Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 738/2022-T
Data da decisão: 2023-07-07  IMT  
Valor do pedido: € 41.612,54
Tema: IMT – Caducidade
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Sumário:

  1. A transmissão onerosa do direito de propriedade sobre bens imóveis e a celebração de um contrato promessa com a tradição do imóvel são dois factos tributários previstos, respetivamente, nos artigos 2º, n.º1 e 2º, n.º2, al. a) do CIMT.
  2. Estando os prédios inscritos na matriz, não existe qualquer impedimento legal a que o valor tributável seja determinado por aplicação do CIMI, não se justificando por isso a avaliação dos prédios de acordo com o valor normal de mercado previsto no art. 14º, n.º4 do CIMT.

 

DECISÃO ARBITRAL

I. RELATÓRIO

I.1

  1. Em 30 de novembro de 2022 a contribuinte A... Lda, NIF ..., com sede em ..., Rua da ... Venda do Pinheiro, requereu, nos termos e para os efeitos do disposto do artigo 2.º e no artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, a constituição de Tribunal Arbitral com designação do árbitro singular pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º do referido diploma.
  2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e foi notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (de ora em diante designada por AT ou “Requerida”) no dia 09 de Dezembro de 2022.
  3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b) e artigo 6.º, n. º1, do RJAT, o signatário foi designado pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente Tribunal Arbitral singular, tendo aceite nos termos legalmente previstos.
  4. O Tribunal Arbitral foi constituído em 10.02.2023 e no mesmo dia proferiu um despacho a ordenar a notificação da Requerida para apresentar a sua resposta.
  5. A AT apresentou a sua resposta em 10.04.2023.
  6. A inquirição das testemunhas realizou-se no dia 24.05.2023.
  7. A Requerente apresentou as suas alegações em 16.06.2023.
  8. A Requerida não apresentou alegações.
  9. Pretende a Requerente que o Tribunal Arbitral declare ilegal e anule o indeferimento da referida reclamação graciosa apresentada contra os atos de liquidação de IMT e Imposto de SELO:

- Liquidação de IMT ..., no valor de € 1.967,71 e Imposto de Selo ... no valor de € 242,18;

- Liquidação de IMT ..., no valor de € 1.893,45 e Imposto de Selo ... no valor de € 233,05;

- Liquidação de IMT..., no valor de € 29.329,92 e Imposto de Selo ... no valor de € 3.609,84;

- Liquidação de IMT..., no valor de € 1.893,45 e Imposto de Selo ... no valor de € 233,05;

- Liquidação de IMT ..., no valor de € 1.967,71 e Imposto de Selo ...no valor de € 242,18;

no montante total de € 41.612,54 e restituídos os montantes pagos, acrescidos de juros indemnizatórios.

 

I.2. A Requerente sustenta o seu pedido, em síntese, nos seguintes termos:

 

