Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 382/2015-T
Data da decisão: 2016-02-26  IMT Selo  
Valor do pedido: € 8.143,20
Tema: IMT e IS - Utilidade Turística.
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Decisão Arbitral

 

I. Relatório

1. A... (doravante “Requerente”), com o número de identificação fiscal (“NIF”)..., residente no..., apartamento ..., Bloco..., ..., ...-... ..., apresentou, no dia 12 de junho de 2015, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, i.e., Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), pedido de constituição de tribunal arbitral, de forma a serem declaradas ilegais as liquidações adicionais de Imposto Municipal sobre a Transmissão Onerosa de Imóveis (“IMT”) e de Imposto do Selo (“IS”), no valor total de € 8.944,99, nos termos infra expostos, sendo demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (“Requerida” ou “AT”):

Liquidação de IMT n.º..., no valor de € 8.143,20;

Liquidação de IS n.º..., no valor de € 801,79.

A) Constituição do Tribunal Arbitral

2. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico deste Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) designou como árbitro singular o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação no dia 14 de agosto de 2015.

3. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, e mediante a comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral Singular ficou constituído no dia 31 de agosto de 2015.

B) História processual

4. No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente peticionou a declaração de ilegalidade das liquidações mencionadas supra, respeitantes a um prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito na..., ... .., que se encontra inscrito sob o artigo matricial n.º..., na matriz predial urbana da freguesia e concelho de ....

 

5. A AT apresentou resposta, peticionando a improcedência do pedido de pronúncia arbitral, em primeiro lugar, por exceção, já que, no seu entendimento, i) o meio processual utilizado pela Requerente é impróprio e, bem, assim, ii) o tribunal arbitral é incompetente em razão da matéria.

6. Ademais, a Requerida solicitou que, caso o presente tribunal não sancionasse as exceções referidas supra, o pedido de pronúncia arbitral fosse ainda considerado improcedente por não se verificar qualquer vício de violação de lei, solicitando que os atos tributários em análise, por não violarem qualquer preceito legal ou constitucional, fossem mantidos.

7. Ainda no âmbito da sua resposta a AT lembrou que o presente tribunal versaria apenas sobre a liquidação de IMT, uma vez que a liquidação de IS tinha sido entretanto anulada (com comunicação à Requerente).

8. Por despacho de 8 de janeiro de 2016, o Tribunal Arbitral Singular, ao abrigo do disposto na alínea c) do artigo 16.º do RJAT, e no seguimento do pedido da AT, decidiu, sem oposição das partes, que não se mostrava necessário promover a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, em resultado da simplicidade das questões em apreço, bem como por considerar que tinha em seu poder todos os elementos necessários para tomar uma decisão clara e imparcial.

9. Decidiu igualmente, em conformidade com o n.º 2 do artigo 18.º do RJAT, não ser necessária a produção de alegações orais, por estarem perfeitamente definidas as posições das partes nos respetivos articulados, e fixou como prazo para a decisão arbitral o dia 27 de fevereiro de 2016.

10. O Tribunal foi regularmente constituído e é competente para apreciar as questões indicadas (artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT), as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade plena (artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março). Não ocorrem quaisquer nulidades pelo que nada obsta ao julgamento de mérito.

11. Encontra-se, assim, o presente processo em condições de nele ser proferida a decisão final.

II. Questão a decidir

12. A título prévio, será necessário apurar se se verificam, tal como sugere a Requerida, as duas exceções anteriormente elencadas, e que poderão impedir o presente tribunal arbitral de aferir o pedido da Requerente, nomeadamente i) a impropriedade do meio processual empregue pela mesma; e ii) a incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria para decidir sobre o pedido elaborado pela Requerente.

13. Neste sentido, caso venha a ser esse o entendimento do presente tribunal, o mesmo terá necessariamente que se abster de apreciar o respetivo pedido de pronúncia arbitral.

14. Caso contrário, entende o presente tribunal que a questão fulcral a apreciar e decidir relativamente ao mérito da causa, tal como se retira das peças processuais das partes, é a seguinte: a liquidação de IMT em análise é uma liquidação adicional, que visa corrigir uma liquidação originária, tal como defende a Requerente, ou é, alternativamente, uma liquidação originária, tal como propõe a Requerida?

