Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 800/2022-T
Data da decisão: 2023-07-11   
Valor do pedido: € 4.943,56
Tema: Troca de informações entre Estados; prova de residência fiscal (art. 8.º, nº 1, al) da Diretiva 2011/16/EU, art. 76.º, n.º 1 e 4, da LGT)
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Sumário:

1. Perante troca de informações em que as autoridades fiscais de França reportam às autoridades portuguesas (i) a não residência fiscal em França do requerente e (ii) a existência de rendimentos de trabalho do requerente efetuado em França, presume-se que essas informações correspondem à verdade, sem prejuízo da prova em contrário a cargo do sujeito passivo (art. 76.º, n.º 1 e 4, da LGT);

2. Perante isso, o requerente teria de demonstrar, por qualquer modo, que era afinal residente fiscal em França, no limite com declaração nesse sentido das autoridades fiscais de França (até porque se provou que o requerente declarou a situação em França com verdade e conhecimento); não o tendo feito, assume-se que tem residência fiscal em Portugal.

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Decisão arbitral

O árbitro singular Tomás Cantista Tavares, designado pelo CAAD para formar o Tribunal Arbitral singular, constituído em 28/2/2023, acorda no seguinte:

1. Relatório

A..., contribuinte..., com residência fiscal na Rua ..., ..., Vila Nova de Cacela (doravante Requerente), apresentou um pedido de constituição do tribunal arbitral singular, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n,º 1, al. a), 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1, todos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante AT), com vista à declaração de ilegalidade da liquidação de IRS relativa ao ano de 2017, no valor de 4.943,56€ (liquidação 2021...).

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação, nomeadamente com a notificação à AT. O árbitro comunicou a sua aceitação no prazo aplicável. As partes não manifestaram vontade de recusar a sua designação.

O tribunal arbitral foi constituído em 28/2/2023. A AT efetuou resposta, por impugnação – e enviou atempadamente o Processo Administrativo.

Em 16/5/2023, ocorreu a reunião do art. 18.º do RJAT, seguida de inquirição de testemunhas. As partes foram depois notificadas para apresentarem as alegações finais, e apenas o requerente as efetuou.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, como se dispõe no art. 2.º, n.º 1, al. a) e 4.º, ambos do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O processo não enferma de nulidades e não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

O requerente estriba a sua pretensão nos seguintes argumentos essenciais:

  1. Em 2017, não era residente fiscal em Portugal – apesar de se ter esquecido de efetuar a obrigação acessória de mudança da residência fiscal: não esteve em Portugal mais de 183 dias seguidos ou interpolados e não tinha em Portugal, uma habitação que fizesse pressupor a intenção atual de a manter como residência habitual; viveu em França onde trabalhou nesse país, numa empresa que exigia presença física constante.
  2. O incumprimento de obrigação acessória não pode implicar a tributação de acordo com um estatuto (de residente fiscal em Portugal) que não o tinha em 2017
  3. Invoca vária jurisprudência para acolher as suas pretensões, nomeadamente a sentença do CAAD no processo 63/2022-T, relativa à sua mesma e exata situação, mas relativa ao ano de 2016; e o tribunal, nesse acórdão, acolheu as pretensões do requerente, com a anulação da liquidação de IRS de 2016.

A requerida refuta esses argumentos, com base, em síntese, no seguinte:

  1. Por troca internacional de informações entre administrações fiscais, o Estado Francês notificou o Estado Português de que o requerente obteve rendimentos em França – e tal pressupõe que, para o Estado Francês, o requerente não é um não residente fiscal em França
  2. O requerente não elidiu a presunção de veracidade dessa declaração oficial (art. 76.º, n.º 4, da LGT); e em concreto, não juntou declaração emitida pelas autoridades francesas a atestar que em 2017 residia fiscalmente em França, o que facilmente poderia obter, nos termos do artigo 4.º da Convenção para evitar a Dupla Tributação celebrada entre Portugal e França
  3. Para além de que não declarou a mudança da sua residência fiscal para fora de Portugal.
  4. E perante tudo isso, entende a AT que o requerente não fez prova suficiente de que não tinha residência fiscal em Portugal no ano de 2017, devendo por isso ser tributado em Portugal pelo rendimento mundial, como residente fiscal, incluindo os rendimentos obtidos em França, como o que procede à liquidação impugnada.

