Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 14/2013-T
Data da decisão: 2013-10-15  IUC  
Valor do pedido: € 325,74
Tema: Incidência subjetiva, leasing
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DECISÃO ARBITRAL

 

REQUERENTE : A... –S.A..

REQUERIDA: Autoridade Tributária e Aduaneira

 

I – RELATÓRIO

 

A – PARTES

 

A A... – Instituição Financeira de Crédito, S.A., doravante designada por “Requerente”, com sede na Rua …, em Lisboa, pessoa colectiva nº …, requereu a constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 2º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, de ora em diante referido como “RJAT”, tendo em vista a apreciação da seguinte demanda que a opõe à Autoridade Tributária e Aduaneira (que sucedeu, entre outras, à Direcção-Geral dos Impostos) a seguir designada por “Requerida” ou “AT”.

 

B – PEDIDO

 

  1. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 28 de Janeiro de 2013 e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 29 de Janeiro de 2013.

  2. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no nº1 do artigo 6º do RJAT, o signatário foi designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa como árbitro de Tribunal Arbitral Singular, tendo aceite nos termos legalmente previstos.

  3. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do nº 1 do artigo 11º do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, com a redacção introduzida pelo artigo 228º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 28 de Março de 2013.

  4. No dia 2 de Julho de 2013, realizou-se com as Partes a reunião a que se refere o artigo 18º do RJAT da qual foi lavrada acta que se encontra junta aos autos.

  5. A ora Requerente pretende que o presente Tribunal Arbitral Singular declare a ilegalidade e consequente anulação dos actos tributários de liquidação do Imposto Único de Circulação no valor de € 325,74 que identifica no pedido de pronúncia arbitral.

 


 

C – CAUSA DE PEDIR


 

  1. A fundamentar o pedido de pronúncia arbitral a Requerente alegou, em síntese, o seguinte:

  2. É uma instituição financeira que tem por objecto social a prática das operações permitidas aos bancos, com excepção da recepção de depósitos.

  3. O financiamento de veículos automóveis é formalizado através da outorga de contratos de mútuo, em que o mutuário concede a favor do mutuante, como garantia do integral pagamento da quantia mutuada, uma reserva de propriedade do veículo automóvel, até ao integral pagamento da quantia mutuada.

Em alternativa à outorga de contratos de mútuo, o financiamento é efectuado através da outorga de contratos de locação financeira.


 

  1. Foi notificada para exercer o direito de audição prévia o que fez informando a Requerida por escrito sobre a situação de cada um dos nove veículos que identifica na listagem que anexou ao presente pedido de pronúncia arbitral.

  2. Na informação a que alude o número anterior dada nas respostas às respectivas notificações para audição prévia juntou cópias das facturas de venda dos veículos com as matrículas … e …e cópias dos registos de propriedade dos veículos com as matrículas …, … comprovando desta forma que estes veículos não eram sua propriedade à data identificada pela Requerida como data da ocorrência do facto gerador do imposto.

  3. Relativamente aos restantes cinco veículos a que se referiam as respectivas notificações para audição prévia, informou que se tratava de veículos locados, através de contratos de locação financeira em vigor nas datas identificadas pela Requerida como datas da ocorrência do facto gerador de imposto, tendo juntado em relação a cada veículo cópias dos respectivos contratos de locação financeira.

  4. Em relação a qualquer uma das situações de facto acima identificadas concluiu, no âmbito exercício do direito de audição prévia, que não é sujeito passivo do IUC no ano de 2008 porque não estão satisfeitos os requisitos de incidência subjectiva do imposto previstos no artigo 3º do CIUC, conjugado com os artigos 4º e 6º do do referido Código tendo, em todos os casos, solicitado que os actos de liquidação não fossem praticados.

  5. Referiu ainda que a Requerida ignorou a prova apresentada, ou seja, ignorou os documentos novos juntos ao processo e através de um único ofício, notificou a Requerente nos termos que transcreveu no nº 10 do seu pedido e cujo texto consta do documento nº 6 deste processo arbitral e que aqui se dá como reproduzido.

  6. Posteriormente a ora Requerida notificou a Requerente dos respectivos actos tributários de liquidação do IUC e dos juros compensatórios.

  7. Alegou, como fundamento de direito substantivo, em resumo, que o legislador presume no artigo 3º, nº 1, do CIUC que os proprietários são as pessoas (singulares ou colectivas de direito público ou privado) em nome das quais os veículos se encontrem registados.

  8. Defende que aquele artigo 3º, nº1, do CIUC consagra uma presunção legal “juris tantum” e, apoiando-se no artigo 73º da LGT e no artigo 350º, nº 2, do Código Civil, diz que tal presunção é ilidível.

  9. Na sequência deste pensamento, refere que sujeito passivo do IUC é o proprietário ou locatário financeiro, mesmo que não figure no registo automóvel o registo dessa qualidade de proprietário ou locatário financeiro desde que seja apresentada prova bastante para ilidir a presunção decorrente do registo automóvel.

  10. E que tendo feito esta prova nas respostas que apresentou no âmbito da audição prévia, não é sujeito passivo de IUC porque, em cada caso, à data do facto gerador do imposto ou não era proprietária ou era locadora financeira pelo que considera que em nenhuma das situações em análise, o pressuposto do imposto não se verifica.

  11. Salienta ainda em apoio da sua tese que tanto a compra e venda como a locação financeira são contratos com eficácia real (quod effectum”) no sentido de que a transferência da propriedade ou da posse, se verifica em consequência do próprio contrato pelo que, reafirma, tanto os documentos que juntou nas respostas às audições prévias como os que anexou ao presente processo arbitral, titulam contratos de compra e venda e de locação financeira os quais são documentos bastantes para provar a propriedade e a posse dos veículos nos respectivos períodos de tributação.

  12. E a concluir esta fase das alegações relativas ao direito substantivo, diz que os nove actos tributários de liquidação do IUC a que este processo se refere, enfermam de erro sobre os pressupostos de facto o que consubstancia um vício de violação de lei, por força do artigo 99º, alínea a) do CPPT, susceptível de ser arguido para fundamentar a anulação dos actos tributários de liquidação de IUC ora em apreço.

  13. Como fundamento daquilo a que chamou violação de normas processuais, produziu as alegações de âmbito processual constantes dos números 38 a 43 do seu pedido de pronúncia arbitral e que aqui damos por inteiramente reproduzidas.

  14. Termina pedindo, em síntese, que o presente pedido de anulação dos actos tributários abrangidos pelo presente processo seja julgado procedente por provado e em consequência deverá a AT anular aqueles actos tributários de liquidação de IUC com fundamento em erro sobre os pressupostos de facto e insuficiente fundamentação.

 

D - RESPOSTA DA REQUERIDA

 

  1. A Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou tempestivamente a sua resposta na qual, em síntese, alegou o seguinte:

  2. POR IMPUGNAÇÃO

  3. Começa por elencar aquilo a que chamou “thema decidendum” que se traduz, por um lado, em “ saber quem é, à luz do CIUC, mormente do artigo 3º nºs. 1 e 2 do referido Código, o sujeito passivo deste imposto” e, por outro, saber qual o valor do registo automóvel do direito de propriedade, da locação financeira, da reserva de propriedade ou ALD (todos factos sujeitos a registo automóvel) na determinação do sujeito passivo de IUC” ( Cfr. nºs. 7 e 9).

  4. Quanto à primeira questão, refere que “importa clarificar se, quando certo veículo automóvel é objecto de um contrato de locação financeira, de um contrato de compra e venda com reserva de propriedade ou de um contrato de locação com opção de compra, o sujeito passivo do imposto continua a ser o proprietário nos termos do nº 1 do referido preceito legal, ou se são sujeitos passivos do IUC, unicamente, os locatários financeiros os adquirentes com reserva de propriedade ou outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação” (Cfr. nº 8).

  5. Quanto à segunda questão elencada no precedente ponto 25, qual seja a de saber qual o valor do registo automóvel, a Requerida questiona “se a ausência de registo afecta a aquisição da qualidade de proprietário, locatário financeiro, adquirente com reserva de propriedade, ou outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”(Cfr. nº 10).

  6. Interroga-se, igualmente, “se (mesmo admitindo que a ausência de registo não afecta a aquisição dessa qualidade e que o registo não é condição de validade destes contratos), essa ausência de registo impede a eficácia plena dos contratos em causa? E, se, neste último caso, a AT pode prevalecer-se da ausência de registo para considerar como sujeitos passivos de IUC aqueles em nome dos quais os veículos se encontram registados junto da Conservatória do Registo Automóvel” (Cfr. nº11).

  7. Depois de explicar as razões que levaram à revogação dos actos de liquidação referentes aos veículos com as matrículas … reduzindo desta forma o objecto e o valor do pedido tece uma série de considerações essencialmente sobre a interpretação do artigo 3º do CIUC defendendo que “ o legislador tributário quis intencional e expressamente, que fossem considerados como proprietários, locatários, adquirentes com reserva de propriedade ou titulares do direito de opção de compra no aluguer de longa duração, as pessoas em nome das quais (os veículos) se encontrem registados”(Cfr. nº 58).

  8. Sem deixar de referir que a Requerente não deu cumprimento à obrigação acessória constante do artigo 19º do CIUC, concluiu as suas alegações relativas à incidência subjectiva do imposto dizendo que “os actos tributários em crise (…) não enfermam do alegado erro sobre os pressupostos de facto, na medida em que à luz do disposto no artigo 3º, nºs. 1 e 2 do CIUC e do artigo 6º do mesmo código, era a Requerente, na qualidade de proprietária, o sujeito passivo do IUC, tal como atesta a informação relativa ao histórico da propriedade dos veículos em causa, emitida pela Conservatória do Registo Automóvel” (Cfr. nºs. 67 e 68).

  9. Quanto à insuficiência de fundamentação que a Requerente imputa aos actos tributários, fundamenta a sua não adesão à tese daquela, louvando-se em abundante jurisprudência (Cfr. nºs. 69 a 94).

  10. Em conclusão de tudo o que a Requerida aduziu nas suas alegações, considera dever ser julgado improcedente o presente pedido de pronuncia arbitral, mantendo válidos na ordem jurídica os actos de liquidação relativos aos veículos com as matrículas ….

  11. O presente Tribunal Arbitral foi regularmente constituído no CAAD, para apreciar e decidir o objecto do presente processo.

 

E – QUESTÕES DECIDENDAS

 

  1. Cumpre, pois, apreciar e decidir.

  2. Atenta as posições das Partes assumidas nos argumentos apresentados, constituem questões centrais dirimentes saber:


 

  1. Se, na data da ocorrência do facto gerador do imposto, vigorar um contrato de locação financeira que tem por objecto um automóvel, para efeitos do disposto no artigo 3º, nºs. 1 e 2 do CIUC, sujeito passivo do IUC é o locatário ou a entidade locadora, proprietária do veículo, em nome da qual o registo do direito de propriedade se encontra feito?

  2. Se, nos termos de um contrato de locação financeira que tem por objecto um automóvel, na data da ocorrência do facto gerador do imposto, o veículo já tiver sido anteriormente alienado embora o direito de propriedade deste continue registado em nome do seu anterior proprietário, para efeitos do disposto no artigo 3º, nº. 1, do CIUC, sujeito passivo do IUC é o anterior proprietário ou o novo proprietário?

  3. Se a ausência de registo impede a eficácia plena dos contratos em causa.

  4. Se, nas situações referidas nas três anteriores alíneas, a AT pode prevalecer-se da ausência de actualização do registo do direito de propriedade para considerar como sujeito passivo do IUC as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados junto da Conservatória do Registo Automóvel.

  5. Qual o valor jurídico do registo automóvel na economia do CIUC, nomeadamente para efeitos da incidência subjectiva deste imposto.

  6. Se, subjacente a todas as questões atrás enunciadas, a norma de incidência subjectiva constante do artigo 3º nº 1 do CIUC, estabelece ou não uma presunção.

  7. Se se verifica ausência ou vício da fundamentação legalmente exigida.

 

F – PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

 

  1. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído. É materialmente competente, nos termos do artigo 2º, nº1, alínea a) do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro.

  2. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (Cfr. 4º e 10º nº2 do DL nº 10/2011 e art. 1º da Portaria nº 112/2011, de 22 de Março).

  3. Verificando-se cumpridos os requisitos exigidos pelo disposto no nº 1 do artigo 3º do RJAT, é admitido no presente processo arbitral a cumulação de pedidos de declaração de ilegalidade dos actos tributários que são objecto deste.

  4. O processo não enferma de vícios que o invalidem.

  5. Tendo em conta o processo administrativo tributário, a prova documental junto aos autos e as alegações produzidas, cumpre agora apresentar a matéria factual relevante para a compreensão da decisão, que se fixa como segue.

 

II – FUNDAMENTAÇÃO

 

G – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

 

  1. Em matéria de facto relevante, dá o presente tribunal por assente os seguintes factos:

  2. A Requerente é uma instituição financeira de crédito que tem por objecto social a prática das operações permitidas aos bancos com excepção da recepção de depósitos.

  3. No âmbito da sua actividade concede financiamentos destinados à compra de viaturas automóveis, nomeadamente através da outorga de contratos de locação financeira.

  4. Com data de 17.9.2012 foram assinadas nove notificações para audição prévia relativas a nove veículos identificados no documento nº 1 do pedido e que aqui damos por reproduzidos, que foram endereçadas à ora Requerente contendo cada uma delas os elementos identificativos do respectivo veículo e a razão que levou a AT a fazê-lo.

  5. Como ponto comum a todas as referidas notificações a AT refere que com base nos elementos de que dispõe a Requerente “era o proprietário/locatário” do veículo em causa e que nos termos do artigo 2º, nº 1 e da alínea correspondente, conjugado com os artigos 3º, 4º e 6º, todos do CIUC é devido o imposto respeitante ao ano de 2008 por aplicação da taxa prevista para cada um dos veículos em causa.

  6. Relativamente a cada notificação a Requerente respondeu através de cartas dirigidas ao Senhor Director do Serviço de Finanças de Lisboa – … recebidas neste Serviço em 26.9.2012 nas quais explicou qual a sua posição em relação a cada veículo e que se resume da seguinte forma: em 2008, à data identificada pela AT como data da ocorrência do facto gerador de imposto, ou não era proprietária (casos dos veículos com as matrículas …) ou assumia a qualidade de locadora nos contratos de locação financeira que celebrara, em relação aos restantes cinco veículos.

  7. Como prova do que afirmara, em relação à resposta que deu a cada notificação para audição prévia, juntou cópias das facturas/recibo de venda para os veículos com as matrículas …e para os veículos com as matrículas …anexou as respectivas cópias das certidões dos registos de propriedade do Instituto dos Registos e do Notariado.

  8. Em relação aos restantes veículos, juntou cópias dos respectivos contratos de locação financeira.

  9. Todos os documentos referidos nos anteriores pontos 44 a 48 integram o presente processo de pronúncia arbitral e não foram postos em causa.

  10. Em cada uma das respostas que deu, a ora Requerente face ao que alegou e aos documentos que juntou, solicitou à Requerida que não praticasse o acto de liquidação projectado (Cfr. Doc. nº 5).

  11. Em ofício datado de 2 de Outubro de 2012, a AT enviou à Requerente o ofício constante do documento nº 6 deste processo, que aqui se dá por inteiramente reproduzido.

  12. Em 28 de Novembro de 2012, a AT praticou os actos de liquidação relativos a todos os veículos a que se referiam as notificações para audição prévia atrás mencionadas e, relativamente a cada um deles, enviou a respectiva notificação para a ora Requerente pagar o correspondente IUC e os juros compensatórios (Cfr. Doc. nº 7).

  13. Na resposta ao pedido de pronúncia arbitral a AT comunicou ao Tribunal que por despacho de 8 de Maio de 2013, a subdirectora-geral com competência para o efeito, revogou os actos de liquidação referentes aos veículos com as matrículas … (Cfr. nº 23 da resposta).

  14. Verifica-se que na base das revogações operadas após o presente pedido de pronúncia arbitral, estiveram os mesmos elementos e documentos que a Recorrente enviara à AT nas suas respostas às notificações para audição prévia (Cfr. nº 21).

  15. Em consequência das revogações atrás referidas, o objecto do pedido de pronúncia arbitral passou a visar a declaração de ilegalidade e consequente anulação dos actos de liquidação relativos aos veículos com as matrículas …, …, ficando o valor do pedido reduzido a € 167,52.

 

FUNDAMENTAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS

 

  1. Os factos elencados nos números 42 a 55 foram dados como provados com base nos documentos que as Partes juntaram ao presente processo e indicados relativamente a cada um dos pontos da matéria de facto, na medida em que a sua adesão à realidade não foi questionada.

 

FACTOS NÃO PROVADOS

 

  1. Não existem factos dados como não provados, uma vez que todos os factos relevantes para a apreciação do pedido foram dados como provados.


 

H – FUDAMENTAÇÃO DE DIREITO


 

  1. A matéria de facto está fixada, importa agora proceder à subsunção jurídica e determinar o Direito aplicável aos factos subjacentes de acordo com as questões decidendas já enunciadas.

  2. A questão de fundo em causa nos presentes autos consiste em saber se a norma de incidência subjectiva constante do artigo 3º, nº 1, do CIUC estabelece ou não uma presunção.

  3. São conhecidas as posições das partes: para a Requerente aquela norma consagra uma presunção legal ilidível enquanto para a Requerida “a interpretação acolhida pela Requerente é notoriamente errada (nº 29 da resposta) e “resulta não só de uma enviesada leitura da letra da lei, como da adopção de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal e decorre ainda de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o CIUC” (nº 30 da resposta).

  4. O artigo 3º do CIUC tem a seguinte redacção:

“ARTIGO 3º

INCIDÊNCIA SUBJECTIVA

1 – São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

2 – São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.


 

  1. Estabelece o nº1 do artigo 11º da LGT que “na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam, são observadas as regras e princípios gerais da interpretação e aplicação das leis”.

  2. Resolver as dúvidas que se suscitem na aplicação de normas jurídicas pressupõe a realização de uma actividade interpretativa.

  3. Dissertando sobre a actividade interpretativa diz FRANCESCO FERRARA que esta “é a operação mais difícil e delicada a que o jurista pode dedicar-se, e reclama fino trato, senso apurado, intuição feliz, muita experiência e domínio perfeito não só do material positivo, como também do espírito de uma certa legislação. (…) A interpretação deve ser objectiva, equilibrada, sem paixão, arrojada por vezes, mas não revolucionária, aguda, mas sempre respeitadora da lei” (Cfr. Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, tradução de MANUEL DE ANDRADE, (2ª ed.), Arménio Amado, Editor, Coimbra, 1963, p. 129).

  4. Como refere BAPTISTA MACHADO “a disposição legal apresenta-se ao jurista como um enunciado linguístico, como um conjunto de palavras que constituem um texto. Interpretar consiste evidentemente em retirar desse texto um determinado sentido ou conteúdo de pensamento.

O texto comporta múltiplos sentidos (polissemia do texto) e contém com frequência expressões ambíguas ou obscuras. Mesmo quando aparentemente claro à primeira leitura, a sua aplicação aos casos concretos da vida faz muitas vezes surgir dificuldades de interpretação insuspeitadas e imprevisíveis. Além de que, embora aparentemente claro na sua expressão verbal e portador de um só sentido, há ainda que contar com a possibilidade de a expressão verbal ter atraiçoado o pensamento legislativo – fenómeno mais frequente do que parecerá à primeira vista “ (Cfr. Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, pp.175/176).

  1. A finalidade da interpretação é determinar o sentido objectivo da lei, a vis potestas legis.(…) A lei não é o que o legislador quis ou quis exprimir, mas tão somente aquilo que ele exprimiu em forma de lei. (…) Por outro lado, o comando legal tem um valor autónomo que pode não coincidir com a vontade dos artífices e redactores da lei, e pode levar a consequências inesperadas e imprevistas para os legisladores. (…) O intérprete deve buscar não aquilo que o legislador quis, mas aquilo que na lei aparece objectivamente querido: a mens legis e não a mens legislatoris (Cfr. FRANCESCO FERRARA, Ensaio, pp. 134/135).

  2. Entender uma lei “não é somente aferrar de modo mecânico o sentido aparente e imediato que resulta da conexão verbal; é indagar com profundeza o pensamento legislativo, descer da superfície verbal ao conceito íntimo que o texto encerra e desenvolvê-lo em todas as suas direcções possíveis” (loc. cit., p.128).

  3. Com o objectivo de desvendar o verdadeiro sentido e alcance dos textos legais, o intérprete lança mão dos factores interpretativos que são essencialmente o elemento gramatical (o texto, ou a “letra da lei”) e o elemento lógico, o qual, por sua vez, se subdivide em elemento racional (ou teleológico), elemento sistemático e elemento histórico. (Cfr. BAPTISTA MACHADO, loc. Cit., p. 181; J.OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito – Introdução e Teoria Geral 2ª Ed., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, p.361).

  4. Entre nós, é o artigo 9º do Código Civil (CC) que fornece as regras e os elementos fundamentais à interpretação correcta e adequada das normas.

  5. O texto do nº 1 do artigo 9º do CC começa por dizer que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dela o “pensamento legislativo”.

  6. Sobre a expressão “pensamento legislativo” diz-nos BAPTISTA MACHADO que o artigo 9º do CC “não tomou posição na controvérsia entre a doutrina subjectivista e a doutrina objectivista. Comprova-o o facto de se não referir, nem à “vontade do legislador” nem à “vontade da lei”, mas apontar antes como escopo da actividade interpretativa a descoberta do “pensamento legislativo” (artº. 9º, 1º). Esta expressão, propositadamente incolor, significa exactamente que o legislador não se quis comprometer” (loc. cit., p. 188).

No mesmo sentido se pronunciam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA em anotação ao artigo 9º do CC (Cfr. Código Civil Anotado – vol. I, Coimbra ed., 1967, p. 16 ).

  1. E sobre o nº 3 do artigo 9º do CC refere aquele autor: “ este nº 3 propõe-nos, portanto, um modelo de legislador ideal que consagrou as soluções mais acertadas (mais correctas, justas ou razoáveis) e sabe exprimir-se por forma correcta. Este modelo reveste-se claramente de características objectivistas, pois não se toma para ponto de referência o legislador concreto (tantas vezes incorrecto, precipitado, infeliz) mas um legislador abstracto: sábio, previdente, racional e justo” (loc. cit. p. 189/190).

  2. Logo a seguir este insigne Professor chama a atenção de que o nº 1 do artigo 9º, refere mais três elementos de interpretação a “ unidade do sistema jurídico”, as “circunstâncias em que a lei foi elaborada” e as “condições específicas do tempo em que é aplicada” (loc. cit, p. 190).

  3. Quanto às “circunstâncias do tempo em que a lei foi elaborada”, explica BAPTISTA MACHADO que esta expressão “representa aquilo a que tradicionalmente se chama a ocasio legis: os factores conjunturais de ordem política, social e económica que determinaram ou motivaram a medida legislativa em causa” (loc. cit., p.190).

  4. Relativamente às “condições específicas do tempo em que é aplicada” diz este autor que este elemento de interpretação “tem decididamente uma conotação actualista (loc. cit., p. 190) no que coincide com a opinião expressa por PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA nas anotações ao artigo 9º do CC.

  5. No que respeita à “unidade do sistema jurídico” BAPTISTA MACHADO considera este o factor interpretativo mais importante: “a sua consideração como factor decisivo ser-nos-ia sempre imposta pelo princípio da coerência valorativa ou axiológica da ordem jurídica” (loc. cit., p. 191).

  6. É também este autor que nos diz, relativamente ao elemento literal ou gramatical (texto ou “letra da lei”) que este “é o ponto de partida da interpretação. Como tal, cabe-lhe desde logo uma função negativa: a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou pelo menos uma qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei.

