Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 781/2022-T
Data da decisão: 2023-05-02  Selo  
Valor do pedido: € 267.962,30
Tema: IS - Comissões de serviços de comercialização de unidades de participação de fundos de investimento. Violação do Direito da União Europeia.
Versão em PDF

Decisão Arbitral

 

            Os árbitros Cons. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dra. Ana Rita do Livramento Chacim e Prof. Doutor Tomás Castro Tavares, designados pelo Conselho Deontológico do CAAD para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 27-02-2023, acordam no seguinte:

 

1. Relatório

           

A...- SGOIC, S.A. (doravante designada, abreviadamente, por "A..." ou "REQUERENTE"), com o número único de matricula e identificação fiscal ..., com sede na Rua ..., ..., ..., ...-... Lisboa, veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”), tendo em vista a declaração da ilegalidade a anulação dos actos tributários de liquidação de Imposto do Selo relativos ao período compreendido entre Julho e Dezembro de 2020 e no período de 2021, bem como a declaração de ilegalidade e anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa que contra esses actos deduziu.

A Requerente pede ainda que seja determinado o reembolso do montante de € 267.962,30 a título de Imposto do Selo pago em excesso no período compreendido entre Julho e Dezembro de 2020 e no período de 2021, acrescido dos correspondentes juros indemnizatórios.

A Requerente formula ainda pedido de que seja efectuado reenvio prejudicial para o TJUE, caso não se aceite a interpretação que defende sobre o Direito da União.

 

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante “AT”).

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 19-12-2022.

Em 08-02-2023, o Senhor Presidente do CAAD informou as Partes da designação dos Árbitros, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 11.º do RJAT.

Assim, em conformidade com o preceituado no n.º 8 artigo 11.º do RJAT, decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 11.º do RJAT sem que as Partes alguma coisa viessem dizer, o Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 27-02-2023.

A AT apresentou resposta em que suscitou excepções e defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral. A Autoridade Tributária e Aduaneira pronunciou-se ainda no sentido de não dever ser efectuado reenvio prejudicial.

Por despacho de 29-03-2023, foi decidido dispensar e alegações, com possibilidade de a Requerente responder às excepções.

A Requerente pronunciou-se sobre as excepções.

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março) e estão devidamente representadas.

O processo não enferma de nulidades.

 

 

2. Matéria de facto

 

2.1. Factos provados

 

            Consideram-se provados os seguintes factos relevantes para a decisão da causa:

 

  1. A Requerente tem por objecto social o exercício da actividade das sociedades gestoras de organismos de investimento colectivo, no âmbito da qual gere diversos fundos de investimento imobiliário ("fundos de investimento");
  2. Como contrapartida desta sua actividade, a Requerente cobra a tais fundos de investimento comissões de gestão, em que inclui as comissões de comercialização de unidades de participação que são cobradas à Requerente por entidades comercializadoras, designadamente instituições e crédito (documentos n.ºs 1, 2, 3 e 4 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);
  3. Até Março de 2021, as entidades comercializadoras cobravam a componente correspondente às comissões de comercialização à Requerente, a qual por sua vez, imputava aqueles custos aos fundos de investimento por si geridos  e a  partir de Abril de 2021, as entidades comercializadoras passaram a cobrar as comissões de comercialização directamente aos fundos de investimento geridos pela Requerente (documentos n.ºs 1, 2, 3 e 4 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);
  4. Com referência aos meses de Julho a Dezembro de 2020, Janeiro a Dezembro de 2021 e Janeiro de 2022, a Requerente liquidou Imposto do Selo, aplicando a verba 17.3.4 da TGIS, relativamente às comissões, que cobrou aos fundos de investimento, nos termos das facturas que constam dos documentos n.ºs 1 e 2 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos;
  5. Nos períodos referidos foram cobradas à Requerente e aos fundos de investimento as comissões de comercialização que constam dos documentos n.ºs 3, 4 e 9 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos, relativamente às quais foi liquidado Imposto do Selo, aplicando a verba 17.3.4 da TGIS; 
  6. A Requerente apresentou reclamação graciosa das liquidações de Imposto do Selo referidas, que foi indeferida por despacho de 07-09-2022, proferido pelo Director de Serviço Central da Unidade dos Grandes Contribuintes (documentos n.ºs 5 a 8 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);
  7. A Requerente efectuou pagamentos de Imposto do Selo relativos às liquidações que efectuou, com base nas guias de retenção na fonte e declarações que apresentou que constam dos documentos n.ºs 10 e 11 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos;
  8. A Requerente procedeu a entrega ao Estado de quantias liquidadas, pelo menos no montante global de € 265.423,46 (factos aceites pela Autoridade Tributária e Aduaneira);
  9. A Requerente é a sociedade gestora do Fundo B... FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO ABERTO, NIPC ... (documento n.º 1 junto com a Resposta às Excepções, cujo teor se dá como reproduzido);
  10. Em 16-12-2022, a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo.

