Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 146/2012-T
Data da decisão: 2013-08-16  IRC  
Valor do pedido: € 5.534,37
Tema: Derrama – Apuramento da derrama municipal nos grupos de sociedades sujeitos ao RETGS
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Arbitragem Tributária

Proc. 146/2012-T

PRONÚNCIA ARBITRAL

 

I - RELATÓRIO

  1. A...–, S.A., contribuinte n.º…, com sede na Rua…, doravante designada por “Requerente” ou “A...”, sociedade dominante de um grupo fiscal de sociedades sujeito ao Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (RETGS) previsto nos artigos 69.º e seguintes do Código do IRC, apresentou, em 26/12/2012, um pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante designado apenas por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, na qualidade de sucessora da Direcção-Geral dos Impostos, com vista a:

  2. A anulação parcial ou declaração da nulidade parcial do ato tributário de autoliquidação de Derrama Municipal, referente ao exercício de 2009, constante da autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) n.º 2010…, relativo ao Grupo Fiscal da Requerente;

  3. A obtenção do consequente reembolso à Requerente da quantia indevidamente liquidada e paga a título de Derrama, no valor de € 5.534,37 (cinco mil, quinhentos e trinta e quatro euros e trinta e sete cêntimos); e

  4. A obtenção do pagamento de juros indemnizatórios correspondentes à quantia indevidamente paga a título de Derrama.

  5. O pedido de constituição de tribunal arbitral foi validado e aceite em 26 de dezembro de 2012 pelo Exmo. Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (doravante designado por “CAAD”), tendo sido a AT – Administração Tributária e Aduaneira notificada da apresentação do aludido pedido na mesma data.

  6. No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente optou por não designar árbitro.

  7. Foi designado árbitro a Doutora Nina Aguiar, o que foi notificado às partes em 1 de Março de 2013.

  8. No dia 19 de Abril de 2013, teve lugar no Centro de Arbitragem Administrativa a reunião prevista no artigo 18º, n.º 1 do RJAT, reunião da qual foi lavrada ata que se encontra junta aos autos.

  9. A Requerente alegou, no essencial, o seguinte quadro factual:

  10. A Requerente era, à data dos factos, a sociedade dominante do grupo de sociedades (adiante designado grupo fiscal) tributadas de acordo com o RETGS, cujo perímetro integrava, no exercício de 2009, as sociedades C…– S.A., E…– Lda., G…– Lda., H…– Lda., I…–Lda., Ma…–Lda., Mb…–Lda., S…–Lda., Q…–Lda. e L…–S.A;

  11. Em 30-5-2010, a Requerente apresentou a declaração periódica de rendimentos modelo 22 do IRC do seu grupo fiscal, referente ao exercício de 2009 (Doc.1), na qual autoliquidou, a título de Derrama do grupo fiscal, o valor de € 47.421,92;

  12. Este valor corresponde ao somatório dos montantes da Derrama apurados individualmente sobre as sociedades do Grupo Fiscal, que tiveram lucro tributável no ano de 2009;

  13. A Requerente efetuou a referida autoliquidação de Derrama Municipal do modo descrito por ser esse o único modo de cálculo da Derrama aceite pelo sistema eletrónico de entrega da Declaração Modelo 22 e por ser esse o método de cálculo estabelecido pela administração fiscal no Ofício-Circulado n.º 20 132, de 14 de Abril de 2008;

  14. Na sua declaração Modelo 22 individual, a Requerente apurou um valor devido a título de Derrama de € 46.321,80 (Doc. 2);

  15. Na sua declaração Modelo 22 individual, a sociedade Q…–Lda., pertencente ao grupo fiscal da Requerente, apurou um valor devido a título de Derrama de € 471,52 (Doc. 3);

  16. Na sua declaração Modelo 22 individual, a sociedade Mb…–Lda., pertencente ao grupo fiscal da Requerente, apurou um valor devido a título de Derrama de € 628,59 (Doc. 4);

  17. Nenhuma outra das restantes sociedades que integravam o grupo fiscal da requerente apurou qualquer montante devido a título de Derrama, uma vez que as mesmas não apuraram qualquer lucro tributável;

  18. À data dos factos, o sistema eletrónico da Direcção-Geral dos Impostos (atualmente Autoridade Tributária e Aduaneira), através do qual são submetidas as declarações Modelo 22 de IRC, apenas permitia a entrega das declarações se a derrama fosse calcula nos termos descritos, i.e, somando os montantes da Derrama apurada individualmente para cada sociedade do grupo fiscal, com base no lucro tributável individual.

  19. Em 29 de Maio de 2012, por não se conformar com a autoliquidação, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra a mesma, junto da Direção de Finanças de … (Doc. 6), na qual pedia a reforma da autoliquidação efetuada em 30-5-2010, bem como o reembolso do montante de € 5.534,37, acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal;

  20. Em 28 de Setembro de 2012, foi a Requerente notificada do Despacho do Exmo. Senhor Chefe de Divisão de Justiça Administrativa da Direção de Finanças de …, proferido em 20 de setembro de 2012, de indeferimento definitivo da sobredita reclamação graciosa (Doc. 8);

  21. No pedido que é objeto desta pronúncia arbitral, a Requerente sustenta a ilegalidade da suprarreferida autoliquidação de Derrama alegando, em síntese:

  22. Que a Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro, (Lei das Finanças Locais, doravante designada LFL), estabelecia no n.º 1 do art.º 14.º que “[O]s municípios podem deliberar lançar anualmente uma derrama, até ao limite máximo de 1,5% sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território”.

  23. Que a LFL de 2007 veio alterar o método de cálculo da Derrama que vigorara até ao exercício de 2007, ao passar a Derrama a ser liquidada com base no valor do lucro tributável apurado em sede de IRC e não, como anteriormente, com base na coleta de IRC.

  24. Que, em interpretação desta norma, a Administração Fiscal emitiu o Ofício-Circulado n.º 20 132, de 14 de Abril de 2008. Nos termos desta instrução administrativa, no âmbito do RETGS, “para as sociedades que integram o perímetro do grupo abrangido pelo regime especial de tributação de grupos de sociedades, a Derrama Municipal deverá ser calculada e indicada individualmente por cada uma das sociedades na sua declaração. (…). O somatório das derramas assim calculadas será indicado no campo 364 do Quadro 10 da correspondente declaração do grupo”.

