Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 616/2019-T
Data da decisão: 2020-08-03  IRS  
Valor do pedido: € 1.048.746,62
Tema: IRS – Retenção na fonte; Substituição tributária; Ajudas de custo.
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DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

 

Acordam em tribunal arbitral os árbitros Carlos Cadilha (Árbitro Presidente), Augusto Vieira e Amândio Silva (vogais), designados no Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o presente Tribunal Arbitral Coletivo (TAC):

 

I – Relatório

 

1. A..., com o NIF..., residente na ..., ..., na qualidade de revertida no processo de execução fiscal para cobrança da dívida originariamente imputada à sociedade B..., Lda., anteriormente denominada C..., LDA, vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, para apreciar a legalidade do actos de liquidação adicional em IRS n.º 2018..., no valor de € 893.461,00, e de juros compensatórios, no valor de € 155.285,62, relativos ao exercício de 2014.

 

Fundamenta o pedido nos seguintes termos:

 

A sociedade C... realizou obras no estrangeiro, em 2014, pagando ajudas de custo aos trabalhadores que se encontravam deslocados, como compensação pelas despesas acrescidas com a deslocação.

 

No âmbito de uma ação inspetiva, a Autoridade Tributária considerou que tais ajudas de custo correspondiam a rendimentos de trabalho dependente, pelo que foram tributados para efeitos fiscais em IRS e sujeitos a retenção na fonte nos termos dos artigos 98.º e 99.º, n.º 1, do CIRS, assumindo a entidade patronal, em substituição tributária, nos termos do artigo 103.º, n.º 4, desse Código, a responsabilidade solidária pelo imposto não retido. 

 

Para assim concluir, a Autoridade Tributária teve em atenção que o montante de ajudas de custo contabilizadas (€ 3.292.101,57) era superior ao montante global de remunerações, que totalizavam de € 1.853.145,94, que os trabalhadores não se encontravam deslocados, mas logo após a celebração dos contratos de trabalho, e desde o primeiro dia, eram exclusivamente afectos a obras em curso no estrangeiro, e que a empresa contabilizou como gastos o pagamento de rendas de dois imóveis na Holanda e diversas despesas em restaurantes e  supermercado.

 

Preliminarmente, a Requerente começa por pôr em causa a responsabilidade solidária da empresa, porquanto, nos termos do artigo 103.º, n.º 4, do CIRS, a responsabilidade é pelo imposto devido pelos trabalhadores, e não pelas importâncias que se entenda que deveriam ter sido retidas, não sendo exigível que a entidade patronal responda por uma dívida superior à que seria devida se fosse liquidado o IRS em relação às ajudas de custo que devessem ser consideradas como retribuição. Por outro lado, a entidade patronal não pode ser tida como devedora solidária de um imposto de IRS que, referindo-se a trabalhadores residentes no estrangeiro, o Estado português não pode cobrar, não havendo também lugar a retenção na fonte em relação às retribuições que esses trabalhadores tenham auferido fora do país.

 

Quanto às correções efetuadas pela Autoridade Tributária, a Requerente entende que assentam em pressupostos que não têm correspondência com a realidade.

 

Em primeiro lugar, é normal que um trabalhador com uma remuneração mensal de € 1000,00 possa auferir no decurso de um mês, a título de compensação pelas despesas em que incorre quando se encontre deslocado no estrangeiro, um valor superior a € 2500,00. Por outro lado, a circunstância de as ajudas de custo serem pagas em numerário encontra-se justificada por se tratar de adiantamentos feitos no momento da deslocação que se destinam a evitar que sejam os trabalhadores a financiar a empresa, incorrendo em gastos que só seriam reembolsados no final do mês.

 

Não é também possível extrair uma qualquer ilação que aponte para a qualificação das ajudas de custo como retribuição pelo facto de terem sido celebrados com os trabalhadores contratos de trabalho a termo incerto. Estes correspondem ao contrato de trabalho tipo e na prática são contratos por termo indeterminado, visto que os trabalhadores contratados realizam sucessivamente trabalho em quaisquer obras que a empresa tenha em curso, ou trabalham nas oficinas, em Portugal ou no estrangeiro, e o local de trabalho que consta do contrato são as instalações da entidade empregadora na Zona Industrial ... e nos Estaleiros de ... . Por outro lado, os trabalhadores contratados, na sua esmagadora maioria, residem em Portugal, pelo que quando trabalham na Holanda ou em qualquer outro país estrangeiro, estão deslocados do país sendo devidas ajudas de custo.

 

Além disso, não tem cabimento afirmar que é a empresa que suporta as despesas de alojamento e de alimentação do pessoal por ter dois imóveis arrendados na Holanda. Esses imóveis são utilizados como escritório e armazém e, em todo o caso, não seria possível alojar nesses dois espaços habitacionais os mais de cem trabalhadores que se encontram deslocados no período de um ano. Pela mesma ordem de considerações, não é possível afirmar que o montante gasto pela empresa em compras em supermercados, no valor de € 476.11, como consta do Anexo VI ao relatório da inspeção tributária, pudesse ser suficiente para assegurar as despesas de estadia e alimentação de mais de cem trabalhadores durante um ano.

 

Assim sendo, a Autoridade Tributária não logrou demonstrar que os trabalhadores não estivessem deslocados no estrangeiro e os montantes atribuídos título de ajudas de custo pudessem ser considerados como rendimentos do trabalho.

 

A Autoridade Tributária, na sua resposta, sustenta que as importâncias comprovadamente pagas aos trabalhadores não se encontram justificadas como ajudas de custo, com base, em síntese, nas seguintes ordens de considerações.

Os mapas não estão assinados pelos trabalhadores, nem os valores auferidos a esse título são mencionados nos recibos de vencimento, não havendo prova de que os trabalhadores tenham tido conhecimento e manifestado concordância com os montantes que foram processados como compensação por despesas.

O local de trabalho para o qual estes trabalhadores são contratados, a termo incerto, corresponde ao local das várias obras/projetos adjudicados, não se verificando a condição de o trabalhador se encontrar deslocado do seu local de trabalho habitual, de que depende a atribuição de ajudas de custo.

São registadas ajudas de custo no mapa independentemente de o funcionário estar ou não no estrangeiro e desde o primeiro dia em que se encontra em vigor o respetivo contrato de trabalho, inclusivamente no dia em que este é assinado.

Há despesas com alojamentos (rendas e hotéis) e alimentação (despesas de supermercado e outras), registadas em gastos na empresa que comprovam que a empresa suporta gastos em manter os seus trabalhadores no estrangeiro.