 

2. Matéria de facto

2.1. Factos provados

Consideram-se provados os seguintes factos relevantes para a decisão:

  1. Em 2017, o requerente estava coletado em Portugal, como residente fiscal em Portugal;
  2. Em 2017, o requerente estava inscrito em França como não residente em França.
  3. Por troca automática de informações, as autoridades fiscais francesas informaram o Fisco Português que o requerente, com residência em Portugal (... FARO PORTUGAL) obteve rendimentos de trabalho em França, em 2017, no valor de 23.684€.
  4. Foi o requerente que se coletou em França – e fê-lo com todos os conhecimentos e sem qualquer erro na declaração (prova por confissão).

 

2.2. Factos não provados

Não se provou que o requerente, em 2017, fosse um não residente fiscal em Portugal.

 

2.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

Relativamente à matéria de facto, o tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe apenas selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada (art. 123.º, n.º 2, do CPPT e art. 607.º, n.º 3, do CPC, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, al. a) e e) do RJAT.

Os factos considerados provados constam de documentos, do consenso entre as partes e de prova por confissão, na declaração de parte na sessão efetuada no dia 16/5/2022. O requerente assegurou que foi ele que se coletou em França, que o fez com todo o conhecimento e sem qualquer erro. E perante isso, o tribunal tem de aceitar essa confissão da parte.

Por outo lado, o requerente não entrega qualquer prova concludente de que era residente fiscal em França, em 2017 – por exemplo, através de declaração do Fisco Francês, emitida ao abrigo da convenção dupla tributação entre os dois Estados.

Juntou declarações fiscais de rendimentos emitidas pelas autoridades fiscais de França, mas nelas nada se declara quanto à sua situação de residência fiscal em França (ou não residência). Aliás, nunca argumenta a sua situação fiscal em França, com base nesses documentos. Essa declaração tanto poderia ser emitida para residentes como para não residentes fiscais em França.

E perante o art. 76.º, n.º 4, da LGT – o ónus da prova é claramente do requerente, em face da troca de informações entre os Estados, ao abrigo da Diretiva 2011/16/EU – perante a informação entregue pelo Estado Francês ao Estado Português quanto à situação do requerente.

Mais ainda: o requerente nunca alegou que tentou obter essa prova junto das autoridades francesas, mas não a conseguiu por falta de colaboração do fisco francês ou por qualquer outro motivo.

O tribunal entende que essa prova era prévia ou pelo menos teria de ser efetuada em parelha, com o prova da não residência fiscal em Portugal. Porque o requerente teria de ser residente em algum Estado – ou em Portugal ou em França. Não pode configurar-se uma situação real e efetiva de dupla não residência fiscal. E dá prevalência à prova por confissão da parte (situação fiscal em França, em que se declarou como não residente), do que à tentativa de prova, por terceiros, da sua não residência fiscal em Portugal (por documentos de entidade patronal e por testemunha).  

Ou seja: a falta de elisão da presunção de veracidade constante da declaração do fisco francês (art. 76.º, n.º 1 e 4, da LGT) implica, para o tribunal, a não valorização da tentativa de prova de que o requerente não tinha residência fiscal em Portugal – seja o contrato de trabalho, declaração de entidade patronal francesa (de que suportava o alojamento do trabalhador), nem sequer a prova testemunhal de Ana Carolina Barbosa, também por ter uma relação afetiva com o requerente.

