Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 810/2022-T
Data da decisão: 2023-10-09  IVA  
Valor do pedido: € 439.683,40
Tema: IVA – Inversão do sujeito passivo; artigo 2.º, n.º 1, alínea g), do Código do IVA.
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DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Fernando Araújo (presidente), Ricardo Rodrigues Pereira e David Nunes Fernandes (vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:

 

I. Relatório

1. No dia 30 de dezembro de 2022, A... S.A.R.L., NIF ..., com sede ..., ..., Luxemburgo (doravante, Requerente), apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração:

(i) de ilegalidade do ato de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2022...;

(ii) de ilegalidade parcial dos seguintes atos tributários referentes a IVA:

  • Liquidação adicional n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativas ao IVA de dezembro de 2017, no valor de € 8.265,03; liquidação n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021 ..., relativas aos juros compensatórios correspondentes, no valor de € 1.143,97;
  • Liquidação adicional n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativas ao IVA de março de 2018, no valor de € 10.253,90; liquidação n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativas aos juros compensatórios correspondentes, no valor de € 1.321,48;
  • Liquidação adicional n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021 ..., relativas ao IVA de novembro de 2018, no valor de € 107.499,76; liquidação n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021 ..., relativas aos juros compensatórios correspondentes, no valor de € 10.967,91;
  • Liquidação adicional n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativas ao IVA de dezembro de 2018, no valor de € 24.410,79; liquidação n.º 2021... e demonstração de acerto de contas n.º 2021 ..., relativas aos juros compensatórios correspondentes, no valor de € 2.404,96;
  • Liquidação adicional n.º 2021... e demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativas ao IVA de janeiro de 2019, no valor de € 3.045,72; liquidação n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativas aos juros compensatórios correspondentes, no valor de € 290,72;
  • Liquidação adicional n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativas ao IVA de fevereiro de 2019, no valor de € 235.392,00; liquidação n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativas aos juros compensatórios correspondentes, no valor de € 21.694,75;
  • Liquidação adicional n.º 2021... e demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativas ao IVA de março de 2019, no valor de € 221.362,19; liquidação n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativas aos juros compensatórios correspondentes, no valor de € 19.673,94;
  • Liquidação adicional n.º 2021... e demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativas ao IVA de maio de 2019, no valor de € 612,17; liquidação n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativas aos juros compensatórios correspondentes, no valor de € 50,31;
  • Liquidação adicional n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativas ao IVA de junho de 2019, no valor de € 32.451,29; liquidação n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativas aos juros compensatórios correspondentes, no valor de € 2.549,87;
  • Liquidação adicional n.º 2021... e demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativas ao IVA de julho de 2019, no valor de € 235.922,63; liquidação n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativas aos juros compensatórios correspondentes, no valor de € 17.787,91;
  • Liquidação adicional n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativas ao IVA de agosto de 2019, no valor de € 2.966,77; liquidação n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021 ..., relativas aos juros compensatórios correspondentes, no valor de € 212,30;
  • Liquidação adicional n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativas ao IVA de outubro de 2019, no valor de € 19.053,14; liquidação n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativas aos juros compensatórios correspondentes, no valor de € 1.234,01;
  • Liquidação adicional n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativas ao IVA de novembro de 2019, no valor de € 170.231,11; liquidação n.º 2021... e demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativas aos juros compensatórios correspondentes, no valor de € 10.465,71;
  • Liquidação adicional n.º..., relativa ao IVA de 2018/02, no valor de € 1.306,55;
  • Liquidação adicional n.º ..., relativa ao IVA de 2018/07, no valor de € 14.680,64;
  • Liquidação adicional n.º..., relativa ao IVA de 2018/08, no valor de € 17.942,73;
  • Liquidação adicional n.º..., relativa ao IVA de 2018/09, no valor de € 3.695,54;
  • Liquidação adicional n.º..., relativa ao IVA de 2018/10, no valor de € 36.532,40.  

A Requerente juntou 9 (nove) documentos, não tendo requerido a produção de quaisquer outras provas.    

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, Requerida ou AT).

Como resulta do pedido de pronúncia arbitral (doravante, PPA), a Requerente alega, nuclearmente, o seguinte que passamos a citar:

“10.º A Requerente é uma entidade com sede no Luxemburgo, sem estabelecimento estável em Portugal, apenas possuindo neste território um registo para efeitos de IVA, com enquadramento no regime normal de periodicidade mensal em conformidade com o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 41.º do Código do IVA.

11.º Apesar de se encontrar registada em Portugal desde 12.03.2008, a Requerente apenas nomeou representante fiscal para efeitos de IVA a 01.08.2020, de acordo com o previsto n.º 6 do artigo 19.º da Lei Geral Tributária (LGT) e do artigo 30.º do CIVA, tal como expressamente reconhecido pela AT.

12.º Deste modo, encontra-se assente que nos períodos de IVA aqui em análise a Requerente ainda não tinha representante fiscal.

(…)

14.º No que concerne à atividade exercida pela Requerente, a mesma está registada com o CAE (Código de Atividade Económica) 61900 “Outras atividades de telecomunicações” que compreende, entre outros, o fornecimento de outras aplicações especializadas de telecomunicações operacionalmente ligadas com um ou mais sistemas de comunicações terrestres.

15.º Mais concretamente, a Requerente, no âmbito do Grupo B..., atua como central de compras e gestora da cadeia de abastecimento do Grupo, englobando todas as atividades estratégicas relacionadas com procurement e gestão da cadeia de abastecimento, pelo que todas as empresas pertencentes ao Grupo B... são suas clientes.

(…)

20.º No caso concreto de Portugal, a Requerente tem um único cliente – a C..., S.A.

(…)

25.º (…), todos os requisitos para a aplicação da regra de inversão local exposta na alínea g) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA estão preenchidos no presente caso, pelo que, em caso algum, a Requerente estava legalmente obrigada a liquidar IVA nas faturas que emitiu à sua cliente C... .

(…)

28.º A Requerente foi alvo de um procedimento de inspeção interna de âmbito parcial de IVA, com incidência sobre os períodos económicos de 2017, 2018 e 2019 e com o objetivo de controlo, no âmbito do acompanhamento permanente, dos elementos declarados pelo sujeito passivo.

29.º Na sequência do referido procedimento de inspeção, a Requerente foi notificada do Projeto de Relatório de Inspeção Tributária emitido pela AT (…) no âmbito do qual foi proposta uma correção em sede de IVA no valor total de € 1.076.603,05, relativa a:

(A) Correções referentes a serviços em que foi aplicada a regra de inversão do sujeito passivo no valor de € 411.420,20;

(B) Correções referentes a notas de crédito emitidas pela reclamante no valor de € 196.609,54;

(C) Correções referentes a notas de crédito emitidas por fornecedores no valor de € 468.573,31.

30.º Neste âmbito e no que respeita ao presente pedido de constituição de tribunal arbitral, a Requerente apenas pretende impugnar as correções efetuadas pela AT relativamente à aplicação da regra de inversão do sujeito passivo (parágrafo A acima).

31.º Esta correção, no valor de € 411.420,20, diz respeito às faturas emitidas pela Requerente à C..., SA, no valor total de €1.788.783,41 (…) sem IVA, cujo imposto não foi liquidado por ser aplicável a regra local de inversão do sujeito passivo (…).