 Conclui, assim, que os montantes efetivamente pagos pela Requerente como sendo ajudas de custo devem ser considerados como rendimentos do trabalho dependente e sujeitos a retenção na fonte para efeito de tributação em sede de IRS.

2. No seguimento do processo, houve lugar à reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, também destinada à produção de prova testemunhal indicada pela Requerente, e fixou-se um prazo sucessivo de dez dias para a apresentação de alegações escritas facultativas.

 

Em alegações, a Requerente reiterou o que já havia afirmado em sede de pedido de pronúncia arbitral e a Requerida manteve o que já havia referido na resposta. Juntou a Requerida o teor do acórdão do Tribunal Constitucional nº 231/2016 e o teor da decisão arbitral colectiva tirada no Processo CAAD 118/2015-T onde se decidiu de acordo com o ponto de vista por ela defendido neste processo.

 

 O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 10 de Dezembro de 2019.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas excepções.

 

Cabe apreciar e decidir.

 

II - Fundamentação

 

II – 1 - Matéria de facto provada

 

4. Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes:

 

A)           A sociedade comercial “B..., Lda.” (adiante designada por Sociedade), anteriormente denominada “C..., Lda”, devedora originária do imposto em causa neste processo, exerce a atividade de serralharia civil nomeadamente na área da soldadura e montagem de estruturas, constando no seu site  que “a C..., Lda. atua diretamente ou por via de subempreitada nas várias áreas que a empresa abrange: construções metálicas, offshore, construção naval, tubagem industrial e naval, reparações industriais e navais, etc. Em qualquer destas áreas a C... está preparada para estudar, orçamentar, fabricar e montar projetos de uma forma modular, completos, ou por sectores; sejam eles projetos em estaleiros navais, industriais, construções em oficinas, ou nas nossas instalações” – conforme página 5/20 do relatório de inspecção junto pela AT e pela Requerente e face à posição global da Requerente no PPA e nas alegações;

B)           A Sociedade tem a sede na cidade de Braga tem instalações administrativas e oficinas industriais de serralharia, na Rua ... nº..., em ..., onde funcionam ainda os serviços técnicos e administrativos (Zona Industrial ...) – conforme artigo 7º do PPA e parágrafos 4º e 6º do PA (relatório da inspecção tributária – página 4/20);

C)           A sociedade mudou, em 08 de Maio de 2015, a sua sede para a Avenida ..., nº ... em Braga, pelo facto dos serviços da Segurança Social de ... funcionarem de uma forma mais célere que os serviços de ...– conforme parágrafos 4º e 6º do PA (relatório da inspecção tributária – página 4/20) e depoimento das testemunhas D..., E... e F...;

D)           Durante o ano de 2014 a sociedade, como 1º outorgante, indicando a sua sede na Rua ... nº ... ..., ...-... ..., celebrou vários contratos de trabalho com profissionais da categoria profissional de soldadura, construção e reparação navais, todos com residências em Portugal, onde expressou “contrato de trabalho a termo incerto”, tendo como local de celebração “...” e constando como local de trabalho “o local de prestação de trabalho será feito entre o estabelecimento do 1º outorgante e em local da obra, designado pelo 1º outorgante” – conforme anexo IV ao relatório de inspecção tributária, artigo 51º do PPA,  posição global da Requerente no PPA que confirma este tipo de formalização contratual e depoimentos das testemunhas D..., E... e F... quanto ao facto de se tratar de residentes em Portugal;

E)            Do conjunto de trabalhadores que a Sociedade tinha no ano de 2014, muitos transitaram de anos anteriores e muitos continuaram para os anos seguintes – conforme artigo 41º do PPA e depoimento das testemunhas D..., E... e F...;

F)            A Sociedade, em 2014, diretamente e em Portugal, vendeu serviços no valor de 357 milhares de euros, e pré-fabricou em oficina módulos e outros trabalhos de serralharia que incorporou nos serviços e obras que realizou no estrangeiro – conforme documento nº 3 junto com o PPA, artigo 38º do PPA e depoimento das testemunhas D..., E... e F...;

G)           A Sociedade no âmbito de uma obra que envolveu uma prestação de serviços de cerca de 6 000 000,00 de euros e que realizou na Holanda, arrendou um espaço para escritório, outro para armazém e um outro espaço para guardar utensílios e equipamentos, tendo ocorrido pequenas despesas no escritório, próprias do mesmo, nomeadamente em bebidas e café – conforme artigos 51º, 55º,56º,57º,58º,62º a 64º do PPA e depoimento da testemunha D...;

H)           Quanto à Sociedade, a Direção de Finanças de ... emitiu a Ordem de Serviço nº OI2018... visando um procedimento de inspecção externo, parcial, de confirmação do cumprimento das obrigações dos sujeitos passivos e demais obrigados tributários, com origem no cruzamento interno de informações, decorrente do facto do sujeito passivo pagar ajudas de custo de valor superior a 50% do valor de remunerações pagas (incluindo aquelas) e anomalias decorrentes da análise interna das operações intracomunitárias, quanto ao ano de 2014,  procedimento que decorreu entre 2018-05-02 e 2018-11-22 – conforme artigo 6º do PPA e página 2/20 do relatório de inspecção tributária junto pela Requerida com o PA;

I)             Na sequência do procedimento atrás referido a Requerida emitiu um relatório de inspecção, que foi notificado à Sociedade, em cujo ponto III consta o seguinte:

“III. Descrição dos factos e fundamentos das correções meramente aritméticas à matéria tributável

III.1 Ajudas de custo

Conforme referido no ponto 11.3.3, a conta "63 — Gastos com pessoal" tem um peso muito significativo na estrutura de gastos da empresa representando, em 2014, cerca de 83,5% do seu volume de negócios.

Analisadas as subcontas que compõe esta conta, destaca-se desde logo o peso significativo da subconta "Ajudas de custo" que ascendeu, neste ano, a um total de 3.292.101 ,57 EUR:

...

Os custos com remunerações (contas 6311, 6321, 6322 e 6323) totalizaram o montante de 1.853.145,94 EUR. Isto significa que o montante de ajudas de custo contabilizadas (3.292.101 EUR) é muito superior ao montante global de remunerações pagas, na ordem dos 177%.

Esta conta (63272- Ajudas de custo) é contabilizada por contrapartida da conta de pessoal "238298 - Ajudas custo" que agrega o montante global de ajudas de custo contabilizadas, sem separação (contabilística) por funcionário. Posteriormente esta conta de terceiros vai sendo saldada por contrapartida da respetiva conta de depósitos à ordem ou caixa, por via dos pagamentos efetuados.