 

15. Neste sentido, visa o presente tribunal aferir se, tal como alega a Requerente, o prazo para efetuar a aludida liquidação termina quatro anos após a data da liquidação que se pretende corrigir, nos termos do artigo 31.º, n.º 3 do Código do IMT, ou, alternativamente, o prazo anteriormente referido apenas finda oito anos depois de se ter verificado o facto tributário ou da isenção ter ficado sem efeito, nos termos do artigo 35.º, n.º 1 do Código do IMT, de acordo com o advogado pela Requerida.

III. Decisão da matéria de facto e sua motivação

16. Examinada a prova documental produzida, o tribunal julga provados, com relevo para a decisão da causa, os seguintes factos:

I. A Requerente adquiriu o direito de superfície de um prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na..., ... da..., que se encontra inscrito sob o artigo matricial n.º..., na matriz predial urbana da freguesia e concelho de ....

II. A Requerente tinha recebido, no dia 23 de dezembro de 2009, duas liquidações, de IMT e IS, respetivamente, devidamente ajustadas de acordo com o estatuto de utilidade turística do qual gozava o imóvel em causa, que determinavam que não era devido IMT e o IS era reduzido para um quinto do montante de outra forma devido.

III. Posteriormente, a Requerente recebeu em 2015 as liquidações mencionadas supra, em resultado da revogação da isenção que o aludido imóvel gozava, nos termos previamente referidos.

IV. A Requerida, durante o decurso do presente processo, já anulou a liquidação adicional de IS, por considerar que a mesma tinha violado o prazo de caducidade que consta da lei.

V. A Requerente, à data da interposição do pedido de constituição de tribunal arbitral, tinha já procedido ao pagamento dos montantes correspondentes às referidas liquidações no montante total de € 8.944,99.

17. A convicção do Tribunal sobre os factos dados como provados resultou dos documentos anexados aos autos e constantes do pedido e das alegações, não impugnadas, das partes, conforme se especifica nos pontos da matéria de facto acima enunciados.

18. Não existe factualidade relevante para a decisão da causa dada como não provada.

IV. Do Direito

A) Quadro jurídico

19. Tendo em consideração o tema em discussão no presente processo, importa, em primeiro lugar, elencar as normas que compõem o quadro jurídico relevante, à data da ocorrência dos factos.

20. Em primeiro lugar, e no seguimento das exceções evocadas pela Requerida, atente-se no quadro legal conexo.

21. Assim, o artigo 2.º do RJAT estabelece o âmbito da competência dos tribunais arbitrais, nos seguintes termos:

“1 - A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:

a)    a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;

b)    a declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais.

2 - Os tribunais arbitrais decidem de acordo com o direito constituído, sendo vedado o recurso à equidade”.

22. A Requerida faz ainda menção, no âmbito da sua resposta aos seguintes artigos do Código do Processo Civil,

“Artigo 278.º

1 - O juiz deve abster-se de conhecer do pedido e absolver o réu da instância:

a) Quando julgue procedente a exceção de incompetência absoluta do tribunal;

b) Quando anule todo o processo;

c) Quando entenda que alguma das partes é destituída de personalidade judiciária ou que, sendo incapaz, não está devidamente representada ou autorizada;

d) Quando considere ilegítima alguma das partes;

e) Quando julgue procedente alguma outra exceção dilatória.

2 - Cessa o disposto no número anterior quando o processo haja de ser remetido para outro tribunal e quando a falta ou a irregularidade tenha sido sanada.

3 - As exceções dilatórias só subsistem enquanto a respetiva falta ou irregularidade não for sanada, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º; ainda que subsistam, não tem lugar a absolvição da instância quando, destinando-se a tutelar o interesse de uma das partes, nenhum outro motivo obste, no momento da apreciação da exceção, a que se conheça do mérito da causa e a decisão deva ser integralmente favorável a essa parte.