  1. Em 18 de Julho de 2003, foi celebrado um contrato de promessa de compra e venda, com tradição imediata dos bens objeto do referido contrato, em que foi outorgante a ora requerente, na qualidade de promitente compradora.
  2. Uma vez que o armazém já estava em construção na data em que foi celebrado o contrato promessa de compra e venda, ainda que clandestinamente como foi consignado na clausula quarta do referido contrato, a promitente compradora e ora Requerente tomou desde logo posse do terreno e das benfeitorias em curso, tendo sido autorizada a proceder a obras de acabamento e adaptação do armazém à sua atividade.
  3. Para este efeito a então promitente compradora e ora Requerente celebrou um contrato de empreitada com a B..., Lda, datado de 18 de Julho de 2003, ao abrigo do qual foi terminada a construção e feita a adaptação do pavilhão à sua atividade que ali foi instalada desde 2005.
  4. Deve acrescentar-se que o SF de Mafra tinha conhecimento de todos estes fatos e de outros que reforçam a tradição dos bens em causa, muito antes da celebração das escrituras de compra e venda.
  5. Em nome da verdade tributária, não pode deixar de se insistir que o que existia na data da celebração do CPCV era apenas terreno e um edifício em tosco (ou um terreno com algumas benfeitorias em cima), que ainda não cumpriam nenhum dos requisitos previstos no artigo 10.º do CIMI para serem qualificados como prédio urbano.
  6. Determinar esta realidade e o seu valor, caso entendesse que havia mesmo lugar à tributação, era o que competia ao SF, e não a mera pretensão de fazer incidir a tributação sobre o que efetivamente foi transmitido em 2022, incluindo sobre o valor que a própria promitente compradora e ora Requerente acrescentou ao terreno e às benfeitorias nele implantadas, que adquiriu em 2003.
  7. É na linha deste preceito, que o mesmo Código do IMT estabelece no seu artigo 14.º n.º4 que quando um bem ou direito não possa ser avaliado nos termos do Código do IMI, isto é, que não seja ainda qualificado como prédio ao abrigo do artigo 10.º deste Código, que esse bem ou direito deve ser avaliado com base no seu valor normal de mercado.
  8.  Ao indeferir a reclamação graciosa foi pois violado o disposto no artigo 35.º n.º 1 do CIMT e no artigo 39.º n.º 1 do C. Imposto do Selo, na medida em que o direito à liquidação de qualquer um desses impostos caduca passados oito anos sobre a data da transmissão.
  9. Nestes termos e nos que doutamente serão considerados, tal violação torna ilegais as liquidações de IMT e de I. Selo, por violação dos seus pressupostos de facto e de direito, devendo as mesmas ser anuladas e restituídos os montantes pagos, acrescidos de juros indemnizatórios ao abrigo do artigo 43.º da LGT.

 

I.3 Na sua Resposta a AT, invocou, o seguinte:

 

  1. Para existir facto tributário bastará que, cumulativamente, se verifiquem dois requisitos: existir contrato-promessa e com base nele existir tradição ou posse. Isto é, com apoio no contrato promessa, o promitente comprador e, naturalmente o futuro dono, passou a deter o imóvel como coisa sua.
  2. Neste sentido, estabelece a alínea a) do n.º 2 do artigo 2.º do CIMT que, o IMT incide sobre “[a]s promessas de aquisição e de alienação, logo que verificada a tradição para o promitente adquirente, ou quando este esteja usufruindo os bens, exceto se se tratar de aquisição de habitação para residência própria e permanente do adquirente ou do seu agregado familiar e não ocorra qualquer das situações previstas no n.º 3.”
  3. Em súmula, para efeitos de IMT, existindo contrato promessa de compra de venda de um imóvel, logo que verificada a tradição por parte do(s) promitente(s) adquirente(s) do(s) bem(ns) imóvel(eis), verificar-se-á uma transmissão fiscalmente relevante.
  4. No caso em apreço, cabe-nos em primeiro lugar analisar o contrato promessa de compra e venda realizado em 18-07-2003, entre a sociedade, ora Requerente, na qualidade de promitente compradora, e as sociedades, melhor identificadas no ponto 5.º da presente informação, enquanto promitentes vendedoras, de forma a apurar se do seu teor se pode retirar que houve tradição por parte da promitente adquirente dos bens imóveis em causa.
  5. Sobre esta questão, como muito bem analisou o SF de Mafra, daquele contrato não se vislumbra a tradição do mesmo.
  6. Acresce ainda a estes factos, a constatação de que foi em nome das promitentes vendedoras que foi emitida a autorização de loteamento e foram emitidas todas as licenças subsequentes
  7. Em consequência, e tendo como boas as alegações da Requerente, é de referir que as liquidações de IMT e IS não foram efetuadas em data anterior, nos termos do artigo 19.º do CIMT [no momento definido no artigo 22.º e o seu pagamento efetuado no prazo definido no artigo 36.º, todos do CIMT], tão e somente por o alegado facto tributário não ter sido comunicado à AT.
  8. É que o contrato promessa, não sendo um ato público, até àquela data (26-11-2021) não era do conhecimento da AT (nem poderia ter sido), impedindo-a de exercer o direito à liquidação de IMT e IS.
  9. Assim sendo, o prazo de caducidade do direito à liquidação só começa a contar a partir do momento em que a AT toma conhecimento do referido contrato promessa de compra e venda, supostamente acompanhado de tradição, o que verificou apenas no ano 2021.
  10. Assim sendo, temos que o termo inicial do prazo de caducidade, em causa nos presentes autos, verificou-se em 26-11-2021, data em que foi dado conhecimento à AT do referido contrato promessa.
  11. E se nenhuma causa de suspensão ou de interrupção tenha ocorrido, esse prazo terminaria, em 26-11-2029.
  12. Ora, in casu, não ficou demonstrada, quanto aos atos de liquidação, postos em crise, sendo de manter os atos de liquidação, inexistindo qualquer erro imputável aos serviços, pelo que não assiste à Requerente o direito a juros indemnizatórios.