Mas cabe-lhe igualmente uma função positiva, nos seguintes termos. Primeiro, se o texto comporta apenas um sentido, é esse o sentido da norma – com a ressalva, porém, de se poder concluir com base noutras normas que a redacção do texto atraiçoou o pensamento do legislador” (loc. cit., p. 182).

  1. Referindo-se ao elemento racional ou teleológico, diz este autor que ele consiste “na razão de ser da lei (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao elaborar a norma. O conhecimento deste fim, sobretudo quando acompanhado do conhecimento das circunstâncias (políticas, sociais, económicas, morais, etc.,) em que a norma foi elaborada ou da conjuntura política-económica-social que motivou a decisão legislativa (occasio legis) constitui um subsídio da maior importância para determinar o sentido da norma. Basta lembrar que o esclarecimento da ratio legis nos revela a valoração ou ponderação dos diversos interesses que a norma regula e, portanto, o peso relativo desses interesses, a opção entre eles traduzida pela solução que a norma exprime” (loc. cit., pp. 182/183).

  2. É ainda BAPTISTA MACHADO que nos diz, agora no que respeita ao elemento sistemático (contexto da lei e lugares paralelos) que “este elemento compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos).Compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico.

Baseia-se este subsídio interpretativo no postulado da coerência intrínseca do ordenamento, designadamente no facto de que as normas contidas numa codificação obedecem por princípio a um pensamento unitário” (loc.cit., p. 183).

  1. Como ensina JOSEF KOHLER, citado por MANUEL DE ANDRADE “(…) Em particular havemos de tomar em consideração o encandeamento das diversas leis do país, porque uma exigência fundamental de toda a sã legislação é que as leis se ajustem umas às outras e não redundem em congérie de disposições desconexas (Ensaio, p. 27).

 

  1. Quanto ao elemento histórico, diz BAPTISTA MACHADO que este elemento “compreende todos os materiais relacionados com a história do preceito, a saber: a história evolutiva do instituto, da figura ou do regime jurídico em causa (…); as chamadas fontes da lei, ou seja os textos legais ou doutrinais que inspiraram o legislador na elaboração da lei (…); os trabalhos preparatórios” (loc. cit., p.184).


 

  1. É, pois, neste quadro de fundo, utilizando os subsídios interpretativos acabados de referir acolhidos pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores, que iremos buscar as soluções para as questões controvertidas suscitadas neste processo (Cfr., entre outros, Acs. do STJ de fixação de jurisprudência nºs. 1 e 5, de 2009, in, respectivamente, DR. 1ª Série, nº 11 de 16.1.2009 e DR. 1ª Série nº 55 de 19.3.2009).


 

DO ELEMENTO LITERAL


 

  1. Começando pelo teor literal do artigo 3º nº 1 do CIUC “o ponto de partida da interpretação tem de estar na letra” (Oliveira Ascensão, loc cit., p. 353), iremos analisar em especial a expressão “considerando-se como tais” à luz das referências doutrinais e jurisprudenciais atrás mencionadas, em especial na perspectiva do disposto no nº 2 do artigo 9º do CC, quando estabelece não poder ser considerado como compreendido entre os sentidos possíveis da lei aquele pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal ainda que imperfeitamente expresso.

  2. É certo que o actual texto não usou o termo “presumem-se” que constava do extinto Regulamento do Imposto Sobre Veículos. O facto do legislador ter optado pelo vocábulo “considerando-se” destrói a possibilidade de estarmos perante uma presunção?

  3. Examinando o ordenamento jurídico português, encontramos imensas normas que consagram presunções utilizando o verbo considerar, muitas das quais empregues no gerúndio (“considerando” ou mesmo “considerando-se”). São disso exemplos as normas a seguir enumeradas: No Código Civil, entre outras, os artigos 314º, 369º nº 2, 374º nº1, 376º nº 2, 1629º. No Código da Propriedade Industrial, referimos a título de exemplo, o artigo 98º onde também o termo “considerando” é usado num contexto presuntivo.

Também no ordenamento jurídico tributário se pode encontrar o verbo “considerar”, nomeadamente o termo “considera-se” com um sentido presuntivo.

  1. Como explicam DIOGO LEITE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES E JORGE LOPES DE SOUSA, na anotação nº 3 ao artigo 73º da LGT “as presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, revelada pela utilização da expressão presume-se ou semelhante (…). No entanto, as presunções também podem estar implícitas em normas de incidência, designadamente de incidência objectiva, quando se consideram como constituindo matéria tributável determinados valores de bens móveis ou imóveis, em situações em que não é inviável apurar o valor real” (sublinhado nosso), dando de seguida alguns exemplos de normas em que é utilizado o verbo “considerar” como no nº 2 do artigo 21º do CIRC acontece, ao estabelecer que “para efeitos de determinação do lucro tributável, considera-se como valor de aquisição dos incrementos patrimoniais obtidos a título gratuito o seu valor de mercado não podendo ser inferior ao que resultar da aplicação das regras de determinação do valor tributável previstas no Código do Imposto do Selo”. (sublinhados nossos).

  2. Dizem estes autores, a propósito deste artigo 21º, nº 2 do CIRC: “para além de esta norma evidenciar que o que está em causa em sede de tributação de mais valias é apurar o valor real (o de mercado), a limitação ao apuramento do valor real derivada das regras de determinação do valor tributável previstas no CIS não poder deixar de ser considerada como uma presunção em matéria de incidência, cuja ilisão é permitida pelo artigo 73º da LGT” (loc. cit., pp. 651 e 652).

Pode ainda referir-se a este propósito, o constante do nº 4 do artigo 89-A da LGT, onde está consagrada igualmente uma presunção, sem que tenha sido usado o termo “presume-se” mas sim “considera-se” (Cfr.,ob.cit., anotações 7 ao art. 75º e 12 ao 89-A, pp.667 e 782, respectivamente; na jurisprudência, p.ex. Acs. de 2.5.2012, proc. 0381/12 e de 17.4.2013, proc. 0433/13).

  1. Tendo em conta que o sistema jurídico deve formar um todo coerente, os exemplos acima referidos, acompanhados da doutrina e jurisprudência indicadas, por apelo ao elemento sistemático (contexto da lei e lugares paralelos), autorizam a conclusão que não é só quando é usado o verbo “presumir” que estamos perante uma presunção, mas também o uso de outros termos ou expressões podem servir de base a presunções, nomeadamente o termo “considera-se”, mostrando-se desta forma cumprida a condição estabelecida no nº 2 do artigo 9º do CC, o qual exige que o pensamento legislativo tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

  2. Mas, como afirma KARL LARENZ “o sentido literal na maior parte dos casos não basta como critério interpretativo, precisamente porque ainda permite diversas interpretações”. (Cfr. Metodologia da Ciência do Direito, Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª ed., 1969, p. 369).

  3. Se é certo que este elemento literal, só por si, não pode ser considerado inteiramente decisivo, acompanhado de outros elementos é bastante relevante e indiciador do verdadeiro sentido da norma em análise, apontando para que a expressão “considerando-se como tais” seja equivalente à expressão “presumindo-se como tais”.

  4. Continuando na procura do verdadeiro sentido da norma constante do artigo 3º do CIUC a qual sendo a norma de incidência subjectiva do IUC, terá que ser de acordo com as regras nela previstas que é determinado o sujeito passivo.


 

DO ELEMENTO RACIONAL OU TELEOLÓGICO


 

  1. Socorramo-nos agora do elemento racional ou teleológico o qual se reveste da maior importância para determinar o sentido da referida norma. “A interpretação é hoje dominada pelo factor teleológico” (Cfr. Menezes Cordeiro – Tratado de Direito Civil Português,I, Parte Geral, Tomo 1, 2ª ed,. 2000,Almedina, p. 557).

  2. Sob a epígrafe “princípio da equivalência” estabelece o artigo 1º do CIUC: “O imposto único de circulação obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”.

  3. Sobre a noção do princípio da equivalência diz-nos SÉRGIO VASQUES: “Em obediência ao princípio da equivalência, o imposto deve ser conformado em atenção ao benefício que o contribuinte retira da actividade pública, ou em atenção ao custo que imputa à comunidade pela sua própria actividade” (Cfr. Os Impostos Especiais de Consumo, Almedina, 2000, p. 110).

  4. E, mais à frente, explica este Professor, relativamente aos automóveis: “um imposto sobre os automóveis assente numa regra de equivalência será igual apenas se aqueles que provoquem o mesmo desgaste viário e o mesmo custo ambiental paguem o mesmo imposto; e aqueles que provoquem desgaste e custo ambiental diverso, paguem imposto diverso também.

Logo pelo que se diz se percebe que a concretização do princípio da equivalência dita especiais exigências no tocante ao desenho da matéria colectável e à estrutura das taxas” (loc. cit., p.122).

  1. Quanto ao desenho da matéria colectável e à estrutura das taxas escreve SÉRGIO VASQUES: “no contexto da reforma do imposto automóvel, hoje em discussão, se sugere a delimitação da base de incidência e a fixação das taxas não apenas em função da cilindrada, mas em função também do peso dos veículos, do potencial poluidor e dos níveis de segurança apresentados. O novo imposto de circulação que se propõe afirma-se ter a mesma filosofia de base que os impostos de circulação e camionagem: destina-se a compensar o direito de circular na via pública, isto é, os efeitos nefastos resultantes da circulação de veículos (loc. cit., p.124).

  2. De acordo com a exposição de motivos que acompanha a Proposta de Lei nº 118/X que deu origem à Lei nº 22-A/2007, de 29 de Junho, que aprovou o CIV e o CIUC – “fonte da lei” (elemento histórico) – ressalta com clareza a razão de ser (ratio legis) do imposto único de circulação.

  3. Com efeito, na mencionada exposição de motivos, logo no início se refere: “A reforma a que a presente proposta dá corpo resulta, portanto, da necessidade imperiosa de trazer clareza e coerência a esta área do sistema fiscal e da necessidade, mais imperiosa ainda, de subordiná-la aos princípios e preocupações de ordem ambiental e energética que hoje em dia marcam a discussão da tributação automóvel”.

  4. Comparando os novos impostos (ISV e IUC) com os criados nos anos 70 e 80 do século passado que segundo é dito na referida Proposta, estavam voltados “predominantemente para a angariação de receita, indiferentes ao custo social resultante da circulação automóvel”.

Ainda segundo a mesma Proposta, os dois novos impostos “constituem algo diferente, figuras já do século em que vivemos, com as quais se pretende, com certeza, angariar receita pública, mas angariá-la na medida do custo que cada indivíduo provoca à comunidade”.

  1. E este desígnio, esta intenção de angariar receita pública na medida do custo que cada indivíduo provoca à comunidade, está bem vincada no Anexo II da referida Proposta quando, relativamente ao CIUC, é afirmado: “Como elemento estruturante e unificador (…) consagra-se o princípio da equivalência, deixando assim claro que o imposto, no seu conjunto, se subordina à ideia de que os contribuintes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária (sublinhado nosso).

  2. Fácil é verificar a total consonância entre as lições do Professor SÉRGIO VASQUES e o contido quer na exposição de motivos da Proposta de Lei nº 118/X, quer no artigo 1º do CIUC, o que não espanta, dado ser este Lente na altura o secretário de estado dos assuntos fiscais.

  3. E foram as preocupações de ordem ambiental e energética (a razão de ser desta figura tributária) a motivarem que na sistemática do CIUC o princípio da equivalência aparecesse logo no artigo 1º, influenciando deste modo, como é patente, não só a base tributável (art. 7º) que deixou de ser exclusivamente a cilindrada, como as taxas (arts. 9º a 15º) e atendendo ao “potencial poluidor” dos veículos automóveis, a própria incidência subjectiva de que trata o artigo 3º do CIUC.

  4. Reflectindo igualmente a componente ambiental do CIUC, é de referir ainda a isenção dada aos veículos exclusivamente eléctricos ou movidos a energias renováveis não combustíveis, tal como dispõe a alínea d) do artigo 5º do CIUC.

  5. Em anotações ao artigo 7º do CIUC (base tributável), BRIGAS AFONSO e MANUEL FERNANDES, ex-dirigentes da DGAIEC, reconhecidos especialistas em IEC´S, dizem o seguinte: “nos veículos da categoria B (veículos ligeiros de passageiros matriculados depois de 30.6.2007) a base tributável passou a ser constituída pela cilindrada e pelas emissões de CO2, tendo deixado de ter relevância o combustível consumido e a antiguidade da matrícula. Dado que os veículos eléctricos estão isentos do imposto, a voltagem deixou de ser considerada.

Nos veículos da categoria C (veículos de mercadorias de uso particular) manteve-se a base tributável do extinto ICi, base tributável esta que, em parte, está harmonizada comunitariamente. Mas o legislador português foi mais longe e, na prossecução pela via fiscal de objectivos ambientais, introduziu na tributação destes veículos uma componente ambiental, através do conceito de “antiguidade”, calculada esta em função do ano de atribuição da primeira matrícula, como se pode ver no artigo 11º (sublinhado nosso).

Nos veículos da categoria D (veículos de mercadorias de uso profissional) (…) foi também introduzida a componente ambiental, como se pode ver no artigo 12º” ( Cfr. Imposto sobre Veículos e Imposto Único de Circulação, Coimbra Ed., 2009, pp. 193/194).

  1. E, a propósito do artigo 10º (taxas-categoria B), observam os mesmos autores: “as taxas aplicadas à componente CO2 assumem um valor que é superior em cerca de 50% ao da componente cilindrada” (loc. cit., p. 199).

  2. O atrás exposto no que ao princípio da equivalência diz respeito, leva-nos a concluir ser este um princípio estruturante deste imposto, “ a razão de ser desta figura tributária” como se diz na mencionada Proposta de Lei pelo que, na perspectiva deste factor interpretativo, devam ser tributados os veículos em função, como diz SÉRGIO VASQUES, nomeadamente, do seu potencial poluidor e dos níveis de segurança apresentados (loc. cit., p. 124).

  3. Tendo em conta quer o lugar sistemático que o princípio da equivalência ocupa (artigo 1º do CIUC) – elemento sistemático – quer o elemento histórico corporizado pela Proposta de Lei nº 118/X (fonte da lei), quer o elemento racional (ou teleológico) acabado de analisar, todos apontam no sentido da conclusão preliminar a que chegámos aquando da análise do elemento gramatical, só fazendo sentido conceber no contexto do artigo 3º do CIUC, a expressão “ considerando-se como tais” como reveladora da presença de uma presunção ilidível, não podendo aceitar-se, como pretende a AT, de que os sujeitos passivos deste imposto são apenas os proprietários ou equiparados dos veículos, em nome dos quais os mesmos se encontrem registados.

Na verdade, a ratio legis do imposto antes aponta no sentido de serem tributados os utilizadores dos veículos, os efectivos proprietários ou, como no caso em análise, os locatários financeiros, pois são estes que têm o potencial poluidor causador dos custos ambientais à comunidade.


 

DA NOCÃO DE PRESUNÇÃO


 

  1. A noção de presunção é-nos fornecida pelo disposto no artigo 349º do CC: “presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”.

E, segundo o que determina o nº 2 do artigo 350º do mesmo Código, “as presunções legais podem, todavia, ser ilididas mediante prova em contrário, excepto nos casos em que a lei o proibir”.

  1. As presunções funcionam como modo de ultrapassar as dificuldades de prova.

Como refere o STJ em acórdão de uniformização de jurisprudência,“ as presunções juris tantum constituem a regra, sendo as presunções juris et de jure a excepção. Na dúvida, a presunção legal é juris tantum, por não se dever considerar, salvo referência da lei, que se pretendeu impedir a produção de provas em contrário, impondo uma verdade formal em detrimento do real provado” (Cfr. Ac. STJ de 3.4.1991, proc. 002663).


 


 

DA INCIDÊNCIA SUBJECTIVA DO IMPOSTO NA VIGÊNCIA DO CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA.