  25. Que, nos termos do então art.º 64.º do Código do IRC (atual art.º 70.º), em caso de consolidação fiscal, “o lucro tributável do grupo é calculado pela sociedade dominante, através da soma algébrica dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais apurados nas declarações periódicas individuais de cada uma das sociedades pertencentes ao grupo”, sendo este lucro o único lucro tributável em IRC.

  26. Que, resultando do n.º 1 do art.º 14.º da LFL que “[O]s municípios podem deliberar lançar anualmente uma derrama, até ao limite máximo de 1,5 % sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), a Derrama apresenta contornos de imposto acessório do IRC, dado seguir as regras específicas de apuramento da base de incidência adotadas em sede de IRC, pelo que haveria que concluir que o lucro tributável que releva para efeitos de apuramento da Derrama só poderá corresponder ao lucro tributável relevante para efeitos de IRC, ou seja, o lucro tributável calculado nos termos do disposto no art.º 64.º do Código do IRC (atual art.º 70.º).

  27. Que, assim, em caso de aplicação do RETGS, ter-se-ia de concluir que, quando o n.º 1 do art.º 14.º da LFL refere que a Derrama Municipal incide “sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas”, apenas se poderia estar a referir ao lucro resultante da soma dos lucros tributáveis e prejuízos fiscais individuais (resultado agregado) das diversas sociedades do grupo, uma vez que apenas o resultado deste somatório se encontra sujeito a IRC.

  28. Que, deste modo, a interpretação veiculada pela Administração Fiscal no Ofício mencionado seria contrária ao preceituado na lei, ao alterar ilegalmente a base de incidência da Derrama, substituindo a expressão “lucro sujeito e não isento de IRC” (constante n.º 1 do art.º 14.º da LFL) pela expressão “parcelas positivas do lucro sujeito e não isento de IRC, com exclusão das parcelas negativas”.

  29. Que a posição descrita sustentada estaria de acordo com a posição do Supremo Tribunal Administrativo, o qual já se teria pronunciado por diversas vezes no mesmo sentido, nomeadamente nos Acórdãos de 2 de Fevereiro de 2011, Recurso n.º 909/10; de 22 de Junho de 2011, Recurso n.º 309/11; e de 2 de Maio de 2012, Recurso n.º 234/12.

  30. Que a posição da requerente tem sido também orientação pacífica do Centro de Arbitragem Administrativa, tal como resulta, entre outras, das decisões proferidas nos processos 18/2011-T, 19/201, 1-T, 24/2011-T, 1/2012-T e 16/2012-T.

  31. Que embora a o legislador tenha alterado a redação do artigo 14º, n.º 8 da LFL (Lei no 64-B/2011, de 30 de Dezembro), num sentido que plasma a interpretação da Administração Fiscal veiculada no Ofício-Circulado n.º 20 132, também sobre esta alteração legislativa o Supremo Tribunal Administrativo já se pronunciou (no Acórdão de 2 de Maio de 2012, Recurso n.º 234/1), no sentido de que a alteração legislativa referida é inovadora, como tal valendo apenas para o futuro, não podendo aplicar-se aos lucros tributáveis do ano de 2009.

  32. Que, face a tudo o exposto, dever-se-á concluir pela ilegalidade parcial do ato de autoliquidação de Derrama Municipal ora contestado, fundamentado no também ilegal Ofício-Circulado n.º 20 132, de 14 de Abril de 2008, por estar (o ato de liquidação) inquinado do vício de violação de lei por erro nos pressupostos de direito, em virtude de consubstanciar uma violação do art.º 14.º da Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro, conjugada com o art.º 64.º do Código do IRC (atual art.º 70.º), e ainda uma violação do princípio da legalidade fiscal consagrado no n.º 2 do art.º 103.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e do princípio da reserva de lei consagrado no art.º 165.º, n.º 1, alínea i) da mesma.

  33. A Requerente termina a sua petição pedindo:

  34. A declaração de ilegalidade parcial da autoliquidação da Derrama Municipal contestada, por se demonstrar ter existido erro na autoliquidação, imputável aos serviços da Administração Tributária, pelo facto de a Requerente ter seguido uma orientação genérica ilegal emitida pela Administração Fiscal;

  35. A indemnização da Requerente, pela Administração Tributária, de todos os prejuízos sofridos por aquela, nomeadamente os resultantes do pagamento excessivo da autoliquidação da Derrama contestada, no montante de € 5.534,37, incluindo os respetivos juros indemnizatórios, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 43.º da LGT e no art. º 61.º do CPPT.

  36. Na sua contestação, a AT - Autoridade Tributária e Aduaneira começou por suscitar as seguintes questões prévias:

  37. A Derrama Municipal constitui, nos moldes em que se encontra legalmente delineada, um imposto geral, ordinário, direto, real, periódico e não estadual, sendo o município o sujeito ativo da respetiva relação jurídica tributária.

  38. À AT- Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) apenas ficam assim conferidas funções de arrecadação da receita (dada a forma de apuramento da derrama que, à semelhança do IRC, é autoliquidada na declaração de rendimentos Modelo 22), e subsequente entrega ao município. A competência para administrar a Derrama Municipal cabe em larga medida aos municípios, sendo estes, em exclusivo, os sujeitos ativos do imposto.

  39. Os sujeitos passivos da Derrama, por seu turno, são as sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, as cooperativas, as empresas públicas e as demais pessoas coletivas de direito público ou privado, com sede ou direção efetiva em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola.

  40. A legitimidade passiva para intervir no presente litígio – cujo objeto é exclusivamente a Derrama Municipal – será igualmente dos municípios (sujeitos ativos e coadministradores do imposto), mas não da AT em exclusivo. A intervenção da AT nos procedimentos respeitantes à Derrama Municipal consubstancia-se em meras “prestações de serviços” aos municípios, que se circunscrevem apenas às fases de liquidação e cobrança daquele imposto municipal.