 

II. SANEAMENTO

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março e encontram-se legalmente representadas.

O Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º1, alínea a), 5.º e 6.º, todos do RJAT.

O processo é o próprio.

Inexistem questões prévias que cumpra apreciar nem vícios que invalidem o processo.

Impõe-se agora, pois, apreciar o mérito do pedido.

 

III. – MATÉRIA DE FACTO   

III.1. Factos provados

 

Antes de entrar na apreciação das questões, cumpre apresentar a matéria factual relevante para a respetiva compreensão e decisão, a qual, examinada a prova documental e tendo em conta os factos alegados, se fixa como segue:

 

  1. Em 18 de Julho de 2003, foi celebrado um contrato de promessa de compra e venda, em que foram outorgantes a ora requerente, na qualidade de promitente compradora, e os seguintes promitentes vendedores:

“C..., Lda”, NIPC ...;

“D... Lda”, com o NIPC ...;

“E..., Lda”, NIPC ...;

“F..., SA”, NIPC ... e;

“G..., SA”, NIPC ... .

  1. As promitentes vendedoras, eram proprietárias em comum e partes iguais de um terreno situado no lugar da ... e ..., , da então freguesia do..., concelho de Mafra, inscrito na respetiva matriz cadastral sob o artigo..., Secção G, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Mafra sob o n.º .../... e posteriormente inscrito na matriz da União das Freguesias de ... e ... sob o artigo urbano ...,
  2. As promitentes vendedoras prometeram vender e a promitente compradora, ora Requerente, prometeu comprar, as frações autónomas AJ, AL e AM do prédio identificado no artigo anterior, que por sua vez teve origem no artigo ... da extinta freguesia da ... .
  3. O preço acordado pelo contrato promessa para a compra das frações foi de €402.529,91, preço este cujo pagamento foi acordado em 4 prestações de €100.632,48, cada uma.
  4. A cláusula sétima do referido contrato-promessa tem o seguinte conteúdo:

 

 

  1. Em 18.07.2003 a Requerente celebrou um contrato de empreitada com a B..., Lda..
  2. No âmbito deste contrato de empreitada, nas frações identificados nos factos provados n.º 2º e 3º, foi construído um caís de cargas e descargas e as frações foram ligadas.
  3. As obras realizadas pelo Requerente e pelos promitentes vendedores terminaram em 2005.
  4. As chaves das frações foram entregues pelos promitentes vendedores à Requerente em 2005.
  5. A requerente ocupou as instalações em 2005, onde passou a exercer a sua atividade comercial e a receber a sua correspondência fiscal.
  6. Em 12 de Fevereiro de 2014 foi estabelecido um novo acordo para o pagamento da última prestação de € 100.632,48 do contrato promessa de compra e venda celebrado em 18.07.2003.
  7. A Câmara Municipal de Mafra atribuiu, em nome das promitentes compradoras, a licença de utilização das referidas frações em 15/09/2009, tendo sido atribuído número .../2009.
  8. A Requerente apresentou um requerimento junto do SF de Mafra, datado de 26 de novembro de 2021, pedindo o reconhecimento da caducidade do direito às liquidações ora impugnadas, relativamente à transmissão das frações AJ, AL e AM do prédio inscrito sob o artigo ... da freguesia de ... e ..., concelho de Mafra.
  9. Foram celebradas as escrituras prometidas pelo CPCV, a primeira em 6 de dezembro de 2021 e a segunda em 01 de agosto de 2022.
  10. A Requerente pagou, no dia 06.12.2022, as liquidações:

- de IMT..., no valor de € 1.967,71 e Imposto de Selo ... no valor de € 242,18;

- de IMT ..., no valor de € 1.893,45 e Imposto de Selo ... no valor de € 233,05;

- de IMT ..., no valor de € 29.329,92 e Imposto de Selo ... no valor de € 3.609,84;

- de IMT ..., no valor de € 1.893,45 e Imposto de Selo ... no valor de € 233,05;

- de IMT..., no valor de € 1.967,71 e Imposto de Selo ... no valor de € 242,18.

  1. Em resposta ao requerimento apresentado em 26-11-2021, a Requerente foi notificada pelo ofício n.º ..., datado de 19-01-2022, do SF de Mafra, remetido através do registo RH ... PT, do indeferimento da pretensão.
  2. Por requerimento de 02/02/2022, a Requerente veio deduzir reclamação graciosa, a qual tomou o n.º ...2022..., solicitando a caducidade das liquidações de IMT e IS devidas pela aquisição das frações “AJ”, “AL” e “AM” do prédio identificado na matriz predial sob o artigo U-... da União das Freguesias de ... e ... .
  3. Por despacho de 18-08-2022, proferido pelo Chefe de Finanças de Mafra, foi o projeto de decisão convolado em definitivo, indeferindo o pedido da reclamação graciosa.
  4. Do indeferimento, foi a Requerente notificada, via CTT, sendo a mesma considerada concretizada em 12-09-2022.

 

 

IV.2. Factos não provados

 

Não existem factos essenciais não provados, uma vez que todos os factos relevantes para a apreciação do pedido foram considerados provados.

 

IV.3. Motivação da matéria de facto

 

Os factos provados integram matéria não contestada e documentalmente demonstrada nos autos.

Os factos que constam dos números 1 a 6, 11 a 15 e 17 a 19 são dados como assentes pela análise dos documentos 1 a 5 juntos pela Requerente, pelo processo administrativo e pela posição assumida pelas partes.

Os factos dos números 7, 8, 9 e 10 resultam do depoimento das testemunhas H... e I... e do depoimento de parte do gerente da Requerente, J... , cujos depoimentos foram prestados de forma credível, tendo todos confirmado que as obras realizadas foram a construção de um cais de cargas e descargas e a ligação das frações. Os depoimentos foram coincidentes, tendo todos classificado as obras como de adaptação, com acabamentos mais específicos para a atividade que a Requerente iria desenvolver. Os três indicaram que as chaves das frações foram entregues em 2005 à Requerente, ano que que a Requerente passou ali a desenvolver a sua atividade.

Os documentos juntos com o requerimento da Requerente de 03.05.2023 demonstram que a Requerente passou, a partir de 2005, a receber as notificações fiscais no ..., Rua ..., ... Venda do Pinheiro.

Quantos aos factos que constam do número 16 resultam especificadamente dos fls. 106 e 107 do ppa. 

 

V. Do Direito

 

A) Caducidade

 

A Requerente alega que o direito à liquidação do IMT e do IS caducou, uma vez que o facto tributário ocorreu aquando da celebração do contrato promessa de compra e venda e tradição dos bens imóveis verificado em 2003.

 

Quid juris?

 

Nos termos do art. 2º, n.º1 do CIMT

“1 - O IMT incide sobre as transmissões, a título oneroso, do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito, sobre bens imóveis situados no território nacional.”

