Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 587/2022-T
Data da decisão: 2023-12-15  IMI  
Valor do pedido: € 97.109,17
Tema: IMI – Momento relevante para determinação do VPT que constitui base de incidência do imposto.
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Sumário:

I - Para efeitos de aplicação do IMI e do seu adicional, a lei e o imposto que esta comporta, aplica.se aos factos com a configuração e caracterização que estes tinham no momento legalmente relevante que é determinado pela época em que foram feitas as liquidações.

II – Em procedimento de revisão tendente a obter a anulação da liquidação, não é possível discutir ilegalidades do processo de determinação do VPT.

 

ACÓRDÃO ARBITRAL

Os árbitros Rui Duarte Morais (Presidente), Nuno Maldonado Sousa (vogal relator) e Jorge Carita (vogal), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral Coletivo constituído em 29-12-2022, decidem no processo acima identificado nos seguintes termos:

 

  1. Relatório

 

A..., Lda., com sede na ... ..., em ..., doravante designada por “Requerente” ou por “A...”, titular do número de identificação de pessoa coletiva ..., requereu a constituição de tribunal arbitral ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, e nos termos dos artigos 15.º, e seguintes do regime jurídico da arbitragem em matéria tributária constante do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (“RJAT”).

O seu pedido assenta no indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa que formulou e tem como objetivo a anulação parcial, com as consequências legais, das liquidações que impugna.

Embora no seu introito a Requerente não tenha identificado as liquidações em causa de forma completa, refere nessa parte da peça que elas constam de 5 documentos que anexa. Cabe ao Tribunal[1] consignar o que é claro para todos os intervenientes, incluindo obviamente a AT[2], que as liquidações impugnadas são as seguintes liquidações de Imposto Municipal sobre Imóveis (“IMI”):

- Liquidação 2017... do ano de 2017, de 08-03-2018, no valor a pagar de 33.775,50 €, com mês de pagamento em abril de 2018, referente à 1.ª prestação;

- Liquidação 2018... do ano de 2018, de 23-03-2019, no valor a pagar de 34.148.60 €, com mês de pagamento em maio de 2019, referente à 1.ª prestação;

- Liquidação 2019 ... do ano de 2019, de 2020-04-09, no valor a pagar de 34.255,50 €, com mês de pagamento em maio de 2020, referente à 1.ª prestação;

- Liquidação 2020... do ano de 2020, de 2021-04-07, no valor a pagar de 34255,50 € €, com mês de pagamento em maio de 2021, referente à 1.ª prestação.

A Requerente sustenta que os valores patrimoniais tributários (“VPT”) que foram base de incidência do IMI impugnado foram fixados como se de prédios residenciais – i.e. prédios afetos a habitação – se tratassem, mediante aplicação dos coeficientes de afetação e de localização referentes a habitação, em vez do coeficientes de afetação e de localização referentes a serviços, o que considera errado (1.º e 2.º PPA), face à classificação de “Aldeamento Turístico” que lhe foi concedida e à própria zona da localização dos imóveis, que, no instrumento de regulamentação urbanística vigente, é classificada como espaço turístico destinado à localização de estabelecimentos hoteleiros, meios complementares de alojamento turístico e ou conjuntos turísticos. Afirma que o espaço em causa é zona destinada à localização exclusiva de empreendimentos de carácter turístico, o que conduz a diferentes coeficientes de avaliação e a um valor inferior de IMI, o que reclamou por via de pedido de  revisão do ato tributário.

É Requerida nestes autos a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, doravante designada também pelas formas abreviadas “AT” ou “Requerida”, que sustenta as liquidações e afirma que estas foram feitas com base nos elementos de facto declarados pela Requerente, a qual só em 2021cuidou de os alterar, pois só neste ano requereu a atualização matricial e até então manteve os prédios que compõe a unidade com a classificação matricial de “habitação “ (ut 2.º a 5.º da Resposta da AT (“R-AT”).

Alega ainda que a Requerente pretende a anulação dos atos impugnados com fundamento em vícios que não são dos atos de liquidação, mas sim dos atos que fixaram o Valor Patrimonial Tributário, os quais não são suscetíveis de ser impugnados no ato de liquidação que seja praticado com base nos valores fixado. Tais atos de fixação dos valores patrimoniais constituem atos destacados, autonomamente impugnáveis em momento próprio; dito de outro modo, na ausência durante um certo lapso de tempo de contestação ou de qualquer manifestação de oposição, o valor patrimonial tributário consolidou-se na ordem jurídica.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi feito em 10-10-2022 e aceite pelo Presidente do CAAD no mesmo dia e que também nesse dia o notificou à Requerida.

Os árbitros identificados e signatários deste acórdão, manifestaram a aceitação das suas funções no prazo legal. Em 28-11-2022 as partes foram notificadas da designação dos árbitros para constituir o Tribunal Arbitral e não manifestaram intenção de os recusar, nos termos previstos nas normas do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e nas normas dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico. Em conformidade com a disciplina constante do artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 19-12-2022 e o prazo para a decisão foi sucessivamente prorrogado e fundamentado pelo Tribunal Arbitral em 12-06-2023, 15-07-2023 e em 25-09-2023, nos termos do artigo 21.º, n.º 2 do RJAT.