De salientar que contabilisticamente não é possível determinar qual o valor de ajudas de custo pagas a cada um dos funcionários, nem se o respetivo pagamento individual foi registado por caixa ou depósitos à ordem. O registo do gasto com ajudas de custo e o registo dos respetivos pagamentos são completamente independentes do processamento de salários, sendo que os salários são integralmente pagos por transferência bancária, mas o montante de ajudas de custo registadas não.

Os documentos de suporte dos lançamentos de gastos com ajudas de custo são documentos internos, denominados "mapa de ajudas de custo por deslocação ao estrangeiro" (ANEXO III). Da análise destes mapas arquivados na contabilidade destaca-se desde logo que, salvo raras exceções, não estão na sua generalidade assinados pelos respetivos funcionários e o valor diário constante dos mesmos é sempre de 89,35 EUR, com exceção de 4 funcionários, cuja ajuda de custo diária é ligeiramente inferior.

É importante frisar que o valor das ajudas de custo em 2014 está enquadrado legalmente no regime de atribuição previsto na Portaria 1553-D/2008, de 31 de dezembro, após Decreto-Lei 137/2010, de 28 do mesmo mês, sob a Lei 66-B/2012.

Para enquadramento destes gastos como ajudas de custo, foram solicitados para análise os contratos de trabalho efetuados com estes trabalhadores.

Os contratos de trabalho dos trabalhadores afetos às obras, para quem foram processadas ajudas de custo, são todos "Contratos de trabalho a termo incerto", conforme exemplo anexo (ANEXO IV).

Este tipo de contrato (a termo incerto) é um acordo por escrito entre a entidade patronal e o colaborador com um período de início, mas sem um fim estipulado. Segundo o no 1 do artigo 140º do Código do Trabalho, este tipo de contrato apenas pode ser celebrado para cumprir uma necessidade temporária da empresa e pelo período estritamente necessário à satisfação da mesma, nomeadamente para a execução de obra, projeto ou outra atividade definida e temporária, incluindo a execução, direção ou fiscalização de trabalhos de construção civil, obras públicas, montagens e reparações industriais, em regime de empreitada ou em administração direta, bem como os respetivos projetos ou outra atividade complementar de controlo e acompanhamento.

Segundo consta do Relatório Único da empresa, a C..., Lda dispunha em 2014 de apenas 4 funcionários no seu quadro (com contrato sem termo), 2 sócios gerentes e 101 trabalhadores incertos, contratados por projeto para exercerem funções nas respetivas obras. A C..., Lda recorre a este tipo de contrato para não sobrecarregar a sua estrutura fixa de gastos adaptando-se à incerteza e sazonalidade da atividade, contratando apenas o pessoal que necessita para fazer face aos projetos que vai angariando nos seus clientes e pelo tempo necessário para fazer face a essa necessidade.

Conclui-se desde logo que os funcionários são contratados para executar as tarefas no local da obra para a qual foram contratados (a termo incerto), sendo desde logo do conhecimento de ambas as partes o local onde irá ser realizado o trabalho.

Nos contratos de trabalho celebrados entre a C... e os funcionários temporariamente contratados consta, na cláusula segunda, que "o local da prestação de trabalho será feito entre o estabelecimento do 1º outorgante e em local da obra, designado pelo 1º outorgante". Fica desde logo estabelecido entre as partes, e por escrito, que os funcionários serão afetos à obra que a empresa designar. Os funcionários necessários para cada obra/projeto são contratados depois de adjudicada a obra pelos clientes.

O principal pressuposto para a atribuição de ajudas de custo é a existência de deslocação do funcionário em serviço para local diferente do seu domicílio necessário, sendo o seu domicílio necessário o local onde aceitou prestar o serviço. Tal enquadramento, para pressuposto de atribuição de ajudas de custo, seria possível caso os trabalhadores tivessem sido contratados para prestar serviço em Portugal e aceitassem trabalhar deslocados em qualquer uma das obras em que a C... viesse a exercer a sua atividade, incluindo no estrangeiro.

Acontece que, relativamente ao caso em apreço, e tal como a seguir ficará claramente demonstrado, os trabalhadores contratados (a termo incerto) são, desde o primeiro dia de trabalho, inclusive, exclusivamente afetos a obras no estrangeiro, ao que acresce o facto de, naquele ano, a C... não apresentar quaisquer evidências de obras realizadas em Portugal.

Consequentemente, e inerente ao próprio propósito da celebração dos referidos contratos de trabalho, o domicílio necessário/profissional subjacente a cada contrato de trabalho celebrado, é, desde logo, a obra no estrangeiro à qual é afeto o respetivo funcionário, pelo que não se verifica a existência de deslocação para local diferente.

Como confirmação do referido, do cruzamento dos dados constantes dos mapas de ajudas de custo e dos contratos de trabalho conclui-se que desde o primeiro dia de contrato de trabalho, são registadas ajudas de custo no respetivo mapa, pelo valor global diário. (ANEXO V). Confirma-se que os trabalhadores são automaticamente afetos à respetiva obra que justificou a celebração do seu contrato de trabalho a termo incerto.

Tendo em conta o especial enquadramento fiscal deste tipo de gastos, que no caso do montante registado pela C..., Lda não foi sujeito a qualquer tipo de tributação, nem em sede de IRS nem em sede de IRC, importa referir que a característica essencial das ajudas de custo é o seu carácter compensatório, visando reembolsar o trabalhador pelas despesas que foi obrigado a suportar em favor da sua entidade patronal, por motivo de deslocações ao serviço desta, com carácter temporário e fora do local habitual de trabalho fixado, que devam ser imputadas à sua atividade laborai e no interesse da sua entidade empregadora. Por conseguinte, não deve existir qualquer correspondência entre a sua perceção e a prestação do trabalho.

Dado este aspeto compensatório e uma vez que não devem representar qualquer acréscimo patrimonial, as ajudas de custo não devem ser consideradas rendimento para efeitos tributários, destinando-se apenas a compensar gastos que afetam negativamente a esfera patrimonial do trabalhador.

No entanto, a empresa tem contabilizados nos seus gastos valores de rendas suportadas com dois imóveis na holanda, durante todo o ano. Nos recibos de rendas referem "warehouse" e “office" mas, de acordo com as moradas referidas no mesmo, constatamos que se trata de dois imóveis habitacionais, com dois pisos.

Por outro lado, na contabilidade da empresa estão também registadas em gastos diversas despesas de restaurantes e de supermercado, ao longo do ano, suportadas no estrangeiro (ANEXO VI).

Resumidamente, é relevante, para efeitos da atribuição de ajudas de custo, que o trabalhador esteja deslocado relativamente ao seu local de trabalho fixado e que, por força dessa deslocação, incorra em despesas que devem ser suportadas pela entidade patronal porque efetuadas ao serviço e a favor desta, situação que não se verifica no caso em apreço, conforme mencionado anteriormente, dado que os trabalhadores são exclusivamente contratados para prestar serviço nas respetivas obras/projeto para o qual foram contratados, para além de que a empresa suportou diretamente gastos relacionados com rendas, deslocações e estadas.

...

No quadro seguinte são apresentados 3 exemplos que refletem o procedimento comum em relação aos funcionários incertos, elaborado com base no respetivo contrato de trabalho, mapa de afetação dos funcionários às obras (fornecido pelo sujeito passivo) e mapa de ajudas de custo do primeiro mês ao serviço da empresa (ANEXO VII — documentos comprovativos).

 

 

Da análise destes quadros podemos concluir que desde o primeiro dia do contrato que os funcionários são afetos à respetiva obra e desde esse dia, inclusive, são processadas ajudas de custo no respetivo mapa. Não há por isso uma deslocação dos funcionários em relação ao local de trabalho fixado pois os mesmos são de imediato afetos à obra para a qual foram contratados, ao que acresce o facto de, naquele ano, a C... não apresentar quaisquer evidências de obras realizadas em Portugal, pelo que, só se pode concluir que, no momento da celebração dos referidos contratos de trabalho, ambas as partes assumem, desde logo, essa afetação (a uma obra no estrangeiro) pelo que as condições salariais, nomeadamente no que diz respeito ao montante do salário acordado, não poderia ser indiferente a isso, pese embora, tenha sido dado o errado enquadramento de uma parte substancial do mesmo .com natural interesse para ambas as partes).

Foram também registados como gastos da C... Lda, os montantes pagos pelas viagens dos trabalhadores. Do cruzamento efetuado entre os dados constantes dos documentos de suporte a estes gastos com viagens (nomeadamente dados das reservas com identificação dos passageiros) e os mapas de ajudas de custo, foi possível detetar diversas situações em que os funcionários não estavam no local da obra (no estrangeiro) mas que esses dias constam no respetivo mapa a ajuda de custo diária (ANEXO VIII).

Comprova-se assim que, além dos funcionários serem contratados para exercerem funções nos locais das obras (não há deslocação) e existirem custos de alimentação e alojamento suportados pela C..., Lda. os montantes registados nos mapas de ajudas de custo não poderão corresponder integralmente a compensações pelos gastos incorridos no estrangeiro pois, nestes casos, mesmo o funcionário não estando no local da obra (estrangeiro), foram processados valores de ajudas de custo diárias.

O valor registado em gastos referentes a ajudas de custos não está comprovado e o valor pago aos funcionários não pode ter este enquadramento pois não cumpre, desde logo, com o requisito base para esta consideração.

                III.1.1 Rendimento do trabalho — Retenção de IRS

Tal como já referido e, ao contrário do que sucedeu com vencimentos, o montante registado a título de ajudas de custo não foi integralmente pago por transferência bancária.

Assim, colocado em causa o enquadramento daqueles gastos como ajudas de custo, importa desde logo distinguir o montante comprovadamente pago por transferência bancária (2.613.338,38 EUR) e o montante movimentado por contrapartida da conta caixa (678.763, 19 EUR).

O artº 82º do DL. 49.408, de 24-11-1969 (Regime jurídico do Contrato Individual de Trabalho) determina que:

«1—Só se considera retribuição aquilo a que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito como contrapartida do seu trabalho.

2—A retribuição compreende a remuneração de base e todas as prestações regulares e periódicas feitas, directa ou indirectamente, em dinheiro ou em espécie.

3—Até prova em contrário, presume-se constituir retribuição toda e qualquer prestação da entidade patronal ao trabalhador»

A lei consagrou também, no nº 3 do artº 258º do Código do Trabalho, esta presunção ao determinar que "presume-se constituir retribuição qualquer prestação do empregador ao trabalhador".

Estabeleceu-se, pois, nestes normativos uma presunção no sentido de que qualquer atribuição patrimonial efetuada pelo empregador em benefício do trabalhador, salvo prova em contrário, constitui parcela da retribuição.

Assim, relativamente às importâncias comprovadamente pagas aos funcionários, como sendo referentes a ajudas de custo, comprova-se que as mesmas não podem ser justificadas como tal, pois:

i)             Os mapas não estão assinados pelos funcionários nem os valores expressos nos recibos de vencimento, pelo que não há prova de que funcionários tenham tido conhecimento e concordância dos valores processados;

ii)            O local de trabalho para o qual estes funcionários são contratados, a termo incerto, corresponde ao local das várias obras/projetos adjudicados, portanto não se verifica a condição de o trabalhador se encontrar deslocado do seu local de trabalho habitual (domicilio necessário);

iii)           São registadas ajudas de custo no mapa independentemente do funcionário estar ou não no estrangeiro e desde o primeiro dia em que se encontra em vigor o respetivo contrato de trabalho, inclusivamente no dia em que este é assinado;

iv)           Há despesas com alojamentos (rendas e hotéis) e alimentação (despesas de supermercado e outras), registadas em gastos na empresa que comprovam que a empresa suporta gastos em manter os seus trabalhadores no estrangeiro.

Os valores comprovadamente pagos constituem, assim, nos termos dos normativos invocados; parcela da retribuição.

Conclui-se assim que os montantes efetivamente pagos pelo sujeito passivo, como sendo ajudas de custo (enquadramento dado pela empresa), devem ser considerados como rendimentos do trabalho dependente, conforme o disposto no artº 2º do Código do IRS, tributados para efeitos fiscais em sede daquele imposto e sujeitos a retenção na fonte nos termos dos artigos 98º e nº 1 do 99º do Código do IRS, pelo que caberia ao sujeito passivo ter comunicado aos respetivos beneficiários esses quantitativos.

Nos termos do nº 4, do artº 103º, do Código do IRS, "Tratando-se de rendimentos sujeitos a retenção que não tenham sido contabilizados nem comunicados como tal aos respetivos beneficiários, o substituto assume responsabilidade solidária pelo imposto não retido". Nestes termos, o sujeito passivo assume a responsabilidade solidária pelo imposto não retido referente aos valores pagos a título de ajudas de custo.

Para apuramento do montante de imposto que deixou de ser retido em relação a cada um dos funcionários da empresa foi recolhida a informação relacionada com a sua situação cadastral, do agregado familiar à data, e montante de rendimentos declarados pela empresa, nas declarações mensais de rendimentos.