(…)

36.º A Requerente pagou a o montante de imposto e respetivos juros indevidamente liquidados no dia 27 de outubro de 2021 (…).

37.º A 6 de janeiro de 2022 a Requerente, apresentou reclamação graciosa dos atos tributários melhor identificados no presente articulado (…).

38.º A 14 de junho de 2022, a AT notificou a Requerente do projeto de decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa (…), tendo aduzido, em suma, a seguinte argumentação:

  • Não estão demonstrados os requisitos para a aplicação da regra da inversão do sujeito passivo nos termos da aliena j) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA dado que:
  • Os serviços não consubstanciam serviços de construção civil por faltar um elemento essencial “o imóvel”;
  • As faturas emitidas pelo fornecedor (D... Portugal) foram emitidas com IVA a 23%;
  • São serviços passíveis de aplicação do critério da acessoriedade.
  • No que concerne à possível aplicação da regra de inversão exposta na alínea g) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA, a AT refere, surpreendentemente, que “sendo o reclamante um sujeito passivo de IVA registado em Portugal no regime normal, de periodicidade mensal, afigura-se que a situação em apreço não tem acolhimento (…)”.

(…)

41.º (…), na sequência da decisão de indeferimento da reclamação graciosa e após uma análise aprofundada do conjunto de serviços prestados, nomeadamente das especificidades dos equipamentos instalados, e reuniões com os técnicos para apurar, em detalhe, que serviços foram efetuados concretamente nos períodos de tributação aqui sindicados, a Requerente concluiu que numa apreciação global do conjunto de serviços prestado, os mesmos não podem ser considerados integralmente (e na sua maioria) como de construção civil para efeitos de aplicação da alínea j) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA.

(…)

49.º A Requerente discorda frontalmente da posição assumida pela AT (…), desde logo porquanto estamos perante uma entidade não residente, sem representante fiscal, que prestou serviços a um sujeito passivo português residente, pelo que sempre seria de aplicar o exposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea g) do Código do IVA.

(…)

54.º Na opinião da Requerente, sustentada na legislação comunitária e nacional, assim como na jurisprudência e doutrina administrativa da AT (…), para que o regime se aplique é necessário que a operação se localize em Portugal e estejam satisfeitas as seguintes condições:

  1. sujeito passivo prestador/transmitente não pode ter sede ou estabelecimento estável, nem disponha de representante em Portugal;
  2. O adquirente tem de ser um sujeito passivo devedor do imposto em Portugal.

(…)

80.º Também não se pode admitir que a AT venha alegar que a regra de inversão do sujeito passivo nos termos da alínea g) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA não pode ser aplicada porque a fatura (…) não tem uma menção específica a tal alínea.

81.º Com efeito, cumpre salientar que a Requerente ao colocar "The current authority requires the Buyer to reverse charge VAT on domestic supply of services by non-established taxable persons in Ship To location under Articles 194 and 36 of EC Directive" expressamente refere que não há lugar a liquidação de imposto por força da regra de «reverse charge», que em inglês se traduz na inversão do sujeito passivo e que o IVA é devido pelo adquirente.

(…)

87.º Pelo que, mesmo que se considere que o formalismo não se encontra integralmente cumprido, porque a Requerente ao invés de mencionar a alínea g) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA, mencionou o artigo 194 da Diretiva IVA (que recorde-se foi transposto para a legislação nacional e corresponde à alínea g) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA) deve atender-se, em todo o caso, à materialidade subjacente das operações.

(…)

94.º (…), a Requerente requer a este Tribunal Arbitral a anulação das liquidações de IVA ora sindicadas, na proporção do seu pedido, com o consequente reconhecimento do direito da Requerente ao reembolso das quantias de imposto indevidamente pagas a 27 de outubro de 2021, no valor total de € 411.420,20, acrescidas dos correspondentes juros compensatórios no valor de € 28.263,21, bem como dos juros indemnizatórios devidos nos termos do artigo 43.º da LGT, tudo com as demais consequências legais.”

 

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e notificado à AT em 3 de janeiro de 2023.

           

3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 15 de fevereiro de 2023, as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

Assim, em conformidade com o preceituado no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral coletivo foi constituído em 6 de março de 2023.

 

4. No dia 21 de abril de 2023, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta na qual impugnou os argumentos aduzidos pela Requerente, tendo concluído pela improcedência da presente ação, com a sua consequente absolvição do pedido.

A Requerida juntou aos autos o respetivo processo administrativo (doravante, PA)

A Requerida alicerçou a sua Resposta, nuclearmente, na seguinte argumentação que passamos a citar:

“6. A Requerente, tal como provado, foi a prestadora dos serviços em causa, tendo entendido, tal como defendeu em sede graciosa, (…), que a natureza dos serviços prestados se categorizava como de construção civil.

7. Como tal, atendendo a que nos anos em dissídio não dispunha de sede ou estabelecimento estável em território nacional, operava a regra da inversão do sujeito passivo, nos termos do disposto no artigo 2.º, n.º 1, al. j) do CIVA.

O que fez refletir nas faturas à E…, aí apondo a nota de que “The current authority requires the Buyer to reverse charge VAT on domestic supply of services by non-established taxable persons in Ship To location under Articles 194 and 36 of EC Directive”.

8. Só residualmente veio a Requerente defender-se evocando a legalidade do mecanismo de reverse charge, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, al. g) do CIVA, pelo fato de consubstanciar uma prestadora de serviços não registada em Portugal para efeitos de IVA, sem sede e estabelecimento estável em território nacional e sem o respetivo representante fiscal nos anos de 2017, 2018 e 2019.

9. Mas, (…), não foi este o motivo subjacente à emissão da faturação sem liquidação do IVA à taxa aplicável em território nacional – o fato tributário situa-se cá, no país de destino -, mas sim, e em exclusivo, o fato de a Requerente estar convencida de que os serviços que subcontratara à D... PORTUGAL, subsequentemente prestados e faturados à C... se tratarem de serviços de construção civil,

(…)

11. Atendendo a que, e isto em face do motivo que justificou o aludido reverse charge, se está perante uma autoliquidação indevida de imposto – dado não se estar perante serviços de construção civil, como de resto é confessado pela Requerente na sua p.i. – deveria, pois, ter promovido a correção das faturas, nos termos do artigo 78.º do CIVA, onde, ademais, deveria, nos termos do artigo 36.º, n.º 13 do CIVA, ter feito constar a expressão “IVA – autoliquidação”.

12. Não o tendo feito atempadamente, não pode agora aproveitar o motivo que fundamenta a ilegalidade que imputa às correções aritméticas, uma vez que não foi o que esteve na base da inversão do sujeito passivo.”

 

5. Por despacho arbitral, datado de 19 de junho de 2023, foi dispensada a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, foi fixado prazo para a apresentação de alegações escritas e foi, ainda, indicado o dia 6 de setembro de 2023 como data limite para a prolação da decisão arbitral.

Posteriormente, por despacho arbitral datado de 4 de setembro de 2023, foi prorrogado por dois meses, até 6 de novembro de 2023, o prazo para a prolação da decisão arbitral.

 

6. Apenas a Requerente apresentou alegações escritas, tendo essencialmente reiterado a posição anteriormente vertida no pedido de pronúncia arbitral.

