Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 334/2020-T
Data da decisão: 2020-11-10  IRS  
Valor do pedido: € 20.959,65
Tema: IRS de 2018; Mais-valias imobiliárias; Residente no Reino Unido; Artigo 43º n.º 2 do CIRS vs. Artigo 63º do TFUE.
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SUMÁRIO

I - O n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS, na medida em que prevê uma limitação da tributação a 50% das mais-valias realizadas apenas para os residentes em Portugal, não extensiva aos não residentes, constitui uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo artigo 63.º do TFUE.

II – E nessa medida é incompatível com o direito europeu.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

a)            Em 02 de Julho de 2020, o Requerente, A..., NF ..., residente em ..., ..., Londres, Reino Unido, veio deduzir pedido de pronúncia arbitral (PPA), ao abrigo do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), tendo em vista obter pronúncia sobre a legalidade do “indeferimento tácito da Reclamação Graciosa apresentada em 21/11/2019 ... e bem assim, do acto de liquidação do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares nº 2019..., respeitante aos rendimentos auferidos no ano de 2018, no valor total de € 41.919,29”.

b)           É demandada a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, adiante designada por AT ou Requerida;

 

c)            O Requerente termina o pedido de pronúncia arbitral (PPA) pedindo ao Tribunal Arbitral Singular (TAS) que anule “O INDEFERIMENTO TÁCITO DA RECLAMAÇÃO GRACIOSA DEDUZIDA CONTRA O ACTO DE LIQUIDAÇÃO DE IMPOSTO SOBRE O RENDIMENTO DAS PESSOAS SINGULARES (IRS) N.º 2019..., RELATIVO AO ANO DE 2018, DO QUAL RESULTOU UM MONTANTE DE IMPOSTO INDEVIDO A PAGAR DE € 20.959,65 E, BEM ASSIM, O MENCIONADO ACTO DE LIQUIDAÇÃO DE IRS, COM AS NECESSÁRIAS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS, DESIGNADAMENTE O REEMBOLSO DO MONTANTE DE IMPOSTO INDEVIDAMENTE PAGO, ACRESCIDO DE JUROS INDEMNIZATÓRIOS CALCULADOS À TAXA LEGAL EM VIGOR”.

 

d)           O pedido de constituição do TAS foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT no dia 03-07-2020.

e)           Pelo Conselho Deontológico do CAAD foi designado árbitro o signatário desta decisão, tendo sido notificadas as partes em 28.07.2020, que não manifestaram vontade de recusar a designação, nos termos do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

f)            O Tribunal Arbitral Singular (TAS) encontra-se, desde 24 de Setembro de 2020, regularmente constituído para apreciar e decidir o objeto deste dissídio (artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 30.º, n.º 1, do RJAT).

 

g)            A fundamentar o pedido, o Requerente alega, em resumo, o seguinte:

i               Em 25/05/2018 era residente no Reino Unido, em ..., Londres.

ii              Por escritura pública datada de 25/05/2018, vendeu a fracção autónoma "AG" do prédio urbano descrito na conservatória do registo predial de Lisboa sob o n.º ... da freguesia de ..., inscrito sob o artigo ...º da freguesia de..., pelo preço de € 350.000,00.

iii             Na Declaração Modelo 3 de rendimentos de 2018, declarou exclusivamente as mais-valias obtidas com a venda do imóvel atrás referido, indicando um valor de realização de 350 000,00 euros, um valor de aquisição de 149 040,00 euros e um valor de despesas e encargos de 16 969,02 euros.

iv            Foi notificado da liquidação do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares n.º 2019..., respeitante aos rendimentos auferidos no ano de 2018 e, bem assim, para efectuar o pagamento do imposto no valor de € 41.919,29, imposto que pagou.

v             Apresentou em 21/11/2019 uma reclamação graciosa contra o acto de liquidação do IRS de € 41.919,29, com o fundamento de que nos termos do nº 2 do artigo 43º do CIRS o valor das mais-valias a considerar deveria ser apenas 50% e não 100%, reclamação sobre a qual a AT não emitiu qualquer decisão.

vi            Considera que a liquidação padece de ilegalidade por violação do direito comunitário (artigo 63º do TFUE) “isto porque o artigo 43º, nº 2 do CIRS, ao estabelecer um regime diferenciado para tributação das mais-valias realizadas por residentes e não residentes em território nacional, estabelece uma discriminação inaceitável à luz do disposto no artigo 56º do Tratado da União Europeia, quando aplicado a residentes noutro Estado-Membro que realizem mais-valias decorrentes da alienação de imóveis situados em Portugal”.

 

h)           Notificada a AT, respondeu em 25.09.2020 e juntou o PA.

 

i)             A AT refere, em resumo, o seguinte:

 

i               Suscita a alteração do valor do pedido “nos termos do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea a) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), quando seja impugnada a liquidação, o valor do processo é o da importância cuja anulação se pretende.

