se afigura aceitável para que o princípio vigente no registo de propriedade em geral, sofresse uma inflexão ou mesmo “atropelo” injustificado em matéria de registo automóvel.

 

18. Se alguma dúvida persistisse, sempre se diria que, quanto aos elementos de interpretação de pendor racional ou teleológico, a exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 118/X de 07/03/2007, subjacente à Lei nº 22-A/2007, de 29/06, é bastante expressiva ao esclarecer que a reforma da tributação automóvel é concretizada por via da deslocação de parte da carga fiscal do momento da aquisição dos veículos para a fase de circulação e visa “formar um todo coerente” que, embora destinado à angariação de receita pública, pretende que a mesma seja angariada na medida dos custos ambientais que cada indivíduo provoca à comunidade”, acrescentando-se, a propósito do imposto em causa e dos diferentes tipos e categorias de veículos, que como elemento estruturante e unificador (…) consagra-se o princípio da equivalência, deixando-se assim claro que o imposto, no seu conjunto, se subordina à ideia de que os contribuintes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária”, referindo, ainda, ser (…) este princípio que dita a oneração dos veículos em função da respectiva propriedade e até ao momento do abate (…)”.

 

A este propósito, a posição vertida na recente Decisão Arbitral nº 286/2013-T de 2 de Maio de 2014, é bastante esclarecedora ao afirmar que “É este princípio (da equivalência) que dita a oneração dos veículos em função da respectiva propriedade e até ao momento do abate, o emprego comum de uma base tributável específica, a revisão do quadro de benefícios fiscais vigente e a afectação de uma parcela da receita aos municípios da respectiva utilização.

Ora, pretender, como o faz a Requerida, que o legislador, no art. 3.º, n.º 1 do CIUC, fixou, seja qual for o meio técnico subjacente, a incidência subjetiva do imposto nas pessoas em nome de quem os veículos se encontram registados, com total independência de serem ou não, no período tributário relevante, titulares do direito de utilização do veículo, maxime da sua propriedade, implicaria desprezar aquela finalidade que preside à normatividade tributária, bem manifestada na incidência objectiva e na base tributável associada às diversas categorias de veículos (cfr. arts 2.º e 7.º do CIUC). É que uma inscrição registal, sem correspondência com a titularidade subjacente, nenhuma valia possui para dar satisfação e cumprimento a tal finalidade, pois não são as pessoas em nome de quem os veículos se encontrem inscritos quando não sejam titulares de direitos sobre a sua utilização que provocam custos ambientais e viários, mas antes tais custos ambientais e viários são causados pelos efetivos utilizadores dos veículos, nos termos das situações jurídicas substantivas pertinentes, mesmo que não constem, como deviam, do registo automóvel. O registo, na verdade, em nada depõe ou serve quanto ao princípio da equivalência estabelecido no art. 1.º do CIUC. Aliás, assumir que o elemento determinativo da incidência tributária subjetiva é simples e exclusivamente o registo automóvel também não permite afirmar uma ligação com uma qualquer manifestação de capacidade contributiva relevante, o que, via de regra, nos tributos não estritamente comutativos, é imprescindível, já que deve existir, sem prejuízo de exigências de praticabilidade, uma qualquer ligação efetiva entre o imposto e um pressuposto económico materialmente relevante capaz de fundamentar o tributo. A razão de ser da figura tributária afasta, pois, a ideia de que a incidência respectiva se prende estrita e exclusivamente com a própria inscrição registal da titularidade dos veículos tributários e não com as situações substantivas atributivas do direito de utilização dos veículos (art. 3.º, nºs 1 e 2 do CIUC) a que o registo se destina a dar publicidade (cfr. art. 1.º e art. 5.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de fevereiro, com as alterações posteriores, que regula o registo automóvel).” [4]

 

Assim, a lógica e racionalidade do novo sistema de tributação automóvel pressupõe e almeja um sujeito passivo coincidente com o proprietário do veículo, no pressuposto de ser esse, e não outro, o real e efetivo sujeito causador dos danos ambientais, tal como decorre do princípio da equivalência inscrito no art.º 1º, do CIUC.

