Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 571/2023-T
Data da decisão: 2024-01-05  IRS  
Valor do pedido: € 104.442,23
Tema: IRS; mais valias, empresas associadas, pequena empresa, art. 43.º, n.º 3 e 4, do CIRS e art. 3.º, n.º 3, al. d), do anexo ao Dec. Lei n.º 372/2007.
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Sumário:

Uma sociedade é uma pequena empresa, nos termos e para os efeitos do art. 43.º, n.ºs 3 e 4, do CIRS (mais valia incluída em apenas 50% do seu valor), quando não está em associação com outra sociedade (não pequena empresa), quando as pessoas singulares (sócias comuns) não estão concertadas na gestão de ambas as sociedades e essas empresas não exercem as suas atividades, ou parte delas, no mesmo mercado ou em mercados contíguos (nos termos do art. 3.º, n.º. 3, al. d), do Anexo ao Dec. Lei n.º 372/2007).

 

DECISÃO ARBITRAL

Acordam em tribunal arbitral

I – Relatório

1. A..., B..., C... e D... pessoas singulares com os números de identificação fiscal (“NIF”)..., ..., ... e ... respetivamente, os dois primeiros casados entre si e com domicílio na Rua ..., n.º ..., ..., ...-... Leiria, e os restantes, casados entre si e residentes na ..., ..., ..., ...-... Leiria, (“doravante Requerentes”),

Requereram, em coligação e com cumulação de pedidos, a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, para apreciar a legalidade dos seguintes atos de liquidação adicional de IRS: liquidação adicional n.º 2023..., de 22.04.2023, e n.º 2023..., de 19.05.2023, referentes ao IRS de 2019, cada uma com o valor total a pagar (imposto e juros compensatórios) de 52.221,11€, emitidas pela Autoridade Tributária e Aduaneira, requerendo ainda o reembolso do imposto indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios.

 

Fundamentam o pedido, em síntese, nos seguintes termos.

As mais valias que efetuaram com a venda do capital que possuíam na sociedade “E..., SA” devem ser consideradas apenas em 50% do seu valor, porque se trata de uma pequena empresa, nos termos do anexo ao Dec. Lei n.º 372/2007, nos termos do art. 43.º, n.ºs 3 e 4, do CIRS.

À data da venda, e anos anteriores, essa sociedade, por si, tem menos de 50 trabalhadores e um volume de negócios ou balanço que não excede os 10 milhões de euros.

Aliás, por referência a 2018 e 2019, o IAPMEI certificou que a “E..., SA” era uma pequena empresa, o que faz presumir isso mesmo, e a AT não conseguiu ilidir essa presunção.

A “E..., SA” não pode ser considerada uma empresa associada da sociedade “F..., SA”, por não verificação dos requisitos do art. 3.º, n.º 3, do anexo ao Dec. Lei n.º 372/2007: as pessoas singulares (sócios, pessoas singulares, da “E... e F..., SA” e G...”) não atuaram concertadamente; e além disso, essas empresas não exerçam as suas atividades, ou parte delas, no mesmo mercado ou em mercados contíguos.

 

Na sua resposta, a Autoridade Tributária advoga, no entanto, que não se pode efetuar a exclusão de 50% das mais valias com a venda das partes sociais da E..., SA, tal como realizado pelos requerentes, por não se tratar de uma pequena empresa, nos termos do art. 43.º, n.º 3 e 4, do CIRC; concretamente, porque a E..., SA não é uma empresa autónoma, mas associada à Sociedade F..., SA – e no seu conjunto agregado já ultrapassa os limiares para ser qualificada como pequena empresa.

Nos termos do art. 3.º. n.º 3, do Anexo ao Dec. Lei n.º 372/2007 entende que as pessoas singulares atuaram concertadamente (na venda das partes sociais e negócios a montante) e que ambas as empresas (E..., SA e F..., SA) atuam no mesmo mercado ou em mercados contíguos, tinham os mesmos sócios, decorrem de cisão anterior, existe entre elas relação de clientela a quase 100%, existem dívidas entre elas de valor significativo, localizam-se na mesma sede.

 

2. Em 22 de novembro de 2023, foi proferido Despacho a dispensar a reunião do art. 18.º do RJAT, bem como a dispensar de alegações, tendo em conta a clareza dos argumentos das partes nas suas peças processuais, ausência de prova testemunhal e celeridade do processo e autonomia do tribunal da condução do processo.

 

            3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 11 de Outubro de 2023.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.

 

Cabe apreciar e decidir.