Atendendo a que o Requerente pretende a anulação da liquidação n.º 2019..., no montante de € 41.919,29, deve ser este o valor do processo, pelo que deve o mesmo ser corrigido”.

 

ii              Quanto ao direito aplicável - a alteração ao artigo 72º do Código do IRS, pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12 - refere que “tendo em conta o teor do Acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias de 2007OUT11, e no sentido de adaptar a legislação nacional à decisão nele sufragada, foi aditado ao artigo 72º do Código do IRS, pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, o n.º 7 (atual n.º 9), cujo teor à data dos factos, era o seguinte: «9 - Os residentes noutro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal, podem optar, relativamente aos rendimentos referidos nas alíneas a) e b) do n.º 1 e no n.º 2, pela tributação desses rendimentos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português.»”

iii             E “por sua vez, o n.º 8 (atual n.º 10) do mesmo artigo e diploma legal, também aditado pela Lei n.0 67-A/2007, de 31/12, prescrevia, à data dos factos, que: «10- Para efeitos de determinação da taxa referida no número anterior são tidos em consideração todos os rendimentos, incluindo os obtidos fora deste território, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes.»

iv            “E, por força dessa alteração legislativa, as declarações de rendimentos respeitantes aos anos fiscais de 2008 (em vigor a partir de Janeiro de 2009) e seguintes, mais concretamente o Modelo 3, têm um campo para ser exercida opção pela taxa do artigo 68º do Código do IRS”.

v             E conclui: “consultada a declaração de rendimentos Modelo 3 de IRS entregue em nome da Requerente  (relativa ao ano fiscal de 2018), verifica-se que no quadro 8B foi assinalado o campo 4 (não residente) e o campo 7 ( pretende a tributação pelo regime aplicável aos não residentes)”, daqui resultando que “o Requerente podia ter optado pela tributação como residente em território português e assim beneficiar do pretendido, acionando essa opção na declaração de IRS, mas não o fez, porque, a fazê-lo, teria também de declarar todos os rendimentos incluindo os obtidos fora do território nacional”.

vi            E acrescenta: “as alegações do Requerente não podem obter provimento, face à alteração do artigo 72.º, efetuada pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, nomeadamente o aditamento dos n.ºs 7 (atual n.º 9) e 8 (atual n.º 10). O n.º 8 (atual n.º 10) do artigo 72° do Código do IRS é taxativo, no sentido de que devem ser englobados todos os rendimentos obtidos nesse ano (quer em Portugal, quer no estrangeiro”, uma vez que

vii           “... o quadro legal (bem como a obrigação declarativa) já não é aquele que existia à data do Acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, tendo em conta que foi efetuada a alteração à lei por força do aditamento dos n.º 7 e 8 (atuais 9 e 10) ao artigo 72 ° do Código do IRS pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12”.

 

viii          Quanto à aplicação ao caso deste processo do artigo 43º-2 do CIRS, refere: “saliente-se, ainda, que o artigo que o Requerente pretende que lhes seja aplicado (43° n.º 2 do Código do IRS) está incluso no capítulo II do Código do IRS que tem como epígrafe "Determinação do rendimento coletável". Estamos, pois, perante a determinação do rendimento”. “Para efeitos de incidência (no que toca à matéria das mais-valias) os artigos relevantes são o 9° e 10° do Código do IRS”.

ix            E conclui: “assim, o disposto no n.º 2 do artigo 43° do Código do IRS não pode ser aplicável ao caso aqui em análise. Neste sentido, o tribunal arbitral pronunciou-se no processo n.º 539/2018-T”.

 

x             Pede a AT o reenvio prejudicial desta temática para o TFUE, referindo o seguinte:

xi            “o quadro legal (bem como a obrigação declarativa) já não é aquele que existia à data do Acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, tendo em conta que foi efetuada a alteração à lei por força do aditamento dos n.º 7 e 8 (atuais 9 e 10) ao artigo 72 ° do Código do IRS pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12”, uma vez que “a alteração operada por via da introdução dos atuais n.ºs 9 e 10 do artigo 72.º, do Código do IRS, veio permitir que, tanto residentes como não residentes, beneficiem do regime previsto no artigo 43.º, n.º 2 (consideração do saldo da mais-valia em apenas 50% do seu valor), do mesmo Código, desde que OPTEM pelo englobamento dos rendimentos obtidos tanto em Portugal como fora deste território”. “Situação que no caso concreto não ocorreu”.

xii           E conclui: “que o Tribunal Arbitral deve considerar que a jurisprudência supra exposta não é vinculativa, em face do atual quadro legal nacional, assim como, julgar não verificadas a hipótese de ato claro ou de ato aclarado, pelo que tem de forçosamente considerar que se levantam dúvidas suficientes, em face da jurisprudência que vimos de invocar, que obstam à aceitação do entendimento do aqui Requerente sem prévia consulta ao TJUE, para que este possa exercer as suas competências próprias, nos termos dos Tratados”.

xiii          “Pelo que, deverá suspender a presente instância arbitral e sujeitar a questão ao Tribunal de Justiça, nos termos previstos no instituto do reenvio prejudicial (artigo 267.º do TFUE), a que o Estado Português se vinculou nos termos do TFUE”.