A norma citada delimita o campo de incidência territorial e define as transmissões que estão sujeitas a tributação. É assim objeto de incidência deste tributo a transmissão onerosa do direito de propriedade sobre bens imóveis.

Contudo, o conceito de transmissão relevante para feitos de incidência de IMT é distinto do conceito de transmissão civil. O art. 2º, n.º2, al. a) do CIMT prevê o seguinte:

“2 - Para efeitos do n.º 1, integram, ainda, o conceito de transmissão de bens imóveis:
a) As promessas de aquisição e de alienação, logo que verificada a tradição para o promitente adquirente, ou quando este esteja usufruindo os bens, excepto se se tratar de aquisição de habitação para residência própria e permanente do adquirente ou do seu agregado familiar e não ocorra qualquer das situações previstas no n.º 3;”

 

Nos termos do art. 2º, n.º1 do CIMT a transmissão onerosa do direito de propriedade de um imóvel constitui um facto tributário (IMT). Para efeitos fiscais (IMT), o legislador integra também no conceito de transmissão as promessas de aquisição e alienação logo que verificada a tradição do imóvel (art.º 2º, n.º2, al. a) do CIMT).

No caso em apreço, a transmissão do direito de propriedade dos imóveis ocorreu em 2021 e 2022, aquando da celebração das escrituras de compra e venda. É incontornável que estes factos tributários ocorreram.

Contudo, entende a Requerente que, uma vez que tinha celebrado um contrato promessa de compra  venda dos imóveis em 2003 e que a tradição dos mesmo ocorreu nessa data, o direito à liquidação do tributo (IMT e IS) caducou.

Vejamos, primeiro, a questão relativa à tradição dos prédios. A tradição da coisa é constituída por um elemento negativo (o abandono pelo antigo detentor) e por um elemento positivo (ato que exprima a tomada de poder sobre a coisa).

Citando o Acórdão do STJ, Proc. 1729/12.6TBCTB-B.C1.S1, de 25 de Março de 2014[1]:

            “A tradição da coisa exprime, na disciplina dos direitos reais, a transmissão da detenção de uma coisa entre dois sujeitos de direito, sendo constituída por um elemento negativo (o abandono pelo antigo detentor) e um elemento positivo, a tradicionalmente chamada apprehensio (acto que exprime a tomada de poder sobre a coisa). […]

         É no elemento positivo da traditio (apprehensio) que se verificam as variações que explicam a distinção entre tradição material e tradição simbólica.

         A tradição é material quando, p. ex., o livreiro entrega em mão o livro ao comprador, ou o vendedor de uma casa leva o comprador a entrar nela, abandonando-a de seguida; será simbólica quando o vendedor de um apartamento entrega as chaves ao comprador, ou o vendedor de uma quinta entrega ao comprador os títulos ou os documentos que justificavam o seu direito, ou, como nos antigos costumes, lhe entregava uma porção de terra do prédio ou, p.ex., uma cepa de uma vinha.

         A tradição material é, portanto, a realizada através de um acto físico de entrega e recebimento da própria coisa; a tradição simbólica é o resultado do significado social ou convencional atribuído a determinados gestos ou expressões.”

            Deste modo, seja na tradição material, seja na tradição simbólica, é necessária a ocorrência cumulativa de dois elementos – o abandono do anterior detentor e atos materiais, físicos ou simbólicos, por parte do adquirente que exprimam uma tomada de poder sobre a coisa. No quadro fatual em apreciação (factos provados 7 a 10), tendo presente que as chaves só foram entregues em 2005, entendemos que a tradição só ocorreu nessa data e não em 2003, como é alegado pela Requerente. A disponibilização do imóvel para nele fazer obras de adaptação, que ocorrerem entre 2003 e 2005, não confere ao comprador a possibilidade de domínio sobre os imóveis, nem traduz o seu abandono pelos vendedores[1].

