Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 680/2022-T
Data da decisão: 2023-07-24  IRS  
Valor do pedido: € 3.965,29
Tema: Residência fiscal para efeitos do artigo 16.º do CIRS, domicílio fiscal e prova da não residência em território português.
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SUMÁRIO:

 

  1. Para efeitos do disposto no n.º 5 do artigo 57.º da LGT, o termo inicial do prazo de quatro meses previsto no n.º 1 do mesmo preceito legal corresponde à data de entrada da petição do contribuinte no serviço competente da administração tributária, sendo que tal prazo está sujeito às regras vertidas no artigo 279.º do Código Civil, aplicável ex vi n.º 1 do artigo 20.º do CPPT.
  2. Os conceitos de domicílio fiscal, vertido no artigo 19.º da LGT, e de residência fiscal, vertido no artigo 16.º do CIRS, não são, necessariamente, coincidentes, nem tão pouco se encontram numa relação de sinonímia;
  3. O conceito de residência integra a hipótese de normas tributárias substantivas, determinantes da existência e da extensão da obrigação de imposto, enquanto o domicílio fiscal projeta-se em consequências processuais.
  4. O dever de comunicação previsto, quer no n.º 1 do artigo 43.º do CPPT, quer no n.º 3 do artigo 19.º da LGT não se trata de formalidade ad substanciam, pelo que a sua preterição não tem necessária e definitivamente impacto em termos de tributação;
  5. Tendo ficado demonstrado que o Requerente não residiu em território português no ano de 2017, na medida em que residiu em França, Portugal apenas poderia, abstratamente, tributar rendimentos considerados como aí obtidos, nos termos do disposto no artigo 18.º do CIRS e, em todo o caso, com a limitações advenientes da convenção celebrada entre Portugal e França para eliminar a dupla tributação.

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

         O árbitro David Oliveira Silva Nunes Fernandes (árbitro-singular), designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Singular, constituído em 23-01-2023, decidiu o seguinte:

 

  1. RELATÓRIO

 

A... (doravante, o «Requerente»), titular do número de identificação fiscal..., residente em ..., França, apresentou pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante «RJAT»), tendo em vista a anulação do indeferimento tácito da reclamação graciosa (objeto imediato) apresentada contra o ato de liquidação de IRS n.º 2021..., no montante de 3.965,29 € (três mil novecentos e sessenta e cinco euros e vinte e nove cêntimos) (objeto mediato).

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por «AT» ou simplesmente «Requerida»).

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 16-11-2022.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular o ora signatário, o qual comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 05-01-2023 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos do disposto nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 23-01-2023.

Por despacho exarado no dia 24-01-2023, foi a Requerida notificada para, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e, querendo, solicitar produção de prova adicional, bem como, ainda, juntar aos autos cópia do processo administrativo.

A 02-03-2023 a Requerida apresentou requerimento peticionando a prorrogação do prazo para apresentação de resposta por 20 (vinte) dias, pedido que foi parcialmente deferido por despacho exarado a 09-03-2023, tendo sido concedida uma prorrogação de 15 (quinze) dias contados sobre o termo final do prazo.

A 16-03-2023 a Requerida apresentou a sua resposta, no âmbito da qual invocou uma exceção perentória correspondente à intempestividade do pedido de pronúncia arbitral deduzido pelo Requerente, mais impugnando a factualidade ali alegada e sustentando a improcedência do pedido aduzido pela Requerente.

A 12-04-2023 foi proferido despacho no sentido de assegurar à Requerente o exercício do contraditório face à exceção perentória invocada pela Requerida, tendo a Requerente exercido efetivamente o contraditório a 24-04-2023.

A 16-06-2023 foi exarado despacho convidando as partes a apresentar alegações finais e a estabelecer a data-limite para prolação da sentença arbitral. A Requerente apresentou as suas alegações a 03-07-2023, tendo igualmente procedido ao pagamento do remanescente da taxa de arbitragem.

 

  1. SANEAMENTO

 

O tribunal arbitral singular foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e n.º 2 do artigo 5.º, ambos do RJAT, e é competente.