A Requerida apresentou resposta (“R-AT”) em 02-02-2023, que concluiu afirmando que o pedido do Requerente deve ser julgado improcedente, por não provado e a AT absolvida do pedido, mantendo-se na ordem jurídica os atos tributários impugnados. Sustenta que o imposto foi calculado de acordo com os elementos que constavam nas matrizes há vários anos, que foram declarados pela Requerente, que só em 2021 cuidou de pedir a sua atualização.

 

  1. Saneamento

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, em subordinação com as normas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT, e é competente. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado em 06-10-2022, no termo do prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do já referido regime, considerando que o pedido de revisão oficiosa foi apresentado em 07-03-2022 e em 06-10-2022 permanecia sem decisão. Formando-se o seu indeferimento tácito em 08-07-2022, o termo de 90 dias para propor a ação arbitral ocorria em 06-10-2022, pelo que, como se deixou dito, há que considerá-lo tempestivo (artigo 56.º, n.º 1 e 3 da LGT, 102.º alínea d) do CPPT, 279.º, alínea b) do Código Civil e 10.º, n.º 2 do RJAT).

As partes estão devidamente patrocinadas e a Requerida goza de personalidade e capacidade judiciárias (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo regime e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O processo não enferma de nulidades pelo que cumpre decidi-lo.

 

  1. Decisão da matéria de facto

 

Para decidir a ação considera-se assente:

 

Em 2012, relativamente a cada prédio ora em causa, foi oficiosamente inserida declaração Modelo 1 do IMI, no âmbito da avaliação geral dos prédios urbanos – 1ª avaliação - e desencadeado o respetivo procedimento avaliativo, tendo sido fixados os VPTs, de que o contribuinte tomou conhecimento após notificação (R-AT, a) e b).

Em 2013/10/23, a Requerente apresentou pedido de 2.ª avaliação, de todos os prédios, requerendo a alteração da afetação de “habitação” para “serviços”, tendo juntado os alvarás de licença emitidos pela Câmara Municipal de Loulé que indicam como afetação “habitação”. (R-AT, c).

Os pedidos de 2.ª avaliação foram arquivados porque não foi apresentada licença emitida pela Câmara Municipal de Loulé que permitisse a alteração da afetação dos prédios. (R-AT, d).

Tal alvará permitiu a validação das declarações Modelo 1 do IMI, alterando a afetação de “habitação” para “serviços” entregues pela sociedade em novembro de 2021. (R-AT, f)

A Requerente não impugnou os atos de avaliação para reagir contra a fixação daqueles valores patrimoniais tributários, pelo que os mesmos se tornaram definitivos e foram registados na matriz.

As liquidações de IMI aqui em causa referem-se a prédios correspondentes a  125 artigos matriciais situados na ..., na freguesia da... e concelho de Loulé, referenciados  nas cadernetas prediais como estando situados no “Aldeamento B...” ou na “Urbanização B...” ou no “B...” e noutros casos sem nenhuma menção especial, que integram o empreendimento turístico C... . (PPA, 1.º: doc. 3)

Na avaliação geral dos prédios urbanos, levada a cabo em 2012, os VPT desses 125 artigos matriciais foram fixados como se de prédios afetos a habitação se tratasse, tendo sido aplicados os  coeficiente de afetação e de localização referentes a habitação. (PPA, 1.º e R-AT, c).

A Requerente era dona dos 125 prédios urbanos referidos em A), no período a que se referem as liquidações.

Em 22-12-2017 encontrava-se inscrito no Registo Nacional dos Empreendimentos Turísticos sob o n.º de registo ..., o “Aldeamento Turístico” com endereço na Avenida ..., ...-... ..., com o nome e marca comercial “C...”, classificado com 4 estrelas em auditoria de 20-06-2014, válida até 20-06-2019, com 132 unidades de alojamento, sendo 55 apartamentos e 77 moradias, dotado da infraestruturas de lazer, piscina exterior e interior ténis, ginásio e outras não discriminadas e nesse registo consta que a Requerente é o seu proprietário e entidade exploradora. (PPA, 5º e 7.º: doc. 4).

Em fevereiro de 1993 a Direção Geral do Turismo autorizou a abertura do “Aldeamento Turístico B...”. (PPA, 20.º: doc. 16)

Em 05-12-1996 a Direção-Geral do Turismo comunicou a atribuição da utilidade turística a título definitivo ao Aldeamento Turístico B..., por despacho de 19 de novembro de 1996 do Secretário de Estado do Comércio e Turismo.

Em dezembro de 2001 o Aldeamento Turístico B... foi objeto de vistoria e classificado como aldeamento turístico de 4 estrelas.

Em 25-06-2014 o Turismo de Portugal, IP, classificou o Aldeamento Turístico B... com 4 estrelas. (PPA, 20.º: doc. 11).

Em 2021/11/29, a Requerente remeteu para o SF de Loulé ... o alvará de autorização de utilização para fins turísticos n.º .../2021 emitido em 2021-11-10 pela Câmara Municipal de Loulé, no qual consta: (R-AT, 17.º, e)

“Utilização a que foi destinado: Para fins turísticos, com aldeamento turístico de 4 estrelas, com a capacidade máxima de 602 camas fixas/utentes, 264 camas convertíveis/utentes, distribuídas por 132 unidades de alojamento, tipologia (T2=95, (T3=37)”.