 

 

2.2. Factos não provados e fundamentação da fixação da matéria de facto

 

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos pela Requerente e no processo administrativo.

Não se provou que a Requerente tenha efectuado o pagamento da totalidade das quantias liquidadas referentes ao mês de Setembro de 2020, que totalizam € 14.369,56, pois a guia relativa a esse mês refere o valor de € 11.830,72, sendo este o valor a Autoridade Tributária e Aduaneira aceita ter sido pago, isto é, menos € 2.538,84 do que o valor reclamado pela Requerente.

Não tendo sido apresentados documentos comprovativos dos pagamentos, apenas se consideram provados, por acordo, os pagamentos que a Autoridade Tributária e Aduaneira aceita terem sido efectuados (artigos 52.º e 58.º a 60.º da Resposta).

Assim, por falta de prova, não se considera provado que relativamente ao mês de Setembro de 2020 tenha sido efectuado o pagamento de € 14.369,56, que corresponde à soma do Imposto do Selo liquidado nas facturas relativas a esse mês, mas apenas se considera provado que foi efectuado o pagamento de € 11.830,72, referido na guia n.º ... .

Isto é, apenas de considera terem sido efectuados pagamentos no valor de total de € 265.423,46.

 

 

3. Excepções

 

3.1. Questão da falta de legitimidade da requerente para reivindicar a restituição de imposto do selo liquidado pela sobre as “comissões de comercialização” diretamente cobradas ao FUNDO B... FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO ABERTO, NIPC ..., no valor de € 8.434,76

 

A partir de Abril de 2021, as comissões de comercialização de unidades de participação do  Fundo B... FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO ABERTO passaram a ser cobradas directamente a este.

A  Autoridade Tributária e Aduaneira defende, em suma, que «a legitimidade  para contestar este conjunto de liquidações caberia em exclusivo ao Fundo B... FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO ABERTO, NIPC ..., verdadeiro titular do encargo e repercutido quanto ao Imposto do Selo aqui reclamado, porquanto a Requerente não é nem nunca foi o titular do encargo desta particular relação jurídico-tributária» e que «inexiste no processo qualquer elemento ou documento que comprove, ou sequer aponte, que a Requerente interpôs a presente ação também em nome e representação do referido Fundo».

A Requerente diz, em suma, o seguinte:

– «a AT apreciou a reclamação graciosa interposta pela Requerente, confirmado a legitimidade da Requerente para formular o presente Pedido»;

– o n.º 1 do artigo 65.º do Regime Geral dos Organismos de Investimento Coletivo (“RGOIC”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 144/2019, de 23 de Setembro, que “[o] organismo de investimento coletivo heterogerido é gerido a título profissional por uma entidade gestora (…)”;

– o artigo 66.º do mesmo diploma estabelece um conjunto de funções inerentes à gestão de organismo de investimento coletivo que competem à entidade gestora;

–  o n.º 3 do artigo 16.º da LGT determina que “[o]s direitos e os deveres dos incapazes e das entidades sem personalidade jurídica são exercidos, respectivamente, pelos seus representantes, designados de acordo com a lei civil, e pelas pessoas que administrem os respectivos interesses”;

– a sociedade gestora administra os interesses do fundo de investimento, logo inexiste ilegitimidade.

 

Os fundos de investimento são «patrimónios autónomos, sem personalidade jurídica», como determina expressamente a alínea u) do n.º 1 do artigo 2.º do Regime geral dos organismos de investimento coletivo, aprovado pela Lei n.º 16/2015, de 24 de Fevereiro, e republicado pelo Decreto-Lei n.º 144/2019, de 23 de Setembro (RGOIC)

Como entidades sem personalidade jurídica, os seus direitos e deveres em matéria tributária são exercidos «pelas pessoas que administrem os respectivos interesses», como resulta do n.º 3 do artigo 6.º da LGT.