 

Este princípio da equivalência, que informa o atual imposto único de circulação, tem subjacente o princípio do poluidor - pagador, e concretiza a ideia, nele inscrita, de que quem polui deve, por isso, pagar. Trata-se, afinal, de alcançar as externalidades ambientais negativas que advêm da utilização dos veículos automóveis, sejam assumidos pelos seus proprietários e/ou pelos utilizadores, como custos que só eles deverão suportar. [5]

Outro entendimento implicaria aceitar a possibilidade de tributar pessoas coletivas ou físicas sem responsabilidade na produção de quaisquer danos ambientais, enquanto os reais causadores desses mesmos danos não estariam sujeitos ao imposto, frustrando em absoluto os propósitos reguladores da própria lei, ou seja, a sua verdadeira ratio legis.

 

É precisamente em ordem a satisfazer este objetivo que o nº 2, do artigo 3º do CIUC, equipara aos proprietários os locatários e titulares de contratos de locação, aos quais por força do contrato cabe o gozo e fruição das viaturas. Por isso, nestes casos, a incidência subjetiva do IUC cade aos locatários e não aos proprietários que constam no registo.

Ora, é no âmbito de aplicação deste nº2 do artigo 3º do CIUC que encontramos a solução para o caso concreto das liquidações impugnadas. Provada a existência de contratos de locação em vigor, à data dos factos tributários, e devidamente identificados os locatários, são este os verdadeiros sujeitos do imposto.

 

19. Mas, alega a Requerida que constando a Requerente como proprietária no registo automóvel é esta o sujeito passivo do imposto.

Não se acolhe tal entendimento, desde logo porque, os efeitos do registo, como resulta claro do disposto nos artigos 1.º e 7º do Código de Registo Predial (CRP), tem uma dupla finalidade: dar publicidade à situação jurídica dos bens e constituir presunção de que o direito existe e pertence ao titular nele inscrito. Estas presunções são, porém, ilidíveis mediante prova em contrário, como resulta expressamente do disposto artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil (CC) e, em matéria tributária, reforçado pelo artigo 73º da LGT.

 

 É pacífico para a doutrina e para a jurisprudência dos nossos tribunais superiores que o registo não é condição de validade dos negócios a ele sujeitos ou subjacentes.[6]

Retornando ao caso concreto em apreciação nos presentes autos, a AT reconhece que o registo de propriedade dos 21 veículos que originaram as 21 liquidações de imposto se encontram registados como propriedade da Requerente, e bem, pois que até à concretização do pagamento integral dos contratos de locação é aquela a proprietária das viaturas. Mas, como alega e bem a Requerida, o contrato de locação também consta do registo, no qual está devidamente identificado o locatário, pelo que, face ao disposto no nº2 do artigo 3º do CIUC, o sujeito passivo do imposto passa a ser o locatário, que para esse efeito é equiparado ao proprietário.

 

Por último há que referir, ainda, que no caso particular das locadoras não é verdade que a ATA não tenha acesso a qualquer informação sobre a existência dos contratos celebrados por estas empresas e sobre os respetivos utilizadores, porquanto o cerne da sua atividade comercial consiste, precisamente, na celebração desses contratos, os quais também estão referenciados no registo automóvel.

 

 Acresce que o disposto no art.º 19º do CIUC que impõe, às entidades que procedem à locação financeira, a obrigação de fornecer à AT os dados relativos à identificação fiscal dos utilizadores dos veículos locados é mais uma informação, mas não a única. Visa, precisamente, fornecer à ATA uma informação completa sobre os locatários, mas não se pode extrair, sem mais, que o eventual não cumprimento de uma obrigação de comunicação ponha em causa toda a restante informação a que a ATA pode e tem acesso, via registo automóvel e bases de dados do IMTT. De resto o seu eventual não cumprimento, que a ATA alega mas não demonstra por entender que cabia à Requerente fazer a prova dessa comunicação, nunca poderia ter como consequência a não aplicação do disposto no nº2, do artigo 3º, mas sim a aplicação da coima devida.