 

3. Matéria de direito

Através do mecanismo de troca de informações (art. 8.º, n.º 1, al. a) da Diretiva 2011/16/EU), o Fisco Francês informou o Fisco Português que o requerente, em 2017: a) era não residente fiscal em França, mas era-o em Portugal (por declaração do requerente ao Fisco francês); b) e que obteve rendimentos de trabalho efetuado em França.

Com efeito, só existe essa troca de informações, por parte de França, se nos registos em França o requerente aí estivesse coletado como não residente; se fosse residente fiscal em França, então o Fisco francês nada informaria o Fisco Português, porque a tributação do rendimento teria contornos totalmente domésticos, no Estado Francês. E mais ainda: perante esta situação, o requerente não provou a sua residência fiscal em França, ou que tivesse havido erro do Fisco Francês ou que a troca de informações se tivesse ficado a dever a qualquer outra situação, ainda que de forma hipotética ou que colocasse a dúvida sobre a sua fonte e razão de ser.

Essas informações oficiais (ao abrigo de convenções internacionais de assistência mútua) fazem fé de que são verdadeiras, porque fundamentadas – “sem prejuízo da prova em contrário do sujeito passivo ou interessado” (art. 76.º, n.º 4, da LGT).

Ora, o requerente não fez essa prova; não elidiu o ónus da prova que lhe competia:

  1. não provou que era afinal residente fiscal em França – entregando declaração do Fisco francês nesse sentido, ou qualquer outro meio de prova
  2. E provou, por confissão, que se coletou em França, como não residente fiscal em França – com total conhecimento do que fazia.

Repara-se: o fisco francês efetua a troca de informações, pois nos seus registos – como lhe foi declarado pelo requerente – o requerente não tem residência fiscal em França, mas em Portugal; e efetua a troca automática de informações, com indicação dos rendimentos obtidos em França.

E o requerente não elide a presunção do art 76.º, nº 4, da LGT. Esta falta manifesta de prova a cargo do requerente tem prevalência sobre a sua tentativa de provar que não tinha residência fiscal em Portugal, seja porque ambas as provas funcionam em parelha e em conjunto; seja, sobretudo e de forma concludente, por prevalência das informações oficiais (troca de informações entre França e Portugal), falta de inversão do ónus da prova (do art. 76.º, n.º 4, da LGT) e por confissão da parte (que confessou, nas declarações de parte, que se coletou em França, ele próprio, com total conhecimento do que fazia e declaração da verdade). Ora, se para França confessa que era residente fiscal em Portugal, não pode depois arguir o oposto, por mera conveniência para efeito deste processo.

Nesse sentido, considerando-se que o requerente era residente fiscal em Portugal, em2017, a liquidação adicional impugnada é legal, pois os residentes são tributados pelo rendimento mundial, incluindo na base tributária os rendimentos do trabalho obtidos no estrangeiro, nomeadamente em França, nos termos do art. 15.º, n.º 1, do CIRS, como efetuado e bem pela liquidação em disputa neste processo.

 

4. Decisão

De harmonia com o exposto, este Tribunal Arbitral:

  1. Julga totalmente improcedente o pedido da requerente
  2. Não anula e mantém na ordem jurídica a liquidação adicional de IRS de 2017 acima identificada
  3. Condena a requerente à totalidade das custas

 

5. Valor do processo

De harmonia com o disposto no art. 97.º-A, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 4.943,56€, indicado pela Requerente e sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

6. Custas

Nos termos do n.º 4 do art. 22.º do RJAT, fixa-se o montante das custas em 612,00€ (seiscentos e doze euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.

 

7. Comunicação ao Ministério Público 

Comunique-se ao Ministério Público, nos termos do artigo 17.º, n.º 3, do RJAT

Notifique-se

Porto, 11 de julho de 2023

O Árbitro singular

 

 

 

Tomás Cantista Tavares

 

 

(Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131º nº 5 do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29º nº 1 alínea e) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária)