Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 777/2022-T
Data da decisão: 2024-02-19  IRC  
Valor do pedido: € 30.840,87
Tema: IRC –– Crédito de imposto por dupla tributação internacional dupla tributação; duplicação de coleta; revisão oficiosa.
Versão em PDF

 

SUMÁRIO:

  1. Sendo certo que a AT indefere o pedido de revisão por entender que não estão verificados os condicionalismos impostos pelo artigo 78.º da LGT, não é menos verdade que não deixa de existir uma reapreciação da liquidação em causa, como se retira da seguinte afirmação vertida na decisão «conclui-se que a liquidação aqui controvertida, não se encontra inquinada de qualquer ilegalidade».
  2. A pretensão de receber o montante de imposto que tenha sido liquidado de forma ilegal é, pois, uma consequência da eventual declaração de ilegalidade, no âmbito do dever de «restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado», estatuído na alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º do RJAT, pelo que tal pretensão não contende com a competência dos tribunais arbitrais tributários que funcionam no CAAD, tanto mais que pressupõe a prévia declaração de ilegalidade do ato de autoliquidação.
  3. A ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária apenas pode ser proposta «sempre que esse meio processual for o mais adequado para assegurar uma tutela plena, eficaz e efetiva do direito ou interesse legalmente protegido. Na situação em apreço, atenta a natureza do pedido do Requerente, é manifesto que o recurso à arbitragem assegura o direito que pretende ver reconhecido.
  4. Os conceitos de legais de duplicação de coleta e de dupla tributação não se confundem.
  5. Verificam-se, assim, todos os requisitos de que depende a revisão da matéria tributável prevista nos n.ºs 4 e 5 do artigo 78.º da LGT, pelo que em vez do indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa, a Autoridade Tributária e Aduaneira deveria ter efetuado a revisão e anulado parcialmente a liquidação de IRC impugnada.

 

DECISÃO ARBITRAL

O árbitro Francisco Melo, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o presente Tribunal Arbitral, constituído em 20-02-2023, decide:

 

  1. RELATÓRIO

 

  1. A... S.A., titular do número de identificação de pessoa coletiva ..., com sede na ..., n.º ..., em Lisboa, (doravante “Requerente”), veio, em 14-1-2022, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do Regime Jurídico de Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, e nos artigos 1.º, alínea a) e 2.º, ambos da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, requerer a constituição de Tribunal Arbitral Tributário e apresentar pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), tendo por objeto o ato de indeferimento total do pedido de revisão oficiosa n.º ...2021..., notificado através do Ofício da Direção de Finanças de Lisboa n.º..., de 15 de setembro de 2022, bem como, o ato de autoliquidação de IRC referente ao período de tributação de 2017, requerendo (i) a anulação da referida decisão de indeferimento, e (ii) a correção do o ato de autoliquidação de IRC relativo a 2017, reconhecendo-se o direito da Requerente a um crédito de imposto no montante de € 30.840,87, por dupla tributação internacional, com as demais consequências, legais, incluindo (iii) o pagamento de juros indemnizatórios.
  2. É requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).
  3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 16-12-2022 e seguidamente notificado à Requerida.
  4. Em conformidade com o disposto nos artigos 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o ora signatário como árbitro, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
  5. As Partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar.
  6. O Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 20-02-2023.
  7. Em 27-03-2023, a Requerida apresentou a sua Resposta, defendendo-se por exceção e por impugnação.
  8. Por despacho de 29-03-202, o Tribunal Arbitral notificou o Requerente para se pronunciar, querendo, no prazo de dez dias, sobre a matéria de exceção.
  9. Em 30-03-2023, a Requerida remeteu o processo administrativo.
  10. Em 18-04-2023, veio o Requerente responder à matéria de exceção suscitada pela AT na sua Resposta.
  11. Por despacho de 21-04-2023, o Tribunal Arbitral proferiu despacho no sentido de dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e de notificar as Partes para, querendo, apresentarem alegações finais escritas.
  12. O Requerente e a Requerida apresentaram as respetivas alegações, em 09-05-2023.
  13. O Tribunal prorrogou o prazo para prolação da Decisão Arbitral, por dois meses, nos termos do artigo 21.º, n.º 2, do RJAT, em 18-08-2023, em 18-10-2023 e em 19-12-2023.

 

  1. POSIÇÃO DAS PARTES

 

§1. Posição da Requerida na decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa

 

  1. Verifica-se que não estão reunidos os condicionalismos impostos pelo artigo 78.º da LGT, nomeadamente, porque não é o meio para reagir, uma vez que não se trata de matéria tributável, mas antes da dedução à coleta por dupla tributação jurídica internacional nos termos do art.º 91.º do CIRS, e por sua vez, a Requerente não utilizou a possibilidade da entrega de uma declaração de substituição da modelo 22, respeitante ao ano de 2017, para regularizar o alegado, dentro do prazo, nem apresentou reclamação graciosa, considerando-se, assim comportamento negligente do sujeito passivo o que impossibilita a aplicação do n.º 4 do mesmo artigo.
  2. O n.º 6 do art.º 78.º da LGT prevê a revisão do ato tributário por motivo de duplicação de coleta, no prazo de quatro anos, porém, na situação em causa não estamos perante situação de duplicação de coleta.
  3. Face ao exposto, somos de indeferir o pedido de revisão por não se verificarem os pressupostos da revisão oficiosa.

 

§2. Posição da Requerente no PPA e alegações

 

Da ilegalidade da decisão da AT por vício de falta de fundamentação absoluta

 

  1. A AT fundamenta decisão de indeferimento que recaiu sobre o pedido de revisão oficiosa, por um lado, na impropriedade do meio, por não se tratar de matéria tributável e, por outro, na inexistência de injustiça grave e notória ou situação de dupla tributação, que justifique a correção oficiosa do ato autoliquidação.
  2. Apesar de o pedido de revisão oficiosa ter sido apresentado com fundamento em injustiça grave ou notória, nos termos do n.º 4 do artigo 78.º da LGT, a verdade é que a causa de pedir consubstancia uma efetiva situação de dupla tributação.
  3. Nesta senda, embora a decisão de indeferimento ora em crise aflore os motivos pelos quais a AT considera não estarmos perante uma “injustiça grave e notória”, não são em momento algum indicados os motivos pelos quais se entende que não se verifica uma situação de dupla tributação, limitando-se a decisão a referir que “O n.º 6 do art.º 78.º da LGT prevê a revisão do ato tributário por motivo de duplicação de coleta, no prazo de quatro anos, porém, na situação em causa não estamos perante situação de duplicação de coleta”.
  4. Note-se que, a obrigatoriedade de fundamentação dos atos em matéria tributária, para além de estar consagrada no artigo 77.º da LGT e 36.º do CPPT, assume relevo constitucional.
  5. A CRP prevê, expressamente, no artigo 268.º n.º 3 da CRP que “Os atos administrativos estão sujeitos a notificação aos interessados, na forma prevista na lei, e carecem de fundamentação expressa e acessível quando afetem direitos ou interesses legalmente protegidos”.
  6. Ora, o projeto da decisão de indeferimento, que viria a ser convolado em decisão final, não apresenta qualquer justificação para a rejeição dos argumentos e da prova que demonstravam a existência de uma dupla tributação, refletindo um claro desrespeito da AT por princípios de natureza constitucional.
  7. A argumentação deduzida pela AT omite, de forma absoluta, as premissas que lhe permitiram concluir pela inexistência de uma situação de dupla tributação.
  8.  

Do mérito do pedido formulado e o direito ao crédito de imposto

 

  1. Nos termos do disposto no artigo 205.º, n.º 1 do CPPT, existe situação de duplicação de coleta quando, cumulativamente, se verifique:

(a) Unicidade do facto tributário;

(b) Identidade da natureza entre a contribuição ou imposto já pago integralmente e o que de novo se pretende cobrar;

(c) Coincidência temporal entre a incidência do imposto pago e o que de novo se exige.

  1. A Requerente entende que foi tributada duplamente relativamente aos seguintes rendimentos provenientes das seguintes faturas (cf. Documento n.º 6, junto com o pedido de pronúncia arbitral):

- Fatura n.º 22101180051, emitida à B..., Lda;

- Fatura n.º 22120180/03476, emitida à C..., Lda;

- Fatura n.º 22120180/01311, emitida à D...;

- Faturas n.º 22120180/03721, n.º 22120180/02915, n.º 22120180/03131 e n.º 22120180/04009, emitidas à E... Ltda.

  1. Os rendimentos provenientes do pagamento das faturas supramencionadas foram objeto de retenção na fonte, nos respetivos países da fonte (in casu, Angola e Brasil).
  2. A retenção no país da fonte ocorreu apenas no momento do pagamento dos serviços associados às referidas faturas, por motivos exclusivamente imputáveis aos Clientes da Requerente.
  3. Tal circunstancialismo deu origem a um desfasamento temporal entre o momento em que tais rendimentos foram contabilisticamente reconhecidos nas contas da Requerente e o momento em que efetivamente foram objeto de retenção em Angola e no Brasil.
  4. Em razão do atraso no pagamento das faturas supramencionadas, a Requerente não refletiu o montante das retenções efetuadas nos países da fonte no valor de que inscreveu no Campo 353 do Quadro 10 da declaração Modelo 22, respeitante ao IRC do exercício de 2017.
  5. Tendo, relativamente aos mesmos rendimentos de fonte estrangeira, para o mesmo período de 2017, sido efetivamente tributada duas vezes, em sede de IRC ou de imposto equivalente, relativamente a clientes sediados em Angola e no Brasil.
  6. Assim, conclui-se que estão reunidos os requisitos de que depende a verificação de duplicação de coleta, porquanto:

(a) o tributo foi pago por inteiro, tanto em Portugal como em Angola e no Brasil;

(b) a natureza do tributo é igual, embora emane de jurisdições diferentes;

(c) o tributo refere-se ao mesmo facto tributário e ao mesmo período.

  1. Nem se diga que a Requerente não logrou comprovar que o tributo foi efetivamente pago às Autoridade Fiscais Angolanas e Brasileiras, porquanto, para além de ter apresentado os comprovativos das retenções na fonte efetuadas, a AT tem a faculdade de confirmar o efetivo recebimento da receita fiscal através dos mecanismos de troca de informações.
  2. Ora, verificando-se uma situação de dupla tributação, a AT encontra-se obrigada a recorrer aos mecanismos previstos no CIRC, para a eliminação da dupla tributação jurídica internacional, sob pena de manter na ordem jurídica uma situação em que o sujeito passivo procedeu ao pagamento do mesmo imposto por duas vezes.
  3. Tais mecanismos estão consagrados nos artigos 90.º e 91.º do CIRC, os quais determinam que à coleta apurada, em sede de IRC, deverá ser deduzido o valor correspondente ao imposto suportado no estrangeiro até ao limite do IRC pago em Portugal sobre o lucro decorrente da atividade que gerou esse rendimento tributado no estrangeiro (fração do IRC correspondente ao rendimento em causa líquido dos gastos direta ou indiretamente suportados para a sua obtenção).
  4. O mecanismo a que acima se aludiu concretiza o princípio da neutralidade da exportação, que decorre diretamente do princípio da igualdade, pretendendo assegurar um tratamento fiscal igualitário entre residentes que invistam no exterior e aqueles cujos rendimentos sejam obtidos exclusivamente no estado de residência.
  5. Assim, dúvidas não subsistem em como a Requerente tem direito a um crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional, no valor total de € 30.840,87, correspondente às retenções na fonte realizadas na Angola e no Brasil.
  6. Termos em que deverá ordenar-se a correção da autoliquidação, referente ao período de tributação de 2017, sendo permitida a dedução à coleta, do valor constante do Campo 353 do Quadro 10 da declaração Modelo 22, respeitante às retenções na fonte sofridas em Angola e no Brasil, que ascende a € 30.840,87.

 

Do direito aos juros indemnizatórios

 

  1. A Requerente considera ter direito ao pagamento de juros indemnizatórios, calculados a partir do momento em que os serviços tiveram conhecimento da ilegalidade incorrida no ato de autoliquidação e se recusaram a proceder à sua reparação, ou seja, a partir da data de indeferimento do pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente.
  2. Assim, para além do direito ao reembolso do montante de imposto indevidamente suportado e que deu origem a uma situação de dupla tributação jurídica internacional, são ainda devidos juros indemnizatórios, que deverão ser calculados desde a data da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, até efetivo e integral pagamento, à taxa de 4% ao ano, nos termos do disposto nos artigos 35.º, n.º 10 e 43.º, n.º 4 da LGT, 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/03, de 8 de abril.

 

§3. Posição da Requerida em sede de Resposta

 

Da incompetência, em razão da matéria, do tribunal arbitral

 

  1. A requerente pede a revisão oficiosa com fundamento em injustiça grave ou notória.
  2. Ora, quando, como é manifestamente o caso dos autos, não ocorra tal injustiça ou não tenha havido erro imputável aos serviços na liquidação, preclude, com o decurso do prazo de reclamação, o direito de o contribuinte obter a seu favor a revisão do ato de liquidação (tal como é defendido por A. Lima Guerreiro, LGT anotada, em anotação ao art° 78°).

Por outro lado,

  1. A decisão proferida em sede de procedimento de revisão pode, ou não, comportar a apreciação da legalidade do ato de liquidação.
  2. Conforme se deliberou no Ac. do STA, de 06/11/08, in proc. nº 0357/08, a forma processual de reação contra o despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa pode ser a impugnação judicial ou a ação administrativa especial, consoante a decisão comporte, ou não, a apreciação da legalidade do ato de liquidação.
  3. No presente p.p.a, é inquestionável que o Tribunal Arbitral vai ter que analisar dos pressupostos de aplicação do mecanismo da revisão oficiosa, bem como, que não existe qualquer injustiça grave ou notória que justificasse a revisão da autoliquidação.
  4. Ou seja, tendo em conta que o p.p.a não é interposto para a apreciação direta de uma liquidação mas apenas para a apreciação de um indeferimento de um pedido de revisão oficiosa, é evidente que o Tribunal vai ter que decidir de uma questão relativa ao controle dos pressupostos de aplicação do art. 78º da LGT.
  5. Ora, o Tribunal Arbitral não tem competência para apreciar e decidir a questão de saber se o indeferimento do pedido de revisão oficiosa violou, ou não, o art. 78º da LGT e se os pressupostos de aplicação de tal mecanismo de revisão foram, ou não, bem aplicados pela AT.
  6. Tal situação impõe-se por força dos princípios constitucionais do Estado de direito e da separação dos poderes (cf. artigos 2.º e 111.º, ambos da CRP), bem como da legalidade (cf. artigos 3.º, n.º 2 e 266.º, n.º 2, ambos da CRP), como corolário do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários ínsito no artigo 30.º, n.º 2 da LGT, que vinculam o legislador e toda a actividade da AT.
  7. Deste modo, verifica-se a existência de uma excepção dilatória, consubstanciada na incompetência material do tribunal arbitral, a qual obsta ao conhecimento do pedido, e, por isso, deve determinar a absolvição da entidade Requerida da instância, atento o disposto nos artigos 576.º, n.º 1 e 577.º, alínea a) do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
  8. Inexiste, igualmente, qualquer suporte legal que permita que sejam proferidas pelos tribunais arbitrais condenações de outra natureza que não as decorrentes dos poderes fixados no RJAT: poderes declaratórios com fundamento em ilegalidade.
  9. Há que concluir que, a condenação da AT a emitir um reembolso de um hipotético crédito de imposto que no caso corresponde, na totalidade, ao imposto supostamente pago em Angola e Brasil, se encontra excluída do âmbito da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD.
  10. Ora, a incompetência material do Tribunal para a apreciação do pedido identificado supra consubstancia uma excepção dilatória que obsta ao prosseguimento do processo, conducente à absolvição da instância quanto à pretensão em causa, de acordo com o previsto nos artigos 576.º, n.º 2, 577.º, alínea a) do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
  11. Acresce que, o meio adequado para obter o reconhecimento de um direito seria sempre a ação para obter o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido em matéria tributária prevista no artigo 145º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.
  12. Pelo que, o presente meio não consubstancia o meio processual adequado com vista ao reconhecimento de um crédito por dupla tributação internacional, verificando-se impropriedade do meio processual utilizado, o que no caso também se reconduz à incompetência do Tribunal Arbitral para conhecer de tal pedido.
  13.  