 

II - Fundamentação

Matéria de facto

4. A matéria de facto relevante para a decisão da causa é a seguinte:

a) A sociedade E..., S.A. (“E...”), com o NIF..., com sede na Rua ..., ..., ...-... Leiria, e com capital social de Euro 213.550,00, desenvolve a sua atividade na área da compra, venda e/ou arrendamento de todo o tipo de bens imóveis, bem como a sua gestão, administração e/ou exploração.

b) A sociedade F..., S.A. (“F...”), com o NIF..., com sede na Rua ..., ..., ...-... Leiria, e com capital social de Euro 1.300.000,00, desenvolve a sua atividade na área do comércio por grosso de artigos de papelaria, comércio de tabacaria, máquinas de escritório, informática, máquinas fotográficas, mobiliário, venda de impressos e formulários, relojoaria, sapataria, instrumentos musicais e drogaria.

c) Até à venda em 2019, o Requerente A..., detinha 8.542 ações da E... (20% do capital social) e 51.280 ações da F... (19.72% do capital social).

d) Até à venda, 2019, o Requerente C... detinha 8.542 ações da E... (20% do capital social) e 51.280 ações da F... (19.72% do capital social).

e) Em 7.10.2019, os Requerentes A... e C... alienaram a totalidade das 8.542 ações nominativas, por si detidas, no capital social da E..., pelo preço global de Euro 404.036,60, correspondendo a um preço de venda unitário de cada ação de Euro 47,30.

f) Em 18.05.2020, os Requerentes A... e B... procederam à entrega, conjunta, da respetiva declaração Modelo 3 do IRS, por referência aos rendimentos obtidos no ano de 2019, tendo declarado que sendo a E... uma pequena empresa, apenas 50% da mais valia é considerada para efeitos do IRS.

g) Na mesma data, os Requerentes C... e D... procederam também à entrega, conjunta, da respetiva declaração Modelo 3 do IRS, por referência aos rendimentos obtidos no ano de 2019, tendo declarado que sendo a E... uma pequena empresa, apenas 50% da mais valia é considerada para efeitos do IRS.

h) Em 11.10.2022, iniciou-se inspeção tributária a ambos os requerentes, desembocando em correções várias, entre as quais a não consideração da E... como uma pequena empresa.

i) Os requerentes procederam às regularizações voluntárias das demais correções, exceto ao tema dos autos (tributação da totalidade da mais-valia da venda da E..., por não ser considerada uma pequena empresa para o RIT).

j) Inconformados, os requerentes deduziram a presente ação arbitral contra as liquidações adicionais de IRS de 2019.

l) Em 17/5/2023, os Requerentes A... e B... procederam ao pagamento da liquidação por eles impugnada.

m) Em 10/7/2023, os Requerentes C... e D... procederam ao pagamento da liquidação por eles impugnada.

n) A F... e a E... resultaram de uma cisão em data anterior.

o) A E..., SA por si, é considerada uma pequena empresa – tem menos de 50 trabalhadores e volume de negócios e balanço é inferior a 10 M€.

p) A F..., SA por si não é uma pequena empresa.

q) A F... era quase a única cliente da E... representando uma percentagem de 99,80% e 100%, em 2018 e 2019 respetivamente.

r) A G..., em 2019 teve como únicas clientes a E... e a F... .

s) A F..., SA e E..., SA têm sede no mesmo local.

t) Embora a relação entre a F... e a E... fosse de cliente (a primeira) e fornecedora (a segunda), no final de 2018, a segunda  era devedora de valores avultados à primeira.

u) A E..., embora tenha sido constituída em 2018, só começou a emitir faturas em 2019, sendo que os únicos clientes que teve foram precisamente as outras 2 aludidas sociedades (F... e G...).

v) A G..., SA tinha cerca de 40% do capital social da sociedade E... e F..., SA (e o resto era detido pelos requerentes [irmãos entre si] e demais irmãos).  

 

Factos não provados

Não existem quaisquer outros factos não provados que sejam relevantes para a decisão da causa.

 

Motivação da matéria de facto

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição inicial e os constantes do processo administrativo apresentado pela Autoridade Tributária, que provam o argumentado pelas partes, e que não foram contraditados ou impugnados pela parte contrária.

 

Matéria de direito

6. As partes concordam com a questão jurídica destes autos: saber se a E..., SA é ou não uma pequena empresa para efeitos do art. 43.º, n.º 3 e 4, do CIRC: e será uma pequena empresa se for autonomizada e analisada por si; mas não será uma pequena empresa, caso seja considerada associada da F..., SA – nos termos do art. 3.º, n.º 3, do Anexo ao Dec. Lei n.º 372/2007.

O art. 3.º, n.º 3, do Dec. Lei 372/2007 (remetido pelo art. 43.º, n.º 4, do CIRS) estipula, no que ao caso importa: existem associação de empresas, quando, haja concertação de sócios (pessoas singulares) – que atuem concertadamente, desde que essas empresas (E... e F...) exerçam as suas atividades, ou parte delas, no mesmo mercado ou em mercados contíguos. Entende-se por mercado contíguo o mercado de um produto ou serviço situado diretamente a montante ou a jusante do mercado relevante.

Ou seja: para a aplicação deste preceito – é necessária a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: a) atuação concertada das pessoas singulares (no sentido do controlo conjunto de ambas sociedades); b) e que exerçam as mesmas atividades, no mesmo mercado ou em mercados contíguos (diretamente a montante ou a jusante do mercado relevante).