 

II. Saneamento

7. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente, atenta a conformação do objeto do processo (cf. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º, n.ºs 1 e 2, do RJAT).

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O processo não enferma de nulidades.

Admite-se a cumulação de pedidos – estão em causa diversos atos tributários atinentes a IVA e correspetivas liquidações de juros compensatórios, sendo peticionada a respetiva declaração de ilegalidade e consequente anulação –, em virtude de se verificar que a procedência dos pedidos formulados pela Requerente depende essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito (cf. artigo 3.º, n.º 1, do RJAT).

Não existem quaisquer exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito e que cumpra conhecer.  

 

            III. Fundamentação

            III.1. De Facto

§1. Factos Provados                   

8. Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

            a) A Requerente é uma entidade com sede no Luxemburgo, sem estabelecimento estável em Portugal, apenas possuindo neste território um registo para efeitos de IVA, com enquadramento no regime normal de periodicidade mensal.

            b) Apesar de se encontrar registada em Portugal desde 12.03.2008, apenas em 01.08.2020 é que a Requerente nomeou representante fiscal para efeitos de IVA, pelo que, nos períodos de IVA aqui em causa (2017, 2018 e 2019), a Requerente ainda não tinha representante fiscal em Portugal.

            c) O representante fiscal para efeitos de IVA da Requerente é a “C..., S. A.”, NIF..., com sede na ..., n.º ...,  ..., Lisboa.

            d) No concernente à atividade exercida pela Requerente, esta está registada com o CAE 61900 “Outras atividades de telecomunicações” que compreende, entre outros, o fornecimento de outras aplicações especializadas de telecomunicações operacionalmente ligadas com um ou mais sistemas de comunicações terrestres.

            e) A Requerente, no âmbito do Grupo B..., atua como central de compras e gestora da cadeia de abastecimento do Grupo, englobando todas as atividades estratégicas relacionadas com procurement e gestão da cadeia de abastecimento, pelo que todas as empresas pertencentes ao Grupo B... são suas clientes.

            f) Neste âmbito, a Requerente centraliza os processos de compra e venda de equipamentos e serviços das empresas pertencentes ao Grupo B..., o que inclui equipamentos de rede, infraestruturas de rede, serviços profissionais de tecnologia de informação, software, terminais, cartões SIM, serviços de consultoria (fiscais e jurídicos), entre outros.

            g) Os bens transmitidos e os serviços prestados pela Requerente são previamente adquiridos aos seus fornecedores localizados por toda a Europa.

            h) No âmbito da sua atividade, a Requerente celebrou um contrato a nível mundial com a “E... LTD”, tendo em vista o fornecimento de bens e de serviços a nível global, os quais, posteriormente, são revendidos a cada entidade local do grupo B... .[cf. documento n.º 4 anexo ao PPA]       

i) Entre os bens e serviços subcontratados, encontram-se equipamentos de telecomunicações, mas também serviços de instalação de redes de telecomunicações em bens imóveis.

j) No caso concreto de Portugal, a Requerente tem como único cliente a empresa “ C..., S. A.”.

k) Para o efeito, e concretizando o contrato global que celebrou com a “E... LTD”, a Requerente celebrou um acordo com a “D... Portugal –...Unipessoal Lda.” nos termos do qual esta última presta um conjunto de serviços e bens relacionados com telecomunicações que se destinam a revenda à “C..., S. A.”. [cf. documento n.º 5 anexo ao PPA]

l) No âmbito da relação comercial estabelecida, a D... Unipessoal Lda.”, entre 2017 e 2019, prestou um conjunto de serviços à Requerente, executados diretamente nos espaços da “C..., S. A.”.

m) Serviços esses referentes à instalação de sistemas de telecomunicações em antenas e que a Requerente, posteriormente, prestou à “C..., S. A.”, ou seja a Requerente atuou, sucessivamente, como adquirente à “D... Unipessoal Lda.” e prestador/revendedor dos serviços à “C..., S. A.”.

n) Uma parte dos serviços adquiridos e prestados pela Requerente consistem na instalação, configuração e testagem de equipamentos de transmissão instalados numa infraestrutura de telecomunicações por forma a estabelecer a integração de sistemas e infraestruturas.

o) Por considerar estarem preenchidos todos os requisitos para a aplicação da regra de inversão do sujeito passivo relativamente aos aludidos serviços, a Requerente, nos períodos declarativos em apreço, faturou os seguintes montantes, sem IVA, à “ C..., S. A.”, tendo-os reportado no campo 8 das respetivas declarações periódicas de imposto:

2017

2018

2019

Total

€ 35.934,90

€ 618.105,92

€ 1.134.742,59

€ 1.788.783,41

 

p) A coberto das Ordens de Serviço n.ºs OI2019..., OI2019... e OI2019..., a Requerente foi sujeita a um procedimento inspetivo interno, de âmbito parcial (IVA), incidente sobre os períodos económicos de 2017, 2018 e 2019, realizado pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Lisboa, que culminou com a elaboração do respetivo Relatório de Inspeção Tributária (doravante, designado RIT), devidamente notificado à Requerente e que aqui se dá por inteiramente reproduzido, do qual resultou, além do mais, a seguinte correção atinente às aludidas faturas emitidas pela Requerente à “C..., S. A.” [cf. documento n.º 2 anexo ao PPA e PA]:

“Por conseguinte, tendo o SP declarado que todas as operações reportadas no campo 8 são operações em que foi aplicado o mecanismo de “inversão do sujeito passivo”, propõe-se a liquidação de IVA destas operações uma vez que não estão verificadas as condições para este enquadramento, o que perfaz um total de IVA a liquidar nos três anos de 411.420,20€, (…).”

q) Nessa sequência, a AT emitiu e notificou à Requerente os seguintes atos tributários [cf. documento n.º 1 anexo ao PPA]:

  • Liquidação adicional n.º 2021... e demonstração de acerto de contas n.º 2021 ..., relativas ao IVA de dezembro de 2017, no valor de € 8.265,03; liquidação n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021 ..., relativas aos juros compensatórios correspondentes, no valor de € 1.143,97;
  • Liquidação adicional n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021 ..., relativas ao IVA de março de 2018, no valor de € 10.253,90; liquidação n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021 ..., relativas aos juros compensatórios correspondentes, no valor de € 1.321,48;
  • Liquidação adicional n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021 ..., relativas ao IVA de novembro de 2018, no valor de € 107.499,76; liquidação n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021 ..., relativas aos juros compensatórios correspondentes, no valor de € 10.967,91;
  • Liquidação adicional n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021 ..., relativas ao IVA de dezembro de 2018, no valor de € 24.410,79; liquidação n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021 ..., relativas aos juros compensatórios correspondentes, no valor de € 2.404,96;
  • Liquidação adicional n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021 ..., relativas ao IVA de janeiro de 2019, no valor de € 3.045,72; liquidação n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativas aos juros compensatórios correspondentes, no valor de € 290,72;
  • Liquidação adicional n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021 ..., relativas ao IVA de fevereiro de 2019, no valor de € 235.392,00; liquidação n.º 2021... e demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativas aos juros compensatórios correspondentes, no valor de € 21.694,75;
  • Liquidação adicional n.º 2021... e demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativas ao IVA de março de 2019, no valor de € 221.362,19; liquidação n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativas aos juros compensatórios correspondentes, no valor de € 19.673,94;
  • Liquidação adicional n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativas ao IVA de maio de 2019, no valor de € 612,17; liquidação n.º 2021... e demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativas aos juros compensatórios correspondentes, no valor de € 50,31;
  • Liquidação adicional n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativas ao IVA de junho de 2019, no valor de € 32.451,29; liquidação n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativas aos juros compensatórios correspondentes, no valor de € 2.549,87;
  • Liquidação adicional n.º 2021... e demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativas ao IVA de julho de 2019, no valor de € 235.922,63; liquidação n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021 ..., relativas aos juros compensatórios correspondentes, no valor de € 17.787,91;
  • Liquidação adicional n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativas ao IVA de agosto de 2019, no valor de € 2.966,77; liquidação n.º 2021... e demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativas aos juros compensatórios correspondentes, no valor de € 212,30;
  • Liquidação adicional n.º 2021... e demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativas ao IVA de outubro de 2019, no valor de € 19.053,14; liquidação n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativas aos juros compensatórios correspondentes, no valor de € 1.234,01;
  • Liquidação adicional n.º 2021... e demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativas ao IVA de novembro de 2019, no valor de € 170.231,11; liquidação n.º 2021... e demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativas aos juros compensatórios correspondentes, no valor de € 10.465,71;
  • Liquidação adicional n.º..., relativa ao IVA de 2018/02, no valor de € 1.306,55;
  • Liquidação adicional n.º ..., relativa ao IVA de 2018/07, no valor de € 14.680,64;
  • Liquidação adicional n.º..., relativa ao IVA de 2018/08, no valor de € 17.942,73;
  • Liquidação adicional n.º..., relativa ao IVA de 2018/09, no valor de € 3.695,54;
  • Liquidação adicional n.º..., relativa ao IVA de 2018/10, no valor de € 36.532,40.  

r) No dia 27.10.2021, a Requerente efetuou o pagamento integral e tempestivo dos montantes apurados nas demonstrações de acertos de contas elencadas no facto provado anterior. [cf. documento n.º 7 anexo ao PPA]

s) Em 06.01.2022, a Requerente instaurou reclamação graciosa contra os atos tributários elencados no facto provado q), nos termos e com os fundamentos que aqui se dão por inteiramente reproduzidos [cf. documento n.º 8 anexo ao PPA e PA], a qual foi autuada sob o n.º ...2022..., tendo sido indeferida por despacho proferido pelo Diretor de Finanças Adjunto da Direção de Finanças de Lisboa, datado de 19.09.2022 [cf. documento n.º 3 anexo ao PPA e PA], cuja fundamentação aqui se dá por inteiramente reproduzida e de que importa destacar o seguinte [cf. documento n.º 9 anexo ao PPA e PA]: 

“(…), da análise efetuada à argumentação da reclamante e aos restantes elementos constantes dos autos, verifica-se que não logrou contrariar o concluído no RIT, pois, não demonstrou, de forma inequívoca, que os serviços prestados pelo seu fornecedor consubstanciam prestações de serviços de construção civil, suscetíveis de aplicação da regra de inversão do sujeito passivo, prevista na alínea j) do nº 1 do art.º 2º do CIVA (IVA liquidado pelo adquirente).

Ademais, nas faturas emitidas pela D... Portugal foi liquidado IVA à taxa de 23%, não tendo, assim, sido transferida para a reclamante a obrigação de autoliquidar o imposto.

Por outro lado, os serviços em causa não preenchem o conceito exigido, ou seja, o conceito de “obra”, por falta de um requisito essencial – o imóvel, pelo que não devem considerar-se abrangidos pelo âmbito do Anexo I do Ofício-Circulado nº 30101, de 2007-05-24, da DSIVA – Lista exemplificativa de serviços aos quais se aplica a regra da inversão, nem do regime de inversão do sujeito passivo a que se refere a supracitada norma.

Antes, reportam-se a prestações de serviços passíveis de aplicação do critério de acessoriedade, e por essa via, sujeitos a IVA e dele não isentos, não estando, por conseguinte, abrangidos pelo mecanismo do “reverse charge”, conforme foi o entendimento dos SIT.

Relativamente à argumentação tecida em torno do eventual enquadramento da situação em apreço na alínea g) do nº 1 do art.º 2º do CIVA, ou nas regras de localização previstas na a) do nº 6 do art.º 6º do CIVA, temos a referir que, sendo a reclamante um sujeito passivo de IVA registado em Portugal no regime normal, de periodicidade mensal, afigura-se que a situação em apreço não tem acolhimento nas normas mencionadas, pelo que a argumentação apresentada não colhe provimento.”

t) No dia 30.12.2022, a Requerente apresentou o pedido de constituição de tribunal arbitral que deu origem ao presente processo. [cf. Sistema de Gestão Processual do CAAD]

 

§2. Factos não Provados

9. Com relevo para a apreciação e decisão da causa, não há factos que não se tenham por provados.

 

§3. Motivação quanto à Matéria de Facto

10. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, à face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

O Tribunal não se pronunciou sobre o demais vertido nos articulados das partes por constituírem afirmações conclusivas e/ou juízos de direito – e que, por isso, não podem ser objeto de uma pronúncia em termos de “provado” ou “não provado” – ou por se tratar de factualidade irrelevante à boa decisão da causa.

A convicção do Tribunal fundou-se nos factos articulados pelas partes, cuja adesão à realidade não foi posta em causa e no acervo probatório carreado para os autos (incluindo o processo administrativo), o qual foi objeto de uma análise crítica e de adequada ponderação à luz das regras da racionalidade, da lógica e da experiência comum e segundo juízos de normalidade e razoabilidade.

 

            III.2. De Direito

§1. O thema decidendum

11. Conforme delimitação expressamente feita pela própria Requerente, neste processo apenas está em causa a (i)legalidade parcial dos atos tributários elencados no facto provado q), concretamente na parte em que radicam nas correções em sede de IVA referentes aos aludidos serviços prestados pela Requerente à “C..., S. A.”, em que foi aplicada a regra de inversão do sujeito passivo, no valor de € 411.420,20 (quatrocentos e onze mil quatrocentos e vinte euros e vinte cêntimos).

Assim, a questão jurídico-tributária que está no epicentro do dissídio entre as partes e que, por isso, o Tribunal é chamado a apreciar e decidir é respeitante à incidência subjetiva de IVA relativamente aos serviços prestados e faturados pela Requerente à “C..., S. A.”, nos períodos declarativos em apreço (2017, 2018 e 2019), no montante total de € 1.788.783,41 (cf. facto provado o)).

Também como delimitado pela própria Requerente, está, concretamente, em causa dilucidar qual deva ser a incidência subjetiva de IVA em prestações de serviços localizadas em Portugal, realizadas por sujeitos passivos apenas com registo de IVA em Portugal, isto é, sem sede, estabelecimento estável, domicílio ou representante fiscal neste país, a adquirentes que sejam sujeitos passivos deste imposto; efetivamente, como é afirmado no pedido de pronúncia arbitral, [s]endo verdade que alguns dos serviços aqui elencados são efetuados com recurso a trabalhos típicos de construção civil, a análise exaustiva efetuada pela Requerente permitiu concluir – ao contrário do que era a sua convicção inicial – que os serviços por si prestados não se enquadram no conceito previsto no regime de inversão plasmado na alínea j) do n.º 1 do artigo 2º do CIVA”.