 

A alvará de autorização de utilização para fins turísticos n.º .../2021 emitido em 2021-11-10 pela Câmara Municipal de Loulé permitiu a validação das declarações Modelo 1 do IMI, alterando a afetação de “habitação” para “serviços”. (R-AT, 17.º, f)

Em 07 de março de 2022, a Requerente requereu aos serviços da Requerida a revisão oficiosa das liquidações que impugna nestes autos, onde peticionou “a anulação parcial das liquidações de IMI” objeto daquele pedido de revisão, e declarou propor a revisão “nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 115.º do CIMI e 78.º da LGT”.

No pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente, pode ler-se, para além do mais que dele consta:

 

Questão prévia: admissibilidade da presente revisão oficiosa

Artigo 1.º

Conforme se concretizará mais adiante, o presente pedido de revisão oficiosa visa a anulação das liquidações de IMI acima identificadas, com fundamento na ilegalidade das avaliações que lhes serviram de base, por erro nos seus pressupostos.

Artigo 2º

O pedido de revisão oficiosa é pois o meio adequado para arguir esse vício, conforme tem reconhecido a jurisprudência dos Tribunais superiores, assim se repondo a legalidade das "últimas quatro liquidações" baseadas em errado VPT.

Artigo 3º

A título meramente exemplificativo, veja-se o Acórdão do TCA Sul, de 31.10.2019, no processo n.º 2765/12.8BELRS, que expressamente reconheceu que "A errada fixação do VPT (. . . ) pode ser arguida através do pedido de revisão oficiosa das liquidações, nos termos conjugados dos artigos 78. º da LGT e 115. º do CIMI, ainda que o contribuinte não tenha reagido atempadamente contra essa fixação".

 

Artigo 4.º

Assim, "(. . . ) deixando o contribuinte precludir a possibilidade de sindicar o VPT, nem assim fica impossibilitado de arguir a ilegalidade do VPT fixado (...). Defender o contrário é o mesmo que defender a perpetuidade da conduta ilegal da Administração, o que repugna ao bom senso e ao Direito admitir. Assim, no plano do Direito o artigo 115.º do CIMI constitui uma válvula de escape para tais situações, devendo o respectivo mecanismo ser desencadeado pela Administração, por sua iniciativa ou a impulso do interessado" (Ibidem).

No pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente, pode também ler-se, para além do mais que dele consta:

III.            Ilegalidade das liquidações de IMI

Artigo 34º

À exceção dos artigos ..., ..., ..., ... e..., todas as demais avaliações que subjazem aos atos de liquidação de MI em causa no presente procedimento foram determinadas por aplicação de um coeficiente de afetação relativo a habitação, com valor de 1 (cf. artigo 41.º do CIMI)

Artigo 35.º

Essas avaliações foram ainda determinadas por aplicação de um coeficiente de localização — com base nos zonamentos aprovados pela Portaria n.º 1119/2009, de 30 de setembro — referente a habitação, com valor de 3 (cf. artigo 42.º do CIMI).

Artigo 36.º

Porém, o valor máximo do coeficiente de localização atribuível à data das avaliações seria, por força do disposto na Portaria n.º 1119/2009, de 30 de setembro, de 2, dado que a utilização conferida aos prédios em causa pela ora requerente não é a de habitação, mas a de serviços de alojamento turístico.

Artigo 37º

Pela mesma razão, o coeficiente de afetação atribuível seria, por força do artigo 41º do CIMI, de 1,10, e não de 1.

Artigo 38º

Como vimos, todos os prédios que compõem o empreendimento C... acham-se afetos a serviços de alojamento turístico — i.e. não têm carácter residencial, como as avaliações que subjazem às liquidações de IMI aqui em causa parecem supor.

Artigo 39.º

A aplicação do coeficiente de localização máximo de 3 e do coeficiente de afetação neutro de 1 é, assim, ilegal, quer por violação dos artigos 41.º e 42.º do CIMI, quer por violação da Portaria n.º 1119/2009, de 30 de setembro.

Artigo 40.º

Com efeito, nos artigos 41.º e 42.º do CIMI, o legislador chama à colação a efetiva utilização do imóvel ou, com mais rigor, o fim a que está afeto no momento em que se procede à sua avaliação (cf. José Maria Fernandes Pires, Lições de Impostos sobre o Património e do Selo, Almedina, 2ª Ed., 2012, pág. 85).

Artigo 41 º

Ora, os estabelecimentos hoteleiros, como o aldeamento turístico da ora requerente, destinam-se a proporcionar, mediante remuneração, serviços de alojamento e outros serviços acessórios ou de apoio, com ou sem fornecimento de refeições.

Artigo 42.º

Não se destinam à habitação permanente dos seus proprietários ou clientes.

Artigo 43.º

É de resto a própria lei que presume existir uma "prestação de serviços de alojamento turístico quando um imóvel ou fracção deste esteja mobilado e equipado e sejam oferecidos ao público em geral, além de dormida, serviços de limpeza e recepção, por períodos inferiores a 30 dias" — cfr. art.º 43.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 39/2008, de 7 de março.

Artigo 44.º

Pelo que não se lhes podia atribuir nem urn coeficiente de afetação de 1 nem um coeficiente de localização de 3, em lugar dos coeficientes de afetação de 1,10 e de localização de 2 que resultam de lei.

No pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente, pode ainda ler-se, para além do mais que dele consta:

Artigo 46º

Em face do exposto pode concluir-se com segurança que as avaliações que subjazem às liquidações de IMI aqui em causa são ilegais, delas tendo resultado coleta de montante superior ao legalmente devido na aceção do disposto na al. c) do n.º 1 do artigo 115.º do CIMI.

Artigo 47.º

Em 2017:

a) O IMI incidiu à taxa de 0,3% sobre a totalidade dos 125 artigos que compõem o empreendimento turístico, cujo VPT global ascendeu a € 33.775.494,61 ;

b) Desses 125, 120 foram erradamente avaliados como habitacionais, tendo, pois, por base um coeficiente de afetação de 1 e um coeficiente de localização de 3;

c) Se, porém, a esses 120 artigos tivessem, como é de lei, sido aplicados os coeficientes de afetação e de localização relativos a «serviços», o VPT global dos prédios que compõem o empreendimento turístico ascenderia a € 25.686.864,611;

d) O IMI que incidiria sobre esse VPT global assim corretamente fixado ascenderia a € 77.060,59;

e) O IMI liquidado em excesso no ano de 2017 corresponde, portanto, a euros 24.265,90 (=101.326,49 € menos 77.060,59).

 

Em 2018:

a) O IMI incidiu à taxa de 0,3% sobre a totalidade dos 125 artigos que compõem o empreendimento turístico, cujo VPT global ascendeu a € 34.148.583,46;

b) Desses 125, 120 foram erradamente avaliados como habitacionais, tendo pois por base um coeficiente de afetação de 1 e um coeficiente de localização de 3;

c) Se, porém, a esses 120 artigos tivessem, como é de lei, sido aplicados os coeficientes de afetação e de localização relativos a «serviços», o VPT global dos prédios que compõem o empreendimento turístico ascenderia a €26.052.894,612, 

d) O IMI que incidiria sobre esse VPT global assim corretamente fixado ascenderia a € 78.158,68;e) O IMI liquidado em excesso no ano de 2018 corresponde, portanto, a €24.287,07 € 102.445,75 - € 78.158,68).

 

Em 2019:

a) O IMI incidiu à taxa de 0,3% sobre a totalidade dos 125 artigos que compõem o empreendimento turístico, cujo VPT global ascendeu a € 34.255.485,20;

b) Desses 125, 120 foram erradamente avaliados como habitacionais, tendo pois por base um coeficiente de afetação de 1 e um coeficiente de localização de 3;

c) Se, porém, a esses 120 artigos tivessem, como é de lei, sido aplicados os coeficientes de afetação e de localização relativos a «serviços», o VPT global dos prédios que compõem o empreendimento turístico ascenderia a € 26.162.783,703,

d) O IMI que incidiria sobre esse VPT global assim corretamente fixado ascenderia a € 78.488,35;

e) O IMI liquidado em excesso no ano de 2019 corresponde, portanto, a € 24.278,10 e € 102.766,46 - € 78.488,35).

 

Em 2020:

a) O IMI incidiu à taxa de 0,3% sobre a totalidade dos 125 artigos que compõem o empreendimento turístico, cujo VPT global ascendeu a € 34.255.485,20;

b) Desses 125, 120 foram erradamente avaliados como habitacionais, tendo pois por base um coeficiente de afetação de 1 e um coeficiente de localização de 3;

c) Se, porém, a esses 120 artigos tivessem, como é de lei, sido aplicados os coeficientes de afetação e de localização relativos a «serviços», o VPT global dos prédios que compõem o empreendimento turístico ascenderia a € 26.162.783,704,

d) O IMI que incidiria sobre esse VPT global assim corretamente fixado ascenderia a € 78.488,35;

e) O IMI liquidado em excesso no ano de 2020 corresponde, portanto, a € 24.278,10 (=102.766,46 -  € 78.488,35).

Artigo 48º

O IMI ilegalmente cobrado entre 2017 e 2020 perfaz, assim, a soma de € 97.109,17.

Artigo 49º

Deve, pois, V. Exa anular parcialmente as liquidações de IMI referentes a 2017, 2018,2019 e 2020, na medida do IMI cobrado em excesso pela aplicação de um coeficiente de afetação de 1 e de um coeficiente de localização de 3, em lugar dos coeficientes de afetação de 1,10 e de localização de 2 que resultam de lei.

O procedimento de revisão oficiosa não mereceu qualquer decisão por parte da Administração Tributária.

Até 2021 a Requerente manteve os prédios que compõe a unidade com a classificação matricial de “habitação “. (R-AT: 4.º).

 

  1. Fundamentação da seleção da matéria de facto

Ao Tribunal Arbitral incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão da causa e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, determinada com base nas posições assumidas pelas partes e nas várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

Os factos dados como provados resultaram do confronto da posição manifestada relativamente a cada facto pelas Partes e da apreciação da prova documental, o que foi feito com base nas regras da experiência, da normalidade e da racionalidade, em conformidade com o previsto no artigo 16.º, alínea e) do RJAT, bem como no artigo 607.º, n.º 5 do CPC aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, das quais resulta que o julgador apreciará livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto. A prova documental encontra-se identificada relativamente a cada facto, junto ao seu relacionamento. A prova testemunhal promovida pela Requerente foi, aliás, consonante com os factos constantes da documentação.

 

  1. Fundamentação – matéria de direito
    1. A posição das partes e o objeto do litígio

A Requerente assenta o seu pedido na avaliação que considera errada, que serviu de base às liquidações dos anos de 2017 a 2020, que contesta e das quais pediu a revisão, que viu tacitamente indeferida. Note-se que os prédios foram objeto de segunda avaliação, por si requerida, que confirmou os valores fixados na primeira avaliação.