  41. Daqui resulta clara a existência de um premente interesse em agir dos municípios no presente pleito, interesse em agir que justifica a legitimidade destes para intervir na demanda, porquanto o artigo 26.º do C. P. Civil reconhece a legitimidade como parte – neste caso, como réu na demanda - daquele que tenha interesse direto em contradizer.

  42. A Derrama apurada pela Requerente na sua autoliquidação foi imediatamente entregue aos municípios que a ela tinham direito, os quais já terão disposto dessa receita, vendo também, por via dessa entrega, aumentados os seus limites de endividamento.

  43. O eventual decaimento no presente litígio implicará a restituição de importâncias pagas pela Requerente que já não se encontram na esfera jurídica da AT, porquanto são receitas próprias dos municípios. Implicará ainda o pagamento de juros indemnizatórios, os quais a AT não poderá ser condenada a suportar, pois agiu no procedimento enquanto mero representante dos verdadeiros sujeitos ativos do imposto.

  44. Assim, não só em face da relação jurídica configurada no caso, mas igualmente por força do interesse pessoal e direto em agir que os municípios têm, afigura-se não só necessária, mas mesmo essencial a intervenção provocada dos mesmos – nas suas plúrimas vertentes – no presente processo arbitral, à luz dos artigos 325.º e ss. do C.P. Civil, o que se afigura pertinente suscitar, a título de incidente processual.

  45. Os municípios não se encontram representados no processo de arbitragem pela aqui Requerida (AT – Autoridade Tributária e Aduaneira), pois nem o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, nem a portaria de vinculação (Portaria n.º 112 - A/2011) conferem ao dirigente máximo da AT o papel de representante de outra entidade que não a AT - Autoridade Tributária e Aduaneira.

  46. Não se encontrando representados pela Requerida no atual processo de arbitragem, os municípios também não se encontram vinculados à jurisdição do CAAD - Centro de Arbitragem Administrativa em matéria tributária.

  47. Tal circunstância acarreta necessariamente a impossibilidade de um tribunal arbitral constituído sob a égide do CAAD se considerar dotado de legitimidade para proferir decisão arbitral de mérito, cujo objeto abranja interesse pessoal e direto de entidades com personalidade e capacidade jurídica que não se encontram vinculadas à sua jurisdição, nem representadas em juízo, nem os seus interesses devidamente acautelados.

Para reforçar a posição acima transcrita, a Requerida invoca o artigo 7.º do Decreto-lei n.º 433/99 de 26 de Outubro, e o n.º 2 do artigo 54.º do ETAF, para concluir que:

  1. A legitimidade processual decorre da qualidade de sujeito da relação controvertida, tal como configurada pelo autor (segundo o artigo 26º, n.º 3 do C. P. Civil, aplicável ex vi do artigo 29º do RJAT);

  2. Transpondo tal regra para o atual processo arbitral, a legitimidade assenta na titularidade da relação material controvertida, tal como configurada pela requerente;

  3. Na sua petição inicial, a Requerente não identificou a entidade demandada, pelo que não deverá assumir-se que esta circunscreveu a legitimidade processual passiva da sua demanda à AT – Autoridade Tributária e Aduaneira;

  4. Apenas o dirigente máximo da AT – Autoridade Tributária e Aduaneira foi chamado a intervir no processo arbitral, por competência própria, enquanto “dirigente máximo do serviço da administração tributária”;

  5. De acordo com o Decreto-lei n.º 10/201, de 20 de Janeiro (RJAT) e a Portaria 112-A/2011 de 22 de Março, será o “dirigente máximo do serviço da administração tributária” (não confundível com o dirigente máximo da AT – Autoridade Tributária e Aduaneira) a intervir no processo arbitral, por competência própria, e não em representação da Fazenda Pública;

  6. Nos termos da lei, serão dirigentes máximos dos serviços da administração tributária, na aceção conjugada dos referidos diplomas, e do artigo 1.º da Lei Geral Tributária, não só o dirigente máximo da Direção-Geral dos Impostos, a Direção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo, a Direção-Geral de Informática e Apoio aos Serviços Tributários e Aduaneiros (que, por força do Decreto – Lei n.º 118/2011 de 15 de Dezembro, integram agora a AT – Autoridade Tributária e Aduaneira), mas também os dirigentes máximos das demais entidades públicas legalmente incumbidas da liquidação e cobrança dos tributos, assim como o Ministro das Finanças ou outro membro do Governo competente, quando exerçam competências administrativas no domínio tributário, e bem assim os dirigentes máximos dos órgãos igualmente competentes dos governos regionais e autarquias locais. Assim, as restantes entidades integrantes da administração tributária, não tendo assumido a sua vinculação à jurisdição arbitral, não se encontram vinculadas às decisões dos tribunais arbitrais em matéria tributária. Do que resultaria a incompetência deste tribunal arbitral para decidir no caso presente, por dizer respeito a “matérias relativas a entidades não vinculadas à sua jurisdição”.

  7. A questão a decidir envolve interesses, não de uma, mas de várias pessoas coletivas públicas – municípios – os quais são entre si conflituantes, e relativamente aos quais a atual AT - Autoridade Tributária e Aduaneira não poderá de forma independente assumir posição, sem que com isso prejudique legítimos interesses de terceiros – os municípios – nesta demanda. Os interesses dos municípios – enquanto credores do imposto, sujeitos ativos e coadministradores do tributo – não se encontram devidamente acautelados no presente processo.

  8. A entidade demandada (AT-Autoridade Tributária e Aduaneira) não pode, uti singuli, ser demandada, não só face à sua legitimatio ad causam (interesse direto em contradizer), como também por carecer aquela de poderes para representação das entidades credoras.

  9. Além disso, face, quer ao RJAT, quer à Portaria n.º 112-A/2011, os municípios não se encontram vinculados à jurisdição arbitral, não podendo como tal ser parte no processo.

  10. Face ao disposto no artigo 28.º do C. P. Civil (aplicável ex vi art.º 29.º do RJAT), “1. Se, porém, a lei ou o negócio exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade. É igualmente necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal. A decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado”.