Do mérito do pedido formulado

 

  1. O pedido de revisão oficiosa surgiu apresentado pelo sujeito passivo, expressamente, nos termos dos n.ºs 4 e 5 do artigo 78.º da LGT.
  2. O n.º 4 do artigo 78.º da LGT dispõe o seguinte: «O dirigente máximo do serviço pode autorizar, excepcionalmente, nos três anos posteriores ao do acto tributário a revisão da matéria tributável apurada com fundamento em injustiça grave ou notória, desde que o erro não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte». Por sua vez, o n.º 5 do artigo 78.º da LGT dispõe o seguinte:
  3. «Para efeitos do número anterior, apenas se considera notória a injustiça ostensiva e inequívoca e grave a resultante de tributação manifestamente exagerada e desproporcionada com a realidade ou de que tenha resultado elevado prejuízo para a Fazenda Nacional».
  4. Na situação vertente, não se vislumbra como poderia obter vencimento a pretensão da Requerente, ao abrigo dos n.ºs 4 e 5 do artigo 78.º da LGT: a ter existido algum erro, ele apenas seria de assacar ao sujeito passivo, que autoliquidou o imposto.
  5. Não intervieram os serviços da Administração Fiscal no apuramento ou cálculo das quantias retidas, apenas tomando conhecimento das retenções, a posteriori, através da Requerente, consumados já os atos tributários na esfera desta como substituído tributário.
  6. A Administração Fiscal limitou-se a presumir todo o declarado pelo sujeito passivo como verdadeiro e de boa fé (artigo 75.º, da LGT), ou seja, a dar como boa a qualificação e quantificação operada pelo próprio sujeito passivo. Nem parece que devesse agir de outro modo, nem sendo expectável qualquer outro comportamento a não ser cumprir, estritamente, o previsto na lei.
  7. Nos termos do art.º 78.º n.º 4 da LGT, poderá o dirigente máximo do Serviço autorizar, excecionalmente, nos três anos posteriores ao do ato tributário, a revisão da matéria tributável apurada com fundamento em injustiça grave ou notória, desde que o erro não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte.
  8. Pelo que, nos termos do n.º 2 do art.º 120.º do CIRC, no caso de sujeitos passivos, com período de tributação diferente do ano civil, sendo esse o caso da requerente (01-06-2017 a 31-08-2018), a data limite de entrega da modelo 22 de IRC, seria até 31-01-2019.
  9. E tendo entregue a modelo 22 de IRC n.º ...-2018-..., a 31-10-2018, o termo do prazo para solicitar o pedido de revisão seria a 01-11-2021. Tendo apresentado o seu pedido a 27-10- 2021, o mesmo é intempestivo ao abrigo do n.º 4 do art.º 78.º a LGT, contudo não estamos perante a correção de matéria tributável, não sendo o meio para reagir.
  10. Nos termos do n.º 2 do art.º 122.º do CIRC, a requerente poderia ter apresentado declaração de substituição para regularizar o alegado, até 31-01-2020, e por sua vez, nos termos do n.º 1 do art.º 131.º do CPPT, por remissão do n.º 2 do art.º 137.º do CIRC.
  11. Como não apresentou reclamação graciosa por erro na autoliquidação, cujo termo para reclamar foi de 31-10-2020, e não o tendo feito, estaremos, repita-se, perante uma situação de negligência, para efeitos do n.º 4 do art.º 78.º da LGT, já que tal omissão concorreu para a formação do erro na liquidação.
  12. Por sua vez, define a própria lei o conceito de injustiça grave ou notória (art.º 78.º n.º 5) como a resultante de tributação manifestamente exagerada e desproporcionada com a realidade ou de que tenha resultado elevado prejuízo para a Fazenda Nacional.
  13. Esta revisão “visa resolver apenas os casos mais escandalosos e gritantes de injustiça fiscal, não devendo constituir um meio sistemático do contribuinte para obter a revisão dos atos tributários para além dos prazos normais de reclamação ou impugnação, o que comprometeria a eficácia e racionalidade do atual sistema de garantias dos contribuintes”, (Lima Guerreiro – Lei Geral Tributária Anotada, Rei dos Livros, Lisboa 2001, p.346).
  14. Pressuposto essencial da possibilidade de revisão do ato tributário ao abrigo do n.º 4 do art.º 78.º da LGT, que consta da parte final da sua redação, é de que o “erro” subjacente à pretensa “injustiça” não seja imputável a comportamento negligente do sujeito passivo.
  15. Concluindo, verifica-se que não estão reunidos os condicionalismos impostos pelo artigo 78.º da LGT, nomeadamente, porque não é o meio para reagir, uma vez que não se trata de matéria tributável, mas antes da dedução à coleta por dupla tributação jurídica internacional, nos termos do art.º 91.º do CIRC, e por sua vez, a Requerente não utilizou a possibilidade da entrega de uma declaração de substituição da modelo 22, respeitante ao ano de 2017, para regularizar o alegado, dentro do prazo, nem apresentou reclamação graciosa, considerando-se, assim comportamento negligente do sujeito passivo o que inviabiliza a aplicação do n.º 4 do mesmo artigo.
  16. Quanto à revisão do acto tributário por motivo de duplicação de coleta, nos termos previstos no n.º 6 do artigo 78.º da LGT, importa ter presente que no pedido de revisão surge estritamente delimitada pelo sujeito passivo a fundamentação do mesmo (artigo 10.º da petição): «No caso em análise, pretende-se a revisão oficiosa do ato tributário de autoliquidação de IRC referente ao período de tributação de 2017, correspondente ao período compreendido entre 1 de junho de 2017 e 31 de maio de 2018, à qual foi atribuída a identificação 3247-C7287-9 (cuja cópia se junta em anexo sob a designação de Documento 1), com fundamento em injustiça grave ou notória, nos termos dos n.ºs 4 e 5 do artigo 78.º da LGT». Cf. fls…PA
  17. a duplicação de coleta, por referência a um elemento temporal e estrutural, verifica-se quando, estando paga uma coleta, se liquida e exige outra da mesma natureza, em relação ao mesmo facto tributário e ao mesmo período de tempo.
  18. A essa luz, dos autos não decorre que ocorreu o cumprimento da mesma obrigação fiscal subsequente a aplicação pela administração tributária (portuguesa), concretamente, da norma de incidência.
  19. É inquestionável que a AT não analisou os documentos juntos pela requerente com os quais esta pretende fazer prova de que tem direito ao crédito em causa.
  20. No entendimento da AT, firmado e divulgado desde o ano de 2000, através do Ofício-Circulado nº 20.022 de 19/05/2000, a efetivação do crédito de imposto por dupla tributação internacional deve ter como suporte “documento comprovativo do montante do rendimento, da sua natureza e do pagamento do imposto, o qual deverá ser emitido ou autenticado pelas Autoridades Fiscais do respectivo Estado de onde são originários os rendimentos”, isto é, deve tratar-se de documento original ou fotocópia autenticada.
  21. É que, o exercício do direito ao crédito de imposto por dupla tributação internacional, nos termos previstos no n.º 1 do art.º 91.º do Código do IRC, depende de: (i) os rendimentos (ilíquidos, i.e., acrescidos do imposto pago no estrangeiro) se encontrarem incluídos na matéria coletável; e (ii) da existência de imposto pago no estrangeiro sobre os rendimentos em causa.
  22. Assim, no caso presente, cabia à requerente fazer prova do crédito do imposto, ainda para mais quando a sua declaração Mod. 22 que goza da presunção da veracidade nos termos do nº 1 do art. 75º da LGT, não o evidencia, pelo que, é do senso comum concluir que a única prova admissível fosse a produzida pelas entidades habilitadas isto é, as autoridades fiscais competentes, a certificar que os rendimentos obtidos por não residentes estão sujeitos a tributação no Estado da fonte, a taxa aplicável e o imposto efetivamente pago.
  23. Donde, os documentos juntos pela requerente que se destinam a atestar que a requerente pagou aquele montante de imposto não têm aptidão para comprovar que a Administração Geral Tributária Angolana e Brasileira efetivamente recebeu de imposto sob a forma de retenções na fonte a título definitivo, a quantia aí indicada.
  24. Pelo que, a requerente não comprova que tenha suportado e efetivamente refletido na sua contabilidade um montante de imposto sobre o rendimento que lhe foi exigido segundo a lei fiscal angolana e brasileira no montante pretendido.
  25. Não pode o Tribunal arbitral acolher os cálculos apresentados pela requerente, já que os mesmos teriam sempre que ser revistos pela AT.

 

§4. Resposta às exceções

 

  1. A Requerente, desenvolvendo abundante argumentação, impugna todas as exceções para, a final, concluir pela sua total improcedência.

 

  1. SANEAMENTO

 

  1. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.
  2. As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
  3. O processo não padece de vícios que o invalidem.
  4. A Requerida na sua resposta veio invocar três exceções: (i) a incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria, por entender que o Tribunal Arbitral não tem competência para apreciar e decidir a questão de saber se o indeferimento do pedido de revisão oficiosa violou, ou não, o art. 78º da LGT e se os pressupostos de aplicação de tal mecanismo de revisão foram, ou não, bem aplicados pela AT, (ii) a incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria, por entender também que a condenação da AT a emitir um reembolso de um hipotético crédito de imposto que no caso corresponde, na totalidade, ao imposto supostamente pago em Angola e Brasil, se encontra excluída do âmbito da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD e (iii) a impropriedade do meio processual, cumprindo primeiramente proceder à respetiva análise.

 

  1. MATÉRIA DE FACTO

 

§1. Factos provados

 

  1. Com relevo para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:

 

  1. A Requerente é uma sociedade anónima de direito português, que se encontra sujeita ao regime geral de tributação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) (cf. referido no artigo 7.º do PPA – facto não contraditado).
  2. Em 31 de outubro de 2018, a Requerente submeteu a sua declaração de rendimentos Modelo 22 do IRC, relativa ao período de tributação de 2017 (findo a 31 de maio de 2018) tendo procedido à sua substituição a 28 de outubro de 2019 (cf. Documento n.º 3 junto ao PPA).
  3. No Campo 353 do Quadro 10 da declaração de rendimentos Modelo 22 do IRC, a Requerente considerou como dedução à coleta, a título de crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional, o valor de € 419.588,78 (cf. Documento n.º 3 junto ao PPA).
  4. Os clientes da Requerente nem sempre procedem ao pagamento dos respetivos serviços, no período em que os mesmos foram faturados (cf. referido no artigo 12.º do PPA – facto não contraditado).
  5. Ocorrem situações em que existe um claro desfasamento entre o período em que os rendimentos associados aos serviços prestados são contabilisticamente reconhecidos e faturados e o período em que esses mesmos rendimentos são objeto de retenção na fonte no respetivo país da fonte (cf. referido no artigo 14.º do PPA – facto não contraditado).
  6. Relativamente aos mesmos rendimentos de fonte estrangeira, para o mesmo período de 2017, a Requerente foi tributada duas vezes, em sede de IRC ou de imposto equivalente, relativamente a clientes sediados em Angola e no Brasil (cf. referido no artigo 16.º do PPA – facto não contraditado).
  7. O imposto a que a Requerente julga ter direito ascende ao montante total de € 30.840,87, respeitando às retenções na fonte sofridas em Angola e no Brasil, por referência às seguintes faturas: - Fatura n.º 22101180051, emitida à B..., Lda; - Fatura n.º 22120180/03476, emitida à C..., Lda; - Fatura n.º 22120180/01311, emitida à D...; - Faturas n.º 22120180/03721, n.º 22120180/02915, n.º 22120180/03131 e n.º 22120180/04009, emitidas à  E...Ltda. (cf. Documento n.º 6 junto ao PPA).
  8. Em 27/10/2021, a Requerente apresentou um pedido de revisão oficiosa da sua autoliquidação de IRC do ano de 2017 (cf. Documento n.º 4 junto ao PPA).
  9. Por despacho de 13-09-2022, a Autoridade Tributária indeferiu o pedido de revisão oficiosa da Requerente (cf. Documento n.º 1 junto ao PPA).
  10. O PPA que deu origem a presente processo foi apresentado em 14-12-2022.

 

§2. Factos não provados

 

  1. Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.

 

§3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

  1. Cabe ao Tribunal Arbitral selecionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, al. a) e e), do RJAT).
  2. Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, quanto à matéria de facto, na sua íntima e prudente convicção, formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cfr. artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e artigo 607.º, n.º 4, do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
  3. Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, cfr. artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação da prova produzida, o referido princípio da livre apreciação (cfr. artigo 607.º, n.º 5, do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
  4. Consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados como factos provados, tendo por base a análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos, que não foram impugnados.

 

  1. MATÉRIA DE DIREITO

 

§1. Apreciação das exceções

 

  1. A incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria

 

  1. Em primeiro lugar, a AT deduz a excepção da incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria, por entender que o Tribunal Arbitral não tem competência para apreciar e decidir a questão de saber se o indeferimento do pedido de revisão oficiosa violou, ou não, o art. 78º da LGT e se os pressupostos de aplicação de tal mecanismo de revisão foram, ou não, bem aplicados pela AT.

Vejamos.

  1. Entende-se, maioritariamente, que, perante uma situação de indeferimento expresso, há que distinguir dois tipos situações:

- os casos em que o indeferimento resultou de uma reapreciação da liquidação em causa, tendo a AT concluído, de novo, pela sua legalidade – nestes casos, por o objeto do litígio ser (continuar a ser) a legalidade da liquidação, o meio de reação judicial a utilizar seria o processo de impugnação.

- os casos em que o pedido de revisão é indeferido por outras razões, nomeadamente por ser considerado intempestivo. Nestes casos, existe um novo ato administrativo, autónomo relativamente ao de liquidação (e não meramente confirmativo, ao invés do que sucede no tipo de casos anterior) – o meio de reação a utilizar seria, então, a ação administrativa, pois o objeto do processo seria este novo ato (e não, ao menos imediatamente, o de liquidação).

  1. No caso dos presentes autos, sendo certo que a AT indefere o pedido de revisão por entender que não estão verificados os condicionalismos impostos pelo artigo 78.º da LGT, não é menos verdade que não deixa de existir uma reapreciação da liquidação em causa, como se retira da seguinte afirmação vertida na decisão «conclui-se que a liquidação aqui controvertida, não se encontra inquinada de qualquer ilegalidade», tendo tal conclusão sido precedida da análise sobre a verificação da existência de situação de “injustiça grave e notória” com base na duplicação de coleta, na qual a AT entendeu que na situação em causa não estamos perante situação de duplicação de coleta.
  2. Portanto, a Requerida não se limitou a apreciar apenas a questão prévia da eventual não admissão do pedido de revisão do ato tributário.

Neste sentido, veja-se também a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo que se pronuncia no sentido, que se acompanha, de que, sendo o pedido do contribuinte dirigido à anulação por ilegalidade do ato tributário, está em causa a apreciação dessa mesma ilegalidade, qualquer que seja a razão ou o vício que conduziram à rejeição ou indeferimento dessa pretensão, como se retira do seguinte excerto do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 14 de Maio de 2015, no processo n.º 01958/13:

“Sucede que a informação que precede o referido despacho de indeferimento, exarado como se disse em concordância com tal fundamentação, não faz apenas referência ao decurso de prazos para concluir pelo indeferimento do pedido.

Tal informação alicerça a proposta de indeferimento do pedido de revisão na seguinte fundamentação: por um lado considerou-se que o pedido de revisão apresentado com fundamento em ilegalidade não foi apresentado dentro do prazo de reclamação administrativa referido na 1ª parte do n° 1 do artigo 78° da LGT; por outro lado entendeu-se não ter havido erro imputável aos serviços na medida em que as liquidações de IRC foram emitidas em tempo oportuno com origem nos documentos de correcção elaborados - DC 22.

Mais se ponderou que a liquidação teve por base o relatório da inspecção tributária em que se concluiu que a não consideração como custos do conjunto de facturas nele elencadas resulta do facto de se ter apurado que as mesmas não correspondiam a serviços prestados ao sujeito passivo e, por isso, não podiam ser considerados como custos para efeitos de IRC nos termos do artigo 23° do Código de IRC.

E, com base nesta argumentação, a proposta de indeferimento do pedido de revisão concluiu que não se verificou qualquer ilegalidade nem a existência de qualquer erro imputável aos Serviços.

Em suma no caso vertente estava em causa a legalidade do acto tributário de liquidação, sendo que a decisão do director distrital de finanças ao indeferir o pedido de revisão com base na falta de pressupostos legais, nomeadamente por não se verificar erro imputável aos serviços, comporta a apreciação da legalidade de um acto de liquidação.

Assim, é de concluir que no presente caso, ao atacar contenciosamente aquele despacho pela via da impugnação judicial, e não por via de acção administrativa especial, a recorrente utilizou o meio processual adequado.”.

  1. Daqui resulta, pois, a competência, em razão da matéria, deste tribunal arbitral, e, por conseguinte, o indeferimento da alegada exceção.

 

  1. A incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria

 

  1. Em segundo lugar, a AT deduz novamente a exceção da incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria, por entender que o Tribunal Arbitral não tem competência para condenar a AT a emitir um reembolso de um hipotético crédito de imposto que no caso corresponde, na totalidade, ao imposto supostamente pago em Angola e Brasil.

Vejamos.

  1. Dispõe o artigo 2.º do RJAT que:

“1 — A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:

a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;

b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais;”.