 

j)             Termina afirmando que “não estão reunidos os requisitos para que possam ser atribuídos juros indemnizatórios” e pedindo a sua absolvição.

 

k)            O TAS, por despacho de 26 de Outubro de 2020, dispensou a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, bem como a apresentação de alegações.

 

l)             Convidado o Requerente a exercer o direito ao contraditório, face à junção do PA, alteração do valor do pedido e reenvio prejudicial, veio por requerimento de 06.11.2020 pugnar pela improcedência dos mesmos.

 

II – SANEAMENTO

 

a)            As partes são legítimas, gozam de personalidade jurídica e de capacidade judiciária e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

b)           Tempestividade - o pedido de pronúncia arbitral foi apresentado no CAAD em 02 de Julho de 2020. O Requerente impugna imediatamente o indeferimento presumido da reclamação graciosa que deduziu contra a liquidação de IRS acima indicada, em 21.11.2019, que considerou ocorrer após o prazo legal para a AT apreciar o pedido.

c)            A AT não alegou a extemporaneidade da apresentação do PPA. Assim, nos termos conjugados dos artigos 102º, nº 1, alínea d), do CPPT e 10º, nº 1, alínea a), do RJAT, o pedido de pronúncia arbitral configura-se como sendo tempestivo, face, nomeadamente, ao regime excepcional relativamente a prazos do artigo 7º, n.º 7, ex vi do artigo 7º, nº 6, alínea c), ambos da Lei nº 1-A/2020, de 19/03, assim como o artigo Roda 5.º da Lei nº 16/2020, de 29/05.

d)           O processo arbitral não padece de nulidades.

 

Cumpre apreciar.

 

III - MÉRITO

 

III-1- MATÉRIA DE FACTO

 

Factos considerados provados

 

Considera-se como provada a seguinte matéria de facto:

 

a)            O Requerente, no ano de 2018, era residente no Reino Unido, em ..., Londres – conforme artigo 13º do PPA e artigo 2º da Resposta da AT e documento nº 8 junto com o PPA;

b)           No ano de 2003 adquiriu a fracção autónoma de prédio urbano, em propriedade horizontal, designada pelas letras "AG", descrito na conservatória do registo predial de Lisboa, sob o n.º ... da freguesia de ... e inscrito sob o artigo ...º da freguesia de ...– conforme nº 6 da informação junta pela AT com o PA e artigo 9º do PPA;

c)            Por escritura datada de 25/05/2018, vendeu a referida fracção autónoma de prédio urbano em propriedade horizontal, pelo preço de € 350.000,00 – conforme documento nº 6 em anexo ao PPA e artigo 9º do PPA;

d)           Em 30 de Junho de 2019, submeteu a Declaração Modelo 3 de rendimentos de 2018, declarando exclusivamente as mais-valias obtidas com a venda do imóvel, indicando um valor de realização, em Maio de 2018, de 350 000,00 euros, um valor de aquisição, em Agosto de 2003, de 149 040,00 euros e despesas e encargos de 16 969,02 euros – conforme documento nº 7 em anexo ao PPA, artigo 10º do PPA e nº 7 da informação junta pela AT com o PA;

e)           Em 26 de Julho de 2019 foi emitida a liquidação do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares n.º 2019..., respeitante aos rendimentos auferidos no ano de 2018, resultando uma mais-valia tributada de 149 711,78 euros e um valor a pagar de IRS no valor de € 41.919,29, valor que foi pago, por ordem bancária com data de 13.09.2019 – conforme nº 8 da informação junta pela AT com o PA, artigo 6º e 7º do PPA e documentos 2, 4 e 5 em anexo ao PPA;

f)            O Requerente apresentou em 21 de Novembro de 2019 uma reclamação graciosa contra a liquidação do IRS acima indicada, que tomou o nº ...2019..., com o fundamento de que, nos termos do nº 2 do artigo 43º do CIRS, o valor das mais-valias a considerar deveria ser apenas 50% e não 100%, reclamação sobre a qual a AT não emitiu decisão – conforme parte inicial do PPA, documento nº 1 junto com o PPA e PA parte identificada como “CAAD 334_2020-T A...”;

g)            Em 02 de Julho de 2020 a Requerente entregou no CAAD o presente pedido de pronúncia arbitral (PPA) – registo de entrada no SGP do CAAD do pedido de pronúncia arbitral (PPA).

 

Factos considerados não provados

 

Não existe outra factualidade alegada que não tenha sido considerada provada e que seja relevante para a composição da lide processual.