  11. Portanto, e face à natureza da relação jurídica aqui controvertida, em que se fundamenta a pretensão da Requerente, sendo sujeitos ativos da relação jurídica da Derrama Municipal os vários municípios que, enquanto credores, têm direito à prestação de imposto, e sendo sujeitos passivos as várias sociedades que integram o perímetro do grupo de sociedades que a Requerente entendeu representar em juízo, afigura-se não só necessária, mas mesmo essencial a intervenção dos vários municípios, por forma a permitir que a decisão a obter na ação produza o seu efeito útil normal, tal como definido no segundo segmento do n.º 2 do art.º 26º, ou seja, para que a decisão possa regular definitivamente a situação concreta da Requerente e das sociedades que integram o perímetro do seu grupo de sociedades (sujeitos passivos do imposto) e dos vários municípios (sujeitos ativos do imposto), relativamente ao pedido formulado, que o mesmo é dizer, para que constitua caso julgado material.

  12. Em virtude de tudo o alegado, o presente litígio não poderá ser dirimido por via arbitral, porquanto os interessados na relação controvertida não foram, nem poderão vir a ser demandados na instância arbitral, por falta de instrumento de vinculação legal, sendo configurável a ausência destes como ilegitimidade passiva da Requerida.

  13. Não estando os municípios vinculados à jurisdição do CAAD - sendo a sua intervenção processual essencial para que a decisão a obter produza o seu efeito normal, face à natureza da relação jurídica controvertida – tal configura uma manifesta inexistência de pacto de atribuição de jurisdição aos tribunais constituídos sob a égide do CAAD.

  14. A Requerida conclui pedindo expressamente a este tribunal arbitral que aprecie as seguintes questões:

  15. Ilegitimidade passiva da AT – Autoridade Tributária e Aduaneira (aqui representada pelo seu dirigente máximo) para estar em juízo como única demandada em matéria respeitante a Derrama Municipal, imposto coadministrado com os municípios (sujeitos ativos do imposto aqui em causa);

  16. Interesse em agir dos referidos municípios neste litígio, porquanto têm um interesse pessoal e direto no seu resultado, devendo qualquer decisão que seja proferida sobre o litígio fazer necessariamente caso julgado em relação a estes;

  17. A possibilidade de sanação da invocada ilegitimidade passiva através de um incidente de intervenção provocada (numa das suas plúrimas vertentes), a apreciar pelo tribunal arbitral (questão dependente da seguinte);

  18. A questão da não vinculação dos municípios à jurisdição do CAAD;

  19. Consequentemente, a incompetência do tribunal arbitral para proferir decisão de mérito sobre a questão em litígio, porquanto esta não será apta a fazer caso julgado em relação aos municípios, o que terá consequências relevantes no caso de ser dado provimento ao pedido da Requerente, ficando esta impossibilitada de executar a decisão arbitral contra os municípios, por não ter quanto a eles a natureza de caso julgado.

  20. À cautela, mas sem conceder, a Recorrida contesta os fundamentos invocados pela Recorrente na sua impugnação do ato tributário, com base nos argumentos seguintes:

  21. A Derrama Municipal é, hoje, um imposto autónomo, que apenas se socorre das regras de cálculo do IRC para apuramento do lucro tributável. As relações jurídico-fiscais a que os dois impostos dão origem são igualmente autónomas. As especificidades da tributação em sede de IRC só a este imposto dirão respeito, não sendo legalmente acolhidas para efeitos de sujeição à Derrama Municipal;

  22. Os sujeitos passivos da Derrama Municipal são, inter alia, as sociedades residentes num dado município, que exerçam a título principal uma atividade de natureza comercial industrial ou agrícola, na área geográfica desse município;

  23. Quanto à incidência real, a Derrama Municipal incide sobre o lucro tributável das sociedades, apurado de acordo com as regras do IRC, sendo a imputação da Derrama Municipal aos vários sujeitos ativos feita de acordo com as disposições constantes do artigo 14.º da LFL;

  24. Nos casos em que é aplicável o Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (RETGS), as sociedades do grupo não deixam de ser sujeitos passivos de IRC. Todas ficam obrigadas a entregar a sua declaração periódica de rendimentos e a calcular o lucro tributável individual e o seu lucro tributável individual não deixa de estar sujeito a IRC nem fica isento. O RETGS não implica uma situação de não sujeição ou isenção;

  25. Não se verificando uma situação de não sujeição ou de isenção do lucro tributável individual das sociedades do grupo, não se vislumbra como possam os mesmos estar afastados de tributação em sede de Derrama Municipal;

  26. A alteração legislativa ao n.º 8 do artigo 14º da LFL tem natureza interpretativa e não inovadora, pelo que o regime que hoje se encontra claramente expresso nesse preceito deve considerar-se como estando em vigor anteriormente à referida alteração legislativa;

  27. Tratando-se de uma norma interpretativa, não tem lugar a questão da sua aplicação retroativa, nem, consequentemente, de qualquer colisão com o princípio constitucional de irretroatividade das leis fiscais;

  28. A Requerida conclui de tudo o exposto que a autoliquidação da Derrama Municipal levada a efeito pela Requerente não padece de qualquer irregularidade que inquine aquele ato tributário, que é manifestamente conforme à lei, razão pela qual não deve ser deferida à Recorrente a sua pretensão de ver restituída a Derrama Municipal autoliquidada, acrescida de juros indemnizatórios.

  29. Na primeira reunião do tribunal arbitral, nos termos e para os efeitos do artigo 18.º do RJAT, realizada no dia 19-5-2013, a Requerente prescindiu do direito ao contraditório em relação às exceções invocadas pela Requerida. Ambas as partes prescindiram de realizar alegações.

  30. O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, em face do preceituado nos arts. 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

  31. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

  32. O processo não enferma de nulidades.

II. FACTOS PROVADOS

  1. A Requerente - A..., S.A. é a sociedade dominante de um grupo de sociedades abrangido pelo Regime Geral de Tributação dos Grupos de Sociedades (RETGS), estabelecido nos artigos 69º e seguintes do Código do IRC (artigo 63º e seguintes à data dos factos tributários invocados pela Requerente).