Só a partir de 2005, a Requerente acedeu aos prédios em causa, fazendo uso das chaves que lhe foram entregues, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.  O acesso aos prédios por parte da Requerente, fazendo uso das chaves que lhe foram entregues pelas promitentes vendedoras deve ser interpretado como uma expressão de domínio material sobre os imóveis.

Tendo presente que, a tradição dos prédios ocorreu em 2005, ainda assim, no  caso sub judice estão em apreciação as liquidações impugnadas (IMT ... Imposto de Selo...; IMT..., Imposto de Selo ...; IMT..., Imposto de Selo ...; IMT ..., Imposto de Selo ...; IMT ... Imposto de Selo ...) relativas às compras e vendas efetuadas em 2021 e 2022 e não o direito à liquidação sobre o facto tributário ocorrido em 2005 (contrato promessa de compra e venda de imóveis com tradição). Aliás, não se pode invocar a caducidade do direito à liquidação, se a AT não fez qualquer liquidação sobre o facto tributário ocorrido em 2005. A caducidade é uma forma extinção da obrigação tributária. Não se pode extinguir uma liquidação de 2005 que não existe.

A transmissão onerosa do direito de propriedade sobre bens imóveis e a celebração de um contrato promessa com a tradição do imóvel são dois factos tributários previstos, respetivamente, nos artigos 2º, n.º1 e 2º, n.º2, al. a) do CIMT.

O art. 22º, n.º3 do CIMT prevê um regime de encontro de contas a realizar no momento da celebração da escritura de compra e venda, quando se transmite do direito de propriedade para os casos em que o adquirente já pagou previamente o imposto pela celebração do contrato promessa de compra e venda com tradição.

No entanto, este encontro de contas pressupõe que exista uma liquidação e pagamento anterior, o que, no caso em apreço, não ocorreu. Citando: José Maria Pires[2] “(…) nos casos em que o promitente adquirente venha a receber a tradição do imóvel, por entrega da chave e pague IMT com base no disposto na alínea a) do n.º2 do artigo 2º, terá de novo que pagar quando celebrar o contrato de compra e venda, descontando ao imposto que agora apurar, o que já pagou antes, quando se operou a tradição material do imóvel.” 

Assim, não existindo qualquer liquidação nem pagamento, pela celebração prévia do contrato promessa de compra e venda com tradição, não pode ser feito qualquer encontro de contas, aquando da transmissão do direito de propriedade ocorrida em 2021 e 2022.

Neste sentido veja-se o Ac. do TCA Norte de 08.02.2018, proc. n-º 01436/08.4 BEVIS:

“A posição da Recorrente de querer prevalecer-se para efeitos de tributação, da transmissão ficcionada da promessa com tradição quando entretanto já ocorreu a compra e venda, facto tributário que é o paradigma da sujeição a imposto, não tem respaldo na lei, desde logo, porque agora as razões de prevenção da fraude e evasão fiscais que estão na base daquela ficcionada transmissão e da tributação antecipada no caso não subsistem, uma vez que não ocorreu a “tributação antecipada” em sede de SISA, quando se deu a tradição do imóvel com o contrato-promessa.”

No mesmo sentido o Ac. do TCA Norte de 21.10.2004, proc. n.º 00092/04:

“6.3.1. Quanto à segunda questão, da fundamentação exposta a propósito da caducidade do direito à liquidação resulta claro que entendemos que a recorrida carece de razão, não merecendo a sua tese apoio legal, sob pena de se estar a permitir que os sujeitos passivos pagassem ou não impostos conforme a sua vontade de realizar a escritura de compra e venda no prazo de caducidade ou para além dele.

Deste modo, o facto tributário deve ter-se por verificado só na data em que a Administração Tributária teve dele conhecimento ou em que lhe foi possível legalmente obter esse conhecimento – 21 de Outubro de 1996, data da celebração da escritura de compra e venda.”