 

Artigo 577.º

São dilatórias, entre outras, as exceções seguintes:

a) A incompetência, quer absoluta, quer relativa, do tribunal;

b) A nulidade de todo o processo;

c) A falta de personalidade ou de capacidade judiciária de alguma das partes;

d) A falta de autorização ou deliberação que o autor devesse obter;

e) A ilegitimidade de alguma das partes;

f) A coligação de autores ou réus, quando entre os pedidos não exista a conexão exigida no artigo 36.º;

g) A pluralidade subjetiva subsidiária, fora dos casos previstos no artigo 39.º;

h) A falta de constituição de advogado por parte do autor, nos processos a que se refere o n.º 1 do artigo 40.º, e a falta, insuficiência ou irregularidade de mandato judicial por parte do mandatário que propôs a ação;

i) A litispendência ou o caso julgado”.

23. Em paralelo, nos termos do artigo 20.º do artigo do Decreto-Lei n.º 423/83, de 5 de dezembro, são isentas de IMT, sendo o IS reduzido para um quinto, as aquisições de prédios ou de frações autónomas com destino à instalação de empreendimentos qualificados de utilidade turística, ainda que tal qualificação seja atribuída a título prévio, desde que esta se mantenha válida (…)”.

24. Estando a questão fulcral principalmente relacionada com saber se a liquidação em causa é, ou não, uma liquidação adicional, veja-se igualmente o que resulta do artigo 102.º do Código do Procedimento e do Processo Tributário (“CPPT”),

“Artigo 102.º

1 - A impugnação será apresentada no prazo de três meses contados a partir dos factos seguintes:

a) Termo do prazo para pagamento voluntário das prestações tributárias legalmente notificadas ao contribuinte;

b) Notificação dos restantes atos tributários, mesmo quando não dêem origem a qualquer liquidação;

c) Citação dos responsáveis subsidiários em processo de execução fiscal;

d) Formação da presunção de indeferimento tácito;

e) Notificação dos restantes atos que possam ser objeto de impugnação autónoma nos termos deste Código;

f) Conhecimento dos atos lesivos dos interesses legalmente protegidos não abrangidos nas alíneas anteriores.

2 - (Revogado pela alínea d) do artigo 16.º da Lei n.º 82-E/2014, de 31 de dezembro)

3 - Se o fundamento for a nulidade, a impugnação pode ser deduzida a todo o tempo.

4 - O disposto neste artigo não prejudica outros prazos especiais fixados neste Código ou noutras leis tributárias”.

25. Por último, será ainda necessário apreciar as normas relevantes do Código do IMT, nomeadamente por respeito aos prazos legalmente estabelecidos para as liquidações:

“Artigo 31.º

1 - Em caso de omissão de bens ou valores sujeitos a tributação ou havendo indícios fundados de que foram praticados ou celebrados atos ou contratos com o objetivo de diminuir a dívida de imposto ou de obter outras vantagens indevidas, são aplicáveis os poderes de correção atribuídos à administração fiscal pelo presente Código ou pelas demais leis tributárias.

2 - Quando se verificar que nas liquidações se cometeu erro de facto ou de direito, de que resultou prejuízo para o Estado, bem como nos casos em que haja lugar a avaliação, o chefe do serviço de finanças onde tenha sido efetuada a liquidação ou entregue a declaração para efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 19.º, promove a competente liquidação adicional.

3 - A liquidação só pode fazer-se até decorridos quatro anos contados da liquidação a corrigir, exceto se for por omissão de bens ou valores, caso em que poderá ainda fazer-se posteriormente, ficando ressalvado, em todos os casos, o disposto no artigo 35.º

4 - A liquidação adicional deve ser notificada ao sujeito passivo, nos termos previstos no Código de Procedimento e de Processo Tributário, a fim de efetuar o pagamento e, sendo caso disso, poder utilizar os meios de defesa aí previstos.

Artigo 35.º

1 - Só pode ser liquidado imposto nos oito anos seguintes à transmissão ou à data em que a isenção ficou sem efeito, sem prejuízo do disposto no número seguinte e, quanto ao restante, no artigo 46.º da Lei Geral Tributária.

2 - Sendo desconhecida a quota do co-herdeiro alienante, para efeitos do artigo 26.º, aos oito anos acrescerá o tempo por que o desconhecimento tiver durado.

3 - Nos atos ou contratos por documento particular autenticado, ou qualquer outro título, quando essa forma seja admitida em alternativa à escritura pública, o prazo de caducidade do imposto devido conta-se a partir da data da promoção do registo predial”.