Ora, não faz sentido a alegação da ATA neste ponto, pois reconhece que a lei prevê para esse incumprimento a aplicação de uma coima e nada fez para cumprir a lei. Estamos em crer que se a ATA verificasse o incumprimento dessa obrigação certamente não deixaria, em tempo, de cobrar a respetiva coima. Por outro lado a Requerida não afirma explicitamente que a obrigação de cumprimento não foi cumprida mas tão só que a Requerente não fez prova de a ter efetuado.

Entende este Tribunal que o ónus da prova que cabia à Requerente, foi alcançado, ao provar a existência de contratos de locação financeira, referentes aos veículos identificados nos autos, os quais se encontravam em vigor à data dos factos tributários.

Já quanto ao facto alegado pela ATA, relativamente ao não cumprimento por parte da requerente da obrigação prevista no artigo 19º do CIUC, cabia à ATA a sua demonstração, nos termos previstos nos artigos 341º, nº1 do Código Civil (CC), 74º, nºs 1 e 2 da LGT. E essa demonstração era fácil de fazer se a Requerida tivesse agido em conformidade com o princípio do inquisitório e da legalidade. Se não houve cumprimento daquela obrigação devia ter instaurado o correspondente procedimento contraordenacional ou demonstrando que no exercício do seu dever de investigação prévia (princípio do inquisitório) tentou, por via legal, indagar o que tivesse por conveniente quanto à situação jurídica dos referidos veículos.

 

Importa ainda dizer que, a exigência contida neste artigo 19º, mais uma vez, não deixa dúvidas sobre quem o legislador quis fazer incidir o ónus do pagamento do imposto, equiparando ao proprietário os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação” (art. 3º, nº2 do CIUC).

 

20. Não se acompanha, por fim, a alegação da ATA quanto à falha de elementos probatórios suficientes para afastar a presunção, caso se entenda que estamos perante uma presunção consagrada no nº1. do artigo 3º do CIUC. Por tudo o que já se expôs supra, é ponto assente para este tribunal que o art. 3º, nº1 do CIUC estabelece uma presunção ilidível. Face ao caso concreto em discussão nos presentes autos, note-se que não estamos face a uma situação de transmissão da propriedade com falha no registo do novo proprietário, mas sim perante um caso em que o registo se encontra devidamente efetuado e a propriedade cabe, efetivamente à Requerente, mas em que esta prova que o gozo ou utilização das viaturas se encontrava, por força de contrato de locação, na disponibilidade das pessoas, singulares e coletivas, constantes dos contratos em vigor, cujas cópias juntou ao pedido arbitral. Dito de outro modo, face ao disposto no nº2 do artigo 3º do CIUC, é a estes (locatários) que cabia a obrigação de pagamento do imposto.

Os elementos de prova juntos aos são, na perspetiva deste Tribunal arbitral, prova suficiente para se concluir pela aplicação do disposto no nº2, do artigo 3º do CIUC. Nesta perspetiva, o ónus da prova a cargo da Requerente foi cumprido e alcançada a demonstração da existência dos contratos de locação juntos aos autos, com referência a cada uma das 21 viaturas, subjacentes às 21 liquidações impugnadas e respetivos locatários.

 

21. Assim, também não colhe a alegação da Requerida a propósito da interpretação defendida pela Requerente traduzir uma leitura enviesada da lei e assentar numa interpretação contra legem, se mostra contrária à Constituição.

Ora, por tudo o que se deixa exposto supra, resulta claro que o tribunal arbitral não acompanha a Requerida nesta alegação. Importará, ainda assim, acrescentar a todos os argumentos já expostos, um último extraído da própria jurisprudência do Tribunal Constitucional (TC). Assim, refira-se que, contrariamente ao alegado pela Requerida, a consideração de que o disposto no art. 3.º, n.º 1, do CIUC consagra uma presunção ilidível representa a melhor interpretação e a mais conforme à Constituição, conforme resulta do acórdão do TC com o n.º 348/97, de 29.4.1997, posição reiterada no acórdão n.º 311/2003, de 28.4.2003, os quais declaram a inconstitucionalidade do “estabelecimento pelo legislador fiscal de uma presunção “juris et de jure” já que “veda por completo aos contribuintes a possibilidade de contrariarem o facto presumido, sujeitando-os a uma tributação que pode fundar-se numa matéria coletável fixada à revelia do princípio da igualdade tributária”. Nesta conformidade, não se vislumbra a alegação da Requerida possa ter acolhimento.