  2. Em 30-5-2010, a Requerente apresentou a declaração periódica de rendimentos modelo 22 do IRC do seu grupo fiscal, referente ao exercício de 2009 (Doc.1), na qual autoliquidou, a título de Derrama Municipal, o valor de € 47.421,92

  3. Na sua declaração Modelo 22 individual, a sociedade Q…– Lda., pertencente ao grupo fiscal da Requerente, apurou um valor devido a título de Derrama Municipal de € 471,52 (Doc. 3).

  4. Na sua declaração Modelo 22 individual, a sociedade Mb…– Lda., pertencente ao grupo fiscal da Requerente, apurou um valor devido a título de Derrama Municipal de € 628,59 (Doc. 4).

  5. Nenhuma outra das restantes sociedades que integravam o grupo fiscal da requerente apurou qualquer montante devido a título de Derrama Municipal, uma vez que não apuraram qualquer lucro tributável.

  6. À data dos factos, o sistema eletrónico da Direcção-Geral dos Impostos (atualmente AT - Autoridade Tributária e Aduaneira), através do qual são submetidas as declarações Modelo 22 de IRC, apenas permitia a entrega das declarações se a Derrama Municipal fosse calculada nos termos descritos, i.e, somando os montantes da Derrama Municipal apurada individualmente para cada sociedade do grupo fiscal, com base no lucro tributável individual.

  7. Em 29 de maio de 2012, por não se conformar com a autoliquidação, a Requerente apresentou reclamação graciosa da mesma, junto da Direção de Finanças de … (Doc. 6), na qual pedia a reforma da autoliquidação efetuada em 30-5-2010, bem como o reembolso do montante de € 5.534,37, acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal.

  8. Em 28 de setembro de 2012, foi a Requerente notificada do despacho do Chefe de Divisão de Justiça Administrativa da Direção de Finanças de …, proferido em 20 de setembro de 2012, de indeferimento definitivo da sobredita reclamação graciosa (Doc. 8).

  9. Não se provaram outros factos considerados relevantes para a decisão do presente processo.

III – PRONÚNCIA

Questões prévias

  1. A Recorrida pede expressamente a este tribunal arbitral que se pronuncie sobre as seguintes questões prévias, pela ordem indicada:

  2. Ilegitimidade passiva da AT – Autoridade Tributária e Aduaneira para estar em juízo como única demandada em matéria respeitante a Derrama Municipal, imposto coadministrado com os municípios (sujeitos ativos do imposto aqui em causa);

  3. Interesse em agir dos referidos municípios neste litígio, porquanto têm um interesse pessoal e direto no seu resultado, devendo qualquer decisão que seja proferida sobre o litígio fazer necessariamente caso julgado em relação a estes;

  4. Possibilidade de sanação da invocada ilegitimidade passiva através de um incidente de intervenção provocada;

  5. Questão da não vinculação dos municípios à jurisdição do CAAD;

  6. Incompetência do tribunal arbitral para proferir decisão de mérito sobre a questão em litígio, porquanto esta não será apta a fazer caso julgado em relação aos municípios;


 

  1. Das exceções dilatórias suscitadas pela Requerida, cumpre pronunciarmo-nos em primeiro lugar sobre a questão da competência deste tribunal arbitral, por ser de conhecimento prioritário à luz do disposto no artigo 13º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aqui aplicável por força do artigo 29º, nº1, alínea c), do RJAT.

  2. No entanto, a questão da incompetência do tribunal é suscitada pela Requerida em estreita ligação com a questão da sua ilegitimidade para estar por si só, em juízo. A incompetência do tribunal resultaria da ilegitimidade passiva da AT – Autoridade Tributária e Aduaneira para estar em juízo como única demandada e da consequente e necessária intervenção dos municípios, como coadministradores e como interessados diretos no resultado da causa. Mas ao não se encontrarem estes, por sua vez, vinculados à jurisdição do tribunal, nos termos do art. 4.º, n.º 1 do RJAT - que estabelece que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos» - a pronúncia deste tribunal sobre a questão em litígio não poderia fazer caso julgado em relação aos municípios, do que resultaria a incompetência do tribunal. Vê-se assim como, para poder o tribunal pronunciar-se sobre a sua competência, terá de analisar a questão da legitimidade passiva da AT – Autoridade Tributária e Aduaneira para estar em juízo, como única demandada, no presente litígio.

  3. Em primeiro lugar, cumpre observar que este tribunal arbitral é competente em razão da matéria no presente litígio, nos termos do artigo 2º, nº1, a) do RJAT, segundo o qual a competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação da pretensão de “declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta”.

  4. Por outro lado, e entrando já na questão da legitimidade passiva da AT - Autoridade Tributária e Aduaneira, o nº 1 do art. 4º do RJAT dispõe que a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais depende de portaria conjunta dos ministros das Finanças e da Justiça. Tal vinculação foi efetivamente operada pela Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, em cujo artigo 1º se estabelece que “[P]ela presente portaria vinculam -se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam, nos termos do Decreto –Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, no CAAD — Centro de Arbitragem Administrativa os seguintes serviços do Ministério das Finanças e da Administração Pública: a) A Direcção-Geral dos Impostos (DGCI); e b) A Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo (DGAIEC).

  5. A AT – Autoridade Tributária e Aduaneira sucedeu às referidas entidades (artigo 12º, n.º 1 do Decreto-lei n.º 118/2011, de 15 de dezembro), devendo todas as referências feitas em quaisquer leis ou documentos à DGCI, à DGAIEC e à DGITA, considerar-se como feitas à AT- Autoridade Tributária e Aduaneira, segundo o artigo 12º, n.º 2, al. a) do mesmo decreto-lei.

  6. Finalmente, a já referida Portaria n.º 112-A/2011 (portaria de vinculação) diz ainda, no seu artigo 2º, que “[O]s serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objeto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida, referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto -Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro”. E especifica-se, (al. a) do artigo 2º da Portaria n.º 112-A/2011) que ficam abrangidas no âmbito da vinculação, “as pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento” desde que “precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131º a 133º do Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que acontece no caso vertente, de acordo com os factos dados como provados.

