Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 379/2016-T
Data da decisão: 2016-12-07  IMI  
Valor do pedido: € 3.200,45
Tema: IMI - Zona Histórica; Monumento Nacional; Património Mundial da Unesco; Benefício Fiscal; Interesse Público; Artigo 44.º, n.º 1, n) do EBF
Versão em PDF


 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

 

 

1.      RELATÓRIO

 

1.1.  A…, Lda., contribuinte n.º…, com sede na Rua …, n.º…, …, em ... (adiante designada “Requerente”), apresentou em 08/07/2016 pedido de pronúncia arbitral tendo em vista a apreciação e declaração de ilegalidade da liquidação de Imposto Municipal de Imóveis (IMI), referente ao ano 2015, no montante total de € 3.200,45 (três mil duzentos euros e quarenta e cinco cêntimos).

 

1.2.  O Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou, em 18/07/2016, como árbitro singular o signatário desta decisão.

 

1.3.  No dia 30/09/2016 ficou constituído o tribunal arbitral.

 

1.4.  Cumprindo-se o disposto no n.º 1 do artigo 17.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT) foi a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) notificada, em 04/10/2016, para, querendo, apresentar resposta e solicitar a produção de prova adicional.

 

1.5.  Em 07/11/2016 a AT apresentou a resposta, defendendo-se por excepção e por impugnação, sendo ainda suscitada uma questão prejudicial.

 

1.6.  O tribunal arbitral em 08/11/2016 decidiu dispensar a realização da reunião a que n.º 1 do artigo 18.º do RJAT se refere, com fundamento no princípio da autonomia do tribunal arbitral na condução do processo, convidando ambas as partes para, querendo, apresentarem alegações escritas facultativas e agendou a data para prolação da decisão final.

 

1.7.  Em 21/11/2016 a Requerente apresentou alegações escritas.

 

1.8.  Em 02/12/2016 a AT apresentou alegações escritas.

 

 

 

2.      SANEAMENTO

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente.

 

As partes têm personalidade e capacidade judiciária e são legítimas, não ocorrendo vícios de patrocínio.

 

O processo não enferma de vícios que o invalidem.

 

Verificam-se, consequentemente, todas as condições para ser proferida a decisão final.

 

 

3.      POSIÇÕES DAS PARTES

 

Como fundamento do seu pedido, a Requerente alega em síntese que:

 

a)      Aos prédios urbanos inscritos na matriz predial sob os artigos n.º…, n.º …, n.º…, n.º …, n.º…, n.º …, n.º …, n.º … e n.º …, todos da União das Freguesias de …, … e … (concelho de ...), classificados como Monumentos Nacionais, por se encontrarem inseridos no Centro Histórico de ..., a liquidação em apreço assenta num erro sobre os pressupostos em torno da aplicação do artigo 44.º, n.º 1, alínea n), 1.º segmento, do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF);

 

b)      Já no que respeita ao prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo n.º … da União das Freguesias de …, … e … (concelho de ...), individualmente classificado como “imóvel de interesse público”, por se encontrar inserido no conjunto denominado Rua …, a liquidação em apreço assenta num erro sobre os pressupostos em torno da aplicação do artigo 44.º, n.º 1, alínea n), 2.º segmento, do EBF;

 

c)      O artigo 44.º, n.º 1, alínea n) do EBF é claro ao preceituar, em primeiro lugar que estão isentos de IMI os imóveis classificados como “monumentos nacionais” e só em segundo lugar, é que estão isentos os prédios individualmente classificados como de “interesse público” ou de “interesse municipal”;

 

d)      Por outro lado, ao referir que a classificação é efectuada “nos termos da legislação aplicável” o legislador está a remeter para a Lei do Património Cultural [1], cujo artigo 15.º estabelece que os bens imóveis podem pertencer às categorias de monumento, conjunto ou sítio, nos termos em que se encontram definidos no direito internacional;

 

e)      O artigo 15.º, n.º 7, da Lei do Património Cultural refere, ainda, de forma expressa e inequívoca que “os bens culturais imóveis incluídos na lista do património mundial integram, para todos os efeitos e na respetiva categoria os bens qualificados como de interesse nacional”;

 

f)       Um bem classificado como de interesse nacional é designado como “monumento nacional”, independentemente de se tratar de um único edifício, conjunto ou sítio, sendo claro que os imóveis que compõem o conjunto são abrangidos por essa classificação;

