Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 7/2012-T
Data da decisão: 2012-07-31  IRC  
Valor do pedido: € 29.251,72
Tema: Derrama
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PROCESSO ARBITRAL N.º 7/2012-T

 

DECISÃO ARBITRAL

 

 

I – RELATÓRIO

 

  1. … SA (Requerente), com o número de pessoa coletiva …, com sede na Rua … Porto Salvo, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Cascais, requereu a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 2º n.º 1, al. a) e artigo 10º, n.º 1 al. a) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, previsto no DL 10/2011 de 20 Janeiro, doravante designado “RJAT”, e do artigo 102.º, n.º 2 do (CPPT) - Código de Procedimento e Processo Tributário e dos artigos 1º e 2º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, tendo em vista a declaração de ilegalidade da liquidação n.º …, referente a Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) do exercício de 2010 na parte respeitante a derrama municipal num montante correspondente a Euros 29.251,72 (vinte e nove mil duzentos e cinquenta e um Euros e setenta e dois cêntimos), e a consequente anulação, nessa parte, sendo Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante designada por “AT”).

 

Adicionalmente requer a condenação da AT a pagar juros indemnizatórios nos termos do artigo 43º da Lei Geral Tributária (LGT) ou, caso tal pedido não proceda, que a AT indemnize a Requerente a título de responsabilidade civil extracontratual do Estado, em qualquer dos casos, num montante de Euros 750,13, (setecentos e cinquenta Euros e treze cêntimos).

 

  1. A Requerente optou por não designar árbitro, e, nos termos do disposto na alínea a) n.º 2 do artigo 6º do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitro singular o Signatário Júlio César Nunes Tormenta, que aceitou a referida designação no prazo legal.

CAAD: Arbitragem Tributária

O tribunal arbitral foi regularmente constituído no CAAD, no dia 16 de março de 2012, para apreciar e decidir o objeto do presente processo, conforme consta da respetiva ata junta aos autos.

 

***

 

  1. Sustenta a Requerente, em síntese, a sua pretensão, no seguinte:

 

  1. Foi notificada a 19 de julho de 2011 da demonstração de liquidação de IRC e de derrama n.º…, referente ao exercício fiscal de 2010 (Doc. n.º1 anexo à Petição Inicial).

 

  1. Que a 30 de maio de 2011 submeteu, relativamente ao exercício de 2010, a declaração modelo 22, na qual procedeu à autoliquidação do IRC e da derrama municipal no valor de Euros 29.251,72 (vinte e nove mil duzentos e cinquenta e um Euros e setenta e dois cêntimos), respeitante àquele exercício (Doc. n.º2 anexo também à Petição Inicial). Efetuou o pagamento da autoliquidação de IRC e derrama municipal referente ao exercício fiscal de 2010 num montante total de Euros de 31.087,05 (trinta e um mil e oitenta e sete Euros e 5 cêntimos), (Doc. n.º6 anexo à Petição Inicial) correspondente a Euros 29.251,72 (vinte e nove mil duzentos e cinquenta e um Euros e setenta e dois cêntimos), relativo à derrama municipal e Euros 1.835,33 (mil oitocentos e trinta e cinco Euros e trinta e três cêntimos), relativo a tributações autónomas.

 

  1. Sustenta que por razões derivadas do sistema informático das Declarações Eletrónicas, que a isso a induziam, e também por querer cumprir com as instruções de preenchimento da declaração modelo 22 constantes do Despacho n.º 16/2010 – XVIII, de 27 de janeiro, do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais (publicado por meio da Declaração n.º 23/2010, de 10 de fevereiro de 2010, no Diário da República, 2.ª série, n.º 28), inseriu, a titulo de derrama municipal, o valor de Euros 29.251,72 (vinte e nove mil duzentos e cinquenta e um Euros e setenta e dois cêntimos), no campo 364 do quadro 10 da declaração modelo 22, tendo preenchido o respetivo anexo.