Por seu lado, a Requerida sustenta que a avaliação que serviu de base de incidência às liquidações é um ato destacável que só podia ser autonomamente impugnado (23.º da R-AT) e que, para mais, as liquidações foram feitas considerando o VPT que constava validamente das matrizes em 31 de dezembro do ano respetivo e que não existe qualquer dado de facto, anterior à data das liquidações, que permitisse, mesmo em procedimento de revisão oficiosa, alterar o VPT dos imóveis, pois só em 2021-11-10 foi emitido pela Câmara Municipal de Loulé, o alvará de autorização de utilização para fins turísticos n.º .../2021, no qual consta que a utilização licenciada para o empreendimento é “fins turísticos”.

Nos termos em que a ação é proposta no pedido de pronúncia arbitral, o objeto do litígio que dela resulta, consiste em saber se a base de incidência do imposto é o seu VPT que vigorava ao tempo a que se referem os impostos, ou se esse VPT deve ser revisto com base na ilegalidade que a Requerente afirma ter sido cometida nos atos da avaliação e sua fixação, designadamente por violação das normas dos artigos 41.º e 42.º do CIMI[3].

A Requerente delimita claramente a sua causa de pedir no artigo 87.º do seu PPA, em que a sintetiza na seguinte fórmula, que complementa com a indicação das normas violadas, designadamente os artigos 41.º e 42.º do CIMI (70.º do PPA):

Importa, pois, anular parcialmente as liquidações de IMI referentes a 2017, 2018, 2019 e 2020, na medida do IMI cobrado em excesso pela aplicação de um coeficiente de afetação de 1 e de um coeficiente de localização de 3, em lugar dos coeficientes de afetação de 1,10 e de localização de 2 que resultam de lei.

Numa 2.ª linha de argumentação trazida nas suas alegações (58. a 63.), a Requerente sustenta que a norma do artigo 115.º do CIMI, que prevê a revisão oficiosa da liquidação e anulação, tem a cobertura constitucional dos princípios da justiça, da igualdade e da legalidade e no direito à tutela jurisdicional efetiva, que “impõem que sejam oficiosamente corrigidos todos os erros das liquidações que tenham conduzido à arrecadação de tributo em montante superior ao que seria devido à face da lei” (60.º das Alegações), o que levaria a que se averiguasse da legalidade substancial de cada ato antecedente da liquidação.

O objeto do litígio é determinado à luz do pedido e da causa de pedir, quer dizer, há que determinar que tutela pretende ter o requerente e por que razão considera que lhe deve ser deferida a pretensão. O conceito de pedido não oferece questões de maior no contencioso tributário de anulação; pretende-se basicamente a anulação de um ato tributário. Já a causa de pedir oferece maior dificuldade. Vejamos.

Lebre de Freitas[4] considera que a causa de pedir “corresponde ao núcleo fático essencial tipicamente previsto por uma ou mais normas como causa do efeito do direito material pretendido”, quer dizer, a causa de pedir é definida por factos, mas esses factos hão de constituir a facti species de determinada ou determinadas normas e é este binómio facto-norma invocada que constitui a causa de pedir. Aliás, a conexão entre factos e direito fundamentador da pretensão é claríssima na norma do artigo 108.º, n.º 2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”).

É inquestionável que a causa de pedir é definida através dos elementos constantes da petição inicial (108.º, n.º1 do CPPT) e não é suscetível de alteração sem o acordo da outra parte, como resulta da norma do artigo 273.º, n.º 1 do Código de Processo Civil (“CPC”). Neste sentido e no âmbito do processo tributário pode ver-se Jorge Lopes de Sousa, que justifica a impossibilidade de alteração da causa de pedir, designadamente nas alegações, com o princípio da estabilidade da instância[5].

O objeto do litígio consiste, pois, em saber se a base de incidência do imposto é o seu VPT que vigorava ao tempo a que se referem os impostos, ou se esse VPT deve ser revisto com base na ilegalidade que afirma ter sido cometida nos atos da avaliação e sua fixação, designadamente por violação das normas dos artigos 41.º e 42.º do CIMI.

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Nas suas alegações a Requerente sustenta ainda a desconformidade com a Constituição da República Portuguesa (“CRP”) da norma do artigo 54.º do CPPT que, por conter limitações no domínio do princípio da tutela jurisdicional efetiva, deve ter subjacente um fundamento racional, sujeito ao crivo do princípio da proporcionalidade (35. e 37. das alegações da Requerente). Este aspeto será também objeto de análise e decisão, como impõem as normas do artigo 280.º da CRP.

Por terem sido simultâneas as alegações a Requerida não teve oportunidade de exercer o contraditório relativamente a esta questão. Também não deixará de se avaliar a relevância desse passo.

 

  1. Apreciação jurídica da questão

O objeto  do litígio traçado, permite que seja visto em duas perspetivas: (i) averiguando se a base de incidência do imposto é o seu VPT que vigorava ao tempo dos impostos e constante das matrizes ou se esse VPT deve ser corrigido por efeito da apresentação em 2021/11/29 pela Requerente ao SF de Loulé ... do alvará de autorização de utilização para fins turísticos n.º.../2021 emitido em 2021-11-10 que permitiu a validação das declarações Modelo 1 do IMI, alterando a afetação de “habitação” para “serviços”[6] e anulando parcialmente as liquidações sub judicio; ou (ii) apurando se o VPT que presidiu às liquidações deve ser revisto com base na ilegalidade que a Requerente afirma ter sido cometida nos atos da avaliação e sua fixação, designadamente por violação das normas dos artigos 41.º e 42.º do CIMI.