As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade.

O processo não enferma de nulidades.

 

  1. POSIÇÃO DAS PARTES

 

  1. Posição do Requerente

 

         A posição do Requerente é, essencial e sinteticamente, a seguinte:

 

  1. Tendo sido notificado pelo Serviço de Finanças de Lisboa-... de uma liquidação oficiosa de IRS (liquidação n.º 2021...), referente ao período compreendido entre 01-01-2017 a 31-12-2017, no valor de 3.965,29 € (três mil novecentos e sessenta e cinco euros e vinte e nove cêntimos), considera que os montantes liquidados não se afiguram devidos, na medida em que, desde 2015, trabalha na República Francesa, por contrato de trabalho celebrado com empresa daquela nacionalidade;

 

  1. Mais alega que, excetuando os meses de novembro e dezembro de 2018, sempre residiu em França, não auferindo rendimentos em território português, embora não tendo alterado o seu domicílio fiscal;

 

  1. Quanto ao período a que a liquidação respeita, o Requerente manteve contrato de trabalho com a empresa B..., sendo que, na medida em que reside em França e trabalha para uma empresa francesa, é também titular de um número de identificação fiscal francês;

 

  1. À data dos factos, o Requerente residia em ..., França, tendo sido a sua empresa que contratualizou o arrendamento do imóvel onde residiu e que corresponde à sua morada em França;

 

  1. A morada portuguesa constante dos seus recibos de vencimento correspondia à sua residência à data da sua contratação;

 

  1. O Requerente apresentou declaração de impostos junto da Direção Geral de Finanças Públicas de França, relativamente ao ano de 2017, tendo declarado rendimentos correspondentes a 16.961,00 € (dezasseis mil novecentos e sessenta e um euros);

 

  1. Verifica-se, pois, no entender do Requerente, a dupla tributação dos seus rendimentos;

 

  1. Portugal e França celebraram Convenção para Evitar a Dupla Tributação, sendo que o direito internacional se sobrepõe ao direito interno infraconstitucional;

 

  1. Os rendimentos tributados por intermédio do ato de liquidação controvertido reportam-se a trabalho dependente integralmente prestado em França;

 

  1. Para efeitos de tributação, não é possível assumir que residência e domicílio fiscal correspondem, especialmente em face do disposto no artigo 16.º do CIRS;

 

  1. Em 2017, o Requerente não residiu em território português, por períodos seguidos ou interpolados, mais de 183 dias, nem dispunha em Portugal, a 31 de dezembro de 2017, de habitação;

 

  1. Nos termos do disposto no artigo 4.º, n.º 1, da Convenção para Evitar a Dupla Tributação celebrada entre Portugal e França, considera-se residente de um Estado contratante aquele que por virtude de legislação desse mesmo Estado, se sujeita à incidência de imposto pelo seu domicílio, residência, local de direção ou outro de natureza similar;

 

  1. O Requerente tinha domicílio em Portugal, mas residência em França;

 

  1. Nos termos do disposto no artigo 16.º da Convenção para Evitar a Dupla Tributação celebrada entre Portugal e França, a tributação dos salários, ordenados e remunerações similares obtidos através da prestação do trabalho subordinado em França, pelo demandante que aí reside, são competência exclusiva daquele país;

 

  1. Razão pela qual a liquidação controvertida é ilegal por falta de fundamentação e por vício de violação de lei, devendo nessa medida ser revogada a decisão de indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada, bem como anulado o ato de liquidação controvertido.