 

  1. O preenchimento do campo 364 do quadro 10 da declaração modelo 22 a titulo de derrama municipal estava errado, sendo ilegal, por violação do artigo 14º da Nova Lei de Finanças Locais (NLFL) – Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro – e pelos artigos 15.º, n.º 1, a), 1) e c), 1) e artigo 52º, ambos do Código do IRC (CIRC), uma vez que no exercício fiscal de 2010 não apurou matéria coletável para efeitos de IRC.


 

  1. Refere que apurou e declarou para efeitos de IRC o lucro tributável no exercício fiscal de 2010 no montante de Euros 1.950.114,95, (um milhão novecentos e cinquenta mil cento e catorze Euros e noventa e cinco cêntimos), tendo prejuízos fiscais acumulados relativos aos últimos 6 (seis) exercícios no montante de Euros 4.626.403,55 (quatro milhões seiscentos e vinte e seis mil quatrocentos e três Euros e cinquenta e cinco cêntimos).


 

  1. Sustenta que com a NLFL a incidência objetiva da derrama deslocou-se da coleta do IRC para o lucro tributável sujeito e não isento de IRC e a razão deveu-se a uma necessidade de autonomização da gestão da receita tributária dos municípios face à gestão dessa mesma receita tributária do Estado.


 

  1. Refere igualmente que o regime jurídico da derrama é lacunar estando limitado ao previsto no artigo 14º da NLFL, pois é omisso quanto a regras de determinação da matéria coletável, liquidação, pagamento, obrigações acessórias, garantias, etc., necessitando, supletivamente, do regime jurídico do IRC para a respetiva operacionalidade. Continua afirmando que é no próprio regime do IRC que têm que ser procuradas as normas que permitem a determinação da matéria coletável cujo conceito está definido no Código de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC).


 

  1. Sustenta que no âmbito da tributação das empresas, o conceito de rendimento real deve ter em conta não o que resulta de um único exercício mas sim o que deriva de uma perspetiva de continuidade de funcionamento dessas mesmas unidades económicas, leia-se empresas. A consideração de prejuízos fiscais de exercícios anteriores visa neutralizar os efeitos perniciosos da periodização do lucro tributável e é uma imposição do princípio da capacidade contributiva, assim como do principio constitucional da tributação das empresas pelo respetivo lucro real estatuído no artigo 104º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa (CRP).


 

  1. Invoca igualmente o princípio da igualdade plasmado no artigo 13º da CRP para arguir que aquele principio impõe a dedução dos prejuízos fiscais de exercícios anteriores uma vez que: “(i) duas empresas que realizem o mesmo lucro ao longo de um período de 2 anos sejam tributadas na mesma medida, independentemente do modo como este se reparta por cada um desses anos, e, por outro lado, (ii) dois sujeitos passivos de IRC, com a mesma capacidade contributiva num mesmo exercício, sejam tributados no mesmo montante.”


 

  1. Sustenta igualmente que a impossibilidade de dedução de prejuízos fiscais ao lucro tributável relativamente à tributação do rendimento violaria para além dos princípios da capacidade contributiva e da igualdade, assim como é um requisito constitucionalmente consagrado através do princípio da tributação das empresas segundo o seu rendimento real.


 

  1. Alega que a interpretação efetuada pela AT quanto à exclusão de prejuízos fiscais na determinação da matéria tributável da derrama viola o principio da igualdade, principio da capacidade contributiva e é incompatível com o texto constitucional e sem o mínimo de correspondência na letra da NLFL.


 

  1. Sustenta, por isso, que a autoliquidação efetuada relativamente à derrama municipal enferma de ilegalidade por violação dos princípios da capacidade contributiva e da igualdade tributária e das normas constantes do bloco normativo composto pelo artigo 14º da NLFL, pelos artigos 15º, n.º1, a), 1) e c), 1) e artigo 52º ambos do CIRC, todos em conjugação com artigo 104º, n.º2 da CRP.