No caso em apreço, a Requerente é a pessoa colectiva que administra os interesses do ao Fundo B... FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO ABERTO.

Por isso, a Requerente tem legitimidade para intervir no presente processo, nessa qualidade de administradora deste Fundo.

De resto, a legitimidade da Requerente foi reconhecida, sem qualquer limitação, na decisão da reclamação graciosa e quem tem legitimidade para intervir no procedimento tributário também a tem para intervenção no processo de impugnação da decisão nele proferida, como decorre dos n.ºs 1 e 4 do artigo 9.º do CPPT.

Improcede, assim, a excepção de ilegitimidade suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

 

3.2. Questão da inclusão no pedido de pronúncia arbitral do valor de € 1.001,94

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira defende que «o valor de € 1.001,94, que a Requerente erradamente imputa a dezembro/2021, deve ser expurgado pelo tribunal, pois na verdade ele é referente a janeiro/2022, período de imposto que está fora do âmbito temporal do presente processo arbitral», o que se reconduz a uma excepção, por estar em causa a apreciação do mérito da causa quanto às liquidações relativas ao mês de Janeiro de 2022.

É verdade que  a Requerente refere no início do pedido de pronúncia arbitral e no pedido formulado o «período decorrido entre Julho e Dezembro de 2020 e no período de 2021», com sendo aquele a que se reportam as liquidações e que o valor referido de € 1.001,94 foi cobrado no mês de Janeiro de 2022.

No entanto, é manifesto que a Requerente pretende também a anulação das liquidações referentes a este mês de Janeiro de 2022, pois juntou as respectivas facturas e indicou um valor da causa que as inclui.

Assim, interpretando adequadamente o pedido de pronúncia arbitral, conclui-se que a Requerente pretende a anulação das referidas liquidações efectuadas nas facturas de Janeiro de 2022 que juntou aos autos.

Pelo exposto, improcede a pretensão da Autoridade Tributária e Aduaneira de que seja «expurgado» do processo o referido pedido.

 

4. Questões de mérito

  

A Requerente imputa às liquidações impugnadas os seguintes vícios, em suma:

– erro quanto à integração da Requerente no conceito de «instituição financeira» ou «sociedade financeira» para efeitos da verba 17.3. da TGIS;

– violação do artigo 5.º da Directiva n.º 2008/7/CE, bem como dos artigos 10.° e 11.° da Directiva 69/335, ao impor tributação em Imposto do Selo às comissões de comercialização de unidades de participação de fundamentos de investimento, bem com às comissões de gestão.

 

O artigo 5.º da Directiva 2008/7/CE, de 12 de Fevereiro, do Conselho da União Europeia estabelece o seguinte:

Artigo 5.o

Operações não sujeitas a impostos indirectos

1.   Os Estados-Membros não devem sujeitar as sociedades de capitais a qualquer forma de imposto indirecto sobre:

a) Entradas de capital;

b) Empréstimos ou prestações de serviços, efectuadas no âmbito das entradas de capital;

c) Registo ou qualquer outra formalidade prévia ao exercício de uma actividade a que uma sociedade de capitais esteja sujeita em consequência da sua forma jurídica;

d) Alterações do acto constitutivo ou dos estatutos de uma sociedade de capitais, designadamente as seguintes:

i) a transformação de uma sociedade de capitais numa sociedade de capitais de tipo diferente,

ii) a transferência de um Estado-Membro para outro Estado-Membro da sede de direcção efectiva ou da sede estatutária de uma sociedade de capitais,

iii) a alteração do objecto social de uma sociedade de capitais,

iv) a extensão do período de duração de uma sociedade de capitais;

e) As operações de reestruturação referidas no artigo 4.o

 

2.   Os Estados-Membros não devem sujeitar a qualquer forma de imposto indirecto:

a) A criação, emissão, admissão à cotação em bolsa, colocação em circulação ou negociação de acções, de partes sociais ou de outros títulos da mesma natureza, bem como de certificados representativos desses títulos, independentemente de quem os emitiu;

b) Os empréstimos, incluindo os estatais, contraídos sob a forma de emissão de obrigações ou outros títulos negociáveis, independentemente de quem os emitiu, e todas as formalidades conexas, bem como a criação, emissão, admissão à cotação em bolsa, colocação em circulação ou negociação dessas obrigações ou de outros títulos negociáveis.

