Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 634/2019-T
Data da decisão: 2021-03-15  IMT  
Valor do pedido: € 102.624,40
Tema: IMT – Isenção; Interpretação de contrato.
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SUMÁRIO

Os contratos devem ser interpretados à luz do disposto no artigo 236.º do Código Civil, ou seja, “com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”.

 

DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

Os árbitros Dr. José Pedro Carvalho, como presidente e Dr. José Nunes Barata e Dr. José Joaquim Monteiro Sampaio e Nora, como árbitros auxiliares, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa como árbitros em colectivo em 15 de Novembro de 2018, proferem a seguinte decisão arbitral:

             

I. RELATÓRIO:

 

A..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede na ..., n.º..., piso..., sala..., ...-... Braga, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Braga sob o n.º..., requer a CONSTITUIÇÃO DE TRIBUNAL ARBITRAL COLETIVO, nos termos do disposto no artigo 2º., nº. 1, alínea a), 5º., nº. 3 alínea a), 6º n.º 1, 10º., n.º 1 alínea a), todos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT) e do artigo 102º., n.º 1, alínea b) do CPPT, com vista, de forma imediata, à anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa proferida pelo Serviço de Finanças de Braga -..., no procedimento de reclamação graciosa n.º ...2019... e de forma mediata, à declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação de IMT no valor de 102.624,40 €.

Com efeito, pretende a Requerente que deve ser declarada a nulidade da liquidação de Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT) impugnada, da qual apresentou previamente a reclamação graciosa nº ...2019..., que foi totalmente indeferida.

A Requerente invoca que tendo adquirido para revenda em 20-7-2015, dois prédios urbanos, que vendeu em 19-10-2017 a uma sociedade terceira, a qual pagou o correspondente IMT, apesar de ter sido declarado que essa alienação era para revenda, o que veio a ser rectificado por escritura de 24-10-2018, não existe normativo legal para a liquidação de IMT sobre a aquisição dos imóveis ocorrida em 20-7-2005, invocando ainda vício de fundamentação do acto de liquidação do IMT ora em apreço, requerendo, em consequência, a declaração de ilegalidade e consequente anulação desse ato de liquidação de IMT impugnado.

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 2-10-2019.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 15/11/2019 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 17/12/2019

A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta em 10-2-2020 – depois de deferido por mais 5 dias o prazo para a apresentação dessa resposta - em que defendeu que o pedido deve ser julgado improcedente, pois constando da escritura de 15-10-2017 que a aquisição dos prédios é para revenda, a escritura de rectificação de 19-10-2017 não releva por inexistir erro patente ou ostensivo, pelo que deve manter-se a liquidação efectuada.

Por despacho arbitral de 17-2-2020, visto não ter sido requerida a produção de prova adicional, para lá da prova documental já incorporada nos autos, dispensou-se a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT e facultou-se às partes a possibilidade de apresentarem, alegações escritas, no prazo de 10 dias sucessivos, começando pela requerente.

A requerente apresentou alegações em 27-2-2020, tendo a requerida apresentada alegações em 12-3-2020, em que, no essencial, defendem o que constava já dos seus articulados.

O prazo para proferir acórdão foi prorrogado em dois meses, pelos despachos de 7-9-2020, 9-11-2020 e 7-1-2021.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos arts. 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, pelo que cumpre decidir.

 

II. DESPACHO SANEADOR:

O Tribunal Arbitral é o competente, mesmo em razão da matéria, as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artº. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março) e estão devidamente representadas, não havendo outras excepções ou nulidades de conhecimento oficioso que cumpra conhecer.

 

III. FACTOS PROVADOS:

Atentos os documentos juntos pela requerente e o processo administrativo junto pela requerida, consideram-se provados os seguintes factos, sendo certo que as partes estão totalmente de acordo sobre esta factualidade:

a) A Requerente é uma sociedade anónima, que tem por objecto “Indústria da construção civil, empreitadas e obras públicas. Compra e venda de bens imóveis. Promoção imobiliária. Prestação de serviços de engenharia. Gestão de imóveis próprios. Arrendamentos”. (obtido do portal da justiça)

b) Em 20-07-2015, a Requerente adquiriu os prédios urbanos inscritos na matriz predial urbana da freguesia de ..., concelho de Lisboa, sob os artigos 2006 e 2007, declarando que os destinava para revenda, tendo exibido documento comprovativo da isenção do Imposto Municipal sobre a Transmissão Onerosa de Imóveis (provado pelo documento 2 junto pela requerente e também no processo administrativo)

c) No dia 19-10-2017 foi realizada a escritura de compra e venda entre a Requerente e a firma B..., SA, como vendedoras, ambas representadas por C... e D..., e a empresa E..., Lda, como compradora, pela qual a Requerente declarou vender e a Sociedade E..., Lda. declarou comprar à Requerente os dois prédios referidos na alínea anterior, bem como um outro prédio, à sociedade B..., SA (provado pelo documento 3 junto pela requerente e também no processo administrativo)

d) Nessa escritura consta, para além do mais, o seguinte: (provado pelo documento 3 junto pela requerente e também no processo administrativo)

