Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 437/2015-T
Data da decisão: 2016-02-09  IUC  
Valor do pedido: € 1.247,48
Tema: IUC – Incidência subjetiva
Versão em PDF


 

 

Decisão Arbitral

 

 

 

I. Relatório

 

1. A…, Ld.ª, pessoa colectiva n.º…, com sede na Rua …, n.º…, …-… …, Soure, requereu a constituição do tribunal arbitral em matéria tributária suscitando pedido de pronúncia arbitral contra os actos de liquidação de Imposto Único de Circulação (IUC), acrescido de juros compensatórios, relativos aos períodos de tributação de 2013 e 2014 e ao veículo automóvel com o número de matrícula …-…-…, no montante global de € 1.247,48.

 

2. Como fundamento do pedido, apresentado em 14 de julho de 2015, a Requerente alega, em síntese, que o veículo em causa já não se encontrava na sua posse nos períodos a que respeitam as questionadas liquidações dado o mesmo ter sido transmitido a terceiro por contrato de compra e venda celebrado em 30 de setembro de 2004.

 

3. Em resposta ao solicitado, a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) pronunciou-se no sentido da improcedência do presente pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se na ordem jurídica os actos tributários impugnados e, em conformidade, pela absolvição da entidade requerida, invocando, porém, a sua intempestividade, como excepção dilatória, impeditiva do conhecimento do mérito do pedido.

 

4. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Sr. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 15 de julho de 2015.

 

5. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação em 31 de agosto de 2015.

 

6. Devidamente notificadas dessa designação, as partes não manifestaram vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

7. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 15 de Setembro de 2015.

 

8. Regularmente constituído o tribunal arbitral é materialmente competente, face ao preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.

 

9. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22/03).

 

10. Atento o conhecimento que decorre das peças processuais - designadamente do processo administrativo, exemplarmente instruído - que se julga suficiente, o Tribunal decidiu dispensar a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT.

 

 

 

 

 

II. Matéria de facto

 

11. Com relevância para a apreciação das questões suscitadas, destacam-se os seguintes elementos factuais, que, com base na prova documental junta aos autos, se consideram provados:

 

11.1. Em 24 de setembro de 2014, por falta de pagamento atempado do IUC relativo aos períodos de tributação de 2013 e 2014 e veículo automóvel com a matrícula …-…-…, foram emitidas, pelos serviços competentes da Autoridade Tributária e Aduaneira as liquidações oficiosas n.º … e …, a que correspondem os documentos de cobrança n.º 2013 … e 2014 …, respectivamente.

 

11.2. Devidamente notificadas à Requerente, as referidas liquidações, cujo montante global é de € 1.247,48, tinham como prazo limite para o seu pagamento voluntário, o dia 31 de outubro de 2014.

 

11.3. Discordando das liquidações que lhe foram notificadas, a Requerente, em 31de outubro de 2014, delas reclamou graciosamente, ao abrigo do artigo 68.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

 

11.4. Como fundamento das reclamações apresentadas, a Requerente alega, no essencial, que à data da exigibilidade do imposto liquidado o veículo a que o mesmo respeita já não era sua propriedade, porquanto havia sido objecto de transmissão, por contrato de compra e venda, celebrado em 30 de setembro de 2004, facto que comprova com apresentação de cópia da respectiva factura.

 

11.5. Por despachos de 10 de novembro de 2014, do chefe do Serviço de Finanças competente, as reclamações foram indeferidas na totalidade, com o fundamento de que de acordo com a informação residente nas Conservatórias do Registo Automóvel o veículo em causa, matriculado em 25 de junho de 1990, se encontrava registado em nome da reclamante desde 30 de Julho de 2004, mantendo essa situação até ao dia 16 de outubro de 2014, data em que foi cancelada a respectiva matrícula. Pelo que, consequentemente, era ela reclamante o sujeito passivo da obrigação de imposto à data da exigibilidade do imposto com referência aos períodos de 2013 e de 2014.

 

11.6. Das decisões de indeferimento das reclamações graciosas a ora Requerente interpôs recursos hierárquicos que, por despachos de 31 de Março de 2015, vieram também a ser objecto de indeferimento, sendo as decisões notificadas à mandatária da Requerente em 15 de Abril de 2015, através do ofício n.º…, da Direcção de Finanças de… .