 

As questões de violação do Direito da União Europeia suscitada pela Requerente foram apreciadas pelo TJUE no recente acórdão 22-12-2022, processo n.º C-656/21, IM GESTÃO DE ATIVOS, em que se entendeu, em suma, o seguinte:

– o Imposto do Selo sobre os títulos enquadra-se no âmbito de aplicação da Directiva (n.º 22);

– «qualquer sociedade, associação ou pessoa coletiva com fins lucrativos que não pertença às categorias de sociedades de capitais mencionadas no n.° 1 do mesmo artigo é equiparada a uma sociedade de capitais» (n.º 23)

– os fundos de investimento se enquadram no conceito de «associação com fins lucrativos» para efeitos do n.º 2 do artigo 2.º desta Directiva: «um agrupamento de pessoas sem personalidade jurídica, cujos membros entram com capitais para um património separado para atingir um fim lucrativo, deve ser considerado uma «associação com fins lucrativos» na aceção do artigo 2.°, n.° 2, da Diretiva 2008/7, pelo que, em aplicação desta última disposição, é equiparado a uma sociedade de capitais para efeitos desta diretiva (v., neste sentido, Acórdão de 12 de novembro de 1987, Amro Aandelen Fonds, 112/86, EU:C:1987:488, n.° 13)» (n.º 25);

– «fundos comuns de investimento, como os que estão em causa no processo principal, devem ser equiparados a sociedades de capitais e, por conseguinte, são abrangidos pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2008/7» (n.º 26);

«uma vez que serviços de comercialização de participações em fundos comuns de investimento, como os que estão em causa no processo principal, apresentam uma ligação estreita com as operações de emissão e de colocação em circulação de partes sociais, na aceção do artigo 5.°, n.° 2, alínea a), da Diretiva 2008/7, devem ser considerados parte integrante de uma operação global à luz da reunião de capitais» (n.º 31);

–  «Por outro lado, há que observar que o efeito útil desta disposição ficaria comprometido se, apesar de impedir a incidência de um imposto do selo sobre as remunerações auferidas pelos bancos a título de serviços de comercialização de novas participações de fundos comuns de investimento junto da sociedade de gestão destes, fosse permitido que esse imposto do selo incidisse sobre as mesmas remunerações quando estas são redebitadas pela referida sociedade de gestão aos fundos em causa» (n.º 37).

 

Como corolário destas considerações, o TJUE declarou o seguinte:

 

O artigo 5.°, n.° 2, alínea a), da Diretiva 2008/7/CE do Conselho, de 12 de fevereiro de 2008, relativa aos impostos indiretos que incidem sobre as reuniões de capitais,  deve ser interpretado no sentido de que:  se opõe a uma legislação nacional que prevê a incidência de um imposto do selo, por um lado, sobre a remuneração que uma instituição financeira recebe de uma sociedade de gestão de fundos comuns de investimento pela prestação de serviços de comercialização para efeitos de novas entradas de capital destinadas à subscrição de participações de fundos recentemente emitidas e, por outro, sobre os montantes que essa sociedade de gestão recebe dos fundos comuns de investimento na medida em que esses montantes incluam a remuneração que a referida sociedade de gestão pagou às instituições financeiras por esses serviços de comercialização.

 

As liquidações impugnadas têm subjacente a aplicação da verba 17.3.4. da TGIS, interpretada como prevendo, por um lado, a incidência de Imposto do Selo sobre as comissões cobradas por bancos às entidades gestoras de fundos por prestação de serviços a estas de serviços de comercialização de novas subscrições de participações de fundos comuns de investimento e, por outro lado, sobre as mesmas remunerações quando estas são redebitadas pela referida sociedade de gestão aos fundos em causa.