  7. Quanto à condição, fixada no referido artigo 2º da Portaria n.º 112-A/2011, de que as pretensões colocadas aos tribunais arbitrais digam respeito a impostos cuja administração caiba à Autoridade Tributária e Aduaneira, é atualmente entendimento pacífico, quer da doutrina quer jurisprudencial, que a administração da Derrama Municipal cabe em exclusivo à AT – Administração Tributária e Aduaneira. A este propósito veja-se por exemplo a pronúncia proferida no processo arbitral n.º 53/2012-T, que aqui, com a devida vénia, reproduzimos: “(…), não podem restar dúvidas, que a Derrama Municipal, apesar de a receita reverter para os Municípios, é administrada pela AT. Na verdade, é à AT que compete conduzir o procedimento de liquidação e cobrança da Derrama Municipal, confirmando os valores declarados e liquidados pelos sujeitos passivos, que cabe emitir liquidações adicionais e/ou oficiosas, e também fiscalizar o cumprimento das obrigações tributárias em sede deste imposto. É ainda atributo da AT, apreciar e decidir sobre as reclamações graciosas que, numa fase inicial de contencioso, sejam interpostas pelos sujeitos passivos, bem como emitir orientações genéricas relativas à aplicação da Derrama e responder aos pedidos de informação vinculativa. Ou seja, é indiscutível a competência – exclusiva – da AT, para a prática dos atos de administração da Derrama Municipal, apesar dos municípios serem os credores tributários da receita arrecadada e os sujeitos ativos da relação tributária”.

  8. Sendo assim, não pode pôr-se em dúvida a legitimidade passiva da Requerida para estar em juízo no presente processo, nomeadamente quanto à pretensão da Requerente de ver declarada a ilegalidade parcial do ato de liquidação da Derrama Municipal (no mesmo sentido, veja-se entre muitas outras, a pronúncia arbitral emitida no processo arbitral n.º 147/2012-T).

  9. Questão diferente é a de saber se a Recorrida tem legitimidade passiva para estar como única demandada no presente litígio. A Recorrida sustenta que não tem tal legitimidade, aduzindo os seguintes argumentos:

  10. Os municípios são os sujeitos ativos exclusivos das relações jurídicas tributárias relativas à Derrama Municipal, (ponto 12 da Resposta), agindo a Recorrida, apenas, como uma prestadora de serviços quanto à arrecadação da receita e entrega da mesma (pontos 14 e 17);

  11. Daqui decorre que a legitimidade passiva para intervir no presente litígio, cujo objeto é a Derrama Municipal, será igualmente dos municípios.

  12. Além disso, os municípios teriam um interesse em agir no presente litígio, porquanto têm um interesse pessoal e direto no seu resultado, o que originaria, também por esse facto, a ilegitimidade da Recorrida para estar em juízo como única demandada.

  13. Portanto, a Recorrida sustenta a sua ilegitimidade passiva exclusiva, i.e. para ser única demandada no presente litígio com base em dois argumentos: (1) o facto de o município ser o sujeito ativo da relação jurídica tributária; e (2) o facto de o município ter um interesse pessoal e direto em agir.

  14. Observa-se em primeiro lugar que, em processo administrativo, a regra é de que a legitimidade passiva pertence à entidade autora do ato impugnado, de acordo com a Lei de Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais, artigo 10º, n.º 2 (vejam-se, v.g., os acórdãos do STA de 15-11-1994, processo n.º 035145, e de 13-02-1996, processo n.º 037412, ambos disponíveis em http://www.dgsi.pt/jsta). Já em processo tributário, ao qual a lei reguladora do processo administrativo é de aplicação subsidiária, tão pouco existe a regra de que a ação de impugnação tem como contraparte o sujeito ativo da relação tributária (veja-se a pronúncia arbitral no processo n.º 106/2012-T). Em processo tributário de impugnação, a legitimidade passiva cabe ao Representante da Fazenda Pública (Artigo 110º, n.º 1 do CPPT), independentemente de qual seja a entidade credora da prestação tributária (sujeito ativo do imposto).

  15. O que vimos já não constituir regra para o processo arbitral, em que a contraparte de um pedido de impugnação de um ato tributário é a AT - Autoridade Tributária e Aduaneira. E, de acordo com o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), as normas aí estabelecidas têm prioridade sobre todo o elenco de normas subsidiárias enumeradas no artigo 29º, n.º 1 (“direito subsidiário”) do mesmo RJAT, dependendo a aplicação destas da existência de um caso omisso, o qual não ocorre no caso vertente.

  16. Resta-nos a questão do interesse dos municípios em agir no presente litígio, por terem um interesse pessoal e direto no seu resultado.

  17. Quanto a este ponto, seguindo jurisprudência assente nos tribunais arbitrais (veja-se a pronúncia arbitral no processo 98/ 2012-T), não procede a argumentação da AT, de que a obrigação de reembolsar os sujeitos passivos, em caso de procedência do pedido de anulação, recairia sobre os municípios, em face do artigo 100º da Lei Geral Tributária, segundo o qual é a administração tributária - e não o sujeito ativo da obrigação tributária - quem está obrigada, “em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei”.

  18. De onde se conclui portanto que, mesmo sendo os municípios sujeitos ativos da relação tributária que tem como objeto a Derrama Municipal, do pedido de impugnação aqui em causa não decorrem para os municípios interesses tais que não possam ser acautelados sem a sua intervenção no processo.

  19. Finalmente, sobre o incidente, suscitado também pela Requerida, de intervenção provocada como forma de sanação da ilegitimidade passiva, a sua pertinência resulta prejudicada ao se ter demonstrado não existir ilegitimidade passiva da Recorrida para ser a única demandada no presente processo.

Sobre o mérito da causa

  1. A Lei das Finanças Locais (LFL) (Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro), no nº 1 do seu artigo 14º, estabelece:

Os municípios podem deliberar lançar anualmente uma derrama, até ao limite máximo de 1,5% sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território”.

  1. Em 2011, através da Lei do Orçamento do Estado (Lei n.º 64-B/2011 de 30 de Dezembro) foi introduzido no artigo 14º da Lei das Finanças Locais um novo n.º 8 que definiu um regime de tributação em Derrama Municipal para os grupos de sociedades, dispondo:

8 — Quando seja aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades, a derrama incide sobre o lucro tributável individual de cada uma das sociedades do grupo, sem prejuízo do disposto no artigo 115.º do Código do IRC”.