 

  1. Posição da Requerida

 

         A posição da Requerida é, essencial e sinteticamente, a seguinte:

 

  1. O direito de ação do Requerente face ao indeferimento presumido da reclamação graciosa terá já caducado, razão pela qual deve a Requerida ser totalmente absolvida do pedido;

 

  1. Ainda que assim não se entenda, não deverá o pedido do Requerente proceder, na medida em que a Autoridade Fiscal Francesa comunicou à Requerida que o Requerente, no ano de 2017, auferiu rendimentos de trabalho dependente de fonte francesa no montante de 19.809,00 € (dezanove mil oitocentos e nove euros), considerando-o, desta forma residente em Portugal;

 

  1. As informações prestadas pelas administrações tributárias estrangeiras ao abrigo de convenções internacionais de assistência mútua a que o Estado Português esteja vinculado fazem fé, sem prejuízo da prova em contrário;

 

  1. O Requerente não procede à apresentação de qualquer documento que permita aferir da veracidade da sua alegação, nomeadamente, certificado de residência fiscal emitido pela Autoridade Fiscal Francesa, contrato de arrendamento para habitação permanente, despesas associadas à detenção de habitação em território francês ou mesmo contrato de trabalho;

 

  1. A mera apresentação de recibos de vencimento e da liquidação de imposto francês não comprova que o Requerente foi residente em França e que ali foi tributado pela universalidade dos seus rendimentos;

 

  1. Não fica demonstrado que o Requerente foi considerado residente fiscal em França em 2017;

 

  1. O Requerente tem a sua residência fiscal localizada em território nacional desde, pelo menos, 18-03-2014, sendo considerado residente fiscal em Portugal no ano de 2017, em conformidade com o que dispõe o artigo 19.º, n.ºs 1, alínea a), 3, 4 e 5 da LGT e 13º, n.º 10, e 16.º, n.º 1, alínea b) do CIRS, na redação vigente a 31-12-2017;

 

  1. Logo, o IRS incide sobre a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos no estrangeiro, em conformidade com o que dispõe o artigo 15.º, n.º 1, do Código do IRS;

 

  1. Como tal, deve improceder o peticionado pelo Requerente, mantendo-se na ordem jurídica a liquidação controvertida.

 

  1. QUESTÕES A DECIDIR

 

  1. Procedência ou improcedência da exceção perentória invocada pela Requerida, correspondente à intempestividade do pedido de pronúncia arbitral aduzido pelo Requerente;

 

  1. Procedência ou improcedência do pedido anulatório aduzido contra o indeferimento tácito da reclamação graciosa e, por inerência, contra a liquidação de IRS controvertida, com fundamento em falta de fundamentação e vício de violação de lei.

 

  1. MATÉRIA DE FACTO

 

  1.  Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

 

  1. Entre 1 de janeiro de 2017 e 31 de dezembro de 2017, o Requerente exerceu funções laborais em benefício da empresa B...;

 

  1. O Requerente tem número de identificação fiscal francês, tendo apresentado declaração de impostos junto das autoridades fiscais francesas, relativamente ao ano de 2017;

 

  1. Entre 1 de janeiro de 2017 e 31 de dezembro de 2017, o Requerente residiu em ..., França;

 

  1. O Requerente não alterou o seu domicílio fiscal, o qual correspondia, com referência ao período relevante, a uma morada sita em território português;

 

  1. Entre 1 de janeiro de 2017 e 31 de dezembro de 2017, o Requerente não residiu em território português, por períodos seguidos ou interpolados, mais de 183 dias, nem aí dispôs de habitação;

 

  1. Naquele período mesmo período, o Requerente não auferiu rendimentos de fonte portuguesa.

 

  1. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto

 

Inexistem factos não provados com relevância para decisão da causa.

 

  1. Fundamentação quanto à matéria de facto

 

A convicção quanto aos factos considerados provados decorre da prova documental produzida pelo Requerente, em especial dos recibos de vencimento juntos com documentos n.º 1 a 11 com a reclamação graciosa, da declaração fiscal junta como doc. n.º 12 com a reclamação graciosa, e da declaração da entidade empregadora junta como doc. n.º 13 com a reclamação graciosa.

A convicção do tribunal foi também gerada, em complemento, pela posição das partes quantos aos factos controvertidos, pela ausência de impugnação de tais elementos documentais pela Requerida (embora tendo esta pugnando pela sua insuficiência probatória, sem, no entanto, suscitar quaisquer dúvidas quanto à sua veracidade), pela ausência de prova produzida por esta e, não menos relevante, pela inexistência de quaisquer elementos no processo administrativo que deponham em sentido contrário.