Assim, no caso em apreço, está-se perante situações enquadráveis nas hipóteses subjacentes a esta jurisprudência,  não só relativamente à generalidade das comissões de comercialização cobradas por entidades bancárias (quer cobradas à Requerente, quer as cobradas directamente ao fundo B... FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO ABERTO), que se enquadram na primeira parte da decisão,  mas também quanto às comissões de gestão, pois  incluem a remuneração que a Requerente pagou às instituições financeiras por esses serviços de comercialização, situação prevista na segunda parte da decisão do TJUE.

O artigo 8.º, n.º 4, da CRP estabelece que «as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático».

Desta norma decorre a primazia do Direito da União Europeia sobre o Direito Nacional, quando não está em causa os princípios fundamentais do Estado de direito democrático.

Como tem sido pacificamente entendido pela jurisprudência e é corolário da obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (que substituiu o artigo 234.º do Tratado de Roma, anterior artigo 177.º), a jurisprudência do TJUE tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, quando tem por objecto questões de Direito da União Europeia ( [1] ).

Assim, aplicando a jurisprudência do TJUE, conclui-se que as liquidações impugnadas são ilegais, por a verba 17.3.4. da TGIS, em que se basearam, ser ilegal, por incompatibilidade com o artigo 5.º, n.º 2, alínea a), da Diretiva 2008/7/CE do Conselho, de 12 de Fevereiro de 2008, interpretada como prevendo a incidência de Imposto do Selo sobre as comissões cobradas pelos bancos à sociedade gestora de fundos de investimento e sobre e o redébito dessas comissões aos fundos de investimento, pela entidade gestora.

Pelo exposto, as liquidações impugnadas enfermam de vícios de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito, que justificam a sua anulação, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

Por outro lado, havendo jurisprudência do TJUE sobre as questões de Direito da União, não se justifica o reenvio prejudicial, como foi decidido no acórdão de 06-10-1982, no Caso Cilfit, Processo n.º 283/81, Recueil, página 3415.

 

 

            4.1. Questões de conhecimento prejudicado

 

Resultando do exposto a declaração de ilegalidade das liquidações que são objecto do presente processo, por vício que impede a renovação dos actos, fica prejudicado, por ser inútil (artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC),  o conhecimento dos restantes vícios que lhes são imputados pela Requerente.

 Na verdade, o artigo 124.º do CPPT, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, do RJAT, ao estabelecer uma ordem de conhecimento de vícios, pressupõe que, julgado procedente um vício que assegura a eficaz tutela dos direitos dos impugnantes, não é necessário conhecer dos restantes, pois, se fosse sempre necessário apreciar todos os vícios imputados ao acto impugnado, seria indiferente a ordem do seu conhecimento.

 Pelo exposto, não se toma conhecimento dos restantes vícios imputados pela Requerente às liquidações impugnadas.

 

           

            4.2. Decisão da reclamação graciosa

 

A decisão de indeferimento da reclamação graciosa, que manteve as liquidações, enferma dos mesmos vícios, que justificam também a sua anulação.

 

5. Reembolso de quantas pagas e juros indemnizatórios

 

A Requerente pede reembolso do imposto pago indevidamente, no montante de
€ 267.962,30, acrescido de juros indemnizatórios.

Como resulta da decisão da matéria de facto, apenas se considera provado terem sido efectuados pagamentos no montante global de € 265.423,46.

Assim, na sequência da anulação das liquidações a Requerente tem direito a ser reembolsada das quantias pagas relativamente às liquidações impugnadas, na medida em que se considerou provado que foram efectuados pagamentos no valor total € 265.423,46. A Autoridade Tributária e Aduaneira, na decisão da reclamação graciosa considerou terem sido feitos pagamentos em montantes superiores em vários meses, o que decorre de as guias e declarações não terem sido emitidas apenas com base no imposto liquidado nas facturas referidas nos autos, mas é aquele o valor que corresponde à impugnação das liquidações efectuada no presente processo.