Relativamente ao agregado, foi considerado aquele que foi declarado pelo trabalhador em sede de IRS em 2014, considerando-se a situação de "não casado, um titular, sem dependentes" nos casos em que essa declaração não existe.

Relativamente aos funcionários estrangeiros, peio facto de serem considerados não residentes em Portugal, foi aplicada a taxa liberatória de 25%, prevista no nº 4 do artº 71º do Código do IRS.

Consta em anexo (ANEXO IX) um mapa com o detalhe da situação familiar de cada trabalhador (titulares de rendimentos e número de dependentes), rendimentos mensais auferidos, taxa de retenção na fonte aplicável e respetivos cálculos do imposto em falta. No quadro seguinte são apresentados os quantitativos mensais do imposto em falta apurado, a título de Retenções na Fonte:

 

- conforme relatório de inspecção tributária junto com o PA pela requerida – páginas 8/20 a 15/20;

J)            Em data não apurada, na sequência do relatório da inspecção tributária acima referido, a Requerida notificou a Sociedade da liquidação adicional em sede de IRS aqui impugnada, com o número 2018..., no valor de € 893.461,00 e de juros compensatórios no valor de € 155.285,62, o que perfaz um total de 1 048 746,62 €uros – conforme nota de liquidação junta com o PPA;

K)           A sociedade B..., Lda. não impugnou a liquidação objeto dos presentes autos, nem pagou o imposto liquidado, tendo sido instaurada a execução fiscal com o número ...2019..., em que se apurou não existirem bens suficientes para o seu pagamento, tendo sido revertida contra a aqui Requerente, com fundamento na alínea b) do nº 1 do artigo 24º da LGT – conforme artigo 2º do PPA;

L)            Em 19.09.2019 a Requerente entregou no CAAD o presente pedido de pronúncia arbitral – conforme registo do SGP do CAAD.

 

II – 2 - Factos não provados

 

Não se provou, essencialmente, que em 2014, a Sociedade tenha contratado 101 trabalhadores, com contrato a termo incerto, para os enviar desde logo para a Holanda, com a finalidade de, terminada aí a obra, regressarem a Portugal e serem extintos esses vínculos laborais.

O que a provou evidencia que os contratos com este tipo de formalização, existiam antes de 2014 e subsistiram após esse ano.

O TAC ficou convencido de que a forma contratual utilizada, a termo incerto, sem indicação de uma obra em concreto, constituirá certamente prática arriscada (risco de conflitualidade judicial), mas que pode considerar-se de gestão sã e prudente, porquanto, tem a virtude de contribuir para o ajuste dos custos do trabalho, face às vicissitudes do mercado da reparação e construção navais, como elemento de pressão para a negociação de eventuais rescisões amigáveis, uma vez que, da prova testemunhal, resultou que nunca ocorreu conflitualidade judicial ao nível da caracterização dos contratos de trabalho.

Também quanto às instalações arrendadas na Holanda, a prova testemunhal produzida foi de molde a caracterizar tais imóveis como inadequados a servir de residências dos trabalhadores ou de locais de confeção e tomada de refeições e de pernoita.

Ainda quanto a despesas associadas ao escritório da sociedade da Holanda, a prova testemunhal foi de molde a demonstrar que as mesmas tinham a ver com as que qualquer escritório de uma empresa realiza.

Quanto à demais matéria, não existe outra factualidade alegada que não tenha sido considerada provada e que seja relevante para a composição da lide processual.

 

II – 3 - Fundamentação dos factos provados e não provados

 

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (conforme artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de direito (conforme anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Para além do já referido, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes e a prova documental junta, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, indicando-se, por cada ponto levado à matéria de facto assente, os meios de prova que se consideraram relevantes, como fundamentação.

 

II – 4 - Matéria de direito

 

 

•             Questão prévia. Responsabilidade solidária do substituto tributário

 

A questão prévia a decidir consiste em saber se o Imposto sobre o Rendimento das pessoas Singulares (IRS), alegadamente indevidamente não retido, no caso dos autos, sobre os montantes pagos a título de ajudas de custo poderá́ ser liquidado e o seu pagamento exigido diretamente à Requerente, nos termos do artigo 103.º, n.º 4, do Código do IRS.

 Segundo a Requerente, a AT deveria ter, em relação a cada trabalhador, liquidado adicionalmente o IRS que este deveria pagar e, caso este não cumprisse com o pagamento no prazo legal, poderia ser exigido à Requerente, enquanto responsável solidária, o imposto devido, até ao limite das retenções que não tivessem sido efetuadas.

Em sentido contrário, argumenta a Requerida que o artigo 103.º, n.º 4, do CIRS, na versão introduzida no ordenamento jurídico pela Lei do OE de 2007, determina que, no caso de rendimentos sujeitos a retenção que não tenham sido contabilizados nem comunicados como tal aos respetivos beneficiários, deve o substituto assumir a responsabilidade solidária pelo imposto não retido.

A questão já foi objeto de análise designadamente nas Decisões Arbitrais correspondentes aos processos n.ºs 119/2015-T, 120/2015-T e 539/2017-T, no sentido defendido pela Requerente e, em sentido contrário, como defendido pela Requerida, no proc. n.º 118/2015-T.

Analisemos o enquadramento legal, citando, para o efeito a jurisprudência existente, para que possamos, fundamentadamente, chegar, no caso dos autos, a uma conclusão.

O artigo 21.º do CIRS estabelece que quando, através da substituição tributária se exigir o pagamento total ou parcial do IRS a pessoa diversa daquela em relação à qual se verificam os respetivos pressupostos, considera-se a substituta, para todos os efeitos legais, como devedor principal, ressalvado o disposto no artigo 103.º.

No artigo 103.º, em vigor à data, determina-se a responsabilidade do substituído e do substituto em caso de anomalia no mecanismo de substituição tributária, em termos similares às regras gerais previstas no artigo 28.º da Lei Geral Tributária.

No n.º 1 estabelece-se que quando houver retenção sem entrega pelo substituto das quantias retidas, o substituto é exclusivamente responsável pelas quantias retidas e não entregas.

No n.º 2 prevê-se que, quando a retenção for efetuada a título de pagamento por conta do imposto devido a final, cabe ao substituído a responsabilidade originária pelo imposto não retido e ao substituto a responsabilidade subsidiária.

Nos restantes casos, determina o n.º 3 que o substituído é apenas subsidiariamente responsável pelo pagamento da diferença entre as importâncias que deveriam ter sido deduzidas e as que efetivamente foram.

A Lei n.º 53-A/2006, de 29 de dezembro, aditou a este artigo um n.º 4 que estabelece que: tratando-se de rendimentos sujeitos a retenção que não tenham sido contabilizados nem comunicados como tal aos respetivos beneficiários, o substituto assume responsabilidade solidária pelo imposto não retido.