 

11.7. O indeferimento dos aludidos recursos hierárquicos fundamenta-se, tal como as decisões recorridas, na circunstância de a Requerente figurar no Registo Automóvel como proprietária do veículo em causa no momento da exigibilidade do imposto, admitindo, porém que a presunção derivada do registo seria ilidível, nos seguintes termos: " O registo não deixa de constituir uma presunção de que o direito registado existe e pertence ao titular inscrito (...), sendo essa presunção ilidível mediante prova em contrário.

Contudo, a elisão de tal presunção deve ser efectuada em sede própria. O mesmo é dizer, no caso concreto, que a presunção pode ser ilidida no âmbito registral, com os consequentes reflexos a jusante, nomeadamente no domínio tributário. "

Não tendo sido elidada a presunção, nos referidos, termos, as decisões de indeferimento dos recursos confirmam as liquidações recorridas considerando "que se encontram verificados todos os elementos de que depende a liquidação sindicada (...), não enfermando a mesma de qualquer incorrecção (...)"

 

12. Não existem factos relevantes para a decisão de mérito que não se tenham provado.

 

 

 

III. Cumulação de pedidos

 

13. O presente pedido de pronúncia arbitral reporta-se a diversas liquidações de IUC. Todavia, atendendo à identidade dos factos tributários, do tribunal competente para a decisão e dos fundamentos de facto e de direito invocados, o tribunal considera que nada obsta, face ao disposto nos arts. 3.º do RJAT e 104.º do CPPT, à cumulação de pedidos.

 

IV. Matéria de direito

 

14. No pedido de pronúncia arbitral a Requerente submete à apreciação deste tribunal a legalidade dos actos de liquidação de IUC, relativos aos períodos de 2013 e 2014 e ao veículo com a matrícula …-…-…, invocando a circunstância de, à data a que se reportam os factos tributários que os originaram, o veículo a que respeitam ter sido já objecto de transmissão para terceiro, pelo que, consequentemente, não assume a qualidade de sujeito passivo do imposto que lhe foi liquidado.

 

15. Está, pois, em causa determinar se a Requerente deve ou não ser considerada sujeito passivo de IUC quanto ao veículo e períodos a que o tributo respeita, considerando que o mesmo, muito embora continuasse então registado em seu nome, havia já sido objecto de transmissão por contrato de compra e venda.

 

16. Relativamente a esta matéria, dispõe o artigo 3.º do CIUC, nos seus números 1 e 2, que: "1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados."

 

17. Segundo entendimento da Requerida, a referida norma não comporta qualquer presunção legal, considerando que "o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se considerem como tais (como proprietários ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas) as pessoas em nome das quais os mesmos (os veículos) se encontrem registados..."

 

18. Por seu lado, sustenta a Requerente que aquela norma consagra uma presunção legal, ilidível nos termos gerais e, em especial, por força do disposto no artigo 73.º da Lei Geral Tributária segundo o qual as presunções de incidência tributária admitem sempre prova em contrário.

 

19. Esta matéria tem vindo a ser objecto de numerosas decisões no âmbito dos tribunais arbitrais a funcionar no CAAD, em geral no sentido da procedência dos respectivos pedidos, com o fundamento de que a norma em causa encerra uma presunção legal que admite prova em contrário [i].

 

20. Aderindo sem reservas à posição acima referida, dispensa-se, por desnecessária e fastidiosa, a reprodução da respectiva fundamentação, porquanto no presente processo nada de novo se adianta nessa matéria.

 

Da excepção dilatória

 

21. Sintetizados os elementos factuais relevantes bem como as posições que, em matéria de interpretação do direito aplicável, vêm sustentadas pelas Partes, importa, antes de mais, analisar e decidir a excepção invocada pela Requerida.

 

22. Segundo alega a Requerida, o objecto do pedido são as liquidações de IUC relativas aos períodos de 2013 e de 2014 e ao veículo com a matrícula …-…-…, ou seja, a Requerente " peticiona que o Tribunal se digne apreciar a legalidade dos actos de liquidação de IUC identificados no processo."

 

23. No entanto, prossegue a Requerida, "nos termos do pedido de Constituição do Tribunal Arbitral em análise, o objecto imediato do processo deveria ser o indeferimento dos recursos hierárquicos...