 

  1. MATÉRIA DE DIREITO

 

  1. Apreciação da exceção perentória invocada pela Requerida

 

No âmbito da resposta apresentada, a Requerida pugnou pela procedência de uma exceção perentória, correspondente à extemporaneidade do pedido de pronúncia arbitral (intempestividade da petição ou caducidade do direito de ação), por considerar que o mesmo deveria ter sido apresentado até ao dia 10-11-2022, quando, na verdade, foi apresentado pelo Requerente no dia 14-11-2022.

Para fundamentar o seu entendimento, a Requerida alega que o Requerente apresentou reclamação graciosa contra o ato de liquidação controvertido no dia 11-04-2022, considerando, então, formada a presunção de indeferimento tácito no dia 11-08-2022, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 57.º da Lei Geral Tributária.

Mais entende a Requerida que, nos termos do disposto no artigo 279.º do Código Civil, aplicável ex vi artigo 20.º do CPPT e alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, o prazo para apresentação de pronúncia arbitral – de 90 dias – se iniciou no dia 12-08-2022, tendo terminado a 10-11-2022.

No exercício do contraditório, o Requerente pugnou pela improcedência da exceção invocada, alegando essencialmente que o prazo para a Requerida se pronunciar sobre a reclamação graciosa apenas se iniciou no dia 12-04-2023, uma vez que no cômputo do prazo previsto no n.º 1 do artigo 57.º da LGT não se incluiria a data da prática do ato que desencadeia a contagem do prazo– i.e., no caso, da apresentação da reclamação graciosa. Donde, o prazo de 4 (quatro) meses previsto no artigo 57.º, n.º 1, da LGT considerar-se-ia transcorrido no dia 12-08-2022, considerando-se a petição tacitamente indeferida no dia 13-08-2022. Sucede que o dia 13-08-2022 foi um sábado, 14-08-2022 um domingo e 15-08-2022 feriado, pelo que o primeiro dia útil em que se presumiria o indeferimento tácito seria 16-08-2023. Neste sentido, a apresentação do pedido de pronúncia arbitral no dia 14-11-2022 seria tempestiva, na exata medida em que o dia 13-11-2022, correspondendo ao nonagésimo dia, correspondeu a um dia não útil.

Importa salientar que, atenta a natureza da exceção em causa, é a mesma de conhecimento oficioso, sendo que este Tribunal Singular sempre teria de a conhecer, ainda que não houvesse sido invocada nos termos em que o foi.

Vejamos.

Nos termos do disposto no artigo 57.º, n.º 1, da LTG, «o procedimento tributário deve ser concluído no prazo de quatro meses, devendo a administração tributária e os contribuintes abster-se da prática de atos inúteis ou dilatórios». Adicionalmente, prevê o n.º 5 do mesmo preceito legal que «sem prejuízo do princípio da celeridade e diligência, o incumprimento do prazo referido no n.º 1, contado a partir da entrada da petição do contribuinte no serviço competente da administração tributária, faz presumir o seu indeferimento para efeitos de recurso hierárquico, recurso contencioso ou impugnação judicial». Por seu turno, o enunciado normativo do n.º 1 do artigo 20.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário («CPPT») prevê que «os prazos do procedimento tributário e interposição da impugnação judicial contam-se de modo contínuo e nos termos do artigo 279.º do Código Civil, transferindo-se o seu termo, quando os prazos terminarem em dia em que os serviços ou os tribunais estiverem encerrados, para o primeiro dia útil seguinte.»