 

e) Aquando desta escritura de 19-10-2017, a adquirente:

i) pagou o IMT respeitante à transmissão, no montante de € 97.500,00 e € 175.500,00, pelas declarações com os números ... e ... emitidas pela AT, liquidadas e pagas em 19/10/2017, que dizem respeito aos prédios referidos na al. b) supra:

ii) apresentou a declaração com o número ..., também emitida pela AT, em 18-10-2017, “emitida a zeros em virtude do benefício para REVENDA”, e respeitante ao prédio adquirido à sociedade B..., SA (provado pelo documento 3 junto pela requerente e também no processo administrativo, bem como pelo acordo das partes relativo à parte final)

f) A sociedade adquirente tem por objecto “compra e venda de bens imóveis e revenda daqueles adquiridos para esse fim; actividades de promoção imobiliária; exploração de imóveis, incluindo o arrendamento de curta e de longa duração para fins habitacionais ou comerciais; exploração de hotel; bem como todas as actividades e opreações relacionadas com o exposto.” (provado pelo documento 5 junto pela requerente)

g) No dia 10/10/2018, a Requerente foi notificada da liquidação de IMT, no valor de € 102.624,41, acrescido de € 4.554,84 de juros compensatórios, relativa à aquisição dos prédios correspondentes aos artigos 2006 e 2007 referidos na al. b), com data limite de pagamento em 9-11-2018 (provado pelo documento 7 junto pela requerente e também no processo administrativo), com o seguinte teor:

 

h) No dia 24-10-2018, foi celebrada uma escritura retificativa na qual as sociedades intervenientes na escritura de 19/10/2017, declaram o seguinte (provado pelo documento 6 junto pela requerente e também no processo administrativo):

 

i) Em 13/03/2019, a ora Requerente apresentou reclamação graciosa, pedindo a anulação da liquidação de IMT referida em g), no montante de € 102.624,41 (provado por documento constante do processo administrativo)

j) Em 23/05/2019 a Requerente foi notificada do projecto de indeferimento, da Reclamação Graciosa, nos termos do artigo 60º n.º 1 al. b) da LGT, tendo exercido o direito de audição no dia 12/06/2019. (provado por documentos constantes do processo administrativo)

k) A Reclamação Graciosa foi decidida por despacho de 17/06/2019 pelo Chefe do Serviço de Finanças de Braga ..., e notificado pelo ofício de 25/06/2019 (provado pelo doc. 1 junto pela requerente)

l) A presente Impugnação acção deu entrada neste Centro de Arbitragem em 25/09/2019.

 

Não existem outros factos com interesse para a decisão dos presentes autos, que tenham sido alegados pelas partes ou possam resultar dos documentos e do processo administrativo juntos.

 

III.    DO DIREITO

 

Considerando os factos provados e a matéria de direito constante do pedido de pronúncia arbitral apresentado pela Requerente e a resposta da Requerida, são questões controvertidas a decidir pelo Tribunal Arbitral, as seguintes:

a)            Da ilegalidade da liquidação de IMT sobre a aquisição dos imóveis ocorrida em 20-7-2015, por não verificação dos pressupostos da caducidade da isenção; e

b)           Da ocorrência vício de fundamentação do acto de liquidação do IMT.

Vejamos.

 

*

                Conforme resulta dos factos provados, a liquidação de IMT controvertida, diz respeito à aquisição pela Requerente, de dois prédios urbanos, em 20-7-2015.

                O fundamento dessa mesma liquidação radica no disposto no artigo n.º 5 do artigo 11.º do CIMT que dispõe que:

“A aquisição a que se refere o artigo 7.º deixará de beneficiar de isenção logo que se verifique que aos prédios adquiridos para revenda foi dado destino diferente ou que os mesmos não foram revendidos dentro do prazo de três anos ou o foram novamente para revenda.”.

                Em causa está o último segmento da norma transcrita, designadamente a circunstância de os prédios em causa terem sido adquiridos para revenda.

                A AT sustenta a legalidade da liquidação ora em crise, no teor da escritura de 19-10-2017, por entender que na mesma é declarado que os prédios ali vendidos pela Requerente, e por esta adquiridos em 20-7-2015, beneficiando da isenção prevista no artigo 7.º do CIMT, terão sido novamente adquiridos para revenda.

                A referida escritura de 19-10-2017, foi objeto de escritura de retificação, outorgada em 24-10-2018, no sentido de ficar a constar daquela que o único imóvel que se destina a revenda é o prédio ali adquirido à sociedade B..., Ld.ª.

                Quanto a esta circunstância, julga a AT que “não é aceitável que se considere que ocorreu um erro conforme o previsto no artigo 249º do Código Civil, ou seja que seja permitida a rectificação por se considerar que ocorreu um erro patente ou ostensivo”.