 

Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (conforme artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

 

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de direito (conforme anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes e a prova documental junta, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, indicando-se, por cada ponto levado à matéria de facto assente, os meios de prova que se consideraram relevantes, como fundamentação.

 

III-2- DO DIREITO

 

III-2-1 - Quanto ao mérito

 

A)           Alteração do valor do pedido de pronúncia arbitral

 

A AT suscita o incidente de alteração do valor do PPA, alegando que: “nos termos do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea a) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), quando seja impugnada a liquidação, o valor do processo é o da importância cuja anulação se pretende.

Atendendo a que o Requerente pretende a anulação da liquidação n.º 2019..., no montante de € 41.919,29, deve ser este o valor do processo, pelo que deve o mesmo ser corrigido”.

 

                A Requerente na parte final do PPA, pede que se anule  “O INDEFERIMENTO TÁCITO DA RECLAMAÇÃO GRACIOSA DEDUZIDA CONTRA O ACTO DE LIQUIDAÇÃO DE IMPOSTO SOBRE O RENDIMENTO DAS PESSOAS SINGULARES (IRS) N.º 2019..., RELATIVO AO ANO DE 2018, DO QUAL RESULTOU UM MONTANTE DE IMPOSTO INDEVIDO A PAGAR DE € 20.959,65 E, BEM ASSIM, O MENCIONADO ACTO DE LIQUIDAÇÃO DE IRS, COM AS NECESSÁRIAS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS, DESIGNADAMENTE O REEMBOLSO DO MONTANTE DE IMPOSTO INDEVIDAMENTE PAGO, ACRESCIDO DE JUROS INDEMNIZATÓRIOS CALCULADOS À TAXA LEGAL EM VIGOR” (sublinhado nosso).

 

                Não resultam dúvidas de que, o que o Requerente impugna, é apenas a parte da liquidação que esteve na origem de ½ da colecta de IRS, ou seja, € 20.959,65.

 

                E quanto se refere ao “imposto indevidamente pago” está a referir-se apenas a este montante.

 

                Aliás é o que resulta claro do alegado no artigo 46º do PPA, quando se escreveu: “é manifesto que a liquidação de IRS objecto da Reclamação Graciosa que foi tacitamente indeferida enferma de erro sobre os pressupostos de direito, devendo ser, em conformidade, parcialmente anulada, porque praticada com ofensa das normas e princípios jurídicos aplicáveis, designadamente no valor de € 20.959,65 (vinte mil novecentos e cinquenta e nove euros e sessenta e cinco cêntimos), correspondente à diferença de tributação resultante da consideração em 100% ou 50% da mais-valia realizada pelo Requerente com a alienação, em 2018”.

 

                Não restam dúvidas de que a impugnação se dirige, apenas, à anulação parcial da liquidação (na parte que gerou a colecta de IRS de € 20.959,65), sendo esta a “importância cuja anulação se pretende”, nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 97-A do CIRS.

 

                Improcede, pois, a alteração suscitada.

 

B)           Apreciação da questão de fundo, face aos factos provados.

 

O árbitro que integra o presente TAS já se pronunciou sobre um caso idêntico, apenas com a diferença de se tratar de um residente em França, o que para a decisão de mérito a adoptar, nada altera. Trata-se da decisão arbitral CAAD nº 757/2019-T.

 

Aí escrevemos o seguinte:

 

“Sobre a questão de fundo em discussão neste processo, existem várias decisões do CAAD, nomeadamente a decisão arbitral colectiva, presidida pelo Exmo. Senhor Conselheiro Carlos Cadilha, adoptada no Processo CAAD nº 846/2019-T, onde o signatário desta decisão, foi árbitro vogal.

 

Em declaração aposta no final da decisão arbitral atrás referida, o signatário desta decisão, expressou as razões que o levaram a alterar a sua posição sobre o reenvio prejudicial para o TJUE, que foi requerido pela AT e que antes tinha adoptado.

 

No Processo CAAD nº 846/2019-T acima referido, o que estava em causa, eram situações de facto e de direito idênticas às deste processo, apenas com a diferença de que a Requerente era uma pessoa singular residente no Brasil e não em Franca.

 

No sentido de contribuir para a uniformização das decisões adoptadas, este TAS adere, na totalidade, ao decidido no Processo CAAD nº 846/2019-T”.

 

***

 

Também neste processo o TAS adere ao decidido no Processo CAAD nº 846/2019-T que passamos a transcrever, com as alterações relativas ao facto de se tratar de processos com Requerentes e articulados diferentes:

 

“Como se depreende do alegado nos artigos 14º a 18º, 22º a 31º e 3º a 36º do pedido de pronúncia arbitral, ... o Requerente apenas pretende discutir ... a não aplicação do disposto no artigo 43.º, n.º 2, do Código do IRS, pelo qual o valor dos rendimentos qualificados como mais-valias é apenas considerado em 50%, entendendo que o acto de liquidação, ao considerar a totalidade da mais-valia realizada, constitui uma discriminação negativa dos não residentes restritiva da liberdade de circulação de capitais.