 

g)      Nesta medida, quer pela letra da lei quer pelo seu espírito, os imóveis da Requerente identificados no parágrafo a) acima, por integrarem o Centro Histórico de ..., são imóveis de “interesse nacional” e, por isso, legalmente qualificados como “monumento nacional”, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 44.º, n.º 1, alínea n), do EBF, beneficiam da isenção de IMI, que é de carácter automático, operando mediante comunicação da classificação como “monumento nacional” [2];

 

h)      Já a Rua …, foi classificada como “imóvel de interesse público” [3], pelo que o legislador ao especificar esta rua no seu conjunto não deixa margem para dúvida de que quis integrar todos prédios que a compõem, sem necessidade de classificação individual;

 

i)       Ora, o legislador ao pretender alterar a classificação dos bens culturais em 2006 [4], introduzindo o advérbio “individualmente” violou, não só a Lei do Património Cultural enquanto lei de valor reforçado, mas também as convenções a que Portugal aderiu, como é, designadamente, o caso da Convenção para a Salvaguarda do Património Arquitectónico da Europa, assinada em Granada, a 3 de Outubro de 1985 [5], as quais vigoram na ordem interna e vinculam internacionalmente o Estado Português;

 

j)       Assim, a pretendida introdução da alteração da classificação dos bens culturais imóveis no que aos “imóveis de interesse público” diz respeito deve ser interpretada à luz da Constituição ou de lei de valor reforçado, no sentido de não poder, sob pena de nulidade, alterar os termos da classificação efectuada;

 

k)      Em conclusão, as liquidações de IMI em apreço são ilegais por violarem o disposto no artigo 44.º, n.º 1, alínea n), e n.º 5 do EBF, devendo por isso ser anuladas;

 

A AT contestou alegando em síntese, por excepção, a irregularidade do mandato forense, uma vez que a procuração forense constante do pedido de pronúncia arbitral não foi outorgada a favor do mandatário judicial nele identificado.

 

Subsidiariamente, entendeu a AT que a discussão da legalidade da liquidação de IMI em apreço constitui uma questão prejudicial que depende do entendimento que, a montante, vier a ser fixado quanto às decisões de cessação da isenção de IMI aos imóveis identificados nos parágrafos a) e b) acima e que estão a ser apreciadas em sede de acção administrativa especial no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Braga, pelo que a instância arbitral deveria ser suspensa.

 

Sem conceder, a AT alegou ainda, por impugnação, em síntese que:

 

a)      A propósito da evolução do conceito de “classificação”, constata a AT que:

 

·         Na   Monarquia   Constitucional   previa-se   uma   única   graduação   de “Classificação”: “Monumento Nacional”;

·         Já na 1.ª República previam-se duas graduações de “Classificação”: “Monumento Nacional” e “Imóvel de Interesse Público”;

·         No Estado Novo estavam previam-se três graduações de “Classificação”: “Monumento Nacional”, “Imóvel de Interesse Público” e “Valor Concelhio”;

·         No início da 3.ª República foi introduzido o conceito de “categoria” e alargadas as graduações de “classificação”, sendo que, porém, umas e outras, nunca foram aplicadas em virtude de a então Lei do Património Cultural [6] não ter sido alvo da necessária regulamentação;

·         Durante a 3.ª República e até ao surgimento da actual Lei do Património Cultural continuaram a ser aplicadas as graduações de “Classificação” criadas pelo Estado Novo;

 

b)      Por outro lado, e no que respeita à distinção dos diversos conceitos patentes no artigo 15.º da Lei do Património Cultural, defende a AT que:

 

·         A Lei do Património Cultural consagra no artigo 15.º três conceitos jurídico-
-patrimoniais distintos em matéria de bens culturais imóveis, a saber: a “Categoria”, a “Classificação” e a “Designação” [7];

·         São três as “Categorias” previstas na Lei do Património Cultural: “Monumento”, “Conjunto” e “Sítio” [8], sendo que as respetivas definições, para o que releva no caso em apreço, constam da Convenção para a Protecção do Património Mundial, Cultural e Natural, assinada em Paris em 16 de Novembro de 1972 [9];

·         São, assim, três as “classificações” previstas na Lei do Património Cultural: “Interesse Nacional”, “Interesse Público” e “Interesse Municipal” [10], organizadas numa escala de graduação decrescente; e

·         A designação de “Monumento Nacional” está reservada exclusivamente para os monumentos, conjuntos ou sítios que se encontrem classificados como sendo de Interesse Nacional [11].