A resposta que for dada àquela questão será, naturalmente, determinante para o juízo a emitir quanto à (i)legalidade dos atos tributários controvertidos.

O Tribunal é, ainda, chamado a pronunciar-se sobre o reembolso dos montantes de imposto e de juros compensatórios (indevidamente) pagos, acrescidos de juros indemnizatórios.

 

§2. Enquadramento legal

12. A disciplina cuja aplicação se discute na presente ação arbitral foi introduzida em Portugal, no Código do IVA, com a aprovação do Decreto-Lei n.º 179/2002, de 3 de agosto, ao abrigo da autorização legislativa constante do artigo 15.º da Lei n.º 16-A/2002, de 31 de maio, nos seguintes termos:

“Artigo 15.º

Transposição da Diretiva n.º 2000/65/CE, do Conselho, de 17 de outubro

Fica o Governo autorizado a transpor para a ordem jurídica nacional a Diretiva n.º 2000/65/CE, do Conselho de 17 de outubro, que altera a Diretiva n.º 77/388/CEE, no que diz respeito à determinação do devedor do IVA.”

 

“Artigo 2.º

Alterações ao Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado

Os artigos 2.º, 7.º, 26.º, 29.º e 70.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 394–B/84, de 26 de dezembro, passam a ter a seguinte redação:

«Artigo 2.º

1 – São sujeitos passivos do imposto:

(…)

g) As pessoas singulares ou coletivas referidas na alínea a), que sejam adquirentes em transmissões de bens ou prestações de serviços efetuadas no território nacional por sujeitos passivos que aqui não tenham sede, estabelecimento estável ou domicílio nem disponham de representante nos termos do artigo 29.º [à data dos factos e atualmente, artigo 30.º]

(…)»”

 

13. Este regime veio introduzir uma exceção à regra geral que se extrai do cotejo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 29.º, n.º 1, do Código do IVA, segundo a qual o IVA deve ser liquidado pelo transmitente dos bens ou prestador dos serviços:

“Artigo 2.º

Incidência subjetiva

1 – São sujeitos passivos do imposto:

  1. As pessoas singulares ou coletivas que, de um modo independente e com carácter de habitualidade, exerçam atividades de produção, comércio ou prestação de serviços, incluindo as atividades extrativas, agrícolas e as das profissões livres, e, bem assim, as que, do mesmo modo independente, pratiquem uma só operação tributável, desde que essa operação seja conexa com o exercício das referidas atividades, onde quer que este ocorra, ou quando, independentemente dessa conexão, tal operação preencha os pressupostos de incidência real do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) ou do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC);

(…)”

“Artigo 29.º

Obrigações em geral

1 – Para além da obrigação do pagamento do imposto, os sujeitos passivos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º devem, sem prejuízo do previsto em disposições especiais:

  1. (…)
  2. Emitir obrigatoriamente uma fatura por cada transmissão de bens ou prestação de serviços, tal como vêm definidas nos artigos 3.º e 4.º, independentemente da qualidade do adquirente dos bens ou destinatário dos serviços, ainda que estes não a solicitem, bem como pelos pagamentos que lhes sejam efetuados antes da data da transmissão de bens ou da prestação de serviços;
  3. Enviar mensalmente uma declaração relativa às operações efetuadas no exercício da sua atividade no decurso do segundo mês precedente, com a indicação do imposto devido ou do crédito existente e dos elementos que serviram de base ao respetivo cálculo;

(…)”

O regime especial que ficou consagrado na alínea g) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA alarga o âmbito de incidência subjetiva, conforme refere o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 179/2002, de 3 de agosto, “tornando sujeito passivo do imposto o próprio adquirente dos bens ou dos serviços, quando este, dispondo de sede, estabelecimento estável ou domicílio no território nacional, efetue no exercício de uma atividade sujeita a imposto, ainda que dele isenta, aquisições de bens ou serviços no território nacional a entidades não residentes, que nele não disponham de estabelecimento estável, nem tenham procedido à nomeação de representante fiscal”.

Ademais, o dever de autoliquidação do IVA pelo adquirente nas situações consagradas na alínea g) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA, relativamente a todos os serviços que lhe sejam prestados no âmbito da sua atividade, resulta sublinhado pelo n.º 5 deste mesmo artigo 2.º.

 

14. A respeito de questão idêntica à que está em causa neste processo e, concretamente, quanto ao citado regime legal, foi aduzido o seguinte na decisão arbitral proferida no processo n.º 543/2018-T que, data venia, aqui acolhemos:

“48.  É sabido que o IVA é um imposto harmonizado pelo direito europeu, sendo o Código do IVA português o resultado da transposição da chamada «Sexta Diretiva», vigente à data da adesão de Portugal à, então, Comunidade Económica Europeia. A Sexta Diretiva foi revogada e substituída pela atual «Diretiva IVA», em vigor desde 1 de janeiro de 2007, sem que, contudo, esta última, tenha introduzido alterações significativas, razão pela qual ficou conhecida por «Recast Directive» ou Diretiva de Reformulação, limitando-se, em geral, à reorganização sistemática das normas.

49.     Interessa salientar que o direito europeu, quer na Sexta Diretiva, quer na Diretiva IVA, procede a uma distinção relevante, não transposta pelo legislador doméstico, que separa o conceito de sujeito passivo do de devedor do imposto e que, porventura, pode auxiliar na compreensão das questões suscitadas.

50.     No primeiro caso, trata-se da pessoa que reveste as propriedades que determinam a incidência subjetiva de IVA, independentemente da entidade sobre quem impende o dever de liquidação e pagamento do imposto, que pode ser distinta. A noção de sujeito passivo é recortada como «qualquer pessoa que exerça, de modo independente e em qualquer lugar, uma atividade económica, seja qual for o fim ou o resultado dessa atividade» (cf. artigo 9.º, n.º 1 da Diretiva IVA, equivalente ao artigo 4.º, n.º 1 da Sexta Diretiva, correspondente ao artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do Código do IVA).

51.     Já o devedor do imposto é caracterizado como a pessoa sobre a qual recai a obrigação de liquidação e pagamento do IVA. A regra geral, de que o artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do Código do IVA faz eco, é a da coincidência entre o sujeito passivo – que transmite os bens e/ou presta os serviços – e o devedor do imposto. Assim, o IVA é devido pelos sujeitos passivos que efetuem as transmissões de bens ou prestações de serviços, conforme estabelecido pelo artigo 193.º da Diretiva IVA (antes artigo 21.º, n.º 1, alínea a) I parte da Sexta Diretiva), «com exceção dos casos em que o imposto é devido por outra pessoa, nos termos dos artigos 194.º a 199.º e 202.º». 

52.     Quando a referida coincidência entre o sujeito passivo transmitente/prestador dos bens/serviços e o devedor do IVA (este último, o obrigado tributário adstrito à sua liquidação e pagamento) não ocorre, estamos no domínio das exceções à regra geral aplicável às operações internas, materializadas na adoção do regime de inversão do sujeito passivo ou «reverse charge». Neste caso, passa a ser atribuída ao adquirente a obrigação de (auto)liquidação e pagamento do imposto que, em regra, seria do transmitente/prestador, num fenómeno de substituição tributária específico do IVA. Esta inversão pressupõe ou requer que o adquirente também seja um sujeito passivo do imposto, (numa simplificação anglo-saxónica, «Business to Business» – B2B), não operando quando este não revista essa qualidade («Business to Consumer» – B2C).