  1. Este regime coincide com o que constava do Ofício-Circulado n.º 20 132, de 14 de Abril de 2008, o qual estabelecia que, nos casos de grupos de sociedades, a Derrama Municipal deveria ser aplicada sobre o lucro positivo individual das sociedades que registassem resultado positivo.

  2. Por outro lado, o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC) previa, nos seus artigos 63º a 65º (hoje artigos 69º a 71º) um regime especial de tributação do lucro fiscal dos grupos de sociedades (abreviadamente designado por RETGS).

  3. Segundo tal regime, que se mantém vigente, quando estejamos perante um grupo de sociedades, e quando a sociedade dominante opte pela aplicação do mesmo regime, “o lucro tributável do grupo é calculado pela sociedade dominante, através da soma algébrica dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais apurados nas declarações periódicas individuais de cada uma das sociedades pertencentes ao grupo” (atual artigo 70º, n.º 1 do CIRC).

  4. A questão que divide a Administração Tributária e a Requerente neste processo é a de saber se a Derrama Municipal deve ser calculada sobre o lucro fiscal (consolidado) do grupo, em conformidade com o Ofício Circulado n.º 20 132, de 14 de Abril de 2008, ou sobre os lucros individuais das sociedades que registem resultados positivos.

  5. A relevância prática da questão traduz-se em que, havendo, no seio do grupo, sociedades que registem prejuízo fiscal, o mecanismo de consolidação conduz a um lucro fiscal do grupo inferior à soma dos lucros tributáveis positivos das sociedades individuais que registem resultados positivos. Logo, se a Derrama se aplicar sobre o lucro consolidado, o montante da dívida tributária será menor.

  6. Sobre esta questão já se pronunciou várias vezes o Supremo Tribunal Administrativo (vejam-se os acórdãos de 2-2-2011, processo n.º 909/10; de 22-6.2011, processo n.º 309/11; de 5-7-2012, processo n.º 265/12; de 19-1-2013, processo n.º 1302/12; de 27-2-2013, processo n.º 1241/12; de 13-3-2013, processo n.º 101/2013; de 13-2-2013, processo n.º 1408/13; de 2-05-2013, processo n.º 234/12; e de 22-05-2013, processo n.º 0530/13), pelo que nos limitaremos a reproduzir aqui a tese interpretativa daquela Tribunal, à qual aderimos.

  7. Em primeiro lugar, quanto ao alegado pela recorrida caráter interpretativo da alteração legislativa operada pela Lei n.º 64-B/2011 de 30 de Dezembro, o Supremo Tribunal Administrativo já afirmou repetidas vezes que o novo n.º 8 do artigo 14º da Lei de Finanças Locais, que verte na lei a instrução administrativa do Ofício Circulado n.º 20 132, de 14 de Abril de 2008, não pode considerar-se uma norma interpretativa.

  8. Com efeito, não afirmando a própria lei o caráter interpretativo da nova norma, este caráter interpretativo só poderia ser inferido se o sentido da norma anterior (a norma interpretada que é, neste caso, o n.º1 do artigo 14º da Lei de Finanças Locais) fosse incontrovertido, o que manifestamente não era o caso. Existindo jurisprudência firmada do Supremo Tribunal Administrativo interpretando e aplicando a norma no sentido oposto ao estabelecido (em instrução administrativa) e praticado pela administração tributária, não poderia o legislador, se fosse essa a sua intenção, deixar de afirmar expressamente o caráter interpretativo da nova norma.

  9. Não havendo uma tal afirmação expressa, a conclusão sobre o caráter interpretativo (declarativo) ou inovador da norma ficará, de novo, dependente da interpretação que se faça sobre a norma interpretada, o que nos conduz a uma situação logicamente irresolúvel.

  10. Consideramos, pois, que a tese de que o n.º 8 do artigo 14º da LFL, introduzido pela Lei n.º 64-B/2011 de 30 de Dezembro, é uma norma interpretativa não tem sustentação, o que é corroborado pelo facto de que a Recorrida se limitar a afirmar o caráter interpretativo da norma sem elaborar qualquer argumentação nesse sentido.

  11. Afastada que fica a viabilidade da tese de interpretação autêntica, no sentido favorável à tese da administração tributária, do novo n.º 8 do artigo 14º da LFL, a questão terá de ser solucionada através da interpretação e aplicação do n.º 1 do mesmo preceito.

  12. A Derrama Municipal configurou-se tradicionalmente como um imposto adicional (STA, Ac. de 23-09-1992, proc. n.º 14380) do imposto sobre o lucro empresarial (a Contribuição Industrial até 1989, o IRC a partir dessa data), significando essa característica que a Derrama incidia sobre a coleta do imposto sobre os lucros. Com a Lei das Finanças Locais de 2007, deixou de incidir sobre a coleta do IRC para passar a incidir sobre o lucro tributável sujeito e não isento deste imposto, ou seja sobre a matéria coletável do IRC.

  13. Daqui retira a doutrina (R. Duarte Morais, “A Derrama, os municípios e as empresas - Passado, presente e futuro da derrama”, Fiscalidade, n.º 38, 2009, pp. 109 e ss; e Sérgio Vasques, “Sistema de tributação local e a derrama” Fiscalidade, n.º 38, 2009, p. 121) bem como a jurisprudência (TC, Ac. n.º 197/2013; STA, Ac. de 2-5-2013, proc. n.º 234/12) que a Derrama Municipal deixou de ser um adicional ao IRC para passar a ser um adicionamento a esse mesmo imposto.

  14. Mais importante do que a designação, a qual decorre do regime legal e não o contrário, é que a assinalada mudança implica que não sejam aplicáveis à Derrama Municipal as normas do IRC relativas ao apuramento da coleta.