No que concerne a direito a juros indemnizatórios, o TJUE tem decidido que a cobrança de impostos em violação do direito da União tem como consequência não só direito ao reembolso como o direito a juros, como pode ver-se pelo acórdão de 18-04-2013, processo n.º
C-565/11 (e outros nele citados), em que se refere:

 

21 Há que lembrar ainda que, quando um Estado-Membro tenha cobrado impostos em violação do direito da União, os contribuintes têm direito ao reembolso não apenas do imposto indevidamente cobrado mas igualmente das quantias pagas a esse Estado ou por este retidas em relação direta com esse imposto. Isso inclui igualmente o prejuízo decorrente da indisponibilidade de quantias de dinheiro, devido à exigibilidade prematura do imposto (v. acórdãos de 8 de março de 2001, Metallgeselischaft e o., C-397/98 e C-410/98, Colet., p. I-1727, n.ºs 87 a 89; de 12 de dezembro de 2006, Test Claimants in the FII Group Litigation, C-446/04, Colet., p. I-11753, n.º 205; Littlewoods Retail e o., já referido, n.º 25; e de 27 de setembro de 2012, Zuckerfabrik Jülich e o., C-113/10, C-147/10 e C-234/10, n.º 65).

 

22 Resulta daí que o princípio da obrigação de os Estados-Membros restituírem com juros os montantes dos impostos cobrados em violação do direito da União decorre desse mesmo direito da União (acórdãos, já referidos, Littlewoods Retail e o., n.º 26, e Zuckerfabrik Jülich e o., n.º 66).

 

23 A esse respeito, o Tribunal de Justiça já decidiu que, na falta de legislação da União, compete ao ordenamento jurídico interno de cada Estado-Membro prever as condições em que tais juros devem ser pagos, nomeadamente a respetiva taxa e o modo de cálculo. Essas condições devem respeitar os princípios da equivalência e da efetividade, isto é, não devem ser menos favoráveis do que as condições relativas a reclamações semelhantes baseadas em disposições de direito interno, nem organizadas de modo a, na prática, impossibilitar ou dificultar excessivamente o exercício dos direitos conferidos pelo ordenamento jurídico da União (v., neste sentido, acórdão Littlewoods Retail e o., já referido, n.ºs 27 e 28 e jurisprudência referida).      

 

No entanto, como se refere neste n.º 23, cabe a cada Estado-Membro prever as condições em que tais juros devem ser pagos, nomeadamente a respetiva taxa e o modo de cálculo.

O regime substantivo do direito a juros indemnizatórios é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:

 

 

Artigo 43.º

Pagamento indevido da prestação tributária

 

1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.

3. São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:

a) Quando não seja cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos tributos;

b) Em caso de anulação do acto tributário por iniciativa da administração tributária, a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nota de crédito;

c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.

d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.

 

4. A taxa dos juros indemnizatórios é igual à taxa dos juros compensatórios.

5. No período que decorre entre a data do termo do prazo de execução espontânea de decisão judicial transitada em julgado e a data da emissão da nota de crédito, relativamente ao imposto que deveria ter sido restituído por decisão judicial transitada em julgado, são devidos juros de mora a uma taxa equivalente ao dobro da taxa dos juros de mora definida na lei geral para as dívidas ao Estado e outras entidades públicas.

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira defende que os juros apenas devem ser calculados a partir da data de decisão da reclamação graciosa.

Como há muito vem entendendo o Supremo Tribunal Administrativo, a imputabilidade para efeitos de juros indemnizatórios apenas depende da prática de um acto ilegal, por iniciativa da Administração Tributária, mesmo em situações em que a ilegalidade deriva apenas do direito da União Europeia:

– «em geral, pode afirmar-se que o erro imputável aos serviços, que operaram a liquidação, entendidos estes num sentido global, fica demonstrado quando procederem a reclamação graciosa ou impugnação dessa mesma liquidação» ([2] );

   

    – «Para efeitos da obrigação de pagamento de juros indemnizatórios, imposta à administração tributária pelo art. 43.º da L.G.T., havendo um erro de direito na liquidação e sendo ela efectuada pelos serviços, é à administração que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte.

          Esta imputabilidade do erro aos serviços é independente da demonstração da culpa de qualquer dos seus funcionários ao efectuar liquidação afectada por erro, podendo servir de base à responsabilidade por juros indemnizatórios a falta do próprio serviço, globalmente considerado» ( [3] );

 

– «há erro nos pressupostos de direito, imputável aos serviços, de modo a preencher o pressuposto da obrigação da Administração de indemnizar aquele a quem exigiu imposto indevido, quando na liquidação é aplicada uma norma nacional incompatível com uma Directiva comunitária» ([4] );

 

– «os juros indemnizatórios previstos no art. 43ºda LGT são devidos sempre que possa afirmar-se, como no caso sub judicibus, que ocorreu erro imputável aos serviços demonstrado, desde logo e sem necessidade de mais, pela procedência de reclamação graciosa ou impugnação judicial da correspondente liquidação» ( [5] ).