 Esta norma visou especificamente consagrar um regime de responsabilidade solidária relativamente aos pagamentos de rendimentos que constituam «remunerações» não contabilizados nem comunicados como explica o Relatório do Orçamento do Estado para 2007, em que se refere, na página 29, o seguinte:

 

Responsabilidade Solidária

Instituição de um regime de responsabilização solidaria do substituto pelo imposto não retido aos beneficiários dos rendimentos em situações qualificadas como práticas fraudulentas relacionadas com a omissão ou redução do montante das remunerações pagas, seja pela sua não contabilização, seja pela sua caracterização como rendimentos não sujeitos a tributação (v.g. ajudas de custo).

 

Isto é, perante uma prática “fraudulenta” de não contabilização nem comunicação aos beneficiários das “remunerações”, o n.º 4 do artigo 103.º do CIRS estabelece como regra a responsabilidade solidária do substituto tributário e não a responsabilidade subsidiária como prevê no n.º 2 para as situações de retenção na fonte de rendimentos efetuada meramente a título de pagamento por conta de imposto devido a final. Agrava-se, intencionalmente, a responsabilidade do substituto como forma de combater comportamentos lesivos da receita tributária.

Esta exceção não retira ao substituído a responsabilidade do devedor originário, mas agrava-se a responsabilidade do substituto a quem cabia contabilizar aquelas remunerações e comunicá-las ao substituído que fica, nestes termos, solidariamente responsável até ao limite da retenção na fonte a que estava obrigado.

A principal divergência das partes resulta de a Requerente considerar que para que a responsabilidade solidária opere, o imposto tem de ser liquidado ao responsável originário (no caso, os trabalhadores) e a Requerida entender que o regime de solidariedade aqui definido, constitui o substituto autonomamente responsável pelo imposto não retido, dispensando-se a liquidação do imposto ao responsável principal.

Para a devida compreensão, há que distinguir os conceitos de devedor originário e responsabilidade solidária por dívidas de outrem.

Como se refere na Decisão Arbitral proferida no proc. n.º 120/2015-T, “A solidariedade entre devedores originários está prevista para as situações em que «os pressupostos do facto tributário se verifiquem em relação a mais de uma pessoa», em que, em regra, «todas são solidariamente responsáveis pelo cumprimento da dívida tributária» (artigo 21.º, n.º 1, da LGT).

Diferente desta é a situação do «responsável solidário», que é uma «pessoa alheia à constituição do vínculo tributário que, pelas suas particulares conexões com o originário devedor ou com o objeto do imposto, a lei considera garante do pagamento da dívida de imposto, numa posição de fiador legal».

Esta distinção aparece clara no artigo 22.º da LGT, referente à «Responsabilidade tributária» em que se refere que «para além dos sujeitos passivos originários, a responsabilidade tributária pode abranger solidária ou subsidiariamente outras pessoas», o que evidencia que o responsável solidário (como o responsável subsidiário) não passa a ser considerado sujeito passivo originário.

É uma situação de responsabilidade solidária que se prevê̂ para o substituto no n.º 4 do artigo 103.ºdo CIRS, pois os pressupostos do facto tributário verificam-se em relação aos contribuintes de IRS que são os trabalhadores da Requerente.

Assim, como o artigo 21.º do CIRS, apesar de estabelecer a regra de que o substituto se considera «como devedor principal do imposto», ressalva o disposto no artigo 103.º, tem de se concluir que nestas situações enquadráveis no n.º 4, o substituto não é considerado como devedor principal do imposto não retido, mas sim responsável solidário, isto é, está numa situação de garante do pagamento da dívida de imposto, numa posição de fiador legal.

A questão que a Requerente coloca é a de saber se, nestas situações de responsabilidade solidária do substituto, lhe pode ser exigido o pagamento da dívida na fase de pagamento voluntario, designadamente sendo ele e não o devedor originário notificado para o pagamento voluntario da quantia liquidada.

A razão por que no n.º 2 do artigo 103.º do CIRS, para os casos de retenção «efetuada meramente a titulo de pagamento por conta de imposto devido a final», se afasta a regra do seu artigo 21.º de considerar o substituto como devedor principal do imposto, é a de que, à face do regime geral do IRS, na sequência dos pagamentos ocorridos em determinado ano, haverá́, no ano subsequente, que fazer um acerto de contas, com base na globalidade dos rendimentos de várias categorias sujeitos a englobamento, depois de feitos abatimentos, deduções previstos (artigo 22.º, n.º 1 do CIRS) e também no imposto retido. E nesta liquidação relativa à globalidade dos rendimentos de determinado ano, é o respetivo sujeito passivo de IRS quem é o devedor originário, se houver imposto a liquidar e na medida em que houver impostos a liquidar.

Por isso, nestes casos de retenção efetuada a título de pagamento por conta do imposto devido a final, só́ depois de efetuada a liquidação de IRS se pode saber se há ou não a pagar imposto pelo sujeito passivo e se pode saber se será́ necessário ou não responsabilizar o substituto pelo imposto não retido.

É a esta luz que há́ que determinar o regime de exigência aos responsáveis solidários do pagamento das dívidas resultantes de incumprimento do dever de retenção na fonte.

Nem a LGT nem o CPPT prevêem explicitamente esse regime, pelo que há́ que inferi-lo das normas que se reportam aos responsáveis solidários.

O artigo 9.º, n.º 2, do CPPT estabelece que «a legitimidade dos responsáveis solidários resulta da exigência em relação a eles do cumprimento da obrigação tributária ou de quaisquer deveres tributários, ainda que em conjunto com o devedor principal».

Desta norma conclui-se que pode ser exigido o pagamento da obrigação tributária aos responsáveis solidários mesmo sem o ser o devedor principal, como revela a expressão final «ainda que em conjunto com o devedor principal», que deixa entrever que a exigência pode ser feita ao responsável solidário, sem que o seja também ao devedor principal.

No entanto, se é certo que desta norma se conclui que a exigência da dívida ao responsável solidário pode ser efetuada sem que o seja ao devedor principal e é seguro que tal possibilidade existe no caso de pagamento coercivo, também é certo que esta norma não permite concluir que essa «exigência» pode ser feita também na fase de pagamento voluntario.

Há́, porém, outra norma que permite concluir que o responsável solidário também pode ser notificado para pagamento voluntário da dívida, que é o n.º4 do artigo 22.º da LGT, que estabelece que «as pessoas solidária ou subsidiariamente responsáveis poderão reclamar ou impugnar a dívida cuja responsabilidade lhes for atribuída nos mesmos termos do devedor principal, devendo, para o efeito, a notificação ou citação conter os elementos essenciais da sua liquidação, incluindo a fundamentação nos termos legais».