 

  1. Da ilegalidade que invoca, a mesma gera a anulação do ato tributário nos termos dos artigos 99º e 2º alínea d) do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e dos artigos 135º e 136º do Código de Procedimento Administrativo (CPA), mais concretamente da autoliquidação efetuada em sede de derrama referente ao exercício fiscal de 2010 no montante de Euros 29.251,72 (vinte e nove mil duzentos e cinquenta e um Euros e setenta e dois cêntimos).


 

  1. Da ilegalidade invocada, para além da anulação do ato tributário nos termos acima expostos, requer a condenação da AT ao pagamento de juros indemnizatórios nos termos do artigo 43º da LGT ou uma indemnização a titulo de responsabilidade civil extracontratual do Estado no montante de Euros 750,13 (setecentos e cinquenta Euros e treze cêntimos).


 

  1. Por discordar da autoliquidação da derrama, deduziu, a 17 de novembro de 2011, junto da Direção de Finanças de Lisboa - Serviço de Finanças de Oeiras - 2, reclamação graciosa com o n.º … (Doc. n.º3 anexo à Petição Inicial). Foi notificada em 30 de novembro de 2011 do projeto de despacho de indeferimento da reclamação graciosa, para exercer o direito de audição prévia (Doc. n.º4 anexo ao Pedido), não o exercendo. Em 21 de dezembro de 2011, foi notificada pelo referido Serviço Local de Finanças, por ofício postal com aviso de receção do indeferimento de reclamação graciosa (Doc. n.º5 anexo à Petição Inicial).


 

  1. A Requerente apresentou também recurso hierárquico do indeferimento da reclamação graciosa, cujo procedimento foi aberto em 24 de Janeiro de 2012 no Serviço Local de Finanças – Oeiras 2, que não chegou a ser decidido e foi apenso aos presentes autos.


 

  1. Conclui, na sua Petição Inicial de arbitragem, pela declaração de ilegalidade da autoliquidação da derrama municipal relativa ao exercício de 2010, num montante correspondente a Euros 29.251,72, (vinte e nove mil duzentos e cinquenta e um Euros e setenta e dois cêntimos), e a consequente anulação do ato tributário na parte referente à derrama municipal, bem como a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios ou de uma indemnização a titulo de responsabilidade civil extracontratual do Estado no montante de Euros 750,13 (setecentos e cinquenta euros e treze cêntimos).

 

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  1. Ao abrigo do artigo 17º do RJAT, a AT apresentou “Resposta” suscitando a título de questões prévias o seguinte:

 

  1. A exceção de incompetência absoluta do Tribunal Arbitral para apreciar o mérito da questão em litígio.

 

  1. Incidente de intervenção principal provocada do Município de Oeiras ao abrigo do artigo 325º do Código de Processo Civil (CPC), arguindo ilegitimidade da AT para estar presente em juízo como única demandada, pois face à natureza da derrama municipal, a legitimidade passiva para intervir no litígio seria igualmente dos municípios enquanto sujeitos ativos do imposto, os quais deveriam ser representados em juízo pelo representante da Fazenda Pública e não pela AT em função do disposto no artigo 7º do D.L. n.º 433/99 de 26 de outubro, diploma que aprovou o Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”). Sustenta igualmente que o indeferimento das pretensões acima referidas consubstanciará violação dos princípios do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva.

 

  1. A AT sustenta o papel da derrama municipal como instrumento colocado à disposição dos municípios para a realização das suas tarefas no âmbito da sua autonomia local, as quais têm dignidade constitucional conforme se pode aferir nomeadamente nos artigos 9º, 81º da CRP. Refere igualmente que a derrama municipal consubstancia uma das formas de concretização da autonomia do poder local tanto do ponto de vista administrativo como financeiro, tendo por base o que está plasmado nos artigos 238º, 241º, 251º e 254º da CRP e concretizado através da Lei n.º 169/99 de 18 de setembro, conhecida como Lei das Autarquias Locais (LAL) e da Lei n.º 2/2007 de 15 de janeiro, conhecida como Lei das Finanças Locais.