  1. Uma ressalva para circunscrever o que acima vem referido às operações internas. Com efeito, no caso das operações transfronteiriças, desde 1993 para as operações intracomunitárias de bens, e 2010 para as prestações de serviços («Pacote IVA»), o regime-regra B2C é o da inversão do sujeito passivo, com autoliquidação pelo adquirente.
  2. Contudo, como acima salientado, no regime interno do IVA, a inversão do sujeito passivo é conformada como uma exceção à regra-geral e a sua aplicação é facultativa por parte dos Estados-Membros, conforme postula o artigo 194.º da Diretiva IVA, em moldes semelhantes ao que já dispunha o seu antecessor, o artigo 21.º, n.º 1, alínea a), II parte da Sexta Diretiva:

«Artigo 194.º da Diretiva IVA

  1. Quando as entregas de bens ou prestações de serviços tributáveis forem efetuadas por sujeitos passivos que não se encontrem estabelecidos no Estado-Membro em que o IVA é devido, os Estados-Membros podem estabelecer que o devedor do imposto é o destinatário da entrega de bens ou da prestação de serviços.
  2. Os Estados-Membros determinam as condições de aplicação do disposto no n.º 1.».
  1. Concede-se, assim, aos Estados-Membros a prerrogativa de escolherem outro «devedor do imposto», quando se verifiquem duas condições cumulativas. A primeira é que as operações sejam efetuadas por sujeitos passivos que não se encontrem estabelecidos no Estado-Membro onde a operação é localizada e, em consequência, o IVA devido (de acordo com os critérios de incidência espacial e de competência tributária dos Estados-Membros). A segunda é que o devedor do imposto seja o destinatário (adquirente) dessas operações.
  2. Como atrás referido, idêntico regime resultava já do artigo 21.º, n.º 1, alínea a), II parte da Sexta Diretiva, na redação vigente à data da alteração do artigo 2.º, n.º 1 do Código do IVA, quando foi introduzida a respetiva alínea g), em apreciação. Dispunha aquela norma comunitária, sob a epígrafe «Devedor do imposto à Fazenda Pública», que: «[n]o caso de as entregas de bens ou prestações de serviços tributáveis serem efetuadas por um sujeito passivo que não se encontre estabelecido no território do país, os Estados-Membros podem prever, nas condições por eles fixadas, que o devedor do imposto é o destinatário das entregas de bens ou prestações de serviços tributáveis;» (artigo 28.º-G da Sexta Diretiva, com as alterações introduzidas pela Diretiva n.º 2000/65/CE, do Conselho, de 17 de outubro de 2000 que alterou a determinação do devedor do IVA).
  3. Deste modo, com a introdução da alínea g) ao n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA, concretizada em 2002, o legislador nacional exerceu expressamente a liberdade de escolha – conferida pelo direito europeu – de selecionar um «devedor do imposto» distinto do sujeito passivo transmitente dos bens (ou prestador dos serviços). Pretende com isto dizer-se que se tratou de uma opção expressa do legislador nacional e não de um regime imperativo predeterminado de fonte europeia.
  4. Esta liberdade de escolha tem limitações que a própria Diretiva IVA enuncia e que importa escrutinar, sem prejuízo da modelação pelo direito interno de condições não reguladas pelo direito europeu. Com efeito, por um lado, o mecanismo de inversão do sujeito passivo será aplicável se (e apenas se) o sujeito passivo fornecedor dos bens [prestador dos serviços, no presente processo] não se encontrar estabelecido em Portugal, país onde as operações de transmissão de bens em análise nos presentes autos arbitrais são localizadas [o mesmo acontecendo com as prestações de serviços em causa no presente processo]; e, por outro lado, o «devedor do imposto» tem de ser o destinatário (adquirente) dos bens.
  5. Afigura-se que o regime de inversão do sujeito passivo estabelecido no artigo 2.º, n.º 1, alínea g) do Código do IVA respeita tais parâmetros. Com efeito, a sua aplicação é determinada quando as transmissões de bens (ou prestações de serviços) sejam efetuadas (leia-se, localizadas) em território nacional por «sujeitos passivos que aqui não tenham sede, estabelecimento estável ou domicílio, nem disponham de representante» e designa como devedor do IVA os adquirentes que sejam sujeitos passivos deste imposto.
  6. De notar que, de acordo com o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 179/2002, de 3 de agosto, o legislador português pretendeu que a regra da inversão do sujeito passivo apenas se aplicasse quando o adquirente, sujeito passivo, tivesse sede, estabelecimento estável ou domicílio no território nacional. Esta restrição, no entanto, não ficou refletida na letra da lei, que não distingue entre adquirentes estabelecidos e não estabelecidos, parecendo viabilizar a interpretação de que abrange qualquer adquirente sujeito passivo de IVA – i.e., que se dedique ao exercício de uma atividade económica – independentemente do seu local de estabelecimento. Tal solução encerra, porém, dificuldades práticas significativas que nos conduzem a uma interpretação distinta que não interessa aqui aprofundar, pois a liquidação de IVA impugnada apenas tem por objeto transmissões de bens [prestações de serviços, no presente processo] efetuadas a adquirentes estabelecidos em Portugal.”

 

§3. O caso concreto: subsunção normativa

15. Feito o necessário enquadramento legal, importa agora subsumir-lhe o caso concreto, a fim de aquilatar se se mostram, ou não, preenchidas as condições normativas de que depende a inversão do sujeito passivo estatuída no artigo 2.º, n.º 1, alínea g), do Código do IVA, a fim de ficarmos habilitados a aferir a (i)legalidade dos atos tributários controvertidos.

  

§3.1. Primeira condição: prestador é sujeito passivo de IVA que não tem sede ou estabelecimento estável, nem dispõe de representante em Portugal

16. A Requerente é uma sociedade de direito luxemburguês (cf. facto provado a)) que se dedica a uma atividade comercial (cf. facto provado d)), sendo, por isso, enquadrável como sujeito passivo de IVA. Como resultou provado, a Requerente não dispõe de sede, estabelecimento estável nem, nos períodos de IVA aqui em causa (2017, 2018 e 2019), de representante fiscal em Portugal (cf. factos provados a) e b)); contudo, a Requerente obteve um número de identificação fiscal apenas para efeitos de IVA, ou seja, encontra-se registada em território nacional para efeitos deste imposto (cf. facto provado a)).

            O Regulamento de Execução (UE) n.º 282/2011 do Conselho, de 15 de março de 2011, que estabelece medidas de aplicação da Diretiva IVA, determina no n.º 3 do seu artigo 11.º que “O facto de dispor de um número de identificação IVA não é em si mesmo suficiente para se considerar que o sujeito passivo dispõe de um estabelecimento estável”.

Com efeito, como decorre dos n.ºs 1 e 2 do mesmo artigo 11.º, para efeitos de IVA e, concretamente, no concernente às prestações de serviços, um estabelecimento estável pressupõe um grau suficiente de permanência e uma estrutura adequada, em termos de recursos humanos e técnicos, que lhe permitam quer receber e utilizar os serviços que são prestados para as necessidades próprias desse estabelecimento, quer efetuar as prestações de serviços que fornece.     