Por forma a aferir adequadamente acerca da procedência ou improcedência da exceção invocada, cumpre começar por fixar a data em que se formou o indeferimento tácito. O ponto de partida para tal fixação não se afigura controverso, dado que Requerente e Requerida convergem quanto à data de envio da reclamação graciosa – 11.04.2022. Já não convergem, porém, quanto à data em que se inicia a contagem do prazo de 4 (quatro) meses previstos no artigo 57.º, n.º 1, da LGT, na medida em que o Requerente considera que a sua contagem se inicia no dia seguinte ao da apresentação da reclamação graciosa (12.04.2022), ao passo que a Requerida entende que o prazo se inicia, outrossim, no próprio dia de apresentação da reclamação graciosa (11.04.2022). Neste ponto, e atentas as circunstâncias do caso concreto, não se acompanha a posição de nenhuma das partes, na exata medida em que o enunciado normativo do n.º 5 do artigo 57.º da LGT alude expressamente à data de entrada da petição no serviço competente da administração tributária, resultando do processo administrativo junto pela Requerida aos autos que a reclamação graciosa, enviada por correio registado com aviso de receção, apenas foi recebida e autuada no dia 13-04-2022. Esse é o momento que desencadeia o termo inicial do procedimento tributário, e não a data de envio da reclamação graciosa (a menos que, naturalmente, coincidente com a data de entrada, o que sucede, por exemplo, nos casos de envio da mesma por correio eletrónico ou através do Portal das Finanças) ou a data correspondente ao dia subsequente.

Donde, o termo inicial do prazo de quatro meses corresponde àquela data (13-04-2022), verificando-se o respetivo termo final a 13-08-2022, sendo que, tratando-se este de um dia não útil, ocorre a transferência do termo final para o dia útil imediatamente subsequente – i.e., para o dia 16-08-2022 –, conforme se dispõe no artigo 279.º, alínea e), do Código Civil, aplicável ex vi artigo 20.º, n.º 1, do CPPT.

Na exata medida em que o prazo para apresentação do pedido de pronúncia arbitral é um prazo de caducidade substantivo estabelecido em dias – in casu, 90 (noventa) dias –, encontra-se o mesmo sujeito ao enunciado normativo vertido na alínea b) do artigo 279.º do Código Civil, segundo o qual não se inclui na contagem do prazo o dia em que ocorre o evento a partir do qual o mesmo começa a correr. Neste sentido, impõe-se concluir que, ao ter sido apresentado no dia 14-11-2022, o pedido de pronúncia arbitral foi apresentado tempestivamente.

Por tudo quanto antecede, improcede, pois, a exceção perentória de intempestividade invocada pela Requerida.

 

  1. Apreciação dos pedidos de anulação aduzidos pelo Requerente com fundamento em falta de fundamentação e em vício de violação de lei

 

Em primeiro lugar, cumpre delinear adequadamente o quadro normativo relevante para a apreciação do mérito da causa.

Desde logo, no que tange à repartição internacional do poder de tributar, importa atender às disposições vertidas na Convenção entre Portugal e França para Evitar a Dupla Tributação e Estabelecer Regras de Assistência Recíproca em Matéria de Impostos sobre o Rendimento – Decreto-Lei n.º 105/71, de 26 de março –, bem como no respetivo protocolo que a alterou – Resolução da Assembleia da República n.º 58/2017, de 3 de abril (em conjunto o «ADT PT-FR».

No que se refere à generalidade das situações correspondentes ao exercício de atividade profissional por conta de outrem, o artigo 16.º do ADT PT-FR prevê, essencial e tendencialmente, a competência tributária exclusiva do estado residência, admitindo apenas a competência (cumulativa) do estado fonte nos casos em que o emprego é exercido neste último e contanto que não se verifiquem as circunstâncias previstas no n.º 2 do mesmo preceito.

Por outro lado, o artigo 4.º do ADT PT-FR enuncia efetivamente a definição de «residente» para efeitos da convenção, admitindo porém o n.º 2 daquele preceito que uma pessoa singular pode ser considerada residente de ambos os Estados Contratantes, prevendo-se ali os critérios tendentes à determinação de qual dos Estados deverá, para efeitos da convenção, ser considerado como Estado de residência (sendo que, no limite, as autoridades competentes do Estados Contratantes resolverão o caso de comum acordo).

Todavia, o cerne da questão controvertida radica, não em normas de direito internacional, mas sim em normas de direito interno, uma vez que a liquidação controvertida assenta no pressuposto de que o Requerente é residente, para efeitos fiscais e no que tange a 2017, em território português.