 

                A Autoridade Tributária defende, em contraposição, que o legislador nacional procedeu já a adaptação do sistema fiscal ao acórdão do TJUE C-443/06, através da Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro, que aditou os n.º 7 e 8 (actuais 13 e 14) ao artigo 72.° do Código do IRS, que vieram permitir que não residentes possam optar pela tributação de rendimentos prediais à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português, e que na determinação da taxa se tenham em consideração todos os rendimentos, incluindo os obtidos fora do território português, concluindo assim que a legislação nacional se mostra agora conforme com o direito europeu.

 

                É, pois, esta a única questão que está em debate.

 

                Essa questão foi já analisada, em situação similar, no acórdão proferido no Processo n.º 208/2019-T, na linha do também já decidido em diversas outras decisões arbitrais, e, não havendo motivo para alterar esse entendimento, passa aqui reproduzir-se a parte mais relevante da sua fundamentação.

 

“Nos termos do artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do artigo 10.º, do Código do IRS, “constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de (...) alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis...”.

 

 Esses rendimentos, desde que resultantes da transmissão de direitos reais relativos a imóveis situados em território português consideram-se aqui obtidos (CIRS, artigo 18.º, n. º1, alínea h), ficando, assim, abrangidos pela incidência deste tributo quando auferidos por titulares não residentes (CIRS, artigos 13.º, n.º 1 e 15.º, n.º 2).

 

Conforme resulta do artigo 10.º, n.º 4, do Código do IRS, o ganho sujeito a tributação é constituído pela diferença positiva entre o valor de realização e o valor de aquisição, sendo este valor atualizado pelo coeficiente de correção monetária e acrescido de encargos com a valorização dos bens, comprovadamente realizados nos últimos 12 anos e bem assim das despesas necessárias e efetivamente praticadas inerentes à aquisição e alienação, nos termos dos artigos 50.º e 51.º do mesmo Código. 

 

O valor dos rendimentos qualificados como mais-valias, integrando a Categoria G do IRS, é o correspondente ao saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano, conforme prevê o artigo 43.º, n. º1, do citado Código.

 

No entanto, segundo o n.º 2 do mesmo artigo, na redação em vigor à data da ocorrência do facto tributário a que se reporta o presente pedido de pronúncia arbitral, o referido saldo, positivo ou negativo, quando respeitante a mais-valias imobiliárias, é apenas considerado em 50% do seu valor, quando “respeitante às transmissões efetuadas por residentes”.

 

Quando auferidos por sujeitos passivos residentes esses rendimentos são sujeitos a englobamento e, em conjunto com outros rendimentos auferidos no mesmo ano pelos respetivos titulares, sobre eles incidem as taxas gerais previstas no artigo 68.º do Código do IRS.

 

Diversamente, se esses rendimentos forem auferidos por titulares não residentes em território português, são sujeitos a tributação autónoma, incidente à taxa especial de 28% sobre a totalidade das mais-valias, nos termos do artigo 72.º, n.º 1, alínea a), do mesmo Código.

 

A assinalada desigualdade de tratamento fiscal no que respeita à tributação de mais-valias entre os sujeitos passivos residentes e não residentes foi submetida à apreciação do Tribunal de Justiça da União Europeia, por via de um pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Supremo Tribunal Administrativo (Ac. de 28-09-2006, Proc.439/06).

 

Respondendo à questão colocada, o Tribunal de Justiça, em acórdão de 11-10-2007, proferido no Proc. C-443/06 (Hollmann), declarou que

“O artigo 56º do Tratado que Instituiu a União Europeia  deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional, como a que está em causa no litígio no processo principal, que sujeita as mais-valias resultantes da alienação de um bem imóvel situado num Estado-Membro, no caso vertente em Portugal, quando essa alienação é efectuada por um residente noutro Estado-Membro, a uma carga fiscal superior à que incidiria, em relação a este mesmo tipo de operação, sobre as mais-valias realizadas por um residente do Estado onde está situado esse bem imóvel.”

 

Na sequência da referida decisão, o Supremo Tribunal Administrativo, em acórdão de 16-01-2008, proferido naquele Processo 439/06, veio igualmente a decidir que “O n.º 2 do artigo 43º do Código do IRS, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 109-B/2001, de 27 de Dezembro, que limita a incidência de imposto a 50% das mais-valias realizadas apenas para residentes em Portugal, viola o disposto no artigo 56º do Tratado que Institui a Comunidade Europeia, ao excluir dessa limitação as mais-valias que tenham sido realizadas por um residente noutro Estado membro da União Europeia.”