            Não existe, pois, qualquer dúvida de que, em Portugal, a Requerente dispõe apenas de um registo para efeitos de IVA, não se encontrando aqui nem sediada, nem estabelecida. Deste modo, a Requerente

preenche os pressupostos de aplicação do regime de “reverse-charge” nas operações ativas – transmissões de bens – que efetua a outros sujeitos passivos de IVA em território nacional. Dito de outro modo, a regra de inversão do sujeito passivo é aplicável independentemente de o transmitente dos bens (ou prestador dos serviços, se for o caso) ter um “registo de IVA” em Portugal. Tanto pode ser um sujeito passivo registado, como não registado, desde que não esteja estabelecido no território nacional, nem aqui tenha designado representante.

Com efeito, o artigo 2.º, n.º 1, alínea g) do Código do IVA determina como condição negativa do regime de inversão do sujeito passivo, que o fornecedor tenha sede, estabelecimento ou representante local, não fazendo qualquer referência ao registo de IVA. Por outro lado, a fonte normativa de direito europeu, o artigo 194.º da Diretiva IVA também apela ao conceito de estabelecimento, que é, como vimos acima, inconfundível com o de registo de IVA.

Por outro lado, o registo de IVA é uma figura que existe desde 1993, tendo surgido com a implementação do regime intracomunitário de bens, pelo que em 2002 não constituía novidade suscetível de fundar uma incompletude não intencional do plano do legislador.” (decisão arbitral proferida no processo n.º 543/2018-T).

 

§3.2. Segunda condição: adquirente é sujeito passivo devedor do IVA em Portugal

17. A segunda condição de aplicabilidade do regime de inversão do sujeito passivo, resultante do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea g), do Código do IVA, também se encontra satisfeita no caso concreto, uma vez que foi a única cliente portuguesa da Requerente – a “C..., S. A.”, adquirente dos referenciados serviços (cf. facto provado j)) – a assumir o cumprimento das obrigações declarativas e prestativas de IVA associadas às aludidas prestações de serviços realizadas pela Requerente, recaindo sobre si a obrigação de proceder à devida autoliquidação do imposto.

 

18. Em conclusão, a Requerente, ao aplicar a regra de inversão do sujeito passivo nas prestações de serviços realizadas em território nacional, à sua cliente portuguesa “C..., S. A.”, e, por isso, não liquidando IVA nas respetivas faturas, mais não fez do que aplicar a lei, concretamente, o disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea g), do Código do IVA.

 

19. Nesta conformidade, não tem cabimento o entendimento da AT no sentido de que o enquadramento do caso concreto no artigo 2.º, n.º 1, alínea g), do Código do IVA está prejudicado pelo facto de a Requerente ser “um sujeito passivo de IVA registado em Portugal no regime normal, de periodicidade mensal”.

Com efeito, a circunstância de a Requerente dispor de um “registo de IVA” em Portugal, não afasta a aplicação do regime de inversão do sujeito passivo previsto no artigo 2.º, n.º 1, alínea g), do Código do IVA; regra que, aliás, coexiste com as situações em que é devida a aplicação da alínea a) do n.º 1 do mesmo artigo, sempre que se verifiquem os pressupostos de aplicação desta.

Mais, como a própria Requerente bem salienta, tem de estar registada, para efeitos de IVA, em Portugal pois “adquire bens a entidades residentes em outros Estados Membros, pelo que tem de estar registada em Portugal para efeitos de IVA por forma a reportar as aquisições intracomunitárias de bens que faz” (cf. facto provado g)).

 

20. Ademais, também não pode ser acolhida a posição da AT no sentido de que não foi a regra de inversão do sujeito passivo, tal qual está consagrada no artigo 2.º, n.º 1, alínea g), do Código do IVA, “o motivo subjacente à emissão da faturação sem liquidação do IVA à taxa aplicável em território nacional (…), mas sim, e em exclusivo, o fato de a Requerente estar convencida de que os serviços que subcontratara à D..., subsequentemente prestados e faturados à C... se tratarem de serviços de construção civil”.

Porquanto, como é dito no RIT e a Requerente demonstra através da fatura que, sob o documento n.º 6, anexou ao PPA, nas faturas por si emitidas à “C..., S. A.” foi colocada a seguinte menção: “The current authority requires the Buyer to reverse charge VAT on domestic supply of services by non-established taxable persons in Ship To location under Articles 194 and 36 of EC Directive”; ora, decorre do n.º 1 do artigo 194.º da Diretiva IVA que [q]uando as entregas de bens ou prestações de serviços tributáveis forem efetuadas por sujeitos passivos que não se encontrem estabelecidos no Estado-Membro em que o IVA é devido, os Estados-Membros podem estabelecer que o devedor do imposto é o destinatário da entrega de bens ou da prestação de serviços”, sendo que a alínea g) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA espelha, precisamente, o exercício pelo legislador nacional dessa liberdade de escolha de selecionar um “devedor do imposto” distinto do sujeito passivo transmitente dos bens ou prestador dos serviços.

Alega, ainda, a AT que, como decorrência do n.º 2 do artigo 194.º da Diretiva IVA, no qual se estatui que [o]s Estados-Membros determinam as condições de aplicação do disposto no n.º 1”, foi estabelecido no n.º 13 do artigo 36.º do Código do IVA que, nas situações em que se aplica o mecanismo de inversão do sujeito passivo, as faturas emitidas pelo transmitente dos bens ou prestador dos serviços devem conter a expressão “IVA-autoliquidação”, “não devendo ser negligenciados os requisitos formais aplicáveis”. Resulta do anteriormente dito que nas faturas emitidas pela Requerente à “C..., S. A.” foi feita expressa menção à regra de inversão do sujeito passivo, embora em língua inglesa (de fácil e corrente apreensão e tradução para português) e por referência à respetiva norma da Diretiva IVA.

Mas mesmo que assim não fosse, ou seja, se nenhuma menção à inversão do sujeito passivo tivesse sido aposta nas referidas faturas, ainda assim não poderia resultar prejudicada a aplicação de tal regra no caso concreto pois, a preterição de tal formalidade, nunca poderia ter por consequência a alteração das regras legais de incidência subjetiva do IVA.

Ainda neste conspecto, importa salientar que, segundo jurisprudência constante do TJUE: “A fatura é um elemento essencial do direito de um sujeito passivo à dedução do IVA pago a montante, nos termos da Diretiva 2006/112/CE relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (a seguir “Diretiva IVA). Com efeito, a fatura devidamente emitida tem sido classificada como o “título de acesso” ao direito à dedução, dado que tem uma “função de seguro” para a autoridade tributária nacional ao estabelecer um nexo entre a dedução do imposto pago a montante e o pagamento de imposto.” (cf. acórdão Lucreţiu Hadrian Vădan/Agenţia Naţională de Administrare Fiscală – Direcţia Generală de Soluţionare a Contestaţiilor, processo C-664/16, de 30 de maio de 2018).

Nesse sentido, o artigo 36.º do Código do IVA estabelece determinados requisitos na emissão de faturas ou documentos equivalentes, daí resultando que, para o Código do IVA, uma fatura passada em forma legal é a que respeite o estatuído no artigo 36.°; dito de outra forma, a fatura que não respeite todas as exigências previstas naquele artigo não é uma fatura passada na forma legal.