Não obstante, do teor do pedido formulado verifica-se que os actos tributários sindicados e que são de facto objecto do pedido de pronúncia arbitral não são o de indeferimento dos recursos hierárquicos (...) mas sim, como refere a Requerente, os actos de liquidação de IUC relativos aos anos de 2013 e 2014, respeitante ao veículo …-…-… ."

 

24. Assim, "nos termos do disposto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, pretendendo a Requerente reagir dos actos de liquidação oficiosa, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral deveria ter sido apresentado no prazo de 90 dias a contar do termo do prazo para pagamento voluntário..."

 

25. Nestes termos, constando das notas de liquidação como data limite do pagamento o dia 31 de outubro de 2014 e tendo a Requerente apresentado o pedido de constituição do Tribunal Arbitral em 14 de julho de 2015, havia sido já ultrapassado o prazo legalmente definido para a impugnação em sede arbitral dos actos de liquidação em causa. Pelo que "não tendo sido pedida a apreciação da legalidade do acto de segundo grau não existe o apoio que poderia defender a tempestividade do pedido e consequentemente a possibilidade do Tribunal arbitral apreciar o mesmo relativamente aos actos de liquidação que a Requerente pretende sindicar."

 

26. Com os fundamentos, que acima se sintetizam, conclui a Requerida que "resultando clara e inequivocamente do pedido de pronúncia arbitral, a impugnação directa dos actos tributários acima referidos, deve o pedido formulado (conducente à anulação dos actos de liquidação) ser declarado improcedente, por intempestivo, porquanto a caducidade do direito de acção consubstancia uma excepção dilatória impeditiva do conhecimento do mérito da causa, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 576.º do CPC (ex vi alínea e) do artigo 2.º do CPPT e alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, o que desde já se requer."

 

27. Considera, pois, a Autoridade Tributária e Aduaneira que a Requerente define como objecto do pedido de pronúncia arbitral os actos de liquidação de IUC e juros compensatórios cujo prazo de pagamento voluntário terminou em 31 de outubro de 2014, tendo o pedido sido apresentado em 14 de julho de 2015. Entregue já depois de decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 10.º, do RJAT, seria o mesmo manifestamente intempestivo.

 

28. Não se acompanha tal entendimento. Com efeito, resulta com clareza da citada norma que, nas situações, como a que se evidencia no presente processo, em que tenha havido reclamação graciosa e ou recurso hierárquico, o prazo para apresentar pedido de pronúncia arbitral conta-se da notificação da decisão naqueles proferida.

 

29. Salienta-se que esta matéria tem vindo a ser objecto de diversas decisões arbitrais, recordando-se, a este propósito a Decisão Arbitral proferida no Processo 419/2014-T, de que se transcreve:

 

" Como decorre da competência atribuída aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD para apreciar a legalidade de actos de liquidação, e não de decisões de indeferimento de recursos hierárquicos ou reclamações graciosas, quando há lugar a impugnação administrativa de actos de liquidação, estes actos de liquidação são sempre impugnáveis em prazo a contar da notificação da decisão de indeferimento, pois o artigo 10.º, n.º 1, indica-os como termos iniciais. Por isso, o requerente da arbitragem não tem que impugnar os actos de segundo ou terceiro grau e, mesmo quando impugna estes, considera-se que o objecto do processo arbitral é sempre o objecto mediato que constituem os actos de liquidação mantidos por actos de segundo ou terceiro grau sempre que o Requerente não impute a estes vícios próprios. Mas, obviamente, se o requerente da arbitragem apenas pretende ver declarada a ilegalidade de actos de liquidação, que são os que, sendo susceptíveis de execução coerciva, afectam a sua esfera jurídica, não tem que impugnar os actos de segundo ou terceiro grau, que carecem de lesividade autónoma.

 De resto, uma hipotética deficiência na formulação do pedido não teria como corolário a absolvição da instância, apenas dando lugar, se necessário, mas sempre que necessário, a uma correcção, como impõe a alínea c) do n.º 1 do artigo 18.º do RJAT, em sintonia com o direito constitucional à impugnação contenciosa de todos os actos da Administração que lesem os direitos dos contribuintes (artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da CRP)."