 

  1. No mais, sustenta a legalidade da autoliquidação em causa referente à derrama municipal, sustentando que, face à NLFL, a derrama municipal deixou de assumir natureza acessória, pois a mesma deixou de atender quer à matéria coletável, quer à coleta de IRC, enquanto pressupostos da sua aplicabilidade. Assim, no entender da Requerida, a derrama municipal é um imposto distinto do IRC, é um imposto autónomo tendo um regime próprio, contestando assim o carácter lacunar do regime jurídico da derrama municipal conforme a Requerente defende, em que o essencial da sua regulamentação se encontra fora do CIRC mas sim em diploma específico – NLFL (Lei 2/2007 de 15 de janeiro) – não havendo no mesmo qualquer norma de remissão para o CIRC. Embora autónomo e distinto do IRC apenas se socorre à disciplina do IRC por uma questão de operacionalidade.


 

  1. Sustenta que tendo a derrama municipal um regime próprio definido na NLFL, há que atender aquilo que está estatuído no diploma em causa (leia-se NLFL) e decorrente desse fato resulta da própria NLFL que o legislador não pretendeu considerar para efeitos de determinação da derrama municipal de um determinado exercício, os prejuízos fiscais de anos anteriores da atividade do sujeito passivo. Com vista a reforçar a sua posição, a AT invoca o princípio da domiciliação da atividade da empresa, levantando a questão de como conciliar este princípio com a faculdade de utilização de prejuízos fiscais de anos anteriores não pondo em causa o direito tributário de um município por factos tributários (apuramentos de prejuízos fiscais) ocorridos fora dos limites desse município.


 

  1. Alega igualmente que a tributação pelo rendimento real a nível de empresas, o que implica uma perspetiva de continuidade subjacente à atividade das mesmas que está patente no IRC em virtude do principio da capacidade contributiva e do principio da igualdade, tenha que estar presente na derrama municipal. Da característica de continuidade patente no IRC não se pode tirar a ilação que a derrama municipal também possua essa característica devido ao fato de esta, derrama municipal, ter uma natureza de imposto diferente comparativamente ao IRC, isto é, ser um imposto municipal.


 

  1. Contesta igualmente que a consideração de prejuízos fiscais de anos anteriores decorre do princípio da capacidade contributiva e da tributação das empresas pelo seu lucro real bem como pelo direito à igualdade. Afirma que a continuidade de funcionamento das empresas alegada pela Requerente não constitui uma exigência constitucional, nem é imposta pelo princípio da capacidade contributiva. Não vislumbra como a não dedução de prejuízos fiscais de anos anteriores possa pôr em xeque o princípio da igualdade.


 

  1. Entende pelas razões acima descritas que a pretensão da Requerente não se encontra fundamentada na lei quer ordinária quer constitucional.

 

Conclui pela improcedência do pedido formulado pela Requerente e consequente absolvição da Requerida do Pedido.

 

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  1. A Requerente, notificada da contestação e da junção do processo administrativo, com a dedução das exceções de ilegitimidade passiva da Requerida e de incompetência absoluta do presente tribunal, não contra alegou por escrito.

 

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  1. Em reunião realizada na sede do CAAD (Centro de Arbitragem Administrativa) na Av. Duque de Loulé, n.º 72, em Lisboa, em 27 de abril de 2012, os representantes legais da Requerente e da Requerida pronunciaram-se oralmente sobre as exceções invocadas pela Requerida. O tribunal informou quer a Requerente quer a Requerida que tendo em conta o que consta dos articulados da “Resposta” da Requerida e das alegações orais produzidas na reunião de 27 de abril de 2012, nos termos do artigo 18º do RJAT, considerou improcedente o incidente processual de intervenção principal provocada ao abrigo do artigo 325º do CPC, com as consequentes implicações a nível de questões prévias constantes do articulado 35º da “Resposta” da Requerida. Mais informou quer a Requerente quer a Requerida que através de despacho interlocutório (junto aos presentes autos) fundamentaria a improcedência da exceção dilatória invocada pela Requerida, designando o dia 21 de maio de 2012 para entrega no CAAD do referido despacho, devendo o CAAD notificar as partes nas pessoas dos Mandatários, o que veio a acontecer no dia 21 de maio de 2012. Ficou igualmente marcada de forma definitiva a data para a produção de alegações orais finais, ao abrigo do disposto no artigo 18º n.º2 do RJAT, para o dia 14 de Junho de 2012.