No entanto, a este propósito, importa aludir novamente à jurisprudência do TJUE, desta feita por referência ao acórdão Barlis, processo C‑516/14, de 15 de setembro de 2016, relativo à importância de ponderar as consequências de uma violação do artigo 226.º da Diretiva IVA sobre o exercício do direito à dedução à luz das finalidades prosseguidas pela referida norma. Reforçando a jurisprudência em matéria de vícios formais, o TJUE afirma que o princípio da neutralidade do IVA “exige que a devolução deste imposto pago a montante seja concedida se os requisitos materiais estiverem cumpridos mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais. Por conseguinte, quando a Administração Fiscal dispõe dos dados necessários para saber se os requisitos materiais foram cumpridos não pode impor condições suplementares ao direito do sujeito passivo de dedução do imposto que possam ter por efeito eliminar esse direito (v., neste sentido, acórdãos de 21 de outubro de 2010, Nidera Handelscompagnie, C‑385/09, EU:C:2010:627, n.° 42; de 1 de março de 2012, Kopalnia Odkrywkowa Polski Trawertyn P. Granatowicz, M. Wąsiewicz, C‑280/10, EU:C:2012:107, n.° 43; e de 9 de julho de 2015, Salomie e Oltean, C‑183/14, EU:C:2015:454, n.ºs 58, 59 e jurisprudência aí referida).”

No caso concreto, para além do acima referido, resulta meridianamente evidente que a AT dispõe de todos os dados necessários para verificar que, relativamente às aludidas faturas emitidas pela Requerente à “C..., S. A.”, estão preenchidos os requisitos da inversão do sujeito passivo, decorrentes do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea g), do Código do IVA.

A finalizar, atento o anteriormente dito, importa referir que inexiste qualquer fundamento de facto ou de direito que permita sustentar a posição da Requerida no sentido de que a Requerente deveria “ter promovido a correção das faturas, nos termos do artigo 78.º do CIVA”.

 

21. Nesta conformidade, impõe-se julgar procedente o vício de violação de lei imputado pela Requerente aos atos tributários controvertidos, por erro nos pressupostos de facto e de direito, consubstanciado na errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea g), do Código do IVA.

Consequentemente, os atos tributários controvertidos, enunciados no facto provado q), devem ser parcialmente anulados – na parte em que radicam nas correções em sede de IVA referentes aos aludidos serviços prestados pela Requerente à “C..., S. A.”, em que foi aplicada a regra de inversão do sujeito passivo, no valor de € 411.420,20 (quatrocentos e onze mil quatrocentos e vinte euros e vinte cêntimos) – e o ato de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2022... que os manteve, padece de idêntico vício invalidante e, por isso, deve ser anulado (cf. artigo 163.º, n.º 1, do CPA ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea d), do RJAT).   

 

§4. O reembolso dos montantes de imposto e de juros compensatórios pagos, acrescidos de juros indemnizatórios

22. O Tribunal é ainda chamado a pronunciar-se sobre o pedido de condenação da AT no reembolso dos montantes de imposto e de juros compensatórios indevidamente pagos pela Requerente, acrescidos de juros indemnizatórios.

O artigo 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT preceitua que [a] decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários”, [r]estabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”.

O assim estatuído está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT (aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT) que estabelece que [a] administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão”.

Embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários; com efeito, essa é a interpretação que está em sintonia com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira diretriz, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária”.

O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de atos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do estatuído no artigo 43.º, n.º 1, da LGT e no artigo 61.º, n.º 4, do CPPT.

Assim, o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, ao estatuir que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

Ora, dependendo o direito a juros indemnizatórios do direito ao reembolso de quantias pagas indevidamente, que são a sua base de cálculo, está ínsita na possibilidade de reconhecimento do direito a juros indemnizatórios a possibilidade de apreciação do direito ao reembolso dessas quantias.

Cumpre, então, apreciar e decidir.

 

23. Na sequência da declaração de ilegalidade e anulação dos atos tributários controvertidos, nos termos acima enunciados, há lugar ao reembolso das prestações tributárias indevidamente suportadas pela Requerente, por força do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal afigura-se essencial para restabelecer a situação que existiria se aqueles atos tributários não tivessem sido praticados nos termos em que foram.

Destarte, procede o pedido de reembolso à Requerente dos seguintes montantes indevidamente suportados: (i) € 411.420,20 (quatrocentos e onze mil quatrocentos e vinte euros e vinte cêntimos), a título de imposto; e (ii) o montante de juros compensatórios a ser determinado em execução de julgado.

 

24. Para além disso, tem ainda a Requerente direito a juros indemnizatórios, pois, como estatui o artigo 43.º, n.º 1, da LGT, “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.

Com efeito, afigura-se que a invalidade dos atos tributários controvertidos, nos termos acima enunciados, é imputável à AT por ter incorrido em vício de violação de lei, gerador de anulabilidade.

No caso concreto, tais juros indemnizatórios são calculados à taxa legal supletiva (cf. artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT, artigo 559.º do Código Civil e a Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril) sobre o montante de imposto de € 411.420,20 (quatrocentos e onze mil quatrocentos e vinte euros e vinte cêntimos) e o montante de juros compensatórios que se vier a apurar ter sido indevidamente suportado pela Requerente, sendo devidos desde a data – 27.10.2021 (cf. facto provado r)) – em que foram efetuados tais pagamentos indevidos de imposto e de juros compensatórios, até à data do processamento da respetiva nota de crédito, em que são incluídos (cf. artigo 61.º do CPPT).

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25. A finalizar, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras ou cuja apreciação seria inútil (artigo 608.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT), como sucede, designadamente, quanto ao subsidiariamente requerido reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia, atento o acima exposto que vai no sentido da sua desnecessidade.

 

IV. Decisão

            Nos termos expostos, acordam neste Tribunal Arbitral em julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente:

  1. Declarar ilegais e anular os atos tributários elencados no facto provado q), na parte em que radicam nas correções em sede de IVA referentes aos aludidos serviços prestados pela Requerente à “ C..., S. A.”, em que foi aplicada a regra de inversão do sujeito passivo, no valor de € 411.420,20 (quatrocentos e onze mil quatrocentos e vinte euros e vinte cêntimos), com as legais consequências;
  2. Declarar ilegal e anular o ato de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2022..., com as legais consequências; 
  3. Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a reembolsar à Requerente os seguintes montantes por esta indevidamente suportados, acrescidos de juros indemnizatórios, nos termos legais acima enunciados, com as legais consequências:
  1. € 411.420,20 (quatrocentos e onze mil quatrocentos e vinte euros e vinte cêntimos), a título de imposto; e,
  2. o montante de juros compensatórios a ser determinado em execução de julgado;
  1. Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento das custas do processo.

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V. Valor do Processo

Em conformidade com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e no artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, é fixado ao processo o valor de € 439.683,40 (quatrocentos e trinta e nove mil seiscentos e oitenta e três euros e quarenta cêntimos).

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VI. Custas

Em conformidade com o acima decidido e nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT e no artigo 4.º, n.º 4, e na Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o montante das custas é fixado em € 7.038,00 (sete mil e trinta e oito euros), a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

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Notifique.

 

Lisboa, 9 de Outubro de 2023.

 

O Presidente do Tribunal Arbitral,

 

(Fernando Araújo)

O Árbitro vogal (relator),

 

(Ricardo Rodrigues Pereira)

 

 

O Árbitro vogal,

 

 

(David Nunes Fernandes)