 


 

  1. O Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira, aprovado pelo Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de Junho, com as alterações entretanto nele introduzidas, começa por nos dar no seu artigo 1º a noção de locação financeira, estabelecendo no artigo 9º que são obrigações do locador, entre outras, adquirir ou mandar construir o bem a locar (nº 1, alínea a)); conceder o gozo dos bens para os fins a que se destina (nº1, alínea b)); vender o bem ao locatário, caso este queira, findo o contrato (nº1, alínea c))”.


 

  1. A posição jurídica do locatário está regulada no artigo 10º do mesmo diploma, onde é determinado como obrigações do locatário nomeadamente, “pagar as rendas (nº1 alínea a)); assegurar a conservação do bem e não fazer dele uma utilização imprudente (nº1, alínea e)); efectuar o seguro do bem locado, contra o risco da sua perda ou deterioração e dos danos por ela provocados (nº 1, alínea j)); usar e fruir o bem locado (nº 2, alínea a))”.


 

  1. As disposições atrás referidas a título de exemplo, são bem elucidativas das obrigações a que legalmente ficam sujeitos o locador e o locatário, quando celebram um contrato de locação financeira.


 

  1. Só por estas referências legais é possível concluir que na vigência de um contrato de locação financeira, embora o locador continue proprietário do bem em causa, só o locatário tem o gozo exclusivo do bem locado, usando-o como se fosse ele o verdadeiro proprietário.


 

  1. É certo que o locatário financeiro é equiparado a proprietário para efeitos do nº 1 do artigo 3º do CIUC, o mesmo é dizer para ser sujeito passivo do IUC (Cfr. nº 2 do artº 3º).


 

  1. Assim sendo, como é, não dispondo o locador por imposição legal e contratual do potencial de utilização do veículo e tendo o locatário o gozo exclusivo do automóvel, reafirmamos a conclusão a que já tínhamos chegado de que, em nosso entender, manda a ratio legis do CIUC que nos termos do referido nº 2 do artigo 3º deste Código seja o locatário o responsável pelo pagamento do imposto, uma vez que é ele que tem o potencial de utilização do veículo e provoca os custos viários e ambientais a ele inerentes.


 

  1. À mesma conclusão se chega quando se verifica a importância dada aos utilizadores dos veículos locados no artigo 19º do CIUC. Com efeito, nos termos do disposto neste artigo, as entidades que procedam, designadamente, à locação financeira de veículos ficam obrigadas a fornecer à AT (ex-DGCI), a identidade fiscal dos utilizadores dos veículos locados para efeitos do disposto no artigo 3º do CIUC (incidência subjectiva), bem como do nº1 do artigo 3º da Lei da respectiva aprovação, uma vez que nos termos desta norma da Lei nº 22-A/2007, se a receita gerada pelo IUC for incidente sobre veículos objecto de aluguer de longa duração ou de locação operacional, deve ser afecta ao município de residência do respectivo utilizador (sublinhados nossos).


 

  1. Aqui chegados, somos de opinião que se na data da ocorrência do facto gerador do imposto vigorar um contrato de locação financeira que tem como objecto um automóvel, sujeito passivo do imposto não é o locador mas sim, à luz do nº 2 do artigo 3º do CIUC, o locatário, o que, a nosso ver, faz todo o sentido, dado ser este que tem o gozo do veículo e, como tal, o inerente potencial poluidor, independentemente do registo do direito de propriedade permanecer em nome do locador, como seguidamente melhor se explica.


 


 

DA PROPRIEDADE DOS VEÍCULOS E O VALOR JURÍDICO DO REGISTO AUTOMÓVEL


 


 

  1. Uma das obrigações do locador é vender o bem ao locatário, caso este queira ( Cfr. DL 149/95, art. 9º, alínea c)).


 

  1. A venda ao locatário é uma situação frequente e que também se verifica nos presentes autos.


 

  1. É patente que com a celebração do contrato de compra e venda o até então locatário passa a proprietário de pleno direito passando a estar abrangido directamente pelo nº 1 do artigo 3º do CIUC.


 

  1. O contrato de compra e venda encontra-se regulado no Código Civil português no livro II do título II (dos contratos em especial) cuja noção constante do artigo 874º nos diz que “é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço”.

Por sua vez o artigo 879º do mesmo Código estipula que a compra e venda tem como efeitos essenciais: a) a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito; b) a obrigação de entregar a coisa; c) a obrigação de pagar o preço”.

  1. Em anotações a estes artigos PIRES de LIMA e ANTUNES VARELA dizem que no nosso direito, o contrato de compra e venda tem natureza real, isto é, a transmissão da propriedade da coisa vendida, ou a transmissão do direito alienado, tem como causa o próprio contrato.


 

  1. E, quanto aos contratos com eficácia real, dispõe o artigo 408º do CC que” a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei”.


 

  1. A propósito deste artigo 408º CC, nas suas prelecções ao 4º ano jurídico de 1970/71, diz o Professor MOTA PINTO quando se refere a um dos princípios regulamentadores da constituição e da vida dos direitos reais – o princípio da consensualidade: “os contratos a que este artigo se refere produzem efeito “ex contractu”, por mero efeito do contrato (…) bastando o contrato – o contrato constitutivo ou translactivo de direitos reais – para que estes se constituam ou se transfiram. Basta, para esse efeito, o consenso no contrato (…) sem necessidade de um acto posterior que venha a acrescer ao negócio jurídico” (Cfr. Direitos Reais, Álvaro Moreira e Carlos Fraga, Almedina, 1976, pp. 123/124).


 

  1. A mesma opinião tem a generalidade dos autores.


 

  1. Diz GALVÃO TELES: “o efeito real é, face ao disposto no nº 1 do artigo 408º, efeito do próprio contrato e não de um subsequente acto realizado em execução deste. É, em regra, efeito imediato, mas pode ser diferido, desencadeando-se só mais tarde, quando ocorra determinado evento. Ainda aqui o efeito real tem a sua raiz no contrato, embora fique em suspenso” (Cfr. Obrigações, 3ª ed., p. 60).


 

  1. Também PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, quando trata dos negócios jurídicos reais “quoad effectum” dá como exemplo a compra e venda e diz “é um contrato que opera a transmissão da propriedade em consequência da simples celebração do contrato, e ainda que não haja entrega da coisa vendida” (Cfr. Teoria Geral do Direito Civil, 7ª ed. Coimbra, 2012, p. 380).


 

  1. Sobre o nº 1 do artigo 408º do CC opina MENEZES LEITÃO nos seguintes termos: “ a regra geral, porém, é a de que a transmissão dos direitos reais sobre coisa determinada ocorre por mero efeito do contrato. Temos aqui consagrado nesta disposição o sistema do título, o qual significa precisamente que a transmissão dos direitos reais ocorre apenas em virtude do próprio contrato, não ficando dependente de qualquer acto posterior, como a tradição da coisa ou o registo (sublinhado nosso). (Cfr. Direito das Obrigações, vol 1, 10ª ed., 2013, Almedina, pp. 176/177).


 

  1. No mesmo sentido se pronuncia HEINRICH EWALD HÖRSTER quando a propósito deste artigo explica: “aplica-se a regra casum sentit dominus, regra essa que funciona em sintonia com a transferência do direito, o qual se produz por efeito do mero consenso, sem necessidade de um acto material ou de publicidade (sublinhado nosso) (Cfr. A Parte Geral do Código Civil Português, Coimbra, Almedina, 6ª reimpressão da ed. 1992, 2012, p 467).


 

  1. Na jurisprudência pode ler-se: “ Face ao disposto no art. 408º, nº1, do C. Civil, a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei. É o caso do contrato de compra e venda de veículo automóvel (artºs 874º e 879º al. a) do C. Civil), o qual não depende de qualquer formalidade especial, sendo válido mesmo quando celebrado por forma verbal – Ac. do STJ de 3.3.98, citado no Ac. do STJ de 19.2.2004”.


 

  1. É verdade que o direito de propriedade dos veículos automóveis está sujeito a registo, nos termos prescritos pelo Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro, com as alterações que entretanto lhe foram introduzidas (Cfr. art. 5º).