 

A orientação referida tem vindo a ser invariavelmente seguida pelo Supremo Tribunal Administrativo conforme se pode verificar dos acórdãos de 22-03-2011- Proc. 01031/10, de 10-10-2012, Proc. 0533/12, de 30 -04-2013, Proc. 01374/12, de 18-11-2015, Proc. 0699/15, de 03-02-2016, Proc. 01172/14 e, mais recentemente, de 20-02-2019, Proc. 0901/11.

 

Porém, o legislador nacional, por via da Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, procurou obviar o tratamento discriminatório dos residentes comunitários e do Espaço Económico Europeu, facultando-lhes, em termos opcionais, a possibilidade de tributação das mais-valias imobiliárias em condições similares às aplicáveis aos residentes em território português, aditando ao artigo 72.º do Código do IRS os números 7 e 8 (n.ºs 9 e 10 à data dos factos, na renumeração operada pela Lei n.º 66-B/2012, de 31/12, a que correspondem os atuais n.ºs 13 e 14), com a seguinte redação:

 

“9 - Os residentes noutro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal, podem optar, relativamente aos rendimentos referidos nas alíneas a) e b) do n.º 1 e no n.º 2, pela tributação desses rendimentos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português.

10 - Para efeitos de determinação da taxa referida no número anterior são tidos em consideração todos os rendimentos, incluindo os obtidos fora deste território, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes.”

 

Contrariamente ao entendimento da Requerida, o regime opcional acima referido não veio sanar o regime discriminatório que se mantém em vigor e foi aplicado às liquidações de IRS ora questionadas.

 

Após a alteração legislativa acima referida ficaram a vigorar, na área da tributação dos rendimentos qualificados como mais-valias originadas pela transmissão onerosa de direitos reais sobre bens imóveis situados em território português, dois regimes distintos, aplicáveis a não residentes: um regime geral, aplicável a quaisquer sujeitos passivos não residentes, traduzido na tributação desses rendimentos à taxa especial de 28% incidente sobre a totalidade do rendimento e um regime especificamente aplicável a residentes noutro Estado-membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, equiparável ao regime de que beneficiam os sujeitos passivos residentes.

 

Este regime específico de equiparação aos residentes é opcional, não afastando, contudo, o carácter discriminatório da norma do artigo 43.º, nº2, conforme, aliás, em vindo a ser decidido em diversas decisões arbitrais.

 

Com efeito, esta matéria, já na decorrência de situações posteriores à alteração legislativa acima referida, tem vindo a ser objeto de diversas decisões arbitrais tendo-se firmado jurisprudência, largamente maioritária, no sentido de que a opção em causa, constitui um ónus suplementar comparativamente aos residentes, insuscetível de excluir a discriminação em causa.

 

Nesse sentido, pode ler-se na decisão arbitral de 22-05-2019, Proc.74/2019-T:

 

 “Sucede que a existência deste regime não afasta a invalidade do regime discriminatório ainda em vigor e que foi aplicado à liquidação de IRS em causa.

                De facto, atualmente, em matéria de tributação dos rendimentos resultantes das mais-valias provenientes da alienação de direitos reais sobre imóveis situados em Portugal, por não residentes neste território, mas residentes noutro Estado membro da União Europeia ou Espaço Económico Europeu, resulta do disposto nos n.ºs 1 e 8 do artigo 72.º do Código do IRS que, coexistem dois regimes fiscais:

i. O regime que sujeita os rendimentos a uma taxa especial de 28% e

ii. O regime equiparado ao que vigora para os sujeitos passivos residentes em território português, segundo o qual, os mesmos rendimentos são sujeitos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português, tomando-se em consideração, neste regime, todos os rendimentos, incluindo os auferidos fora de Portugal, mantendo-se em vigor a disposição constante do nº 2 do citado artigo 43.º do Código do IRS.

Porém, a previsão deste regime facultativo faz impender sobre os não residentes um ónus suplementar, comparativamente aos residentes, não sendo a opção de equiparação suscetível de excluir a discriminação em causa.

Na realidade, o regime de equiparação atualmente previsto no artigo 72.º do Código do IRS não afasta o caráter discriminatório do artigo 43.º, n.º 2 do Código do IRS, não podendo o contribuinte achar-se na circunstância de ter que optar por dois regimes, um legal e outro ilegal.

Neste sentido, o TJUE considerou, no Acórdão Gielen, de 18/03/2010 (Processo C-440/08), num caso de evidente paralelismo (ainda que naquele acórdão estivesse em causa a violação do artigo 49.º), o seguinte:

a. «a opção de equiparação permite a um contribuinte não residente, (...) escolher entre um regime fiscal discriminatório e um outro regime supostamente não discriminatório», frisando que essa escolha não é passível de excluir os efeitos discriminatórios do primeiro desses dois regimes fiscais.».

b. «o reconhecimento de um efeito dessa natureza à referida escolha teria por consequência (...) validar um regime fiscal que continuaria, em si mesmo, a violar o artigo 49. ° TFUE em razão do seu carácter discriminatório».

c) O Tratado «se opõe a uma regulamentação nacional que discrimina os contribuintes não residentes na concessão de um benefício fiscal (...) apesar de esses contribuintes poderem optar, no que se refere a esse benefício, pelo regime aplicável aos contribuintes residentes”.