As liquidações impugnadas foram elaboradas em 2021 e 2022 e notificadas nos mesmos anos, respetivamente, e são relativas aos factos tributários ocorridos em 2021 e 2022 (data das escrituras de compra e venda). O prazo de caducidade do direito à liquidação do IMT e do IS é de oito anos (art. 35º, n.º1 do CIMT e art. 39º, n.º1 do CIS), contados partir da transmissão. Destarte, o prazo de oito anos que é concedido à AT para proceder à liquidação e notificar o contribuinte validamente não foi excedido, julgando-se improcedente a alegação da caducidade.

 

B) Valor Tributável

 

Nesta parte, a Requerente alega que o valor patrimonial sobre o qual incidiu o IMT e o IS inclui o valor que a própria promitente Requerente acrescentou aos prédios e as benfeitorias nele implantadas. Entende a Requerente que, para efeitos de IMT e IS, o valor tributável deveria ser apurado por aplicação do disposto no art. 14º, n.º4 a 6 do CIMT.

Nos termos do art. 12º, n.º1 do CIMT, o IMT, incide sobre o valor do contrato ou sobre o valor patrimonial tributário do imóvel, consoante o que for maior, tal como ocorreu no caso em julgamento. Tendo as transmissões em apreciação ocorrido em 2021 e 2022, estando os prédios inscritos na matriz, não existe qualquer impedimento legal para que o valor tributável seja determinado por aplicação do CIMI, não se justificando por isso a avaliação dos prédios de acordo com o valor normal de mercado previsto no art. 14º, n.º4 do CIMT. 

Acresce que, o ónus da prova da realização e quantificação das obras é da Requerente (art. 74º, n.º1 da LGT). Da factualidade demostrada não se afigura que as obras realizadas pela requerente [construção de um caís de cargas e descargas e a ligação de frações] possam interferir no valor patrimonial tributário dos prédios. Tendo presente os indicadores objetivos previstos no art. 38º, n.º1 do CIMI, não se afigura que as obras, que classificamos de adaptação, efetuadas pela Requerente possam influenciar de forma majorativa o valor patrimonial dos prédios. 

Ainda que as obras tivessem relevância para efeitos do valor patrimonial tributários dos prédios, a não alegação do valor das obras realizadas é também impeditiva da sua tomada em consideração. Cabe à requerente alegar a causa de pedir (art. 10º, n.º2, al. c) do RJAT). No caso em apreço, a Requerente não alegou o valor das obras realizadas.

Face ao exposto improcede, também, a alegação de violação do disposto no art. 14º, n.º4 a n.º6 do CIMT.

 

Destarte, face ao tudo o que foi exarado, julga-se improcedente a presente ação.

 

C) Juros Indemnizatórios

 

            A apreciação da condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios fica prejudicada pela solução atrás alcançada.

            Mantendo-se o ato tributário sindicado, em consequência, o pedido de juros indemnizatórios deverá também ser julgado improcedente.

 

VI) DECISÃO

 

Em face de tudo quanto se deixa consignado, decide-se:

 

a) Julgar integralmente improcedente o pedido de declaração de ilegalidade dos atos de:

- Liquidação de IMT ... e Imposto de Selo ...;

- Liquidação de IMT ... e Imposto de Selo ...;

- Liquidação de IMT ... e Imposto de Selo ...;

- Liquidação de IMT ... e Imposto de Selo ...;

- Liquidação de IMT ... e Imposto de Selo ...;

e em consequência absolver a Requerida do pedido;

c) Condenar a Requerente nas custas do processo face ao decaimento.

 

Fixa-se o valor do processo em €41.612,54 nos termos do artigo 97º-A, n.º 1, a), do CPPT, aplicável por força da alínea a) do n. º1 do artigo 29.º do RJAT e do n. º2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €2.142,00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 07 de julho de 2023  

 

O Árbitro

 

_________________________________

(André Festas da Silva)

 

 



[1] Neste sentido cf. Ac. do TCA do Sul, de 18/05/2023, proc. n.º 2405/10.0 BELRS

[2] In Lições de Impostos sobre o Património e do Selo, Almedina, 2010, pág. 272