 

  1. Procurando a resposta à questão de saber qual o valor jurídico do registo de propriedade automóvel, vejamos o que nos diz este diploma. O nº1 do artigo 1º fixa a finalidade do registo: o registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respectivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico”.


 

  1. Embora esta disposição contribua para responder à questão em análise, não encontramos no Decreto-Lei nº 54/75 qualquer disposição que nos elucide sobre o valor jurídico do registo de propriedade automóvel pelo que, para suprir esta lacuna, temos de nos socorrer das disposições relativas ao registo predial conforme prevê para estes casos o artigo 29º daquele diploma.


 

  1. O Código do Registo Predial (CRP), aprovado pelo Decreto-Lei nº 224/84, de 6 de Julho, com a última alteração resultante do Decreto-Lei nº 125/13, de 30 de Agosto, estipula num artigo inserido no Título I (Da natureza e valor do registo), Capítulo I (Objecto e efeitos do registo), Secção I (Disposições fundamentais), o artigo 7º, o seguinte: “ o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”.


 

  1. Conjugando o disposto no artigo 1º do Decreto-Lei nº 54/75 – o artigo 1º do CRP dispõe de forma análoga quanto aos prédios – com este artigo 7º do CRP, concluímos que a função essencial, o objecto do registo é, como se diz naquele artigo 1º, dar publicidade à situação dos veículos, isto é, ao acto registado, não surtindo o registo, nas palavras constantes do Acórdão do STJ de 19.2.2004 “ eficácia constitutiva funcionando (apenas) como mera presunção, ilidível, (presunção juris tantum) da existência do direito (art.s 1º, nº1 e 7º, do CRP84 e 350º,nº 2, do C. Civil) bem como da respectiva titularidade, tudo nos termos dele constantes”.


 

  1. Não havendo no CRP qualquer disposição que vá no sentido de considerar o registo como condição de validade dos contratos a ele sujeitos e sendo o entendimento unânime da doutrina e da jurisprudência o que atrás se deixou expresso, concluímos que para adquirir a qualidade de proprietário basta que este figure no contrato de compra e venda como comprador, independentemente do registo, uma vez que este não tem valor constitutivo mas apenas declarativo, não afectando a ausência de registo a qualidade de proprietário. Como também se pode ler no Acórdão do STJ de 15.12.1977 (proc. 0066582) “o registo predial tem função meramente declarativa”; “a presunção de que o direito registado pertence a pessoa em cujo nome está inscrito, pode ser ilidida por prova em contrário”.


 

  1. Quanto à questão colocada pela AT no sentido de saber se a ausência de registo impede a eficácia plena dos contratos de compra e venda de um veículo automóvel, podemos responder que, em certos casos, como por exemplo quando o mesmo veículo é vendido em momentos diferentes a mais do que um comprador, a ausência de registo pode ser impeditiva da eficácia plena do respectivo contrato.


 

  1. De facto, o nº 1 do artigo 5º do CRP, aplicável ao registo da propriedade automóvel, “ex-vi” do artigo 29º do referido Decreto-Lei nº 54/75, estipula em termos gerais que “os factos sujeitos a registo só produzem efeito contra terceiros depois da data do respectivo registo”.

O conceito de terceiro para efeitos do registo predial e concomitantemente do registo da propriedade automóvel, foi interpretado no acórdão de uniformização de jurisprudência de 18 de Maio de 1999 de forma restritiva, forma esta que veio a receber consagração legal no nº4 do artigo 5º do CRP nos termos do qual “terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si”, redacção que se manteve até hoje. (Ac. STJ 25.1.2001 – Proc. 299/00, 7ª Secção).


 

  1. Face à noção legal e jurisprudencial de “terceiro”, julgamos pacífico o entendimento de que a AT não preenche os requisitos daquela noção de “terceiro” não podendo, desta forma, invocar a ausência de registo para justificar a ineficácia dos contratos de compra e venda de veículos automóveis.


 

  1. Abordando de novo a questão de saber se o nº 1 do artigo 3º do CIUC consagra ou não uma presunção, face a todo o exposto, não podemos deixar de nos pronunciar pela afirmativa pelos fundamentos que antecedem sendo, em nossa opinião, a interpretação que melhor salvaguarda a unidade do sistema jurídico ficando assim o sentido daquela norma em harmonia com o artigo 7º do CRP aplicando-se, desta forma, também ao IUC as presunções aplicáveis ao registo automóvel, por força das regras do registo predial.


 

  1. Assim, se o comprador, novo proprietário do veículo, não providenciar o registo do seu direito de propriedade, presume-se que este direito continua a ser do vendedor podendo, todavia, esta presunção ser ilidida mediante prova em contrário, ou seja, prova por qualquer meio da respectiva venda (Cfr. arts. 1º do DL nº 54/75, 7º do CRP e 350º, nº 2, do CC).


 

  1. Nestes termos, somos de parecer que a AT não pode prevalecer-se da ausência de actualização do registo do direito de propriedade, para exigir o pagamento do imposto ao anterior proprietário em nome do qual o veículo se encontra registado se, por qualquer meio, lhe for apresentada prova bastante da respectiva venda.


 

  1. Acresce ser esta interpretação do nº1 do artigo 3º do CIUC a que, a nosso ver, melhor se identifica com os princípios a que a AT deve subordinar-se, designadamente, o princípio do inquisitório com vista à descoberta da verdade material.


 

  1. Sobre o princípio do inquisitório, na sua dissertação de doutoramento em Ciências Jurídico-Económicas na Faculdade de Direito de Lisboa, ALBERTO XAVIER escreveu: “o processo tributário gracioso tem como finalidade central a investigação dos factos tributáveis, com vista à sua prova e caracterização” (Cfr. Conceito e Natureza do Acto Tributário, Almedina, 1972, p. 147).


 

Em resposta à pergunta de como proceder à investigação e valoração dos factos, este ilustre fiscalista responde da seguinte forma: “ a este quesito a resposta do Direito Fiscal é bem clara. Dominado todo ele por um princípio de legalidade tendente à protecção da esfera privada dos arbítrios do poder, a solução não poderá deixar de consistir em submeter a investigação a um princípio inquisitório e a valoração dos factos a um princípio de verdade material” (loc. cit., p.147).

E, mais à frente refere: “ a instrução do processo tem como finalidade a descoberta da verdade material no que toca ao seu objecto; e daí a lei fiscal conceder aos seus órgãos de aplicação meios instrutórios vastíssimos que lhe permitam formar a convicção da existência e conteúdo do facto tributável” (loc. cit., p. 150).


 

  1. Esta doutrina mantém toda a sua actualidade aparecendo hoje em dia reforçada pelos princípios fundamentais impostos à Administração Pública pelo artigo 266º da Constituição da República Portuguesa (Const. RP) e que a LGT acolheu, nomeadamente, nos seus artigos 55º e 58º.


 

  1. Num comentário a propósito do princípio do inquisitório a que se refere o artigo 58º da LGT dizem DIOGO LEITE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA que a prossecução do interesse público imposto à AT obriga que seja “ ela própria a tomar a iniciativa de realizar as diligências que se afigurem como relevantes para a correcta averiguação da realidade factual em que deve assentar a sua decisão” (loc cit., p. 488).


 

  1. Referem os mesmos autores que o dever de imparcialidade que deve nortear a actividade da Administração “reclama que a Administração Tributária procure trazer ao procedimento todas as provas relativas à situação fáctica em que vai assentar a decisão, mesmo que elas tenham em vista demonstrar factos cuja prova seja contrária aos interesses patrimoniais da Administração” (loc. cit., p. 488).