 

        

         Tendo havido reclamação graciosa em que a Autoridade Tributária e Aduaneira manteve as liquidações, os erros que as afectam são-lhe imputáveis pelo menos desde a data da decisão de indeferimento, 07-09-2022, pelo que é desta data que se devem contar juros indemnizatórios.

         Esta situação de a Autoridade Tributária e Aduaneira manter uma situação de ilegalidade, quando devia repô-la deverá ser enquadrada, por mera interpretação declarativa, no n.º 1 do artigo 43.º da LGT, pois trata-se de uma situação em que há nexo de causalidade adequada entre um erro imputável aos serviços e a manutenção de um pagamento indevido e a omissão de reposição da legalidade quando se deveria praticar a acção que a reporia deve ser equiparada à acção. ( [6] )

         Neste sentido tem vindo a decidir uniformemente o Supremo Tribunal Administrativo como pode ver-se pelos seguintes acórdãos:

– de 28-10-2009, proferido no processo n.º 601/09;

 – de 18-11-2020, proferido no processo n.º 2342/12.3BELRS;

 – de 28-04-2021, proferido no processo n.º 16/10.9BELRS 0884/17;

 – de 09-12-2021, proferido no processo n.º 1098/16.5BELRS;

 – do Pleno de 29-06-2022, proferido no processo n.º 93/21.7BALSB;

 – de 13-07-2022, proferido no processo n.º 1693/09.9BELRS.

        

         Por isso, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios, calculados sobre a quantia de € 265.423,46, contados desde 07-09-2022, até integral reembolso das quantias indevidamente pagas, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.

 

6. Decisão

 

De harmonia com o exposto acordam neste Tribunal Arbitral em:

  1. Julgar improcedentes as excepções suscitadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira;
  2. Julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral;
  3. Anular as liquidações de Imposto do Selo que constam das facturas reproduzidas nos documentos n.ºs 3 e 4 juntos com o pedido de pronúncia arbitral;
  4. Julgar parcialmente procedente o pedido de reembolso, quanto ao valor de € 265.423,46 e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar essa quantia à Requerente;
  5. Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios, nos termos referidos no ponto 5 deste acórdão, e condenar a Administração Tributária a pagá-los à Requerente.

 

7. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 267.962,30, indicado pela Requerente e sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

8. Custas

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 4.896,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

 

 

9. Comunicação ao Ministério Público 

 

Comunique-se ao Ministério Público, nos termos do artigo 17.º, n.º 3, do RJAT.

 

Lisboa, 02-05-2023

 

Os Árbitros

 

 

(Jorge Lopes de Sousa)

(Relator)

 

 

 

(Ana Rita do Livramento Chacim)

 

 

 

 

(Tomás Castro Tavares)

 

 

 

 



[1] Neste sentido, podem ver-se, entre muitos, os seguintes Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo: de 25-10-2000, processo n.º 25128, publicado em Apêndice ao Diário da República de 31-1-2003, página 3757; de 7-11-2001, processo n.º 26432, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, página 2602; de 7-11-2001, processo n.º 26404, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, página 2593.

[2] Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 31-10-2001, processo n.º 26167, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, página 2466, e de 24-04-2002, processo n.º 117/02, publicado em Apêndice ao Diário da República 08-03-2004, página 1197.

[3] Acórdão de 07-11-2001, processo n.º 26404, publicado em Apêndice ao Diário da República 13-10-2003, página 2593.

[4] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 21-11-2001, processo n.º 26415, publicado em Apêndice ao Diário da República 13-10-2003, página 2765.

[5] Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 28-11-2001, processo n.º 26223, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, página 2824, e de 16-01-2002, processo n.º 26508, publicado em Apêndice ao Diário da República 16-2-2004, página 77.

( [6] )        ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, 10.ª edição, página 528:

«A omissão, como pura atitude negativa, não pode gerar física ou materialmente o dano sofrido pelo lesado; mas entende-se que a omis­são é causa do dano, sempre que haja o dever jurídico especial de praticar um acto que, seguramente ou muito provavelmente, teria impedido a consumação desse dano».