26. Assim, é fundamentalmente no presente quadro jurídico que importa, em primeiro lugar, decidir se as exceções evocadas pela Requerida deverão prosseguir, abstendo-se o presente tribunal de apreciar o pedido da Requerente.

27. Paralelamente, e caso assim não se entenda, o presente tribunal aferirá então se a presente liquidação é uma liquidação adicional ou, alternativamente, uma liquidação originária e, em sequência, validar o respetivo prazo a considerar, para efeito da liquidação ora impugnada.

B) Argumentos das partes

28. Tendo em consideração a questão a apreciar, no âmbito do presente processo arbitral, a Requerente, no seu pedido, alega, em síntese, o seguinte:

29. “(…) ao empreendimento em que se integra a fração autónoma cujo direito de superfície foi adquirido pela ora Requerente foi atribuída utilidade turística a título prévio (…)”.

30. Nesse sentido, “a administração fiscal (…) declarou, em 23 de dezembro de 2009, ao abrigo do artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 423/83, de 5 de dezembro, a isenção do IMT e a redução do IS a um quinto (…), sobre a qual foi proferido o despacho de revogação, que deu origem à liquidação impugnada (…)”.

31. Ora, frisa a Requerente que “(…) o despacho de revogação dos benefícios fiscais reconhecidos pela liquidação de 23 de dezembro de 2009 foi proferido em 18 de fevereiro de 2015 (…)”, tendo, nesse sentido, decorrido mais de cinco anos, desde a emissão da primeira liquidação.

32. Desta forma, considera a Requerente que, nos termos do artigo 79.º da Lei Geral Tributária (“LGT”) e no artigo 138.º e seguintes do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”), “os atos administrativos válidos não são livremente revogáveis quando, como é o caso, «forem constitutivos de direitos ou de interesses legalmente protegidos» e não estejam em causa atos que tenham sido desfavoráveis aos interesses dos seus destinatários”.

33. A Requerente relembra ainda que “a mudança de entendimento entre 2009 e 2015 com que na informação e despacho acima citados se sustentou o lançamento da liquidação impugnada nem sequer permitiria invocar o prazo de quatro anos – de resto já largamente excedido – previsto no n.º 1 do citado artigo 78.º para, com base em «erro imputável aos serviços», sustentar a revisão da liquidação (…)”.

34. Por último a Requerente chama a atenção para o seguinte: “com efeito, mesmo que se considerasse que na liquidação de 23 de dezembro de 2009 se cometeu um erro de facto ou de direito – facto que repete-se não foi invocado pelo despacho que sustentou a liquidação impugnada – de que tivesse resultado prejuízo para o Estado, ainda assim, por imperativo da norma especial prevista no n.º 3 do artigo 31.º do Código do IMT (também aplicável ao IS), a liquidação adicional «só pode fazer-se até decorridos quatro anos contados da liquidação a corrigir (…)”.

35. Tendo em consideração o exposto no número anterior, a Requerente rebate o argumento deduzido pela Requerida no âmbito do despacho que fundamentou a liquidação que agora pretende impugnar, no qual se disse que a mesma (liquidação) foi realizada no prazo geral de 8 anos previsto no artigo 35.º do Código do IMT, afirmando que “a isenção de IMT (e redução de IS) não estava subordinada a qualquer condição futura nem ficou limitada a qualquer prazo para que, após a verificação dessa condição ou após o decurso do prazo, pudesse então contar-se o referido prazo de 8 anos para operar a liquidação”.

36. A Requerente termina o seu pedido solicitando, além da anulação das liquidações adicionais referidas previamente, o pagamento de juros indemnizatórios.

37. Já em sede de alegações finais, a Requerente veio ainda contestar a resposta da AT, dizendo, nomeadamente, que “a verdade é que os argumentos apresentados pela Requerida não têm qualquer consistência; com efeito, (…) basta (…) ler a petição até ao fim para concluir que o seu objeto é uma liquidação adicional de IMT (…)”, procurando, assim, reforçar os argumentos já esgrimidos em sede de petição inicial.