 

 No mesmo sentido, considerou-se, em decisão arbitral de 14-05-2013, Processo. 127/2012-T que

 

 “(...) a opção que é dada a um sujeito passivo residente na União Europeia ou espaço económico europeu entre um regime que continua a ser discriminatório, por violação do disposto artigo 63.º da TFUE e um outro alegadamente não discriminatório, equiparando-os com os residentes no território português, para além de terem a obrigação de optar e de declarar os rendimentos auferidos fora daquele território, não exclui nem neutraliza os efeitos discriminatórios do primeiro daqueles dois regimes. Concluindo aquele aresto que «ao se reconhecer que os referidos efeitos não são eliminados, estar-se-á a admitir que a referida opção valida um regime fiscal que continua em si mesmo a violar o artigo 63.º do TFUE, pelos motivos acima enunciados, o que não se coaduna com o direito comunitário”.

 

É, pois, esta a orientação que tem vindo a ser acolhida na jurisprudência arbitral do CAAD, não só nas decisões acima citadas, como em muitas outras, designadamente as proferidas nos processos 748/2015-T, 89/2017-T, 520/2017-T, 617/2017-T, 644/2017-T, 370/2018-T,583/2018-T, 596/2018-T 600/2018-T e 613/2018-T, não se suscitando quaisquer dúvidas sobre a incompatibilidade do atual quadro normativo em causa com o direito comunitário, em especial com o artigo 63.º do TFUE.

 

Também dúvidas se não suscitaram ao Supremo Tribunal Administrativo que, em acórdão de 20-02-2019, proferido no Proc. 0901/11.0BEALM.0692/17 – reportando-se a mais-valias realizadas em 2010, portanto já na vigência das alterações introduzidas pela Lei n.º 67-A/2007 - se pronunciou sobre a matéria em causa nos seguintes termos:

 

“12. O Estado Português, através da Lei 3-B/2010 de 28-04, instituiu um regime opcional, ex vi nºs 7 e 8 do artigo 72.º do CIRE, com vista à equiparação dos não residentes aos residentes, permitindo àqueles a opção de englobamento dos rendimentos obtidos por mais-valias imobiliárias e, assim, serem tributados em condições similares às dos residentes.

13. Tratando-se de um regime opcional e mantendo-se o regime geral discriminatório, a sua apreciação foi objecto do Acórdão Gielan de 18-03-2010 do TJUE, que veio a manter as anteriores conclusões referidas no Acórdão Hollmann.

14. E no caso sub judice foi a Autoridade Tributária que determinou a forma de tributação, através da correcção da liquidação, não validando os elementos declarados pelos Impugnantes na sua declaração anual de IRS, não dando hipótese do exercício desta opção aos Impugnantes.

15. Mesmo assim, tal regime opcional não vem sanar a discriminação entre as normas do n.º 2 do artigo 43.º do CIRS e o artigo 56.º do Tratado sobre o funcionamento da União Europeia, já que a norma anterior se manteve como geral, apenas sendo criada uma outra opcional.

16. Na verdade, já este STA se pronunciou em situação similar à presente - acórdão de 03-02-2016, Proc. 01172/14 – negando provimento a um recurso e decidindo no sentido de que tributação em sede de mais valias imobiliárias apuradas por um não residente, devem ser consideradas apenas em 50%, evitando assim a situação discriminatória que a Fazenda Pública pretende ver aqui reconhecida.

17. Concluindo que a aplicação do nº 2 do artigo 43 do CIRS, que discrimina negativamente a tributação dos não residentes face aos residentes, é incompatível com o direito comunitário, porque limita os movimentos de capitais que o artigo 56 do Tratado CE consagra”

               

Acompanhando, sem reservas, a jurisprudência do STA e do CAAD acima referidas, e o acórdão proferido no Processo n.º 208/2019-T que aqui se transcreveu, considera o Tribunal que se não suscitam dúvidas quanto à incompatibilidade com o direito europeu das normas aplicadas à liquidação aqui impugnada.

...

***

 

Face ao acima exposto, também neste processo, se impõe que se adira à decisão adoptada no Processo CAAD 846/2019-T, quando se conclui:

 

“Nestes termos, julga-se incompatível com o direito europeu a norma do n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS, na medida em que prevê uma limitação da tributação a 50% das mais-valias realizadas apenas para os residentes em Portugal, não extensiva aos não residentes, constituindo, por isso, uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo artigo 63.º do TFUE”.