Dito de outra forma, o aspeto central do pedido aduzido pelo Requerente versa, precisamente, sobre a questão de saber se o mesmo é, ou não, considerado como residente fiscal em Portugal, relativamente ao ano de 2017. Impõe-se, pois, uma breve identificação das normas de direito interno relevantes para o presente caso.

Reitera-se, por ser particularmente relevante, que o que está em causa é saber se o Requerente é, ou não, residente fiscal em território português e não, contrariamente, se é, ou não, residente fiscal em França – veja-se, a este respeito, e quanto a possibilidade de situações de dupla não residência, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, datado de 16-03-2023, proferido no Processo 1623/09.8BELRS. É sob este prisma que o presente caso terá que ser configurado.

O artigo 16.º, n.º 1, do Código do IRS, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 82-E/2014, de 31 de dezembro (e, por conseguinte, plenamente aplicável in casu), estabelece o seguinte:

 

«1- São residentes em território português as pessoas que, no ano a que respeitam os rendimentos:

 

a) Hajam nele permanecido mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, em qualquer período de 12 meses com início ou fim no ano em causa;

b) Tendo permanecido por menos tempo, aí disponham, num qualquer dia do período referido na alínea anterior, de habitação em condições que façam supor intenção atual de a manter e ocupar como residência habitual;

c) Em 31 de dezembro, sejam tripulantes de navios ou aeronaves, desde que aqueles estejam ao serviço de entidades com residência, sede ou direção efetiva nesse território;

d) Desempenhem no estrangeiro funções ou comissões de carácter público, ao serviço do Estado Português.»

 

Compulsando o enunciado normativo supra transcrito, constata-se que do mesmo não consta qualquer menção ao conceito de domicílio fiscal, o qual encontra respaldo no artigo 19.º da LGT, que se transcreve infra, embora parcialmente:

 

«1 – O domicílio fiscal do sujeito passivo é, salvo disposição em contrário:

a) Para as pessoas singulares, o local da residência habitual;

b) Para as pessoas coletivas, o local da sede ou direção efetiva ou, na falta destas, do seu estabelecimento estável em Portugal»

(…)

3 – É obrigatória, nos termos da lei, a comunicação do domicílio do sujeito passivo à administração tributária.

4 – É ineficaz a mudança de domicílio enquanto não for comunicada à administração tributária.

5 – Sempre que se altere o estatuto de residência de um sujeito passivo, este deve comunicar, no prazo de 60 dias, tal alteração à administração tributária.»

 

Finalmente, releva considerar o disposto no artigo 15.º do CIRS, na redação em vigor à data dos factos, que infra se transcreve:

 

«1 – Sendo as pessoas residentes em território português, o IRS incide sobre a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território.

2 – Tratando-se de não residentes, o IRS incide unicamente sobre os rendimentos obtidos em território português»

 

Em face do quadro normativo supra elencado, fica desde logo evidenciada a falta de correspondência necessária, ou tão-pouco de sinonímia, entre os conceitos de «residência fiscal» e «domicílio fiscal». A temática em apreço foi já, de resto, amplamente abordada, e decidida nesse sentido, pela jurisprudência nacional (cfr., a título de exemplo, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, datado de 11-11-2021, proferido no Processo 2369/09.7BELRS, e o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, datado de 08-07-2021, proferido no Processo 803/05.0BESNT), bem como pela jurisprudência arbitral (cfr., igualmente a título de exemplo, Processo n.º 85/2022-T, o Processo n.º 394/2021-T, 155/2022-T e 348/2022-T). De facto, «o conceito de residência integra a hipótese de normas tributárias substantivas, determinantes da existência e da extensão da obrigação de imposto, enquanto o domicílio fiscal projecta-se em consequências processuais» (cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, datado de 08-07-2021, proferido no Processo 803/05.0BESNT).