 

30. No mesmo sentido, pode ler-se, em Decisão Arbitral, de 27 de outubro de 2015, no Processo 124/2015-T:

" Estamos uma vez mais naquele caso em que parece confundir-se o âmbito material da arbitragem (artigo 2º, do RJAT) com a data a partir da qual o pedido de pronúncia arbitral pode ser interposto (artigo 10º, do RJAT) e também e mais uma vez, se trata aqui da abordagem da questão da recorribilidade, por intermédio da arbitragem, dos actos de segundo ou de terceiro graus. A problemática dos actos de segundo e terceiro graus na arbitragem tributária prende-se, ao que se julga, com pelo menos duas questões distintas: uma primeira, a de saber se tendo sido intentado um meio gracioso administrativo, o objecto do processo arbitral será a decisão que venha a ser proferida pela Administração Tributária – em sede de reclamação graciosa, de recurso hierárquico ou de pedido de revisão oficiosa – ou, pelo contrário, o acto de liquidação, de autoliquidação, de retenção na fonte ou de pagamento por conta; uma segunda, que interliga questões de competência e questões de prazo, e que é a de saber se o tribunal terá competência – e, se sim, em que medida – para apreciar um acto de primeiro grau quando o pedido seja apresentado na decorrência de um indeferimento tácito de reclamação graciosa, recurso hierárquico ou pedido de revisão oficiosa previamente apresentados.

 No que respeita à primeira questão, já no âmbito da impugnação judicial, era discutível se, perante uma decisão expressa de reclamação graciosa, de recurso hierárquico ou de pedido de revisão oficiosa, o contribuinte impugnava directamente o acto de liquidação anteriormente reclamado, recorrido ou revisto (o acto de primeiro grau) ou a própria decisão (de indeferimento) de reclamação, de recurso ou de pedido de revisão oficiosa que, por sua vez, apreciou a (i)legalidade do acto impugnado - o acto de segundo grau. O Supremo Tribunal Administrativo (STA) veio pronunciar-se sobre a questão, em acórdão datado de 18 de Maio de 2011, proferido no âmbito do processo n.º 0156/11[1], admitindo que“(…) o objecto real da impugnação é o acto de liquidação e não o acto que decidiu a reclamação, pelo que são os vícios daquela e não deste despacho que estão verdadeiramente em crise(…).”

 “(…) a impugnação não está, por isso, limitada pelos fundamentos invocados na reclamação graciosa, podendo ter como fundamento qualquer ilegalidade do acto tributário.(…)”

 Esta é a primeira questão que deve ficar clara: o objecto do processo arbitral é o acto de liquidação de IRS.

Questão diferente desta é a de saber se o pedido de pronúncia arbitral foi apresentado dentro do prazo. Aqui entende o Tribunal que o legislador arbitral foi claro ao compartimentar questões de competência e questões de prazos.

Assim é que quanto à competência ou âmbito material em que o objecto da arbitragem é, como se concluiu, a apreciação da ilegalidade dos actos de liquidação IRS.

Quanto ao prazo, o contribuinte pode recorrer à arbitragem logo aquando da notificação dos actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta ou, tendo recorrido à via administrativa, após a notificação da decisão de indeferimento ou da formação do indeferimento tácito. Esta resposta encontra-se, por seu turno, no artigo 10.º. Desta norma não se deve porém retirar a competência para apreciação directa dos actos de segundo grau. Esta é uma norma que respeita única e exclusivamente ao dies a quo do prazo para apresentação do pedido de pronúncia arbitral. É uma norma que respeita portanto ao momento a partir do qual se inicia a contagem do prazo para solicitar o pedido de constituição do tribunal arbitral.

Com efeito, o artigo 2.º, n.º 1, alínea a), determina que os tribunais arbitrais têm competência para apreciar “a declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta”. Não há, pois, qualquer referência aos actos de indeferimento de reclamação graciosa, de recurso hierárquico ou de pedido de revisão oficiosa, i.e., não se menciona a arbitrabilidade de decisões de indeferimento, expresso ou tácito, das vias administrativas prévias utilizadas. Não há nem tinha que haver.

Entende-se a este propósito que os actos de segundo ou terceiro graus poderão sempre ser arbitráveis, na medida em que comportem, e só nesta medida, eles próprios, a (i)legalidade dos actos de liquidação em causa. Na base deste entendimento estará para parte da Doutrina uma interpretação teleológica, designadamente por a alínea a) do n.º 1, do artigo 10.º referir expressamente a “decisão de recurso hierárquico” e está também, ao que se julga, o facto de o acto de segundo ou de terceiro grau estar a apreciar o acto de liquidação, autoliquidação, retenção na fonte ou pagamento por conta objecto da arbitragem.