 

Consequentemente, o acto de liquidação aqui em causa, desconsiderando aquela limitação, encontra-se ferido de ilegalidade. Restringindo-se a ilegalidade apenas àquele excesso de tributação, e nela se centrando em exclusivo o objecto do presente pedido de pronúncia arbitral, deve esse acto ser parcialmente anulado.

 

C) Reenvio prejudicial

 

Também neste aspecto se adere à decisão arbitral colectiva acima transcrita, impondo-se uma decisão em conformidade:

 

“A Autoridade Tributária solicitou o reenvio prejudicial para o TJUE por considerar que não existe jurisprudência aplicável a um caso com idêntica situação de facto.

 

No entanto, com base na jurisprudência do Tribunal de Justiça que foi mencionada, não subiste dúvida fundada quanto à interpretação do princípio da não discriminação em razão da nacionalidade e da residência aplicável à liberdade de circulação de capitais, não se afigurando que o caso dos autos ofereça qualquer especificidade, no plano dos factos, que recomende uma nova intervenção em reenvio.

 

Entende-se, nestes termos, não se justificar o requerido reenvio prejudicial”.

 

D) Direito ao reembolso do valor do IRS pago a mais. Direito a juros indemnizatórios.

 

Na sequência da ilegalidade parcial do ato de liquidação controvertido, há lugar a reembolso do imposto pago ilegalmente, por força do disposto nos artigos 24º nº 1, alínea b), do RJAT e 100º da LGT, pois tal afigura-se essencial para restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado.

 

Procede, pois, o pedido de reembolso da quantia de € 20 959,65, correspondente a 50% de € 41 919,29, valor este que foi pago, conforme consta dos factos provados.

 

***

 

No que concerne a juros indemnizatórios, de harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação, vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito», o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT] que estabelece, que «a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão».

 

Embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira directriz, que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária».

 

O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de actos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do artigo 61.º, n.º 4 do CPPT (na redacção dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redacção inicial), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea».

 

Assim, o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, ao dizer que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

 

O regime substantivo do direito a juros indemnizatórios é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece o seguinte:

Artigo 43.º

Pagamento indevido da prestação tributária

1 - São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

2 - Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar de a liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.

3 - São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:

a) Quando não seja cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos tributos;

b) Em caso de anulação do acto tributário por iniciativa da administração tributária, a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nota de crédito;

c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.

d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução. (Aditada pela Lei n.º 9/2019, de 1 de fevereiro)

4 - A taxa dos juros indemnizatórios é igual à taxa dos juros compensatórios.

5 - No período que decorre entre a data do termo do prazo de execução espontânea de decisão judicial transitada em julgado e a data da emissão da nota de crédito, relativamente ao imposto que deveria ter sido restituído por decisão judicial transitada em julgado, são devidos juros de mora a uma taxa equivalente ao dobro da taxa dos juros de mora definida na lei geral para as dívidas ao Estado e outras entidades públicas. (Aditado pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro)

 

Revertendo o que se referiu para o caso concreto deste processo, verifica-se que deve ser aplicado o regime do nº 2 do artigo 43º da LGT, porquanto o erro de liquidação deve ser imputável à Requerida, que a levou a efeito por sua iniciativa e manteve-a, mesmo após ter sido apresentada a reclamação graciosa,  pelo que são devidos juros indemnizatórios ao Requerente, devendo ser contados desde a data do pagamento e sobre a importância de € 20 959,65, correspondente a 50% de € 41 919,29, nos termos do disposto no artigo 61.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

 

Os juros indemnizatórios são devidos, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 3, alínea d), e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, 61.º, n.º 5, do CPPT, 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, à taxa legal supletiva.

 

IV. DECISÃO

 

Termos em que, com os fundamentos expostos, julga-se procedente o pedido de pronúncia arbitral, pelo que, consequentemente:

 

1.            Anula-se parcialmente o acto tributário de liquidação do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares n.º 2019..., na parte da colecta do IRS que foi paga de € 20 959,65;

2.            Anula-se a decisão de indeferimento presumido que se formou na sequência da apresentação pelo Requerente, em 21 de Novembro de 2019, da reclamação graciosa contra o acto de liquidação do IRS atrás indicado, que tomou o nº ...2019..., face à ausência de decisão;

3.            Condena-se a AT a proceder ao reembolso da quantia de € 20 959,65 e bem assim no pagamento dos juros indemnizatórios, calculados sobre o valor a reembolsar, contados desde a data do efectivo pagamento e até à data do processamento da respectiva nota de crédito.

 

V - VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em € 20 959,65, nos termos do artigo 97.º - A do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, al. a) do RJAT e do artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VI – CUSTAS

 

Custas de € 1 224,00, a suportar pela Requerida, conforme o artigo 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao RCPAT.

 

Notifique.

 

Lisboa, 10 de Novembro de 2020

 

Tribunal Arbitral Singular,

Augusto Vieira