                Ressalvado o respeito devido, julga-se não assistir qualquer razão à AT, sendo que apenas uma leitura superficial da escritura de 19-10-2017 permitirá concluir, como aquela fez, que dali consta que os prédios adquiridos à Requerente foram destinados a Revenda.

                Com efeito, lido o documento em questão com a devida atenção, nota-se, desde logo, que foram intervenientes na escritura duas sociedades (a Requerente e a B...), representadas pelas mesmas pessoas físicas, vendendo a Requerente dois imóveis, e a B... um imóvel.

                Mais se verifica que essa mesma escritura é dividida em duas partes (“I” e “II”), declarando os outorgantes, na primeira parte, em nome da sua representada A..., S.A (ora Requerente), e na segunda em nome da sua representada B..., Ld.ª, vender os prédios identificados.

                Verifica-se ainda que é na sequência desta segunda parte, em que os outorgantes declaram em nome da sua representada B..., Ld.ª, que consta que os segundos outorgantes (representantes da adquirente) declaram que aceitam as vendas nos termos exarados e que destinam os imóveis a revenda.

                Por fim, verifica-se que os mesmos segundos outorgantes, apresentaram documentos comprovativos do pagamento do IMT relativo à aquisição dos prédios à Requerente, e declaração de isenção daquele imposto, relativamente à aquisição à B... .

                Ora, conjugando estes elementos, e tendo em conta as normas da interpretação dos negócios jurídicos, gravadas no artigo 236.º do Código Civil, segundo o qual “A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”, não se pode concluir de outra forma que não a de que a declaração de destino a revenda, se reporta à aquisição à B..., e não às aquisições à Requerente, conforme foi clarificado na escritura de retificação.

                Com efeito, não é minimamente plausível que a sociedade adquirente, ciente de que a aquisição para revenda lhe conferia o benefício fiscal de isenção de IMT – conforme é patente da circunstância de ter exercido tal faculdade relativamente à aquisição à B...– fosse declarar tal facto e, concomitantemente, pagar aquele imposto, justamente sobre a parte mais onerosa do negócio.

                Não se tem dúvidas, assim, que o que é declarado na escritura de 19-10-2017, é que é o prédio adquirido à B... que é adquirido para revenda, não obstando, por qualquer forma a esta conclusão a circunstância de a adquirente ter, entre o seu objecto social, a compra e venda de imóveis, desde logo por se tratar de manifesta fundamentação a posteriori.

                Acresce que, a previsão do n.º 5 do artigo 11.º do CIMT deve ser lida no sentido de que a menção a que os prédios adquiridos o hajam sido novamente para revenda, se reporta à revenda relevante para efeitos do artigo 7.º do mesmo Código.

                Efetivamente, o propósito daquela norma do n.º 5 do artigo 11.º do CIMT é o de obstar a transmissões em cadeia isentas de IMI, garantindo-a uma vez, apenas, quando estiverem em causa aquisições para revenda.

                Por outro lado, não só o art.º 7.º do CIMT não é uma norma automática, carecendo de requerimento – anteriormente ou posteriormente (cfr. n.º 4 do artigo 7.º) à transmissão – do interessado, como também são apenas relevantes as situações em que a revenda ocorra no prazo de 3 anos após a aquisição.

                Daí que um adquirente possa adquirir determinado prédio com intenção de revenda, mas não no prazo de 3 anos, o que não poderá, obviamente, fundar a aplicação do n.º 5 do artigo 11.º do CIMT.

                Acresce ainda, no caso, que com a declaração constante da escritura de retificação, a adquirente na escritura de 19-10-2017 afastou, definitivamente e se dúvidas houvesse face ao teor original daquele instrumento público, a possibilidade de se prevalecer da prerrogativa consagrada no n.º 4 do artigo 7.º do CIMT, pelo que a apontada ratio daquele artigo 7.º - de evitar isenções em cadeia – está totalmente assegurada, e da forma menos onerosa para a AT, na medida em que se a transmissão de 19-10-2017 viesse a ficar isenta, o valor do imposto que se deixaria de arrecadar seria substancialmente superior àquele contido na liquidação sub iudice.

                Assim, e face a todo o exposto, atento o erro de facto e consequente erro de direito, deve a liquidação objecto dos presentes autos ser anulada, procedendo o pedido arbitral, e ficando prejudicado o conhecimento da segunda questão colocada pela Requerente.

 

*

III. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:

a)            Anular a decisão da reclamação graciosa n.º ...2019..., bem como a liquidação de IMT no valor de 102.624,40 €, que aquela teve como objeto;

b)           Condenar a Requerida nas custas do processo, no montante de € 3.060,00.

 

IV. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 102.624,40, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

V. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 3.060,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela AT, uma vez que o pedido foi totalmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 15 de Março de 2021

 

O Árbitro Presidente

(José Pedro Carvalho)

 

O Árbitro Vogal

(José Nunes Barata)

 

O Árbitro Vogal

(José Joaquim Monteiro Sampaio e Nora)