Defende-se aqui, por conseguinte, uma interpretação segundo a qual não são arbitráveis os vícios próprios dos actos de indeferimento de reclamações graciosas, de recursos hierárquicos ou de pedidos de revisão do acto tributário porque escapam ao âmbito material da arbitragem tributária. Por outras palavras, esses actos de indeferimento só poderão ser “trazidos” para a jurisdição arbitral, na estrita condição de terem, eles próprios, apreciado a (i)legalidade do acto tributário que o sujeito passivo, verdadeira e efectivamente, pretende impugnar pela via arbitral.

Neste sentido, veja-se a decisão arbitral proferida no âmbito do processo n.º 272/2014-T]:

“65 - O indeferimento de reclamação graciosa corporiza, no quadro da impugnação judicial, o caso previsto no n.º 2 do art.º 102.º do CPPT, colocando-se a questão de saber se, face às competências legalmente cometidas aos tribunais arbitrais, os mesmos serão competentes para, em quaisquer circunstâncias, apreciarem os actos de indeferimento de reclamações graciosas.

66 - Estando a competência dos tribunais arbitrais, que funcionam junto do CAAD, circunscrita e limitada, como já atrás se referiu, à declaração de ilegalidade dos actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta, a apreciação dos actos de indeferimento de reclamações graciosas, por parte dos referidos tribunais, há-de estar condicionada ao efectivo conhecimento que tais actos tiveram da legalidade dos actos de liquidação com que estão relacionados.

67 - A decisão de indeferimento da reclamação graciosa, proferida nas atrás mencionadas circunstâncias, reafirma a legalidade do acto de liquidação em causa e volta a confirmá-lo, tal como inicialmente fora configurado.

68 - O indeferimento da reclamação graciosa, é um acto lesivo susceptível de impugnação por parte do interessado, o qual, na medida em que procede à reafirmação do acto primário de liquidação subjacente e do qual é indissociável, não pode deixar de ter a sua apreciação cometida aos tribunais arbitrais, que, como já se referiu, têm as suas competências fundamentalmente centradas na declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos.””

 

31. Acompanhando-se a posição expressa nas decisões arbitrais nos segmentos que acima se transcrevem, a que sem reservas se adere, constata-se, no presente caso, que as notificações das decisões de indeferimento dos recursos hierárquicos ocorreram em 16 e 20 de abril de 2015 e o pedido de pronúncia arbitral foi apresentado 14 de julho seguinte, portanto dentro do prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, do RJAT.

 

32. Nestes termos, considera-se improcedente a excepção invocada pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Do mérito do pedido

 

33. Concluindo-se, na esteira da orientação que invariavelmente vem sendo seguida pela jurisprudência arbitral, que a norma de incidência subjectiva do IUC consagra uma presunção ilidível, importa analisar-se a documentação oferecida pela Requerente no sentido de se saber se a mesma constitui, ou não, prova bastante para a sua elisão.

 

34. Como acima referido, em sede de matéria factual, na situação a que se refere o presente pedido, está em causa a tributação, em IUC, de uma viatura automóvel que, à data da exigibilidade do tributo, seria já propriedade de terceiro, transaccionada por contrato de compra e venda celebrado com a Requerente.

 

35. Relativamente à situação referida é apresentada, como elemento de prova, cópia da factura que titulou a transacção: identificada com o n.º … e emitida em 30 de setembro de 2004, dela consta respeitar à "venda de viatura com a matrícula …-…-… sinistrada para sucata".

 

Da elisão da presunção

 

36. As presunções de incidência tributária podem ser ilididas através do procedimento contraditório próprio previsto no artigo 64.º do CPPT ou, em alternativa, pela via de reclamação graciosa ou de impugnação judicial dos actos tributários que nelas se baseiem.

 

37. No presente caso, a Requerente não utilizou aquele procedimento específico, pelo que o presente pedido de decisão arbitral é meio próprio para ilidir a presunção de incidência subjectiva do IUC que suporta as liquidações tributárias cuja anulação constitui objecto do pedido, pois que se trata de matéria que se situa no âmbito da competência material deste tribunal arbitral (arts. 2.º e 4.º do RJAT).