 

c)      Ora, conclui a AT que o raciocínio enviesado em que incorreu a Requerente resulta, em concreto, do facto de a Requerente confundir os actuais conceitos de “Classificação” e de “Designação” e, bem assim, do facto de confundir o conceito de “Designação” introduzido pela Lei do Património Cultural com o conceito de graduação da “Classificação” como “Monumento Nacional” que vigorou até à entrada em vigor da Lei do Património Cultural em 2001;

d)      Com efeito, entende a AT que desde 2001 não existe uma classificação denominada de “Monumento Nacional”, mas apenas classificações denominadas de “Interesse Nacional”, de “Interesse Público” ou de “Interesse Municipal”, pelo que é manifestamente impossível afirmar que o Centro Histórico de ... está classificado como “Monumento Nacional”;

e)      Por outro lado, ao inscrever um bem cultural na “Lista do Património Mundial”, o Comité do Património Cultural da UNESCO não está propriamente a classificar um bem, mas antes a reconhecer que aquele bem cultural também “(…) constitui um património universal para a protecção do qual a comunidade internacional no seu todo tem o dever de cooperar” [12];

f)       Resulta assim que a classificação de um bem cultural depende necessariamente de um prévio procedimento administrativo de “Classificação”;

g)      Conclui, assim, a AT que o denominado Centro Histórico de ...:

 

·         Pertence à categoria de “Conjunto” [13];

·         Está incluído na lista de bens classificados como de “Interesse Nacional” [14]; e

·         É designado por “Monumento Nacional” [15], sendo certo que a designação de “Monumento Nacional” não se confunde nem equivale ao conceito de classificação denominada de “Monumento Nacional” que vigorou até à entrada em vigor da Lei do Património Cultural em 2001;

 

h)      Já quanto ao erro nos pressupostos em torno do prédio classificado como “Imóvel de Interesse Público”, entende a AT que constitui uma interpretação abusiva a conclusão segundo a qual o prédio urbano aqui em causa, apenas por se encontrar inserido na “Categoria” do “Conjunto” denominado “Rua de …, em ...”, se encontra individualmente classificado como “Imóvel de Interesse Público”;

i)       Por outro lado, relativamente à pretensa violação da Lei do Património Cultural, da Convenção para a Salvaguarda do Património Arquitectónico da Europa, assinada em Granada, a 3 de Outubro de 1985 e da Constituição pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, entende a AT que a Requerente confunde a legislação em matéria de procedimento administrativo de classificação de bens culturais, com legislação em matéria de benefícios fiscais dirigidos ao património cultural:

 

·         A Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro não procedeu a qualquer alteração da Lei do Património Cultural;

·         Ao alterar a redação do artigo 44.º, n.º 1, alínea n), do EBF a Lei n.º 53-
-A/2006, de 29 de Dezembro não procedeu a qualquer fenómeno de desclassificação de bens culturais;

·         A Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro não violou a Convenção para a Salvaguarda do Património Arquitectónico da Europa, assinada em Granada, a 3 de Outubro de 1985, uma vez que este tratado internacional em nada contende com o conceito de “Classificação”, mas sim com o conceito de “Categoria”;

·         A alteração introduzida pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro insere-
-se inteiramente na liberdade de conformação legislativa do legislador parlamentar português, o qual entendeu que a melhor forma de impedir a fruição oportunista do benefício fiscal em apreço passaria pelo requisito da classificação individual do prédio;

 

j)       Pelo exposto, conclui a AT que o denominado Centro Histórico de ...:

·         Pertence à categoria de “Conjunto”;

·         Está incluído na lista de bens classificados como de “Interesse Nacional”; e

·         É designado por “Monumento Nacional”, sendo certo que a designação de “Monumento Nacional” não se confunde nem equivale ao conceito de classificação denominada de “Monumento Nacional” vigente até à entrada em vigor da Lei do Património Cultural em 2001;

 

 

 

k)      O do artigo 44.º, n.º 1, alínea n), 1.º segmento, do EBF reporta-se à classificação de “Monumento Nacional” que vigorou no nosso ordenamento jurídico até à entrada em vigor da Lei do Património Cultural em 2001, classificação esta que não pode ser confundida com o conceito de “Designação” de “Monumento Nacional” patente, para o que ali releva, nos artigos 15.º, n.º 3 e n.º 7 da Lei do Património Cultural.

 

 

4.      MATÉRIA DE FACTO

 

4.1.  FACTOS QUE SE CONSIDERAM PROVADOS

 

Em face dos documentos carreados para o processo, dá-se como provado que:

 

4.1.1.      A Requerente é proprietária dos prédios urbanos sitos na … e sua envolvente, inscritos na respectiva matriz predial da União de Freguesias de …, … e …, da cidade de ..., sob os artigos n.º …, n.º …, n.º …, n.º …, n.º …, n.º …, n.º …, n.º … e n.º …;

4.1.2.      E é, ainda, proprietária do prédio urbano sito na Rua …, n.º…, da mesma União de Freguesias de …, … e …, da cidade de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o n.º…;

4.1.3.      Os referidos imóveis, do Centro Histórico de ..., fazem parte da lista do Património Mundial da UNESCO – cfr. Aviso n.º 15171/2010, publicado no Diário da República n.º 147, de 30 de Julho de 2010;

4.1.4.      O prédio urbano que integra o conjunto da Rua … foi classificado como “imóvel de interesse público” pelo Decreto n.º …/…, publicado no Diário do Governo n.º…, de 21 de Dezembro de 1974;

4.1.5.      Conforme resulta das certidões emitidas pela Direcção Regional da Cultura Norte, os imóveis do Centro Histórico de ... estão classificados como “monumento nacional”, de acordo com o disposto no n.º 3 e n.º 7 do artigo 15.º da Lei do Património Cultural, por fazerem parte integrante da lista do Património Mundial da UNESCO, em 2001, como “Centro Histórico do ...”;

4.1.6.      Conforme resulta da certidão emitida pela Direcção Regional da Cultura Norte, o prédio urbano que integra o conjunto da Rua … está classificado como “imóvel de interesse público”;

4.1.7.      Estes prédios beneficiavam, desde 2008, de isenção de IMI, como se comprova pelas cadernetas prediais juntas ao processo;

4.1.8.      A Requerente foi notificada do projecto de decisão de cessação da isenção de IMI dos prédios acima descritos, tendo exercido o seu direito de audição;

4.1.9.      Posteriormente, foi notificada dos despachos a indeferir a pretensão da Requerente, cessando, assim, a isenção de IMI de que tais prédios beneficiavam;

4.1.10.  Em 19/02/2016, a Requerente intentou, no TAF de Braga, uma acção administrativa especial, solicitando a anulação dos despachos que decretaram a cessação da isenção do IMI relativamente aos prédios urbanos inscritos na matriz predial sob os artigos n.º…, n.º…, n.º…, n.º…, n.º…, n.º…, n.º…, n.º … e n.º…, (Processo n.º 361/16.0BEBRG da 3.ª Unidade Orgânica);

4.1.11.  Em 02/03/2016, a Requerente intentou, no mesmo Tribunal, uma acção administrativa especial, pedindo a anulação do despacho que decretou a cessação da isenção de IMI referente ao prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo n.º… (Processo n.º 443/16.8BEBRG da 2.ª Unidade Orgânica);

4.1.12.  A Requerente foi notificada para proceder, durante o mês de Abril de 2016, ao pagamento da liquidação n.º 2015…, de 26/02/2016, correspondente à 1.ª prestação do IMI de 2015, no montante de € 1.066,83;

4.1.13.  Em 08/04/2016, a Requerente procedeu ao pagamento da 1.ª prestação do IMI de 2015, no montante de € 1.066,83;

4.1.14.  A Requerente foi notificada para proceder, durante o mês de Julho de 2016, ao pagamento da liquidação n.º 2015…, de 26/02/2016, correspondente à 2.ª prestação do IMI de 2015, no montante de € 1.066,81;

4.1.15.  Em 07/06/2016, a Requerente procedeu ao pagamento da 2.ª prestação do IMI de 2015, no montante de € 1.066,81;

4.1.16.  Em 08/07/2016, a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo;

4.1.17.  Já depois de apresentado o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo, em Novembro de 2016, a Requerente procedeu ao pagamento da 3.ª prestação do IMI de 2015, no montante de € 1.066,81.

 

 

 

4.2.  FACTOS QUE NÃO SE CONSIDERAM PROVADOS

 

Não existem factos com relevo para a decisão que não tenham sido dados como provados.

 

 

 

 

5.      O DIREITO

 

5.1.  DA EXCEPÇÃO POR IRREGULARIDADE DO MANDATO FORENSE

 

A irregularidade do mandato forense arguida pela AT veio a ser suprida pela Requerente, com a junção de nova procuração forense que ratificou todo o processado, pelo que improcede a excepção invocada.

 

 

5.2.  DA QUESTÃO PREJUDICIAL TENDENTE À SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA ARBITRAL

 

Conforme resulta do que atrás se expôs, nas respectivas alegações, a AT formula um pedido, que classifica de subsidiário, tendente à suspensão da presente instância arbitral.

 

Antes de prosseguir na apreciação do fundo da questão que agora nos ocupa, importa clarificar o quadro em que a mesma se coloca em concreto.

 

Com efeito, não se pode deixar de ter presente que nos situamos no âmbito da jurisdição arbitral. Uma jurisdição arbitral específica, é certo, mas inquestionavelmente arbitral.

 

Neste âmbito vigora, plenamente, o princípio da livre condução do processo pelos árbitros [16], não sendo, pois, de aplicação automática qualquer norma de natureza processual que não as que, expressamente, resultem do RJAT.

 

Não quer isto significar que as normas processuais ordinárias não contenham conteúdos normativos directamente transponíveis para o processo arbitral, mas esta transposição é sempre, e em qualquer caso, mediada pelo prudente critério dos árbitros, sempre “(…) com vista à obtenção, em prazo razoável, de uma pronúncia de mérito sobre as pretensões formuladas.”.

 

Por outro lado, para além de nos situarmos no quadro da jurisdição arbitral, encontramo-
-nos, naturalmente, no âmbito da jurisdição tributária. Daqui decorre, então, que as normas processuais em primeira linha transponíveis para a regulação de questões processuais serão, obviamente as do processo tributário, na sua maioria condensadas no Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que, no respectivo artigo 2.º estabelece que:

 

“São de aplicação supletiva ao procedimento e processo judicial tributário, de acordo com a natureza dos casos omissos:

 

a)      As normas de natureza procedimental ou processual dos códigos e demais leis tributárias;

 

b)      As normas sobre a organização e funcionamento da administração tributária;

 

c)      As normas sobre organização e processo nos tribunais administrativos e tributários;

 

d)      O Código do Procedimento Administrativo;

 

e)      O Código de Processo Civil.”.

 

Na prática, decorre do exposto que o Código de Processo Civil (CPC) é o último no elenco da legislação a aplicar aos casos omissos em matéria procedimental e processual tributária.

 

Resulta assim, em suma, que a relação processual arbitral tributária é regulada de acordo com o prudente critério dos árbitros “(…) com vista à obtenção, em prazo razoável, de uma pronúncia de mérito sobre as pretensões formuladas.”, tendo por base as normas processuais tributárias gerais, face às quais o CPC vem em último lugar no que ao preenchimento de casos omissos diz respeito.

 

É, então, face ao critério assim formulado que haverá que apreciar o pedido de suspensão da instância formulado pela AT.

 

Ora, no processo civil, esta matéria vem regulada no artigo 279.º, que no respectivo n.º 1 estabelece que “O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado.”.

 

No caso em apreço, verifica-se que nos Processos n.º 361/16.0BEBRG e n.º 443/16.8BEBRG está em causa a discussão em torno da anulação dos despachos que decretaram a cessação da isenção de IMI relativamente aos imóveis que integram o Centro Histórico de ... e, bem assim, ao imóvel sito na Rua… .

 

Já o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo visa a apreciação e declaração de ilegalidade da liquidação de IMI, referente ao ano 2015, no montante total de € 3.200,45.

 

Ainda que se entenda que a liquidação de IMI em causa é o resultado de 10 decisões proferidas pela AT por via das quais cessou a isenção de IMI relativamente aos imóveis identificados acima, haveria que apurar se se justificaria, ou não, a requerida suspensão da instância arbitral, face aos interesses concretamente em causa.

 

Efectivamente, entende-se que a norma do artigo 279.º, n.º 1 do CPC não impõe uma suspensão necessária, verificada que seja a relação de prejudicialidade, ou outro motivo justificado, o que decorre, para além do mais, da utilização da expressão “pode” no texto normativo em causa.

 

Ora, analisada a situação em apreço, dever-se-ia sempre concluir pela desnecessidade de a instância ser suspensa.

 

Não obstante, e mesmo que se entendesse que, da aplicação das normas reguladoras do processo civil resultava a consequência requerida pela AT, o certo é que as normas processuais civis não são, de forma automática, aplicáveis ao processo arbitral tributário, sendo antes, como se viu já, a sua aplicação meramente subsidiária de outras normas e condicionada pelo princípio da livre condução do processo pelos árbitros, “(…) com vista à obtenção, em prazo razoável, de uma pronúncia de mérito sobre as pretensões formuladas.”.

 

Neste quadro, haveria igualmente de considerar-se indesejável a requerida suspensão da instância.

 

Com efeito, o processo arbitral tributário é, manifestamente, enformado por um vincado princípio de celeridade, que se manifesta, para além do mais, numa intendida simplificação processual e na consagração de prazos rigorosos para a prolação de uma decisão final [17].

 

Ora, a suspensão da instância requerida pela AT, sem um prazo certo e condicionada ao trânsito em julgado das decisões finais de duas acções administrativas especiais, seria notoriamente incompatível com a celeridade genericamente pretendida para o processo arbitral e com os prazos previstos no artigo 21.º do RJAT em especial, tanto mais que após o trânsito em julgado das decisões em causa, haveria ainda que retomar a tramitação do processo arbitral, com vista à prolação da sua decisão final, com o consequente acréscimo temporal.

 

Nesta medida, tendo em vista a “obtenção, em prazo razoável, de uma pronúncia de mérito sobre as pretensões formuladas”, sempre seria de indeferir a requerida suspensão da presente instância arbitral, o que se determina.

 

 

 

5.3.  DA ILEGALIDADE DA LIQUIDAÇÃO DE IMI

 

No caso em apreço está em causa o artigo 44.º, n.º 1, alínea n), do EBF que prevê que

estão isentos de IMI, nos termos da legislação aplicável:

  • Os prédios classificados como monumentos nacionais; e
  • Os prédios individualmente classificados como de interesse público ou de interesse municipal.

 

Resulta dos factos apurados nestes autos que os imóveis do Centro Histórico de ..., cujos actos de liquidação de IMI se contestam, encontram-se classificados como monumentos nacionais.

 

Deste modo, atendendo à previsão da norma em análise, os prédios em causa estão isentos

de IMI desde que estejam classificados como monumentos nacionais nos termos da

legislação aplicável.

 

Na verdade, de acordo com o artigo 44.º, n.º 1, alínea n), do EBF não é exigível que os

prédios classificados como monumentos nacionais se encontrem individualmente classificados. Esta exigência apenas se verifica relativamente aos prédios classificados

como de interesse público ou de interesse municipal.

 

Ora, tendo em conta que a classificação dos prédios como monumentos nacionais deve

encontrar-se em conformidade com a legislação aplicável, importa atender ao disposto no

artigo 15.º da Lei do Património Cultural, nos termos da qual:

 

 

“1 - Os bens imóveis podem pertencer às categorias de monumento, conjunto ou sítio, nos termos em que tais categorias se encontram definidas no direito internacional, e os móveis, entre outras, às categorias indicadas no título VII.

 

2 - Os bens móveis e imóveis podem ser classificados como de interesse nacional, de interesse público ou de interesse municipal.

 

3 - Para os bens imóveis classificados como de interesse nacional, sejam eles monumentos, conjuntos ou sítios, adoptar-se-á a designação «monumento nacional» e para os bens móveis classificados como de interesse nacional é criada a designação «tesouro nacional».

 

4 - Um bem considera-se de interesse nacional quando a respectiva protecção e valorização, no todo ou em parte, represente um valor cultural de significado para a Nação(...).”.