Não parece que a primeira hipótese seja viável, quer por violar o princípio dispositivo, quer por falta de matéria factual suficientemente densificada. Como sabemos é à Requerente que cabe conformar a ação, apresentando os factos que considera constitutivos. Os factos assentes em N e O foram trazidos aos autos pela Requerida e não pela Requerente, como exige a norma do artigo 108.º, n.º 1 do CPPT. Por outro lado, a norma do artigo 113.º, n.º1 do CIMI impõe que o imposto seja liquidado “com base nos valores patrimoniais tributários dos prédios e em relação aos sujeitos passivos que constem das matrizes em 31 de dezembro do ano a que o mesmo respeita”, quer dizer, para que se anulassem as liquidações seria necessário que os Serviços da Administração Tributária tivessem corrigido as matrizes por referência aos anos a que se referem os impostos e isso não foi nem alegado nem por qualquer modo documentado.

Crê-se ser pacífico que nos anos de 2017 a 2020 o VPT dos imóveis era o que constava das suas matrizes e transposto para as liquidações impugnadas, juntas pela Requerente como documentos 2A, 2B , 2C e 2D, fixado após 2.ª avaliação solicitada por esta e que, de acordo com a autoridade municipal competente, a utilização dos imóveis era considerada residencial e que foi com base nesse dado que a avaliação foi feita e que não oferece qualquer contestação que, considerando esse fator, a avaliação corresponde a valores corretos.

De acordo com o artigo 1.º, n.º 1 do CIMI o Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) incide sobre o valor patrimonial tributário dos prédios, fixado de acordo com as regras que aquela codificação regula. Dos artigos 8.º e 113.º, n.º1 do CIMI, o imposto é devido pelo proprietário do prédio em 31 de dezembro do ano a que o mesmo respeitar, regras que têm ínsita a ideia de que cada prédio é base de tributação com as características do ano de tributação. Dito de outro modo, a lei e o imposto que esta comporta, aplica-se aos factos com a configuração e caracterização que estes tinham no momento legalmente relevante. Da caracterização do facto à época em que foram feitas as liquidações, resulta que o VPT se encontrava devidamente calculado. A lei está devidamente aplicada aos factos (ou á sua classificação) no momento relevante. Há por isso que concluir pela improcedência do pedido da Requerente, visto nesta primeira perspetiva.

A segunda perspetiva, que é a apreciação da legalidade do cálculo do VPT, com base em errónea qualificação dos coeficientes de afetação e de localização, em violação das normas dos artigos 41.º e 42.º do CIMI, como pretende a Requerente, tem como óbice, à primeira vista, a necessidade de observar o princípio da impugnação unitária previsto no artigo 54.º do CPPT, que regula no sentido de não serem suscetíveis de impugnação contenciosa os atos interlocutórios, quer dizer, assentando a avaliação dos prédios urbanos – ou formação do VPT – numa sequência de operações previstas nas normas dos artigos 38.º a 44.º do CIMI – a fixação do VPT tem natureza interlocutória, e querendo discuti-la, o contribuinte deverá fazê-lo através de 2.ª avaliação, nos termos da regra do artigo do artigo 75.º, n.º 1 do CIMI e persistindo a sua discordância e vontade de fazer valer o seu ponto de vista, terá que lançar mão da impugnação judicial da 2.ª avaliação, não podendo discutir a fixação do VPT em impugnação da liquidação do imposto, face à citada leitura do artigo 54.º do CPPT.

A questão da possibilidade de invocar eventuais ilegalidades eventualmente cometidas na fixação do VPT tem tido em todas as instâncias e circunscrições, incluindo nos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, Ilustres apreciações em sentidos opostos, através dos tempos, que a Requerente e a Requerida trouxeram aos autos.

Recentemente, já após a propositura desta ação, foi fixada recente jurisprudência[7] uniformizada pelo Supremo Tribunal Administrativo (“STA”), a que se adere em toda a linha. Com efeito, No acórdão do plenário do  Supremo Tribunal Administrativo, em recurso para uniformização de jurisprudência lavrado por unanimidade, de 23-02-2023 [Paula Cadilhe Ribeiro], processo n.º 0102/22.2BALSB, sumariou-se[8]:

Deixando o contribuinte precludir a possibilidade de sindicar o valor patrimonial tributário nos termos previstos nos artigos 76.º e 77.º do Código do IMI, não pode arguir a ilegalidade da liquidação com fundamento na ilegalidade subjacente ao cálculo do valor patrimonial tributário que lhe serviu de matéria coletável.

Ora, decorre deste entendimento sufragado pelo STA – que como se disse, se adota neste acórdão - só através da 2.ª avaliação prevista no artigo 76.º do CIMI e subsequente impugnação, prevista no artigo 77.º do mesmo Código, pode o sujeito passivo opor-se à fixação do VPT ou aos elementos que conduzem ao seu cálculo. Dito de outro modo, quando o sujeito passivo não se conformar com a 1.ª nem com a 2.ª avaliação, resta-lhe impugnar esta última decisão, ficando-lhe vedada a discussão dos fatores que determinaram o VPT e o próprio VPT na impugnação dos tributos que forem liquidados com base nesses elementos.