 

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  1. No dia 14 junho 2012 teve lugar no CAAD a reunião prevista ao abrigo do artigo 18º do RJAT para produção de alegações orais. Iniciados os trabalhos, foi retificado um lapso material na indicação da constituição do tribunal através da elaboração de uma nova ata com a devida correção. De seguida, os Mandatários quer da Requerida quer da Requerente procederam às alegações orais sobre a matéria de direito cujos conteúdos são semelhantes aos que constam dos autos. O tribunal face aos princípios da liberdade na condução do processo, conforme previsto no artigo 19º do RJAT e perante a inexistência de quaisquer diligências probatórias adicionais, designou a data de 31 de julho de 2012 para a prolação da decisão final, assim viabilizando o cumprimento do prazo disposto no n.º 1 do artigo 21º do RJAT.

 

 

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Cumpre pois apreciar e decidir.

 

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II. DAS EXCEÇÕES

 

1 Da exceção de ilegitimidade passiva da AT

 

Conforme referido acima e tendo em conta o disposto no artigo 18º do RJAT, a análise desta exceção já foi objeto de análise e de despacho arbitral proferido em 21 de maio de 2012. Quer a Requerente quer a Requerida nas pessoas dos seus Mandatários foram notificados em 21 de maio de 2012 da improcedência da mesma.

 

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2 Da alegada incompetência absoluta do tribunal arbitral

 

Alega por fim a Requerente a incompetência absoluta deste tribunal arbitral, por, em suma, os municípios, que entende deverem ser chamados à presente lide, não estarem vinculados a tal jurisdição, nos termos legais. Tal alegação, não colhe provimento.

 

Sobre esta matéria e seguindo de perto a jurisprudência firmada por este tribunal no processo 22/2011-T, importa salientar que a competência dos tribunais arbitrais se encontra definida no artigo 2° do RJAT, sendo que nos termos da alínea a) do n.°1 do referido preceito legal, decorre que os tribunais arbitrais dispõem de “competência para apreciação da pretensão de declaração de ilegalidade de actos de liquidação e de autoliquidação de tributos”.

 

De igual modo, o n.º 1 do artigo 4º do RJAT estabelece que “a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais depende de portaria conjunta dos ministros das Finanças e da Justiça, sendo certo que tal vinculação foi expressamente estabelecida pela Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março. Assim, nos termos do artigo 1º da referida Portaria determina-se, inequivocamente, a vinculação à jurisdição arbitral da AT.

 

Deste modo, há que concluir encontrar-se a matéria em litígio incluída na competência deste tribunal arbitral com a consequente vinculação da AT à presente arbitragem. Assim, este tribunal arbitral decide pela improcedência da arguida exceção dilatória de incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria para a apreciação do litígio.

 

Sobre a alegada impossibilidade de executar contra os municípios a decisão que venha a ser proferida por este tribunal arbitral e mesmo admitindo-se a bondade de tal asserção, sempre se dirá que caberá à AT – na qualidade de autora do ato tributário sindicado – que, em caso de procedência total ou parcial do pedido formulado pela Requerente e submetida a pronúncia arbitral, reembolsar o autor da quantia ilegalmente recebida.

 

Termos em que se julga a exceção de incompetência do presente tribunal improcedente.

 

Acompanham-se, assim, as decisões que, sobre as invocadas exceções, foram tomadas nos Processos n.ºs 10/2011-T, 19/2011-T, 24/2011-T, 1/2012-T, 2/2012-T e 5/2012, todos consultáveis em http://www.caad.org.pt/

 

 

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III. SANEAMENTO

 

O tribunal é competente, dispondo as partes de personalidade e capacidade judiciária, sendo legítimas ambas partes conforme decidido supra.