38. A Requerente alerta também, em sede de alegações finais, que “o SF revogou a liquidação adicional de IS por ter reconhecido que a mesma violou o prazo de caducidade para tal liquidação. Curiosamente, neste caso, não houve qualquer hesitação na invocação de uma norma que estipula o prazo de caducidade para o lançamento de liquidações adicionais e que a própria AT reconheceu que violou”.

39. Por seu turno, a Requerida, depois de devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta na qual referiu ab initio que o presente pedido versaria apenas sobre a liquidação de IMT, uma vez que a liquidação de IS anteriormente referida tinha sido “no entrementes alvo de anulação por parte da Requerida, facto que já seria do conhecimento da Requerente”.

40. De seguida, começou por considerar que “(…) a Requerente pretende enxertar uma Ação Administrativa Especial no presente pedido de pronúncia arbitral. Porém tal não é legalmente possível, pelo que o Tribunal Arbitral Singular deve abster-se de conhecer do pedido, uma vez que o meio processual utilizado pela Requerente não comporta a apreciação daquele”.

41. Ainda no âmbito das exceções, a Requerida considera também que o presente tribunal arbitral é incompetente já que “se encontra fora da jurisdição da arbitragem tributária a apreciação de quaisquer questões referentes ao reconhecimento de isenções fiscais, sob pena de violação da lei”.

42. Num outro prisma, a Requerida nada diz sobre os prazos legalmente estabelecidos para a correção de uma liquidação de IMT ou de IS, referindo apenas que “nos empreendimentos turísticos constituídos em propriedade plural, como é o caso em apreciação, destacam-se dois procedimentos distintos: o da «instalação», relativo à prática das operações necessárias a instalar o empreendimento, e um outro, o da «exploração», que compreende todas as operações necessárias à colocação do mesmo em funcionamento e à sua exploração, sendo que a venda das unidades projetas ou construídas faz, necessariamente parte do segundo”.

43. Neste sentido, para a Requerida, “a isenção de IMT só tem justificação relativamente a quem procede à instalação do empreendimento e o coloca no mercado e não em relação a todos os que o utilizam e exploram, ainda que através da compra das suas unidades”, concluindo que a liquidação em causa não padece de ilegalidade alguma, devendo, como tal, permanecer na ordem jurídica.

44. Note-se que este entendimento veio no seguimento da publicação do Acórdão n.º3/2013, de 23 de janeiro do Supremo Tribunal Administrativo.

45. Desta forma, solicitou a Requerida que a pretensão da Requerente fosse julgada improcedente, com as devidas legais consequências.

46. Já no âmbito das suas alegações finais, para além de fazer referência a algumas decisões arbitrais, nomeadamente a decisão arbitral n.º 381/2015-T, de 21 de janeiro de 2016 que apensou ao seu expediente (sobre o qual nos debruçaremos, pela sua relevância para o caso, mais adiante), a Requerida procura rebater um dos pontos levantados pela Requerente, sublinhando que “alega a Requerente (cfr. artigo 4.º) que a caducidade do direito de liquidar sempre constituiria, por si só, um vício que determina a anulação da liquidação de IMT sub judice. Mais uma vez a Requerente está desprovida de razão.

Tal como se encontra documentalmente comprovado no Processo Administrativo, o documento n.º..., de 2009-12-23, no valor de € 0,00 (zero Euros e zero cêntimos), não constitui qualquer liquidação originária. Aliás, basta atentar para o seu valor monetário para se constatar isso mesmo…O referido documento constitui, sim, a notificação da (agora constatada indevida) atribuição do benefício fiscal aqui controvertido.

Como, aliás, dele consta, ao referir, clara e expressamente, o seguinte:

«Benefícios: 33 – Utilidade Turística (Artº 20º do D.L. 423/83), 100% sobre a matéria coletável»

Daqui resulta que o normativo a aplicar não é o propalado no n.º 3 do artigo 31.º do CIMT, que estabelece um prazo de caducidade de 4 anos – uma vez que, como foi dito, o documento n.º ..., de 2009-12-23, não consubstancia uma liquidação originária…Mas sim o n.º 1 do artigo 35.º do CIMT, que estabelece um prazo de caducidade 8 anos.