É claro que nada obsta a que o sujeito passivo utilize o procedimento de revisão previsto no artigo 78.º da Lei Geral Tributária (“LGT”) para tentar rever a avaliação do imóvel, se cumprir os restantes requisitos procedimentais; o que não pode é utilizar a sua discordância com a avaliação, ou com os elementos que a pressupõem, para rever a liquidação do imposto.

Se se compulsar o pedido de revisão, extratado na matéria assente, em Q, R e S, constata-se que é justamente isso que a Requerente faz: em Q, artigo 1.º da matéria assente, anuncia que o seu “pedido de revisão oficiosa visa a anulação das liquidações de IMI”, mas o fundamento, a ilegalidade, que diz viciar as liquidações, é a sua discordância com os coeficientes de afetação e de localização que conduziram ao VPT (veja-se R da matéria assente), que constituiu base de incidência.

Não sendo invocáveis nesta ação os vícios apontados pela Requerente, a sua pretensão tem de improceder.

 

  1. A constitucionalidade do artigo 54.º do CPPT

A Requerente sustenta a desconformidade da norma do artigo 54.º do CPPT por entender que a aplicação que dele tem sido feita, no sentido sustentado na decisão desta impugnação é desconforme com a CRP, por conter essa aplicação se traduzir em limitações no domínio do princípio da tutela jurisdicional efetiva, pois essas limitações devem ter subjacente um fundamento racional, sujeito ao crivo do princípio da proporcionalidade (35. e 37. das alegações da Requerente).

Esta norma foi já objeto de fiscalização concreta pelo Tribunal Constitucional (“TC”), que no seu acórdão n.º 410/2015 de 29-09-2015 [João Caupers], processo n.º 410/15[9] que decidiu “Julgar inconstitucional a interpretação do artigo 54.º do Código de Procedimento e Processo Tributário que, qualificando como um ónus e não como uma faculdade do contribuinte a impugnação judicial dos atos interlocutórios imediatamente lesivos dos seus direitos, impede a impugnação judicial das decisões finais de liquidação do imposto com fundamento em vícios daqueles, por violação do princípio da tutela judicial efetiva e do princípio da justiça, inscritos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa”. Tenha-se presente que o TC se pronunciou sobre a conformidade constitucional da aplicação da norma num caso concreto, que não tem as características desta impugnação. Aliás, como o acórdão em análise realça, a questão da constitucionalidade do artigo 54.º do CPPT foi já analisada em vários arestos no TC, referindo expressamente o acórdão n.º 386/2005 de 13-07-2005 [Benjamim Rodrigues], processo n.º 947/04[10], que decidiu pela constitucionalidade da norma do artigo 54.º do CPPT, naquele caso concreto e onde ficou expresso o seguinte parâmetro, já outras vezes afirmado:

Como tem sido concretizado pela jurisprudência deste Tribunal, o sentido tutelar emergente do parâmetro constitucional concretamente em causa impõe que se tenha por vedada “a criação de obstáculos que dificultem ou prejudiquem sem fundamento e de forma desproporcionada o direito de acesso dos particulares aos tribunais em geral” (cf. Acórdão n.º 1144/96, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 35º vol., pág. 349), daí decorrendo, justamente, a proscrição, constitucionalmente determinada, de qualquer regra que "possa diminuir intoleravelmente as garantias processuais do Recorrente, ou implicar um cerceamento das suas possibilidades de defesa que se tenha de considerar desproporcionado ou intolerável (...)" (cf. Acórdão n.º 266/2000, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).

 

Seguindo o caminho traçado pelo TC, cabe agora avaliar se na situação concreta do Requerente-Contribuinte vê intoleravelmente diminuídas as suas garantias processuais ou é cerceado das suas possibilidades de defesa que se tenham de considerar desproporcionadas ou intoleráveis.

Na génese da questão em análise está a discordância da Recorrente do VPT de prédios urbanos que lhe foi fixado. O percurso sucessivo de atos interlocutórios, procedimentos administrativos, reclamação graciosa e impugnação judicial, em duas instâncias encontra-se perfeitamente regulado de forma consistente. A fixação do VPT é inicialmente feita pela Administração Tributária, em procedimento que se encontra detalhadamente regulado no CIMI, permitindo ao contribuinte entender o percurso intelectivo que leva à fixação do VPT. Não concordando com a avaliação o contribuinte, querendo reclamar, deve pedir 2.ª avaliação, que será efetuada por comissão de 3 elementos, sendo um deles o próprio contribuinte ou seu representante, onde poderá fundamentar a sua posição (76.º do CIMI). Foi justamente o que o Requerente fez.

Não se conformando com os valores fixados, o direito permitia-lhe impugnar contenciosamente a fixação do VPT com fundamento em qualquer ilegalidade através de impugnação judicial (77.º-1 e -2 do CIMI), que é processo completamente regulado (artigos 96.º a 130.º do CPPT), que se inicia por articulado em que o contribuinte pode expor livremente os factos e vícios que imputa ao ato que pretende impugnar (108.º do CPPT), está sujeito a patrocínio obrigatório (6.º do CPPT), ao princípio do contraditório (3.º do CPC, ex-vi artigo 2.º do CPPT) e é julgado em tribunal estadual, com as garantias gerais que este órgão de soberania empresta sempre aos seus atos e ainda assim, a decisão está sujeita a recurso para 2.ª instância jurisdicional (280.º, n.º 1 do CPPT), através de processo devidamente regulado e sujeito às garantias próprias do Estado de direito português (279.º a 293.º do CPPT). O Requerente optou livremente por não seguir a via contenciosa. Não restam dúvidas que o direito assegurou ao Requerente todos os meios de defesa dos seus interesses através de processo equitativo.