E nessa mesma senda jurisprudencial, tem sido entendido que a omissão de alteração do domicílio fiscal não tem em si mesma um condão sancionatório, no sentido de obstar a que o sujeito passivo demonstre não ser residente fiscal em território português. Expondo de outro modo, «o dever de comunicação, previsto quer no n.º 1 do art.º 43.º do CPPT quer no então art.º 19.º, n.º 2, da LGT (atual n.º 3), não se trata de formalidade ad substanciam, pelo que a sua preterição não tem necessária e definitivamente impacto em termos de tributação» (Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, datado de 11-11-2021, proferido no Processo 2369/09.7BELRS).

Entendimentos jurisprudenciais que, de resto, se secunda e aos quais se adere.

Ainda que se entendesse vigorar nesta matéria uma presunção de correspondência entre domicílio fiscal e residência fiscal – nomeadamente decorrente do disposto no n.º 11 do artigo 13.º do CIRS (atualmente n.º 12) –, sempre se diria que a mesma seria manifestamente ilidível, na medida em que entendimento contrário é desprovido de suporte legal (sendo certo que as presunções legais apenas são inilidíveis nos casos previstos na lei, como decorre do n.º 2 do artigo 350.º do Código Civil). Adicionalmente, a lei não estabelece quaisquer limitações quanto aos meios probatórios adequados a fazer prova da «não residência» em território português, nem tão pouco pode resultar da ineficácia subjacente à omissão de alteração do domicílio fiscal uma consequência correspondente à consideração do sujeito passivo como residente fiscal nesse território, como de resto se referiu.

Sob este prisma, entendemos que o Requerente carreou para os autos elementos suficientes, quantitativa e qualitativamente, que permitem atestar a sua não residência em território português no ano de 2017, ao passo que dos autos não consta qualquer elemento probatório que haja sido carreado pela Requerida, no sentido de demonstrar o preenchimento de qualquer um dos critérios subjacentes ao artigo 16.º do CIRS. E certamente que, pretendendo esta fazer-se valer de um desses critérios, sempre estaria ao seu alcance carrear para os autos tais elementos. Acontece, porém, que, compulsada a resposta da Requerida, constata-se que nem tão pouco é alegado o preenchimento de qualquer um dos critérios previstos no artigo 16.º do CIRS – ou seja, para além do domicílio fiscal, a Requerida não alega sequer quaisquer factos que preencham a previsão normativa de qualquer uma das alíneas do artigo 16.º CIRS. Tal omissão verifica-se na presente sede, bem como na antecedente sede administrativa, abrangendo, também, a obtenção pelo Requerente de quaisquer rendimentos de fonte portuguesa. E, mesmo quanto estes, a possibilidade tributação abstrata por Portugal ficaria sujeita aos condicionalismos decorrentes do ADT PT-FR.

Uma vez demonstrada a «não residência» do Requerente em território português, bem como a ausência de rendimentos de fonte portuguesa – cuja obtenção se aferiria sempre em função do disposto no artigo 18.º do CIRS –, não pode deixar de se concluir pela ilegalidade da liquidação controvertida, em virtude de vício de violação de lei, em particular das normas ínsitas nos artigos 15.º e 16.º do CIRS, devendo nessa medida, ser anulada, tal como peticionado pelo Requerente.

  1. DECISÃO

 

            De harmonia com o exposto decidiu este Tribunal Arbitral Singular em:

 

  1. Julgar improcedente a exceção perentória de caducidade do direito de ação invocada pela Requerida.

 

  1. Julgar integralmente procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência:

 

  1.  anular a decisão de indeferimento tácito da reclamação graciosa n.º ...2022...;

e

  1. anular o ato de liquidação de IRS n.º 2021..., referente ao período de tributação de 2017.

 

  1. VALOR DO PROCESSO

 

De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de 3.965,29 € (três mil novecentos e sessenta e cinco euros e vinte e nove cêntimos), indicado pelo Requerente e sem oposição Requerida.

 

  1. CUSTAS

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em 612,00 €, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

 

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 24 de julho de 2023

 

O Árbitro

 

(David Nunes Fernandes)