Pois bem, considerando que o facto tributário ocorreu a 2010-01-05 e que a liquidação ora colocada em crise pela Requerente foi emitida a 2015-01-07, forçoso é concluir que foi plenamente observado o prazo de 8 anos plasmado no citado no n.º 1 artigo 35.º do CIMT”.

C) Apreciação do tribunal

47. Antes de se debruçar sobre a questão propriamente dita, o presente tribunal irá analisar as exceções levantadas pela Requerida no âmbito do presente processo.

48. Tal como anteriormente se disse, a AT defende, por um lado, que a Requerente deveria ter recorrido, para efeito do presente tema, à ação administrativa especial já que o objetivo desta é “que o Tribunal Arbitral profira uma decisão no sentido do reconhecimento da isenção de IMT de que se arroga merecer”.

49. Com efeito, “à luz desta pretensão é a Ação Administrativa Especial que configura o meio processual adequado para efetuar a apreciação da matéria (pois que aquela constitui o meio de reação destinado a apreciar atos em matéria tributária (…) e não o pedido de pronúncia arbitral (pois que este constitui um dos meios de reação destinados a apreciar atos tributários…)”.

50. Defendendo, assim, que “o Tribunal Arbitral Singular deve abster-se de conhecer do pedido, uma vez que o meio processual utilizado pela Requerente não comporta a apreciação daquele. A impropriedade do meio processual consubstancia uma exceção dilatória que obsta ao prosseguimento do processo, conducente à absolvição da instância quanto à pretensão em causa (…)”.

51. Antes de abordar a exceção seguinte, o presente tribunal relembra que é do âmbito da sua competência, nos termos do artigo 2.º do RJAT, apreciar “a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta”.

52. Neste sentido, estando perante um pedido de pronúncia arbitral que visa especificamente a declaração de ilegalidade de um ato de liquidação de tributos, neste caso a liquidação n.º..., não consegue entender o presente tribunal porque motivo seria incompetente para analisar o tema.

53. De facto, não parece razoável assumir, com base num eventual erro de forma da Requerente, que o presente pedido não cai no âmbito das competências deste tribunal.

54. Só a título de exemplo, atente-se no final da petição inicial da Requerente: “nestes termos e nos que doutamente serão supridos deve a presente impugnação ser julgada procedente, por provada, determinando-se a anulação da liquidação adicional de IMT e IS (…)”, a qual demonstra, de forma expressa, o ato que a Requerente visa impugnar.

55. Por forma a reforçar o entendimento do presente tribunal, atente-se na decisão arbitral
n.º 381/2015-T, de 26 de janeiro, recentemente publicada e apensada ao processo pela Requerida, que se pronunciou sobre a exceção aferida supra, a qual aplaudimos e, iremos, pela proximidade com o tema analisado, seguir de perto ao longo da presente decisão.

56. “Dito isto e entrando na análise processual da questão aprecianda, temos que decorre do disposto na alínea p) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT, na parte que aqui importa considerar, que a ação administrativa especial é o meio processual adequado quando o ato a impugnar seja o de indeferimento total ou parcial ou de revogação de isenções ou outros benefícios fiscais, quando dependentes de reconhecimento da administração tributária.

É, assim, inequívoco que o legislador apenas incluiu no âmbito da remissão para a ação administrativa especial a impugnação dos benefícios fiscais dependentes de reconhecimento, deixando, pois, de fora os benefícios fiscais automáticos.

Perscrutando a ratio legis dessa norma legal, Nuno Cerdeira Ribeiro (O Controlo Jurisdicional dos Atos da Administração Tributária, Coimbra, Almedina, 2014, p. 213) avança que a mesma poderá residir, desde logo, no facto de muitas vezes os benefícios fiscais automáticos serem «considerados num procedimento mais lato de liquidação, que desemboca na emanação de um ato tributário stricto sensu»; uma vez que então «o benefício fiscal se insere no procedimento de liquidação, o ato aqui impugnável será este último, através do processo de impugnação judicial, e é nessa sede que o contribuinte pode atacar a legalidade da liquidação tendo por base a desconsideração ou a errada consideração do benefício em causa, o que vicia o ato final».

Aderindo inteiramente a este entendimento doutrinal e aplicando-o ao caso concreto, que nele se enquadra perfeitamente, consideramos que o presente processo é o meio processual adequado para apreciar a pretensão deduzida pela Requerente, nos termos do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, na medida em que se consubstancia na declaração de ilegalidade e consequente anulação da referenciada liquidação de IMT (com fundamento na revogação ilegal de uma isenção e na caducidade do direito de liquidar).

Nestes termos, sem necessidade de outras considerações, é julgada improcedente a exceção de erro na forma de processo”.

57. De seguida, vejamos a segunda exceção levantada pela Requerida, que diz respeito ao facto de se encontrar “fora da jurisdição da arbitragem tributária a apreciação de quaisquer questões referentes ao reconhecimento de isenções fiscais, sob pena de violação da lei”.

58. Ora, no caso em concreto, e tal como já anteriormente se disse, o desafio do presente tribunal não se prende com analisar qualquer tema relacionado com benefícios fiscais. Com efeito, atentando no previamente referido, estamos perante uma liquidação emitida pela AT, a qual cumpre somente apreciar se é uma liquidação adicional ou originária.

59. Tendo em consideração o exposto, e não sendo aceites as pretensões levantadas pela Requerida, a título de exceção, importa agora analisar a questão propriamente dita.

60. Em primeiro lugar, importa confrontar o entendimento preconizado pela Requerente, no âmbito do seu pedido inicial, quando diz que a liquidação de IMT é ilegal por implicar a revogação de um ato administrativo de concessão de benefícios fiscais.

61. Para o efeito, socorrer-nos-emos, uma vez mais, da decisão arbitral citada supra.

“A Requerente alega que o ato de liquidação de IMT impugnado é ilegal porquanto o mesmo pressupõe a revogação de ato administrativo de concessão de um benefício fiscal, o que, segundo o seu entendimento, viola o disposto nos artigos 140.º e 141.º do CPA (versão anterior à publicação do Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro), designadamente quanto ao prazo para a revogação do ato.

Como acima já se deixou explicitado, o benefício fiscal em causa nestes autos – isenção de IMT para as aquisições de prédios ou de frações autónomas com destino à instalação de empreendimentos qualificados de utilidade turística –, uma vez que resulta direta e imediatamente da lei, é de aplicação automática, desde que estejam verificadas as condições previstas no n.º 1 do artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 423/83, de 5 de dezembro.

Por isso, a eficácia desse benefício fiscal não está dependente de qualquer ato administrativo de reconhecimento, suscetível de revogação nos termos e prazos previstos nas normas legais citadas pela Requerente.

Nestes termos, improcede a arguida revogação ilegal de um ato administrativo de reconhecimento de benefícios fiscais”.

62. Em paralelo, recorde-se que os argumentos vertidos por Requerente e Requerida se resumiram, no fim de contas, ao facto da liquidação em causa ser, ou não, uma liquidação adicional.

63. Parece pacífico que a Requerente aceitou, pelo menos nenhuma parte da sua exposição sugere o contrário, que gozou de um benefício fiscal erroneamente concedido.

64. Com efeito, esta (Requerente) estrutura a sua argumentação no sentido de considerar que a revogação do benefício fiscal, e subsequente liquidação de IMT, apesar de conceptualmente válida, não poderá ser feita por uma questão relacionada com prazos.

65. Isto porque, no entendimento da mesma estamos perante uma liquidação adicional, com vista a corrigir uma primeira liquidação, enquadrando-a no âmbito do artigo 31.º, 3.º do Código do IMT, para efeito da contagem do prazo para emitir a mesma.

66. Por seu turno, a Requerida, ao defender que a liquidação emitida é uma liquidação originária, entende que o prazo legal para a emissão da liquidação são oito anos, de acordo com o que decorre do artigo 35.º, n.º 1 do Código do IMT.

67. Importa assim, ab initio, referir que, aos olhos do presente tribunal, a liquidação impugnada não é uma liquidação adicional, na medida em que o ato tributário que visa corrigir não liquidou qualquer tributo.

68. Destarte, e não obstante a Requerida, na liquidação que enviou, após concluir que a isenção afinal não era aplicável, ter incluído a seguinte nota: “desta forma fica sem efeito a liquidação de IMT n.º .../2009”, o facto é que não se poderá considerar aquele ato, como um ato de liquidação de imposto.

69. Note-se que o ato em causa é, sem margem para dúvidas, um ato tributário. Todavia, o mesmo não poderá ser classificado, para efeito da presente discussão, um ato de liquidação de tributo, que leve a enquadrar a liquidação impugnada como liquidação adicional.

70. O artigo 102.º do CPPT, trazido à discussão pela Requerente, estabelece, na alínea b) do seu n.º 2 a possibilidade de impugnar outros atos tributários, “mesmo quando não dêem origem a qualquer liquidação”.

71. Ora, sendo claro que um ato de liquidação de tributo é um ato tributário, o contrário já não é necessariamente verdade.

72. Desta forma, não podendo o ato referido supra ser qualificado como uma liquidação adicional, não será possível considerar o prazo previsto no artigo 31.º, n.º 3 do IMT, tal como advoga a Requerente.

73. Findo este ponto, importa agora validar se o IMT poderia ter sido liquidado, nos termos do artigo 35.º, n.º 1 do Código do IMT.

74. Nas palavras de J. Silvério Mateus e L. Corvelo de Freitas[1], “(…) foi consagrado para o IMT um prazo de caducidade diverso do prazo geral previsto no n.º 1 do artigo 45.º da LGT. Este prazo especial eleva-se para oito anos, ou seja, para o dobro do prazo geral de caducidade fixado naquela lei. Tratando-se de um imposto de obrigação única, a contagem do prazo de caducidade do direito à liquidação inicia-se a partir da data em que ocorreu o facto tributário (…) que, nos termos do n.º 2 do artigo 5.º, é aquela em que, de acordo com as disposições dos artigos 2.º e 4.º, ocorra transmissão (…)”.

75. No caso em concreto, o facto tributário gerador de imposto deu-se com a aquisição do imóvel, a 5 de janeiro de 2010.

76. Neste sentido, tendo a liquidação contestada a data de 17 de março de 2015, a mesma é tempestativa, não sendo, assim, de proceder o pedido da Requerente.

77. Por último, cumpre fazer uma última nota, por respeito à liquidação de IS que foi anulada.

78. Com efeito, em 2009 já se tinha procedido à liquidação de IS, ainda que parcial (um quinto do valor devido), podendo-se, nesse caso em específico, dizer que estávamos, já à data, perante um ato de liquidação de tributos (ainda que reduzido, houve um valor liquidado).

79. Ora, ao estarmos perante um ato de liquidação originária (em 2009), a liquidação posteriormente realizada (em 2015) assume, naturalmente, o cariz de liquidação adicional, tendo então que ser realizada dentro do espaço temporal imposto pelo artigo 31.º, n.º 3 do Código do IMT.

80. Desta forma, não o tendo sido, a Requerida não tinha outra hipótese se não anular proactivamente a mesma (sob pena de ser declarada ilegal no presente tribunal).

81. Em suma, e voltando ao tema inicialmente em discussão (liquidação do IMT), tendo a transmissão sido verificada há menos de oito anos, preenchendo o requisito exigido pelo artigo 35.º, n.º 1 do Código do IMT, a presente liquidação deverá proceder, não estando ferida de qualquer ilegalidade.

V. Decisão

82. Termos em que este Tribunal Arbitral decide:

A) Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, declarar legal a liquidação de IMT supra mencionada, da qual resultou imposto a pagar no montante de
€ 8.143,20, valor que, segundo entendemos, já foi liquidado;

B) Condenar a Requerente nas custas do processo.

 

VI. Valor do processo

83. Fixa-se o valor do processo em € 8.143,20 (corrigido do montante correspondente à liquidação de IS entretanto anulada), nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, al. a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).

VII. Custas

84. De harmonia com o disposto no artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 918, nos termos da Tabela I do mencionado Regulamento, a cargo da Requerente, dada a improcedência total do pedido.

Notifique-se.

Lisboa, CAAD, 26 de fevereiro de 2016

O Árbitro

 

 

 

 

 

 (Sérgio Santos Pereira)

 



[1] Vide Os Impostos sobre o Património Imobiliário e o Imposto do Selo, páginas 485 e 486, de J. Silvério Mateus e L. Corvelo de Freitas.