Com efeito, a exigência de pagamento da dívida em relação ao responsável subsidiário é sempre feita através de «citação» no processo de execução fiscal [art. 23.º, n.ºs 1 e 4 da LGT e art. 191.º, n.º 3, alínea b), do CPPT], pelo que a referência a «notificação» contida naquele n.º 4 do art. 22.º só pode reportar-se aos responsáveis solidários, e só tem lugar antes da execução fiscal, pois o chamamento do responsável solidário ao processo de execução fiscal é também efetuada através de citação e não de notificação como se vê pelo referido art. 191.º, n.º 3, alínea b), do CPPT.

Aliás, esta possibilidade está em sintonia com a regra primacial da solidariedade passiva, enunciada no citado art. 512.º, n.º 1, do Código Civil, que é aplicável tanto à exigência da dívida quer por via judicial quer por via extrajudicial.

No entanto, relativamente à exigência da obrigação tributária, há que atender à especificidade das normas tributárias que prevêem a notificação da liquidação, pois elas pressupõem que a notificação da liquidação ao devedor originário, como se depreende das referências ao «contribuinte» e não também aos responsáveis solidários, que se fazem no art. 86.º, n.ºs 2 e 7, do CPPT e no art. 45.º, n.º1, da LGT.

Nos códigos tributários também se faz referência à notificação da liquidação aos «sujeitos passivos», utilizando-se esta expressão para aludir aos devedores originários, como se pode ver, designadamente, pelos arts. 2.ºe 110.ºdo CIRC, 13.º e 104.º do CIRS, 2.º, 91.ºe 92.º do CIVA, 4.º, 31.º, n.º4, e 43.ºdo CIMT.  No mesmo sentido de a intervenção do responsável solidário não poder substituir, antes do processo de execução fiscal, a intervenção do devedor principal, apontam as normas que prevêem a possibilidade de intervenção dos «contribuintes» e não também dos responsáveis solidários no procedimento tributário, como é o caso das dos arts. 59.ºe 60.ºda LGT.

Por isso, é de concluir que tem de ser proporcionada sempre ao devedor principal a possibilidade de pagar voluntariamente a dívida tributária, na sequência da notificação da liquidação.

Assim, se é certo que o responsável solidário também pode ser notificado para pagamento voluntário da dívida, antes de ser instaurada execução fiscal, também será de entender que a sua notificação deverá ser posterior à do devedor originário, só tendo lugar no caso de o pagamento voluntário por este não ser efetuado.

Em sentido idêntico, remetendo para a doutrina civilística, a Decisão Arbitral proferida no processo n.º 119/2015 distingue os dois tipos de solidariedade tributária:

“ Assim, e por um lado, temos a solidariedade que ocorre “quando os pressupostos do facto tributário se verifiquem em relação a mais de uma pessoa”, denominada, pelo artigo 21.º da LGT, como “solidariedade passiva”, e que se poderá designar, igualmente, como “originária”, na medida em que existe uma ligação direta dos obrigados solidários, ao facto gerador da obrigação de imposto.

Por outro lado, deteta-se na LGT um outro tipo de solidariedade, que se poderá, à luz da sistemática desta, qualificar como “não originária”, e que se reporta à responsabilização de terceiros pela dívida tributária do sujeito passivo originário, conforme genericamente previsto no artigo 22.º/2 daquela Lei. Aqui, ao contrário da solidariedade originária a que se reporta o artigo 21.º, “os pressupostos do facto tributário” não se verificam em relação ao responsável solidário, uma vez que este não é – por definição – sujeito passivo originário.

Que este tipo de casos – do artigo 22.º/2 da LGT – é distintos do primeiro – a que alude o artigo 21.º da mesma Lei, não restarão dúvidas, já que nesta última situação, em que “os pressupostos do facto tributário se verifiquem em relação a mais de uma pessoa”, todos os obrigados serão sujeitos passivos originários do imposto, na medida em que, justamente, os pressupostos do facto tributário se verificam em relação a todos eles, enquanto que na hipótese a que alude o artigo 22.º/2 da LGT, confessadamente, estão em causa terceiros, que não o sujeito passivo originário do imposto.

Ou seja: nos casos em que “os pressupostos do facto tributário se verifiquem em relação a mais de uma pessoa”, como, por exemplo, na tributação do agregado familiar em sede de IRS, teremos uma situação de solidariedade tributária originária; nos casos em que “os pressupostos do facto tributário” não se verificam em relação ao responsável solidário, mas que, por força da lei, aquele é solidariamente responsável pela dívida tributária, e eventuais acessórios, do devedor originário – como acontece no caso dos gestores de bens ou direitos de não residentes – teremos uma situação de solidariedade tributária não originária.

(...) Aplicando aqui a doutrina que se vem de referir, concluir-se-á que nas situações que acima se designaram como de solidariedade originária, estaremos perante casos de verdadeira comunhão de fim, fundada na comunhão do próprio facto tributário, justificativa da aplicação directa dos preceitos civis relativos à solidariedade.

Já nas situações que acima se designaram como de solidariedade não-originária, o que verificará é a referida coincidência de fins, como, retornando ao exemplo dos gestores de bens ou direitos de não residentes, decorre da circunstância de o cumprimento da obrigação pelo sujeito passivo originário (não residente, no exemplo) exonerar o responsável solidário (gestor, no mesmo exemplo), enquanto que o cumprimento pelo responsável solidário (gestor), não exonerará o sujeito passivo originário da sua obrigação (que persistirá, agora, perante aquele, por via do direito de regresso), o que poderá justificar a aplicação, por via da analogia, das partes do regime geral da solidariedade, na medida em que tal se justifique.

Pode-se concluir, assim, face ao quadro legal positivo, com suficiente segurança, que as diferenças entre os dois tipos de solidariedade tributária detectada, relacionados essencialmente com as circunstâncias de:

- num deles (artigo 21.º da LGT) haver uma comunhão no facto tributário entre os devedores (que, como tal, assumirão a qualidade de sujeitos passivos originários do imposto), com a consequente existência de um nexo relacional entre eles, em termos de o cumprimento da obrigação tributária por qualquer deles, gerar o direito de regresso do cumpridor sobre os restantes;

- enquanto noutro (artigo 22.º/2 da LGT), o facto tributário se verifica apenas quanto a um devedor (ou, academicamente, a um grupo de devedores), que se assume como sujeito passivo originário, pelo que, cumprindo este a obrigação tributária, nenhum direito lhe caberá contra os restantes, que, por seu lado, cumprindo, poderão exigir do(s) devedore(s) originário(s) o pagamento de quanto lhes foi imposto pagar.