 

Esta formulação vem, de resto, a ser reiterada no artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 309/2009, de 23 de Outubro [18], referindo o respectivo artigo 3.º, n. º 1 que “um bem imóvel pode ser qualificado como de interesse nacional, de interesse público ou de interesse municipal”, e acrescentando o n.º 3 que “a designação «monumento nacional» é atribuída aos bens imóveis classificados como de interesse nacional, sejam eles monumentos conjuntos ou sítios”.

 

Os prédios em questão fazem parte do Centro Histórico de ..., que foi inscrito na Lista do Património Mundial da UNESCO, conforme declarado pelo Aviso n.º 15171/2010, publicado no Diário da República n.º 147, de 30 de Julho de 2010, emitido ao abrigo do n.º 3 do artigo 72.º do Decreto-Lei 309/2009, de 23 de Outubro.

 

O artigo 15.º, n.º 7, da Lei do Património Cultural refere expressamente que “os bens culturais imóveis incluídos na lista do património mundial integram, para todos os efeitos e na respectiva categoria os bens qualificados como de interesse nacional”.

 

É esse naturalmente o caso da Centro Histórico de ..., sendo consequentemente

classificados como monumentos nacionais os prédios aí instalados.

 

Efectivamente, e conforme consta do artigo 15.º da Lei do Património Cultural e do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 309/2009, de 23 de Outubro, um bem classificado como de interesse nacional é designado como “monumento nacional”, independentemente de se tratar de um único edifício, conjunto ou sítio, sendo claro que os imóveis que compõem o conjunto ou sítio são abrangidos por essa classificação.

 

O facto de poderem coexistir prédios individualmente classificados, em caso de delimitação de um conjunto ou de um sítio, nos termos do artigo 56.º do Decreto-Lei n.º 309/2009, de 23 de Outubro, apenas tem relevo provisório para delimitar a zona de protecção desse imóvel até à publicação da classificação do conjunto ou do sítio [19].

 

Por esse motivo se compreende que o artigo 44.º do EBF distinga entre “prédio classificado como monumento nacional” e “prédio individualmente classificado como de

interesse público ou municipal”, só exigindo a individualização em relação a estas duas

últimas categorias, não já à dos prédios de interesse nacional.

 

De forma diferente, dispõe o artigo 6.º, alínea g) do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT), nos termos do qual estão isentas de IMT “as aquisições de prédios individualmente classificados como de interesse nacional, de público ou de interesse municipal, nos termos da legislação aplicável”.

 

Sucede, porém, que a Requerente defende a anulação dos actos de liquidação de IMI e

não de IMT, ao abrigo do artigo 44.º, n.º 1, alínea n), do EBF, que não exige qualquer classificação individualizada para a atribuição da isenção aos prédios classificados como monumentos nacionais.

 

Acresce que a norma do artigo 44.º, n.º 4, do EBF, na redacção que lhe foi atribuída pela Lei 3-B/2010, de 28 de Abril, dispõe expressamente que “a isenção a que se refere a alínea n) do n. º. 1 é de carácter automático, operando mediante comunicação da classificação como monumentos nacionais ou da classificação individualizada como imóveis de interesse público ou de interesse municipal (…)”.

 

Resulta, pois, em termos muitos claros que a intenção do legislador foi dispensar a

classificação individualizada para efeitos de isenção de IMI aos monumentos nacionais,

apenas a exigindo em relação a imóveis de interesse público ou de interesse municipal.

 

Em consequência, uma vez que os prédios em análise estão integrados na Centro Histórico de ..., legalmente qualificado como monumento nacional, os actos de liquidação de IMI em apreço são ilegais.

 

Por outro lado, no que respeita, em concreto, ao prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo n.º … da União das Freguesias de …, … e … (concelho de ...), este encontra-se situado na Rua …, n.º… .

 

A Rua …, foi classificada como “imóvel de interesse público” no seu conjunto, pelo Decreto n.º …/…, publicado no Diário do Governo n.º…, de 21 de Dezembro de 1974.

 

Nesta medida, ao especificar a Rua …, no seu conjunto, o legislador exprimiu o seu pensamento em termos que nenhuma dúvida suscita, quanto ao texto da lei (elemento gramatical) e quanto à respectiva “ratio legis”, uma vez que caso se entendesse que os prédios que compõem essa Rua necessitassem de classificação individual, não teria a necessidade de invocar o conjunto dessa Rua.