 

22. Com efeito, há que considerar que, uma vez que a Requerente tem natureza empresarial e parte substancial da atividade integrante do seu objeto social consiste na celebração de contratos de locação financeira e ALD destinados à aquisição de veículos automóveis, os documentos (contratos de locação) que foram juntos aos autos pela Requerente, estão subordinados a rigorosas exigências legais de ordem contabilística e fiscal, com implicações na determinação da matéria coletável, liquidação e cobrança de outros tributos e, em consequência, beneficiam da presunção de veracidade, tanto mais que não foram impugnados pela Requerida.

Nestes termos conclui que estes meios de prova são suficientes para, face ao disposto no nº2 do artigo 3º do CIUC, demonstrar que à data dos factos tributários os sujeitos passivos do imposto eram os locatários e não a Requerente.

            Em consequência, a decisão da AT que a conduziu à emissão e cobrança das 21 liquidações de imposto agora impugnadas padece do vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de facto e de direito subjacentes. Face ao disposto no nº 2, do artigo 3º, do CIUC e da prova efetuada pela Requerente da existência dos contratos de locação financeira juntos aos autos forçoso é concluir que a requerente não pode ser considerada como sujeito passivo de imposto.

Efetuada esta demonstração, a AT não poderá persistir em considerar como sujeito passivo do IUC a ora Requerente (locadora) porque, no registo, consta como sua proprietária, desconsiderando totalmente o disposto no nº2, do mesmo artigo 3º, que equipara aos proprietários os locatários, para efeitos de incidência, cabendo a estes o cumprimento da obrigação de imposto.

 

Em consequência de todo o supra exposto, resulta que todas liquidações impugnadas são ilegais, padecem do vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, pelo que, devem ser objeto de anulação, procedendo-se, consequentemente, ao reembolso à Requerente dos montantes indevidamente pagos.

 

 

V - Quanto ao pedido de pagamento de juros indemnizatórios

 

22.Dispõe a alínea b), do nº 1, do art.º 24º, do RJAT, que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta - nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários - restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito.

Tal dispositivo está em sintonia com o disposto no art.º 100º, da LGT, aplicável ao caso por força do disposto na alínea a), do nº 1, do art.º 29º, do RJAT, no qual se estabelece que “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”

 Dispõe, por sua vez, o artigo 43º, nº1, da Lei Geral Tributária que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”

 

23. Da análise dos elementos probatórios constantes dos presentes autos é possível inferir que, por força do disposto no artigo 19º do CIUC, que obriga as locadoras a comunicarem à AT (justamente, para efeitos do disposto no art.º 3º do referido CIUC em sede de incidência subjetiva de imposto) os dados relativos à identificação fiscal das entidades que procedem à locação financeira e dos utilizadores dos veículos locados, é possível concluir que a AT tinha conhecimento de elementos factuais, no essencial, suficientes para proceder à correta liquidação do imposto.

 Mas, mesmo que assim não fosse, sempre se dirá que a ATA teve a possibilidade de revogar os atos tributários ilegalmente praticados, o que poderia ter efetuado no prazo para resposta ao presente pedido de pronúncia arbitral.

O erro pelo qual está obrigada a indemnizar advém, pois, da errónea aplicação do direito vigente, pelo que o tribunal não pode sufragar a alegação da Requerida segundo a qual esta se limitou a aplicar a lei pelo que daí não resultaria qualquer erro imputável aos serviços.

 

24. Assim sendo, atento o disposto no artigo 61º do CPPT e considerando que se encontram preenchidos os requisitos do direito a juros indemnizatórios, ou seja, verificada a existência de erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, tal como previsto no nº 1 do art.º 43º da LGT, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios à taxa legal, calculados sobre a quantia de €2.882,23, a contar da data em que foi efetuado o pagamento até ao seu integral reembolso.