 

Deste modo, no caso concreto o ato de liquidação e consequente notificação, deveriam ter sido dirigidos contra o responsável originário – os substituídos, titulares dos rendimentos sujeitos a imposto – e não unicamente contra o responsável solidário. Não estando em causa uma situação abrangida pelo artigo 21.º, n. º1, da LGT, inexiste, na esfera deste, qualquer facto tributário, pelo que a liquidação terá́ de ser feita na esfera do sujeito passivo originário.

Assim, retomando o que ficou dito na Decisão Arbitral proferida no processo n. º119/2015-T “... na presente situação não restarão dúvidas que o substituto pode ser responsabilizado solidariamente pelo imposto, que é aquilo que a lei refere, e não já pelas importâncias não retidas.”

“Ora, o imposto, in casu, só é definido (só se torna líquido, certo e exigível) após a liquidação realizada, nos termos do CIRS, aos respetivos sujeitos passivos. Só aí é que vai ser determinado, nos termos legais, o quantum de imposto legitimamente exigível pelo credor tributário, e só aí, justamente, será́ determinável a extensão da responsabilidade solidária do substituto relapso, confrontando o valor dos montantes cuja retenção foi ilegalmente omitida, com o valor do imposto devido, havendo-o, restringindo-se a responsabilidade em questão, ao menor dos dois valores”.

“Ou seja: entende-se que a responsabilidade decorrente da norma do artigo 103.º/4 do CIRS aplicável, devidamente interpretada no contexto sistemático em que se insere, consagra a responsabilização solidária do substituto pelo imposto não retido (e não pelas importâncias não retidas), daí decorrendo que se torna necessário, em primeiro lugar, determinar o quantum daquele, e só depois o valor da retenção devida.”

“Assim, e concretizando, se estiver em falta uma retenção de 100, e, liquidado o imposto nos termos do CIRS, resultar, por exemplo:

 - a existência de um imposto a pagar de 120, o substituto será́ solidariamente responsável por 100;

- a existência de um imposto a pagar de 60, o substituto será́ solidariamente responsável por 60, não obstante as importâncias não retidas ascenderem a 100;

 - a inexistência de imposto a pagar (ou mesmo um reembolso), a responsabilidade solidária do substituto será́ nula, não obstante as importâncias não retidas ascenderem a 100”.

 “A única – e fundamental – diferença introduzida pela norma do artigo 103.º/4 do CIRS aplicável, ora em causa, é a alteração do tipo de responsabilidade tributária do substituto, do regime regra da responsabilidade subsidiaria (decorre da regra geral do artigo 22.º/4 da LGT, e especifica do artigo 28.º/2 da mesma Lei), para o regime excecional da responsabilidade solidária, e não uma alteração do objeto daquela mesma responsabilidade tributária”.

“Ou seja: o artigo 103.º/4 do CIRS, em questão, altera o tipo de responsabilidade tributária, mas não o seu objeto, que não deixa de ser o imposto, para passar a ser a importância não retida”.

 

Em suma, no caso em apreço, a Requerente seria solidariamente responsável e demandada em primeira linha, mas apenas pelas dívidas de imposto de cada um dos trabalhadores, que ilegalmente não reteve. As importâncias não retidas servem unicamente como limite àquela responsabilidade.

Poderia, por isso, a Requerida demandar a Requerente, até ao limite do montante de imposto que deveria ter retido, depois de previamente determinado o quantum da sua responsabilidade, através da liquidação do imposto devido pelos sujeitos passivos originários, o que não ocorreu.

Acrescente-se ainda que o entendimento ora adotado não contraria a jurisprudência do Tribunal Constitucional vertida no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 231/2016, publicado em D.R., 2.º Série, n.º 108, de 6 de junho de 2016, citado pela Requerente. O pedido da requerente sustentava a inconstitucionalidade do artigo 103.º, n.º 4, do Código do IRS, interpretado no sentido de que “estando em causa rendimentos sujeitos a retenção que não foram contabilizados, nem comunicados, como tal, aos respetivos beneficiários, o substituto assume responsabilidade solidária pelo imposto não retido, responsabilidade essa que se materializa, no entendimento da administração tributária, na possibilidade de exigir o imposto, alegadamente devido, direta e integralmente ao substituto, ainda na fase de pagamento voluntário.” Ou seja, se falamos na exigência de pagamento ao substituto na fase de pagamento voluntário, temos como pressuposto a liquidação do imposto, conforme supra defendido. Também aqui se defende e assume a legalidade da liquidação ao substituto tributário na fase do pagamento voluntário.

Nestes pressupostos, o Tribunal Constitucional considerou que a administração fiscal pode exigir o pagamento das quantias devidas ao Estado quer à entidade patronal quer ao trabalhador.

Há, por isso, total consonância entre o sentido da presente decisão e a jurisprudência do Tribunal Constitucional.

 Em conclusão, a interpretação adequada do artigo 103.º, n.º 4, do CIRS, tendo em conta os elementos hermenêuticos, sistemático e teleológico, vai no sentido propugnado pelas decisões arbitrais mencionadas que ora subscrevemos.

Deste modo, assiste razão à Requerente ao defender que inexiste facto tributário, quanto à liquidação de IRS, pois, o facto tributário que gera a responsabilidade solidária é constituído pelo não pagamento voluntário pelos devedores principais dos montantes de IRS não retidos possam ser exigido a cada um destes (e não pelo montante que devia ser retido, que é apenas o limite máximo da responsabilidade do responsável solidário, a nível do imposto), situação essa que não ocorreu.

Termos em que se justifica a anulação da liquidação de IRS, com fundamento em vício de violação de lei, por inexistência de facto tributário.

Procedendo o pedido de pronúncia quanto à liquidação de IRS, fica prejudicado, por inútil, o conhecimento das demais questões colocadas pela Requerente.

 

 

III – Decisão

Termos em que se decide:

a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, nesta sequência,

b) Anular a liquidação adicional em sede de IRS com o número 2018..., no valor de € 893.461,00 e de juros compensatórios no valor de € 155.285,62, no valor total de 1 048 746,62 €uros.

 

Valor da causa

 

 A Requerente indicou como valor da causa o montante de €1.048.746,62, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 14 382, que fica a cargo da Requerida.

 

Notifique.

 

Lisboa, 03 de Agosto de 2020

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

Carlos Fernandes Cadilha

 

O Árbitro vogal

Augusto Vieira

 

O Árbitro vogal

Amândio Silva