  15. Parece também certo que, com a atual Lei das Finanças Locais, a Derrama Municipal deixou de ser um imposto acessório do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas e se tornou um imposto autónomo (neste sentido o Acórdão do STA de de 2-2-2011, processo n.º 909/10; no plano doutrinal, Saldanha Sanches, “A derrama, os recursos naturais e o problema da distribuição de receita entre os municípios”, Fiscalidade, n.º 38, 2009, p. 137). Refira-se a respeito que um imposto se considera acessório quando a inexistência de dívida relativamente ao imposto principal acarreta a inexistência de obrigação do imposto acessório (neste sentido, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 197/2013 e a doutrina aí citada e o acórdão do STA de 23-09-1992, proc. n.º 14380).

  16. A Derrama Municipal deixou de ser um imposto acessório porquanto, com a configuração que passou a ter na atual Lei de Finanças Locais, “todos os seus elementos essenciais constam da lei ou dependem da vontade dos municípios, cujo interesse é determinante na decisão quanto ao respetivo lançamento”, cingindo-se a sua relação com o IRC, “para efeitos do seu cálculo e por razões de simplicidade, a uma base tributável comum, que não prejudica nem obsta à existência de relações jurídico-tributárias autónomas entre os dois impostos (Saldanha Sanches, op. cit., p. 137).

  17. No entanto, não obstante as referidas alterações ao regime da Derrama Municipal, o regime legal do imposto é exíguo, sendo omisso não só quanto às regras sobre a determinação da matéria coletável, mas também quanto a liquidação, pagamento, obrigações acessórias e garantias, pelo que o funcionamento do imposto obriga a lançar mão do regime do IRC, não apenas quanto ao cálculo do lucro tributável mas em relação a muitos outros aspetos.

  18. Sendo assim, é-se levado a concluir que a Derrama Municipal, não obstante ser um imposto autónomo, segue o regime do IRC em tudo o que não diga respeito à determinação da coleta.

  19. E sendo assim, deverá aplicar-se também o regime do IRC no que diz respeito ao cálculo de lucro tributável no caso de opção pelo regime especial de tributação dos grupos de sociedades.

  20. A favor deste entendimento encontra-se ainda um elemento literal. O artigo 14º, n.º 1 da LFL dispõe que a Derrama Municipal incide sobre “o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas”. Deste modo, o lucro sobre o qual incide a Derrama é o lucro tributável sobre o qual incide o IRC.

  21. Ora, no regime especial de tributação dos grupos de sociedades, o lucro sobre o qual incide o IRC é o lucro tributável consolidado do grupo, e este é o que resulta da soma algébrica dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais apurados nas declarações individuais das sociedades que pertencem ao grupo.

  22. E uma vez determinado por este processo o lucro tributável para efeitos de IRC, dado que a Derrama Municipal tem a mesma base de incidência daquele imposto, esse mesmo lucro tributável consolidado deverá ser aquele sobre o qual incidirá a Derrama.

  23. Sendo assim, conclui-se que a autoliquidação enferma de ilegalidade, por erro sobre os pressupostos de direito, ao ter utilizado os lucros tributáveis individuais das empresas que constituem o grupo, como base de cálculo das derramas, em violação do art.º 14.º da Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro, conjugada com o art.º 64.º do Código do IRC (atual art.º 70.º).

  24. Quanto à alegada pela Recorrente violação do princípio da legalidade fiscal consagrado no n.º 2 do art.º 103.º da CRP e do princípio da reserva de lei consagrado no seu art.º 165.º, n.º 1, alínea i), verifica-se que não existe.

  25. Desde logo, um ato administrativo – ato praticado pela administração pública, no exercício da atividade administrativa com um conteúdo individual e concreto – não pode violar o princípio de reserva de lei, o qual é aplicável única e exclusivamente a atos normativos.

  26. E nem o Ofício-Circulado n.º 20 132, de 14 de Abril de 2008 poderia violar o princípio de reserva de lei consagrado no art.º 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP, pois trata-se apenas de uma instrução administrativa, a qual se limita a interpretar a lei e não é vinculativa exceto para a própria administração tributária. De qualquer modo, não está em apreciação a legalidade do Ofício-Circulado n.º 20 132, de 14 de Abril de 2008 mas sim de um ato administrativo, como já referido.

  27. Decorrendo do artigo 14º, n.º 1 da Lei de Finanças Locais, na redação que este artigo tinha à data dos factos, que a Derrama Municipal deveria ser calculada tendo por base o lucro tributável do grupo fiscal, calculado nos termos do Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades do IRC, o montante da dívida de Derrama assim calculada é de € 41 887, 55, correspondente à aplicação da taxa máxima de Derrama (1,5%) ao montante do lucro tributável do grupo (€ 2.792.503,07).

  28. Do que decorre que, no ato de autoliquidação impugnado, foi autoliquidada Derrama em excesso no valor de € 5.534,37.

  29. Nos termos do artigo 100º da Lei Geral Tributária, a administração tributária está por esse facto obrigada à restituição do imposto indevidamente pago.

  30. Nos termos do mesmo preceito, conjugado com o artigo 43º, n.º 1 da mesma lei, são ainda devidos pela administração tributária ao sujeito passivo juros indemnizatórios sobre o montante a restituir, calculados nos termos dos artigos 43º, n.º 4 e 35º, n.º 10 da Lei Geral Tributária.


 

Decisão

Pelos fundamentos expostos, o presente tribunal decide:

- Julgar procedente o pedido de anulação parcial da autoliquidação de Derrama Municipal efetuada pela Requerente relativamente ao exercício de 2010, com fundamento em vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito, traduzido em violação do artigo 14.º, número 1, da Lei das Finanças Locais, no que concerne à determinação da matéria tributável da Derrama Municipal em caso de aplicação do Regime Especial de Tributação dos Grupos de sociedades;

– Julgar procedentes os pedidos de reembolso da quantia de € 5.534,37 e de pagamento de juros indemnizatórios calculados com base nessa quantia, à taxa legal, desde a data de pagamento até à data em que for efetuado integral reembolso daquela quantia, condenando a Autoridade Tributária e Aduaneira a efetuar tal reembolso e pagamento.


 

Fixa-se o valor do processo em € 5.534,37.

Custas: Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 612,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

Registe-se e notifique-se esta decisão arbitral às partes.

Lisboa, 16 de Agosto de 2013

O Árbitro,

Nina Teresa Sousa Santos Aguiar

(A redação da presente decisão obedece à nova ortografia)