 

38. Figurando a Requerente no Registo Automóvel como proprietária do veículo identificado no pedido nos períodos de tributação a que as questionadas liquidações respeitam e tendo o veículo em causa, na data da exigibilidade do imposto, passado já para a propriedade de terceiro, por contrato de compra e venda, resta avaliar-se a prova apresentada, no sentido de se determinar se é a mesma bastante para ilidir a presunção estabelecida no n.º 1 do artigo 3.º do mesmo Código.

 

39. Para elisão da referida presunção, derivada da inscrição do registo automóvel, a requerente oferece cópia da factura de venda emitida em data anterior à da exigibilidade do imposto relativo aos períodos de tributação a que as liquidações respeitam.

 

Da elisão da presunção com base nas facturas comerciais

 

40. Pronunciando-se sobre a prova documental apresentada, alega a Requerida que a factura junta aos autos não constituem documentos idóneos a efectuar a prova pretendida no sentido de não ser a Requerente proprietária dos veículos nos períodos de tributação a que se reportam as liquidações em causa.

 

42. Nesse sentido, sustenta a Requerida que "As facturas não são aptas a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda, pois tais documentos não revelam por si só uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade (i.e, a aceitação) por parte dos pretensos adquirentes."

 

43. Acresce, segundo a Requerida, que a Requerente "não juntou prova documental do recebimento do preço quando podia e devia tê-lo feito", concluindo que " forçoso é concluir que tais documentos jamais podem beneficiar da presunção de verdade a que alude o artigo 75.º da LGT."

 

44. Está, pois, em causa, saber se as facturas que titulam transacções comerciais constituem elemento de prova para elisão da presunção constante do artigo 3.º do CIUC e, se assim se admitir, se a cópia da factura apresentada pela Requerente constitui prova bastante para o efeito.

 

45. Para tanto, importa ter-se presente que, na situação em análise, se está perante um contrato de compra e venda que, relativo a coisa móvel e não estando sujeito a qualquer formalismo especial (C. Civil, art. 219.º), opera a correspondente transferência de direitos reais (C. Civil, art. 408.º, n.º 1).

 

46. Tratando-se de contratos que envolvem a transmissão da propriedade de bens móveis, mediante o pagamento de um preço, têm aqueles, como efeitos essenciais, entre outros, o de entregar a coisa (C. Civil, arts. 874.º e 879.º).

 

47. No entanto, estando em causa um contrato de compra e venda que tem por objecto um veículo automóvel, em que o registo é obrigatório, o seu cumprimento pontual pressupõe a emissão da declaração de venda necessária à inscrição no registo da corresponde aquisição a favor do comprador, conforme vem sendo entendido pela jurisprudência dos tribunais superiores.[ii] Tal declaração, relevante para efeitos de registo, poderá constituir prova da transacção, mas não constitui o único ou exclusivo meio de prova da transacção. 

 

48. Para efeitos registrais, também não é exigível qualquer formalismo especial, bastando a apresentação à entidade competente de requerimento subscrito pelo comprador e confirmado pelo vendedor, que, através de declaração de venda confirma que a propriedade do veículo foi por aquele adquirida por contrato verbal de compra e venda (vd. Regulamento do Registo Automóvel, art. 25.º, n.º 1, alínea a).[iii]

 

49. Não obstante serem estas as regras decorrentes das disposições da lei civil, relativas ao informalismo da transmissão de coisas móveis e, sendo o caso, do respectivo registo, não pode deixar de ter-se também presente que, na situação em análise, estamos perante uma transacção comercial, efectuada entre empresas.

 

50. Nesse âmbito, a empresa vendedora está vinculada ao cumprimento de normas contabilísticas e fiscais específicas, em que a faturação assume especial relevância.

 

51. Desde logo, por força de normas fiscais, a entidade transmitente dos bens está obrigada a emitir uma factura relativamente a cada transmissão de bens, qualquer que seja a qualidade do respectivo adquirente (CIVA, art. 29.º, n.º 1, alínea b).

 

52. Também de acordo com o disposto em normas tributárias, a factura deve obedecer a determinada forma, detalhadamente regulada nos artigos 36.º do Código do IVA e 5.º do Decreto-Lei n.º 198/90, de 19 de junho.