 

  1. São ainda estes autores que transcrevendo o sumário de um acórdão do STA, anotam o seguinte: “1 – A Administração possui, na instrução dos procedimentos administrativos, uma larga margem de iniciativa (princípio do inquisitório) podendo proceder oficiosamente a diligências tendentes à verificação e comprovação dos factos alegados pelo interessado. A este só em princípio incumbe a prova dos factos constitutivos do direito ou interesse invocado (ónus da prova), cabendo à Administração um papel dinâmico na recolha dos elementos com relevância para a decisão. 2 – A falta de diligências reputadas necessárias para a construção da base fáctica da decisão afectará esta não só na hipótese de serem obrigatórias (violação do princípio da legalidade), mas também se a materialidade dos factos considerados não estiver comprovada ou se faltarem, nessa base, factos relevantes, alegados pelo interessado, por insuficiência de prova que a Administração deveria ter colhido (erro nos pressupostos de facto) (…) (Ac. do STA d 18.2.88, rec. 23175)”(loc. cit., pp. 488/489).


 

  1. Em casos como o que ora nos ocupa, o papel da Administração na recolha dos elementos com relevância para a decisão, designadamente a determinação do sujeito passivo, fica muito simplificado, tendo em conta o direito de participação na formação das decisões e deliberações que a Constituição da República Portuguesa reconhece aos cidadãos no seu artigo 267º. nº 5 e que o nº 1 do artigo 60º da LGT e o artigo 45º do CPPT concretizam no procedimento tributário. Em obediência a este direito de participação, os elementos novos suscitados pelos contribuintes no exercício da audição devem, obrigatoriamente, ser tidos em conta na decisão e na respectiva fundamentação devendo nesta ser mencionados e apreciados. (Cfr. art. 60º nº 7 da LGT).


 

  1. Neste contexto, julgamos legítimo que a AT comece por comunicar à pessoa que consta do registo automóvel o respectivo projecto de decisão e sua fundamentação para o exercício do direito de audição.

Todavia, se o titular do direito de audição no exercício deste direito, vier indicar e provar quem é o proprietário ou o locatário do veículo em causa, nada justifica, a nosso ver, que quer o anterior proprietário quer o locador sejam responsabilizados pelo pagamento do IUC devido.

  1. Em resumo, reafirmando o que vem sendo dito ao longo deste texto e pelas razões oportunamente apontadas:

  2. A norma constante do artigo 3º, nº 1, do CIUC, consagra uma presunção, que dizendo respeito a uma norma de incidência tributária admite sempre prova em contrário, de acordo com o estipulado no artigo 73º da LGT;

  3. O contrato de compra e venda tem natureza real, sendo o efeito real, face ao disposto no nº1 do artigo 408º, efeito do próprio contrato não ficando dependente de qualquer acto posterior, nomeadamente, o registo.

  4. A função essencial do registo automóvel é dar publicidade à situação jurídica dos veículos não surtindo o registo eficácia constitutiva, funcionando (apenas) como mera presunção ilidível da existência do direito, bem como da respectiva titularidade, tudo nos termos dele constante. A presunção de que o direito registado pertence à pessoa em cujo nome está inscrito, pode ser ilidida por prova em contrário.

  5. Não preenchendo a AT os requisitos da noção de terceiro para efeitos de registo, não pode prevalecer-se da ausência de actualização do registo do direito de propriedade para pôr em causa a eficácia plena do contrato de compra e venda e para exigir ao vendedor (anterior proprietário) o pagamento do IUC devido pelo comprador (novo proprietário) desde que a presunção da respectiva titularidade seja ilidida através de prova bastante da venda.

  6. Se na data da ocorrência do facto gerador do imposto vigorar um contrato de locação financeira que tem por objecto um automóvel, para efeitos do disposto no artigo 3º, nºs.1, e 2, do CIUC, sujeito passivo do IUC é o locatário mesmo que o registo do direito de propriedade do veículo se encontre feito em nome da entidade locadora, desde que esta faça prova da existência do referido contrato.

  7. Se nos termos de um contrato de locação financeira que tem por objecto um automóvel, na data da ocorrência do facto gerador do imposto, o veículo já tiver sido anteriormente alienado embora o direito de propriedade deste continue registado em nome do seu anterior proprietário, para efeitos do disposto no artigo 3º, nº1, do CIUC, sujeito passivo do IUC é o novo proprietário, desde que seja apresentada prova bastante da venda que ilida a presunção do registo.


 

DOS MEIOS DE PROVA APRESENTADOS


 

  1. Relativamente aos veículos com as matrículas: … (Doc. de cobrança nº …de 2008 - € 54,74); … (Doc. de cobrança nº … de 2008 - € 19,05), a Requerente juntou cópias das respectivas facturas/recibos de venda, datadas, respectivamente, de 8.3.2005 e 29.6.2004 (onde em qualquer delas consta o valor do IVA cobrado), pelo que, em 2008, na data da ocorrência dos respectivos factos geradores de imposto, já não era proprietária dos referidos veículos, verificando-se, deste modo, ilididas as presunções consagradas no artigo 3º, nº 1, do CIUC e 7º do CRP, não sendo nestes casos a Requerente sujeito passivo do IUC que lhe foi notificado.


 

  1. Quanto aos seguintes restantes veículos: … (Doc. de cobrança nº … de 2008 - € 53,81); … (Doc. de cobrança nº … de 2008 - € 20,06); … (Doc. de cobrança nº … de 2008 – € 19,86), a Requerente juntou cópias dos respectivos contratos de locação financeira vigentes à data da ocorrência dos competentes factos geradores do imposto, pelo que pelas razões supra apontadas, sujeitos passivos do IUC são, nos termos do disposto no artigo 3º, nº 2, do CIUC, os respectivos locatários identificados em todos os contratos.


 

  1. Na ausência de qualquer oposição por parte da AT, relativamente aos documentos que a Requerente juntou ao presente pedido de pronúncia arbitral e a que aludem os precedentes pontos 152 e 153, não vê este Tribunal razões para os pôr em causa.


 

CONCLUSÃO


 

  1. Conclui-se, assim, que quando, à data da ocorrência dos factos tributários, a AT considera a Requerente proprietária dos veículos a que este processo se refere e como tal sujeito passivo do imposto, unicamente com base no registo quando, naquela data, já não é proprietária dos mesmos, comete um erro de facto sobre os pressupostos e portanto violação de lei.

Tendo os actos de liquidação em causa neste processo assentado na ideia de que o artigo 3º, nº1, do CUIC não consagra uma presunção ilidível e quando considera que na vigência de um contrato de locação financeira à data da ocorrência do facto tributário, sujeito passivo do IUC é o locador em vez do locatário, a AT faz errada interpretação e aplicação dos números 1 e 2 do artigo 3º do CIUC, cometendo um erro de direito sobre os pressupostos o que constitui violação de lei.

  1. Em resultado destes erros sobre os pressupostos de facto e de direito em que assentam os actos de liquidação a que se refere o presente pedido de declaração de ilegalidade da Requerente, tem este pedido de ser julgado procedente, justificando-se a anulação dos actos de liquidação em causa com todas as legais consequências.


 

QUESTÕES PREJUDICADAS

 

  1. Procedendo o pedido de pronúncia arbitral com base no vício de violação de lei, que assegura efectiva e estável tutela dos direitos da Requerente, fica prejudicado o conhecimento dos outros vícios que lhe são imputados.

É o que resulta do disposto no artigo 124º do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29º, nº 1, alínea a) do RJAT.


 

III – DECISÃO


 

Destarte, atento a todo o exposto, o presente Tribunal Arbitral decide:

  1. Julgar procedente por provado, com fundamento em vício de violação de lei, o pedido de anulação dos actos de liquidação de IUC a que se refere o pedido da Requerente, relativamente aos actos de liquidação mantidos válidos pela AT;

  2. Anular os actos de liquidação a que se referem os documentos de cobrança referidos nos números 152 e 153 desta Decisão;

  3. Condenar a AT a pagar as custas do presente processo.


 

VALOR DO PROCESSO


 

De harmonia com o disposto no artigo 3º, nº2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 167,52.


 


 

CUSTAS


 

Nos termos do disposto no artigo 22º, nº 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 306,00, em conformidade com o estabelecido na Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da AT.


 

Registe-se e notifique-se.


 

Lisboa, 15 de Outubro de 2013


 


 

O Árbitro


 


 

(José António de Jesus dos Anjos)


 

(A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia antiga)