 

De resto, os bens imóveis individualmente classificados na área abrangida pela delimitação de um conjunto, só mantêm os seus efeitos até à publicação do conjunto.

 

É precisamente o que preceitua o artigo 56.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 309/2009, de 23 de Outubro, nos termos do qual “Os efeitos da zona de protecção de um bem imóvel individualmente classificado mantêm-se até à publicação do conjunto ou sítio conforme previsto no n.º 1 do art.º 32º”.

 

Em face do exposto, quer pela letra da lei, quer pelo seu espírito, o prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo n.º … da União das Freguesias de …, … e …(concelho de ...) por integrar o conjunto da Rua …, é um “imóvel de interesse público” e, como tal, está isento de IMI ao abrigo do artigo 44.º, n.º 1, alínea n), do EBF, pelo que os actos de liquidação de IMI em apreço são também ilegais nesta matéria.

 

Fica assim prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas pela Requerente, por ter sido declarada a ilegalidade das liquidações supra identificadas, por vício substantivo que impede a renovação dos actos, assegurando-se eficazmente a tutela dos direitos da Requerente, de harmonia com o preceituado no artigo 124.º do CPPT [20].

 

 

 

6.      DECISÃO

 

Com os fundamentos expostos, o tribunal arbitral decide:

 

a)      Julgar totalmente procedente o pedido de declaração de ilegalidade da liquidação de IMI, referente ao ano 2015, no montante total de € 3.200,45;

b)      Condenar a AT a restituir à Requerente o montante de imposto pago, acrescido de juros indemnizatórios, desde o pagamento até integral restituição;

c)      Condenar a AT nas custas do presente processo, por ser a parte vencida.

 

 

 

 

 

 

 

7.      VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em € 3.200,45 (três mil duzentos euros e quarenta e cinco cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

 

8.      CUSTAS

 

Custas a suportar pela AT, no montante de € 612,00 (seiscentos e doze euros), nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, nos termos do n.º 2 do artigo 22.º do RJAT.

 

 

Notifique.

Lisboa, 7 de Dezembro de 2016

 

 

 

O árbitro,

Hélder Filipe Faustino

 

 

 

Texto elaborado em computador, nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 131.º, do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT. A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.

 



[1] Aprovada pela Lei n.º 107/2001, de 8 de Setembro, estabelece as bases da política e do regime de protecção

e valorização do património cultural.

[2] Cfr. artigo 44.º, nº 5, do EBF.

[3] Cfr. Decreto n.º 735/74, de 21 de Dezembro.

[4] Cfr. Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, nos termos da qual, “Os prédios classificados como monumentos nacionais e os prédios individualmente classificados como de interesse público, de valor municipal ou património cultural, nos termos da legislação aplicável.” [sublinhado nosso].

[5] Cujo texto foi aprovado, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 5/91, de 23 de Janeiro.

[6] Cfr. Lei n.º 13/85, de 6 de Julho, que aprovou a lei do património cultural português, a qual foi revogada pela Lei n.º 107/2001, de 8 de Setembro.

[7] Vide, respectivamente, o n.º 1, o n.º 2 e o n.º 3.

[8] Cfr. artigo 15.º, n.º 1 da Lei do Património Cultural.

[9] Cujo texto foi aprovado, para adesão, pelo Decreto do Ministério dos Negócios Estrangeiros n.º 49/79, de 6 de Junho.

[10] Cfr. artigo 15.º, n.º 2 da Lei do Património Cultural.

[11] Cfr. artigo 15.º, n.º 3 da Lei do Património Cultural.

[12] Cfr. artigo 6.º, n.º 1 da Convenção.

[13] Cfr. n.º 1 do Aviso n.º 15171/2010, de 30 de Julho.

[14] Cfr. artigo 15.º, n.º 7 da Lei do Património Cultural.

[15] Cfr. artigo 15.º, n.º 3 e n.º 7 da Lei do Património Cultural.  

[16] Conforme resulta do artigo 16.º, n.º 1, alínea c) do RJAT.

[17] Cfr. artigo 21.º do RJAT.

[18] Diploma que estabelece o procedimento de classificação dos bens imóveis de interesse cultural, bem como o regime das zonas de protecção e do plano de pormenor de salvaguarda.

[19] Cfr. artigo 56.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 309/2009, de 23 de Outubro.

[20] Subsidiariamente aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.