Ora, no processo, não está provada a atuação concertada dos sócios pessoas singulares na gestão das duas empresas (E... e F...); a decisão de venda conjunta não é suficiente para essa concertação, que se afere na gestão operacional dos negócios e não na decisão de venda; do mesmo modo, a existência de laços familiares entre os sócios, não se reconduz, ipso facto, a uma gestão concertada dos negócios das duas sociedades; nem tao pouco a existência de relações de fornecedor cliente com elevadas relações comerciais entre ambas; ou a verificação de dívidas entre ambas. A AT não introduz qualquer facto concreto para sustentar e provar essa concertação entre as pessoas singulares: uma decisão operacional; acordos de voto ou de gestão da empresa; só veicula alegações genéricas insuscetíveis de corporizar essa putativa concertação.

Além disso, e este argumento é decisivo, as duas sociedades não atuam significativamente no mesmo mercado (não exercem a mesma atividade) ou em mercados contíguos (diretamente a montante ou a jusante na cadeia económica). Como ficou provado, a E..., SA atua no mercado imobiliário; e a F..., SA exerce uma atividade operacional no setor da papelaria e produtos afins. São atividades diversas, e não estão a montante ou a jusante na cadeia económica entre elas. A existência de relações fornecedor/cliente a quase 100% não tem relevância, nos termos do art. 3º, n.º 3, al. d), do anexo ao Dec. Lei n.º 372/2007, porque tal indicador não consta da lei.

 

Aliás, os argumentos introduzidos pela AT não tentam provar que os mercados em que as duas sociedades atuam são os mesmos ou contíguos. Dá a entender que caso não houvesse a cisão, então a sociedade seria toda ela não uma pequena empresa (com a atividade imobiliária e de papelaria); e que a cisão foi a operação que viabilizou a poupança fiscal; e que as relações entre elas (fornecedor / cliente a quase 100%) e demais características (dívidas entre ambas, e identidade de sede) dão a entender que deveriam ser analisadas unitariamente, apesar da dualidade de personalidade jurídica advinda da cisão. Mas esta argumentação não quadra com o art. 3.º, n.º 3, al. d), do anexo ao Dec. Lei n.º 372/2007. E por isso ambas as sociedades não podem ser consideradas associadas para efeitos desse diploma – e da exclusão de metade da mais-valia ligada à pequena empresa. Tal argumentação reconduz-se mais a uma retórica abusiva, mas a fundamentação da AT não corrige com base nestes argumentos, que não são mobilizados para a fundamentação, no limite via cláusula geral anti abuso; e perante isso, não pode o tribunal analisar esta temática, que é irrelevante para a decisão do presente caso.

Nestes termos, as liquidações adicionais de IRS em causa devem ser anuladas, porque ilegais, por errada interpretação e aplicação do art. 3.º, n.º 3, al. d), do anexo ao Dec. Lei n.º 372/2007. As mais valias efetuadas pelos requerentes com a venda das ações da E..., são apenas consideradas em metade do seu valor, nos termos do art. 43.º, n.º 3 e 4, do CIRS.

 

Reembolso do imposto indevidamente pago e juros indemnizatórios

7. Os Requerentes pedem ainda a condenação da Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios até ao reembolso do imposto indevidamente pago.

De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”. O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

Por efeito da reconstituição da situação jurídica em resultado da anulação do ato tributário, há assim lugar ao reembolso do imposto indevidamente pago.

Ainda nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

Estando em causa liquidações corretivas, realizadas na sequência de procedimento inspetivo, não tem aplicação o entendimento expresso nos acórdãos do Pleno do STA de 29 de junho de 2022 (Processo 093/21), e de 22 de março de 2022 (Processo n.º 079/22), segundo o qual, em caso de retenção na fonte e havendo lugar a reclamação graciosa contra o ato tributário, o erro passa a ser imputável à Administração Fiscal depois de verificado o indeferimento da impugnação, funcionando essa data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo.

Havendo de entender-se, no caso em presença, que o erro é imputável aos serviços por ter resultado da correção tributária originária, há assim lugar, na sequência de declaração de ilegalidade dos atos de liquidação de IRS, ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos das citadas disposições dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, calculados sobre a quantia que os Requerentes pagaram indevidamente, à taxa dos juros legais (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT), desde as datas do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

 

III – Decisão

Termos em que se decide:

  1. Julgar procedente o pedido arbitral e anular os atos tributários de liquidação de IRS de 2019: liquidação adicional de IRS n.º 2023..., de 22.04.2023, no valor total a pagar (imposto e juros compensatórios) de 52.221,11€; e a liquidação adicional de IRS n.º 2023..., de 19.05.2023, no valor total a pagar (imposto e juros compensatórios) de 52.221,11€;
  2. Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira à devolução aos requerentes das quantias pagas;

c) Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, desde as datas do pagamento indevido do imposto até à data do processamento das respetivas notas de crédito.

 

Valor da causa

As Requerentes indicaram como valor da causa o montante de € 104.442,23 que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor das liquidações a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 3.060,00, que fica a cargo da Requerida.

 

Notifique.

 

Porto, 5 de Janeiro de 2024

 

O Presidente do Tribunal Arbitral: Carlos Fernandes Cadilha

 

O Árbitro vogal (relator): Tomás Cantista Tavares

 

O Árbitro vogal: Fernando Marques Simões,