 

53. É com base nesse documento emitido pelo fornecedor dos bens que o adquirente, quando se trate de um operador económico, irá deduzir o IVA a que tenha direito (CIVA, art. 19.º, n.º 2) - salvo se o imposto suportado na aquisição do veículo, pelas características deste, não for dedutível - e contabilizar o gasto da operação (CIRC, arts. 23.º, n.º 6 e 123.º, n.º 2).

 

54. Por seu lado, é também com base na faturação emitida que o fornecedor dos bens deverá contabilizar os respectivos rendimentos, conforme decorre do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 123.º do CIRC.

 

55. Desde que emitidas na forma legal e constituam elementos de suporte dos lançamentos contabilísticos em contabilidade organizada de acordo com a legislação comercial e fiscal, os dados que delas constem são abrangidos pela presunção de veracidade a que se refere o artigo 75.º, n.º 1, da LGT.

 

56. Considerada, pois, a relevância atribuída pela legislação tributária às facturas emitidas nos termos legais pelas empresas comerciais no âmbito da sua actividade empresarial e a presunção de veracidade das operações por elas tituladas, não pode deixar de considerar-se que as mesmas podem constituir, só por si, prova bastante das transmissões invocadas pela Requerente.

 

57. No presente caso, constata-se que a fatura que titula a transação em causa se encontra emitida na forma legal, dela constando, designadamente, a denominação usual dos bens transmitidos, o preço da venda, a taxa de IVA aplicável bem como o correspondente montante de imposto, conforme resulta da lei fiscal (vd. CIVA, art. 36.º, n.º 5). 

 

58. Nestes termos, considera-se que a fatura apresentada pela Requerente constitui prova bastante do facto alegado para efeitos de elisão da presunção em causa.

 

59. Assim, considerando-se ilidida a presunção de propriedade derivada do registo automóvel acolhida no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, deverá proceder-se à anulação das liquidações objecto do presente pedido, com fundamento em ilegalidade e erro nos pressupostos em que se suportam.

 

V. Decisão

 

Nestes termos, e com os fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide:

 

a) Julgar improcedente a excepção dilatória invocada pela Administração Tributária e Aduaneira (AT);

 

b) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, no que concerne à ilegalidade das liquidações de IUC, e juros compensatórios, relativas ao veículo com a matrícula …-…-… e aos períodos de 2013 e 2014, a que respeitam os documentos de cobrança 2013… e 2014…, determinando-se, em consequência, a sua anulação.

 

Valor do processo: € 1.247,48

 

Custas: Ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixo o montante das custas em € 306,00, a cargo da Requerida (AT).

 

Lisboa, 9 de fevereiro de 2016,

 

O árbitro, Álvaro Caneira.

 



[i]  A título meramente exemplificativo, cfr. Procs.14/2013-T, 26/2013-T, 27/2013-T, 73/2013-T, 170/2013-T, 217/2013--T, 256/2013-T, 289/2013-T, 294/2013-T, 21/2014-T, 42/2014-T, 43/2014-T, 50/2014-T, 52/2014-T, 67/2014-T6, 68/2014-T, 77/2014-T, 108/2014-T, 115/2014-T, 117/2014-T, 118/2014-T, 120/2014-T, 121/2014-T, 128/2014-T, 140/2014-T, 141/2014-T, 152/2014-T, 154/2014-T,  173/2014-T, 174/2014-T, 175/2014-T, 182/2014-T, 191/2014-T, 214/2014-T, 219/2014-T, 221/2014-T, 222/2014-T, 227/2014-T, 228/2014-T, 229/2014-T, 230/2014-T,  233/2014-T, 246/2014-T, 247/2014-T, 250/2014-T. 262/2014-T, 302/2014-T, 333/2014-T,  414/2014-T, 646/2014-T, todos disponíveis em www.caad.org.pt.

[ii] fr. STJ, Acs. de 23.3.2006 e de 12.10.2006, Procs. 06B722 e 06B2620.

[iii]  Assinala-se que, no âmbito do procedimento especial para o registo de propriedade de veículos adquiridos por contrato verbal de compra e venda, aprovado pelo Dec.Lei n.º 177/2014, de 15 de Dezembro, a factura constitui, entre outros, documento que indicia a efectiva compra e venda do veículo, desde que dela conste a matrícula do veículo bem como nome do vendedor e do comprador.