  1. Como refere Carla Castelo Trindade no seu “Regime Jurídico da Arbitragem Tributária - Anotado”, o contencioso arbitral tributário está estruturado à volta do acto de liquidação, sendo este que figura como objecto do mesmo no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, e sendo os actos de segundo grau, nos termos do artigo 10.º, n.º 1, alínea a) também do RJAT, meros referenciais para a aferição da tempestividade da apresentação do pedido arbitral.
  2. Assim, como diz a Autora em questão na obra citada, “Esta é a primeira questão que deve ficar clara: o objecto do processo arbitral tributário é o acto de liquidação”.”.
  3. É pois, portanto, sobre o ato de autoliquidação relativo ao período de tributação de 2017 que o Requerente pretende ver aferida a respetiva legalidade.
  4. A pretensão de receber o montante de imposto que tenha sido liquidado de forma ilegal é, pois, uma consequência da eventual declaração de ilegalidade, no âmbito do dever de «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado», estatuído na alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º do RJAT, pelo que tal pretensão não contende com a competência dos tribunais arbitrais tributários que funcionam no CAAD, tanto mais que pressupõe a prévia declaração de ilegalidade do ato de autoliquidação.
  5. De resto, segundo a lei, cumpre à Requerida praticar todos os atos que se mostrem necessários à reintegração dos Requerentes na situação em que estariam caso não tivessem ocorrido as autoliquidações ora tidas por ilegais, o que obviamente inclui o reembolso do indevidamente pago e não só.
  6. Nestes termos, é julgada improcedente a exceção de incompetência material do Tribunal Arbitra alegada pela Requerida.

 

  1. A impropriedade do meio processual

 

  1. Por fim, a Autoridade Tributária deduz a exceção da impropriedade do meio processual, alegando, para o efeito que o meio adequado seria a ação para obter o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido em matéria tributária prevista no artigo 145º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

Vejamos.

  1. De acordo com o disposto no nº 3 do art. 145º do CPPT, a acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária apenas pode ser proposta «sempre que esse meio processual for o mais adequado para assegurar uma tutela plena, eficaz e efectiva do direito ou interesse legalmente protegido.
  2. Como se diz no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 03-06-2020, proferido no processo 0204/17.7BECTB 01467/17:

“Do próprio artigo 145.º, n.º 3, deriva que o acesso a esta via processual só existe quando o direito arrogado se encontre carecido de tutela, isto é, quando se alegue e demonstre em concreto que nenhum dos meios disponíveis tutela adequadamente o seu direito.

No entanto, a lei processual administrativa contém agora uma disposição mais específica e que consideramos aqui aplicável por identidade de razão: o n.º 2 do artigo 39.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos. Dele decorre que «[a] condenação a não emissão de atos administrativos só pode ser pedida» quando, designadamente, «a utilização dessa via se mostre imprescindível».

A primeira parte do preceito indica que estamos perante um requisito do acesso à via processual, o que significa que constitui um ónus do sujeito passivo a alegação, logo na petição inicial, de factos que evidenciem a sua imprescindibilidade.

A última parte revela que o recurso a este meio processual só deve ser admitido quando os demais meios processuais não assegurem, em caso de procedência, a reposição da situação que existiria se o ato não tivesse sido praticado.”

  1. Ora, na situação em apreço, atenta a natureza do pedido do Requerente, é manifesto que o recurso à arbitragem assegura o direito que pretende ver reconhecido.
  2. Por outro lado, a Autoridade Tributária não logrou demonstrar a imprescindibilidade da ação que se limitou a alegar como a adequada para o presente caso.
  3. Nestes termos, é julgada improcedente a exceção da impropriedade do meio processual alegada pela Requerida.

 

§2. Do fundo da causa

 

  1. O objeto da presente ação arbitral, tal como devidamente identificado pela Requerente, e em conformidade com o disposto no art.º 2.º/1/a) do RJAT, consiste no ato de autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) do ano de 2017, bem como a decisão de indeferimento que recaiu sobre o pedido de revisão oficiosa que teve aquele ato de liquidação como objeto e que, nos termos acima indicados, conheceu da legalidade daquela.
  2. A Requerente, alega, em suma, que deverá ser considerado o crédito de imposto e que se prende com uma efetiva dupla tributação internacional, que deriva em duplicação de coleta, correspondente as faturas/rendimentos contabilizadas no exercício de 2017 e cujas retenções de imposto apenas vieram a ser efetivadas em exercício posterior.
  3. A Requerente fundamenta o pedido com em “injustiça grave e notória”, que teve por base uma situação de dupla tributação, considerando que estão preenchidos os pressupostos para que o pedido fosse apreciado, e deferido, nos termos do n.º 6 do artigo 78.º da LGT.
  4. Deixemos, desde já, claro que os conceitos de legais de duplicação de coleta e de dupla tributação não se confundem (cf. acórdão do STA, de 12-07-2006, proferido no processo 0126/06).
  5. Para que se verifique uma situação de duplicação de coleta é necessário, nos termos do artigo 205.º, n.º 1, do CPPT, que se verifique o preenchimento cumulativo dos seguintes requisitos: “a) unicidade dos factos tributários; b) identidade de natureza entre a contribuição ou imposto e o que de novo se exige; c) coincidência temporal do imposto pago e o que de novo se pretende cobrar”, conforme sublinhou o TCA Sul no acórdão proferido no âmbito do processo n.º 810/20.2 BELRA, em 15 de Dezembro de 2021.
  6. Diferente é a aplicação de duas normas distintas pertencentes a ordenamentos jurídicos também distintos (o angolano e o português; ou o brasileiro e o português) ao mesmo facto tributário, o que integra o conceito de dupla tributação. É esta, na interpretação que fazemos, a situação exposta ao longo do PPA.
  7. Inexistindo duplicação de coleta, não estão preenchidos os requisitos para recorrer ao instituto de revisão de ato tributário do art.º 78 n.º 6 da LGT.
  8. Dispõem os nº 4 e 5 do artigo 78º da LGT:

4 - O dirigente máximo do serviço pode autorizar, excepcionalmente, nos três anos posteriores ao do acto tributário a revisão da matéria tributável apurada com fundamento em injustiça grave ou notória, desde que o erro não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte.