 

VI – Quanto ao invocado pela ATA em matéria de Custas Arbitrais

 

            25. Também nesta matéria não assiste razão à ATA, quando alega que a transmissão da propriedade não é suscetível de ser controlada pela Requerida (…) e que não tendo a Requerente o cuidado de atualização do registo automóvel (…) forçoso é concluir que a Requerente não agiu com o zelo devido.

            Ora, por tudo o que vem exposto anteriormente, não está em causa nos presentes autos a transmissão da propriedade dos veículos, mas sim a vigência dos contratos de locação supra referidos com as consequências já exaustivamente enunciadas. Há nesta alegação um equívoco claro da Requerida. É evidente que a transmissão da propriedade não ocorreu, nem esse é um facto em discussão nos autos, porquanto à data dos factos tributários estavam em vigor os contratos de locação juntos aos autos.

            Assim, e sem necessidade de mais considerandos, também no que invoca em matéria de custas a sua alegação tem de improceder.

           

26. Não se afigura existirem outras questões relevantes suscitadas pelas partes.

 

VII - DECISÃO

 

Face ao exposto, este Tribunal Arbitral decide:

 

A) - Julgar procedente o pedido arbitral e, em consequência, declarar a ilegalidade das 21 liquidações de IUC impugnadas nos presentes autos, por padecerem do vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, anulando-se, consequentemente, os correspondentes atos tributários;

B) Julgar procedente o pedido de condenação da Administração Tributária no reembolso da quantia indevidamente paga, no montante de €2.882,23, acrescida de juros indemnizatórios à taxa legal, contados desde o dia do pagamento efetuado até ao dia do seu integral pagamento.

 

C) Condenar a Requerida nas custas do processo.

 

VALOR DO PROCESSO: Em conformidade com o disposto nos artigos 305º, nº 2 do CPC, artigo 97º - A, nº 1, alínea a), do CPPT e artigo 3º, nº 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de €2.882,23.

 

CUSTAS: Nos termos do disposto no artigo 22º, nº 4, do RJAT e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em €612,00, a cargo da Requerida.

 

 

Registe-se e notifique-se. 

 

Lisboa, 24 de novembro de 2015

 

O Árbitro singular,

 

 

 

 

 

(Maria do Rosário Anjos)



[1] Neste sentido, cfr. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Discurso Legitimador, p. 175 e seguintes.

[2] Neste sentido, vd., entre outros, os Acórdãos do STA de 05/09/2012 e 06/02/2013, respetivamente, proferidos nos processos nºs 0314/12 e 01000/12, disponíveis em www.dgsi.pt.

[3] Neste sentido, cfr. Afonso, A. Brigas e Fernandes, M. (2009) Imposto Sobre Veículos e Imposto Único de Circulação, Coimbra Editora, p. 187.

[4] No mesmo sentido, cfr. Decisões Arbitrais nºs 14/2013-T, 26/2013-T de 19 de Julho de 2013, 27/2013 –T, 217-2013-T de 28 de Fevereiro e, mais recentemente, e  293/2013-T de 9 de Junho de 2014, entre outros.

[5] Neste sentido, e a propósito do princípio da equivalência vd. a decisão arbitral nº 286/2013 – T de 2 de Maio de 2014. No mesmo sentido, vd. Decisões Arbitrais nºs 14/2013-T, 26/2013-T de 19 de Julho de 2013, 27/2013 – T, 217-2013-T de 28 de Fevereiro e, mais recentemente, e 293/2013-T de 9 de Junho de 2014, 46/204 –T e  89/2014-T de 5 de Setembro, entre outros.

[6] Neste sentido, vd, entre outros, os seguintes Acórdãos do STJ: Ac. STJ de 31.05.1966, in Proc. nº 060727 (Relator: Conselheiro Lopes Cardoso), decisão especificamente referente ao registo automóvel; Ac. STJ de 5.05.2005 (Relator: Conselheiro Araújo Barros) e Ac. STJ de 14.11.2013, in Proc. nº 74/07.3TCGMR.G1.S1(Relator: Conselheiro Serra Baptista) exímios na afirmação do predomínio do princípio da substancia sobre a forma, valendo a prova, por qualquer meio idóneo, de quem é substantivamente titular do direito de propriedade, a qual faz ilidir a presunção do registo.