Ao invés de usar a reação contenciosa tipicamente prevista em tempo oportuno, o Requerente optou por vários anos mais tarde, lançar mão do procedimento excecional de revisão de ato tributário, inserido no sistema jurídico para que a Administração Tributária reveja os seus próprios atos. Ora, o princípio do processo equitativo tem campo de aplicação no exercício da da justiça e nem tanto nos procedimentos privativos da Administração Pública, como é o caso do procedimento de revisão. A garantia de justiça é dada pelos órgãos de soberania do Estado de direito, que são os Tribunais que administram a justiça em nome do povo (202.º, n.º 1 da CRP) e não pela Administração Pública, que pauta a sua atividade pela observância estrita da lei.

Ao prescindir de seguir a via contenciosa, perfeitamente regulada e garantística, o Requerente não lançou mão dos instrumentos que o Estado coloca ao seu dispor para lhe assegurar solução justa para os seus interesses e não é desproporcionado nem intolerável que os processos jurisdicionais a que depois recorra sigam uma marcha que assente também no valor segurança, que é também valor do Direito, como é o valor justiça. Como refere Diogo Freitas do Amaral[11], “na maior parte dos casos, Justiça e Segurança combinam bem uma com a outra, conjugando-se ambas para alcançar um Direito justo e seguro.” Crê-se que é justamente essa composição que a norma do artigo 54.º do CPPT contêm; a marcha própria do procedimento administrativo e do processo judicial tributário exigem, em prol da segurança, que determinadas questões sejam dirimidas em determinados momentos, sob pena de perversão dos próprios instrumentos da justiça.

Pelas razões acabadas de invocar, não se considera desconforme com os princípios e normas constitucionais a interpretação feita neste acórdão da norma do artigo 54.º do CPPT, quando aceita o princípio da impugnação unitária e recusa a apreciação em sede jurisdicional da legalidade da fixação do VPT feita na fase procedimental anterior, sem que a Requerente tenha impugnado contenciosamente essa fixação.

Nos termos da norma do artigo 3.º, n.º 3 do CPC, ex-vi artigo 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT, considera-se manifestamente desnecessário dar cumprimento ao princípio do contraditório e ouvir a Requerida a propósito da constitucionalidade em apreciação, por a decisão de conformidade com a CRP ser favorável à sua posição.

 

  1. Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos invocados este Tribunal Arbitral decide:

I – Aplicar a norma do artigo 54.º do CPPT, por a considerar conforme com a Constituição da República Portuguesa a aplicação que dela faz neste acórdão;

II - Absolver a Requerida do pedido, mantendo na ordem jurídica os atos impugnados e condenar a Requerente no pagamento das custas, nos termos que constam no capítulo próprio.

 

  1. Valor do processo

Nos termos do artigo 3.º, n.º 3 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e cumprindo com a previsão do  artigo 306.º, n.º 2 do CPC e do artigo 94.º, n.º 2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aplicáveis ex-vi artigo 29.º, n.º 1, alínea c) e alínea e) do RJAT, fixa-se ao processo o valor de € 97.109,17.

 

  1. Custas

O valor da taxa de arbitragem é fixado em € 2.754.00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e fica a cargo da Requerente.

Notifique-se.

Lisboa, 15 de dezembro de 2023

Os árbitros,

 

 

 

Rui Duarte Morais (Presidente)

 

 

 

Nuno Maldonado Sousa  (vogal relator)

 

 

Jorge Carita (vogal)

 



[1] Veja-se neste sentido, na doutrina Jorge Lopes de Sousa – Código de Procedimento e de Processo Tributário. Volume II, 6.ª edição. Lisboa. Áreas Editora: 2011. Pp. 213- 214. Na jurisprudência veja-se o Acórdão do STA de 22-09-1999 [Baeta Queirós] no processo 23840, acessível em www.dgsi.pt.

[2] Veja-se a intervenção de António Abrantes Geraldes no Colóquio sobre o novo Código de Processo Civil, promovido pelo STJ, relatado em  https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2015/07/painel_3_recursos_abrantesgeraldes.pdf

[3] Veja-se a referenciação jurisprudencial feita em 48.º a 51.º do PPA e a argumentação produzida pela Requerente em 78.º e 87.º do seu PPA em confronto com a da Requerida, em 49.º a 56.º da sua Resposta.

[4] José Lebre de Freitas – A ação declarativa comum: á luz do Código de Processo Civil de 2013. 3.ª edição. Coimbra, Coimbra Editora, 2013, pp. 41-45.

[5] Jorge Lopes de Sousa – Código de Procedimento e Processo Tributário. Vol. II. 6.ª edição. Lisboa. Áreas Editora. 2011, p. 209.

[6] Veja-se N e O da decisão sobre a matéria de facto.

[7] Justamente em sentido contrário da jurisprudência invocada pela Requerente, toda ela anterior.

[8] Acessível em www.dgsi.pt

[9] Acessível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20150410.html

[10] Acessível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20050386.html.

[11] Veja-se Diogo Freitas do Amaral – Manual de introdução ao direito. Volume I. Coimbra. Livraria Almedina, 2021, pp. 123-124.