5 - Para efeitos do número anterior, apenas se considera notória a injustiça ostensiva e inequívoca e grave a resultante de tributação manifestamente exagerada e desproporcionada com a realidade ou de que tenha resultado elevado prejuízo para a Fazenda Nacional.

  1. A Requerente também invocou esta norma como fundamento do seu pedido de revisão oficiosa da liquidação que ora impugna, o mesmo fazendo no seu requerimento inicial neste processo.
  2. Cumpre, pois, saber se o pedido de revisão oficiosa formulado pela Requerente devia ter sido deferido ao abrigo do disposto em tal norma.
  3. A este propósito, são pontos firmes os seguintes:

i) A revisão do ato tributário, nos termos do art. 78.º n.º 4 da L.G.T. só pode ser autorizada pelo dirigente máximo dos serviços, verificados que sejam os seguintes requisitos:

1 - três anos posteriores ao ato tributário;

2 - fundamento de injustiça grave e notória, conceito que é precisado no seguinte n.º 5, em termos de “tributação manifestamente exagerada e desproporcionada com a realidade ou de que tenha resultado elevado prejuízo para a Fazenda Nacional”;

3 -Erro não imputável a comportamento negligente do contribuinte».

ii) «O n.º 5 do artigo 78.º da LGT qualifica injustiça notória aquela que se apresenta ostensiva e inequívoca, e, grave aquela que resulta de tributação manifestamente exagerada e desproporcionada com a realidade ou, que consubstancia um elevado prejuízo para a Fazenda Nacional.

O ónus de garantir a alegação e prova da notoriedade e gravidade incumbe ao contribuinte (artigo 74.º, n.º 1, da LGT) sob pena de indeferimento do pedido de revisão».

  1. Verifica-se que o prazo de três anos decorridos desde a data da emissão do ato tributário não se mostra precludido, conforme, de resto, a própria Requerida reconheceu na decisão de indeferimento (cf. ponto 13).
  2. Dos elementos coligidos no probatório resulta que, por referência a rendimentos auferidos em Angola e no Brasil, verificou-se um desfasamento temporal entre o período de tributação em que ocorreu o reconhecimento contabilístico desses rendimentos associados aos serviços prestados e o período em que esses rendimentos foram objeto de retenção no país da fonte (Angola e Brasil).
  3. Em resultado desse desfasamento, só em período posterior é que tais valores foram sujeitos a retenção na fonte, o que significa que a Requerente teria direito ao respetivo crédito de imposto que, naturalmente, teria um impacto na sua matéria tributável a final, pelo que esta seria sempre diferente da matéria coletável que foi considerada na liquidação.
  4. Por outro lado, é manifesto que é evidente inexistir qualquer erro, qualquer comportamento censurável, por parte da Requerente.
  5. Verificam-se, assim, todos os requisitos de que depende a revisão da matéria tributável prevista nos n.ºs 4 e 5 do artigo 78.º da LGT, pelo que em vez do indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa, a Autoridade Tributária e Aduaneira deveria ter efetuado a revisão e anulado parcialmente a liquidação de IRC impugnada.
  6. Pelo exposto, justifica-se a anulação do indeferimento expresso do pedido de revisão, quanto à matéria tributável, bem como a anulação parcial da liquidação de IRC que lhe está subjacente.

 

§3. Juros indemnizatórios

 

  1. O n.º 1 do artigo 43.º da LGT reconhece o direito como quando se determinar em processo de reclamação graciosa ou impugnação judicial que houve erro imputável aos serviços.
  2. O pedido de revisão do acto tributário é equiparável a reclamação graciosa quando é apresentado dentro do prazo da reclamação administrativa, que se refere no n.º 1 do artigo 78.º da LGT, como se refere no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12-7-2006, proferido n processo n.º 402/06.
  3. Como também se refere no mesmo acórdão, «nos casos de revisão oficiosa da liquidação (quando não é feita a pedido do contribuinte, no prazo da reclamação administrativa, situação que é equiparável à de reclamação graciosa) (...) apenas há direito a juros indemnizatórios nos termos do art. 43.º, n.º 3, da LGT».
  4. No caso em apreço, a norma à face da qual tem de ser aferida a existência de direito a juros indemnizatórios é a alínea c) deste n.º 3 do artigo 43.º da LGT, que estabelece que eles são devidos «quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária».
  5. Como decorre da matéria de facto fixada, o pedido de revisão foi apresentado em 27/10/2021, pelo que tendo consequentemente decorrido e sido ultrapassado o prazo de um ano, haverá direito a juros indemnizatórios contados desde 27/10/2022 até à data da emissão da nota de crédito de reembolso.

 

  1. DECISÃO

 

Termos que que decide este Tribunal:

  1. Considerar improcedentes as exceções de incompetência do tribunal arbitral e de impropriedade do meio processual;
  2. Considerar totalmente procedente o pedido da Requerente;
  3. Declarar a ilegalidade dos atos impugnados, a saber, do ato de indeferimento expresso do pedido de revisão deduzido pela Requerente e da liquidação de imposto subjacente, referente ao IRC de 2017, com todas as consequências legais;
  4. Condenar a Requerida no pagamento das custas arbitrais.

 

  1. VALOR DA CAUSA

 

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT (aplicáveis ex vi alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT) e no artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 30.840,87 (conforme indicado pela Requerente, e não questionado pela Requerida).

 

 

  1. CUSTAS

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e do artigo 4.º, n.º 4, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas arbitrais em € 1.836,00, a cargo da Requerida em razão do decaimento.

 

Notifique-se.

 

CAAD, 19 de fevereiro de 2024

 

O Árbitro

 

 

(Francisco Melo)