 

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DECISÃO

 

 

IV. MATÉRIA DE FACTO

 

Factos dados como provados:

 

  1. A Requerente submeteu em 30 de maio de 2011 relativamente ao exercício de 2010, a declaração modelo 22 relativa à autoliquidação de IRC e da derrama municipal num montante total de Euros 31.087,05, (trinta e um mil e oitenta e sete Euros e cinco cêntimos), correspondendo o valor de Euros 29.251,72, (vinte e nove mil, duzentos e cinquenta e um Euros e setenta e dois cêntimos), a derrama municipal e Euros 1.835,33, (mil oitocentos e trinta e cinco Euros e trinta e três cêntimos), a tributação autónoma. Efetuou em 31 de maio de 2011 o pagamento de Euros 31.087,05, (trinta e um mil e oitenta e sete Euros e cinco cêntimos), relativo ao IRC (tributação autónoma) e derrama municipal.

 

  1. Relativamente ao exercício fiscal de 2010, apurou, para efeitos de IRC o lucro tributável no montante de Euros 1.950.114,95, (um milhão novecentos e cinquenta mil cento e catorze euros e noventa e cinco cêntimos), tendo prejuízos fiscais reportáveis relativos aos últimos 6 (seis) anos no montante de Euros 4.626.403,55 (quatro milhões seiscentos e vinte e seis mil quatrocentos e três euros e cinquenta e cinco cêntimos). O montante acima referido relativo a prejuízos fiscais reportáveis acumulados referente aos últimos 6 (seis) exercícios reparte-se da seguinte maneira:


 

- exercício 2005 : Euros 322.353,74 (trezentos e vinte e dois mil trezentos e cinquenta e três Euros e setenta e quatro cêntimos)

- exercício 2006 : Euros 826.875,47 (oitocentos e vinte e seis mil oitocentos e setenta e cinco Euros e quarenta e sete cêntimos)

- exercício 2007 : Euros 896.620,69 (oitocentos e noventa e seis mil seiscentos e vinte Euros e sessenta e nove cêntimos)

- exercício 2008 : Euros 833.589,31 (oitocentos e trinta e três mil quinhentos e oitenta e nove Euros e trinta e um cêntimos)

- exercício 2009 : Euros 1.746.964,34 (um milhão setecentos e quarenta e seis mil novecentos e sessenta e quatro Euros e trinta e quatro cêntimos).


 

  1. Foi notificada a 19 de julho de 2011 da demonstração de liquidação de IRC e da derrama n.º … referente ao exercício fiscal de 2010.


 

  1. Deduziu nos termos do disposto nos artigos 137º n.º 2 do CIRC, 68º e 131º do CPPT reclamação graciosa n.º … junto da Direção de Finanças de Lisboa - Serviço de Oeiras – … . O procedimento adotado pela Requerente é o próprio, fê-lo tempestivamente ao abrigo do disposto no artigo 70º n.º1 conjugado com o artigo 102º n.º1 al. a) ambos do CPPT e a Requerente tem igualmente legitimidade para o ato conforme o disposto no artigo 65º da LGT.


 

  1. A Requerente em sede de reclamação graciosa, que se considera inteiramente reproduzida junto dos autos, pede no ponto V - EM CONCLUSÃO - DO PEDIDO o seguinte:

(…)

 

Em conclusão,

 

a) Requer-se a anulação da liquidação ora impugnada por enfermar de ilegalidade, ao assentar numa interpretação que viola os princípios constitucionais da capacidade contributiva e da igualdade tributária

 

b) Interpretação que resulta igualmente ilegal por considerar que as normas constantes do bloco normativo composto pelo artigo 14º da NLFL e pelos artigos 15°, n° 1, a), 1) e c), 1), e 52°, ambos do Código do IRC impõem a tributação em derrama no exercício de 2010, no qual a ora Reclamante não teve qualquer matéria colectável para efeitos de IRC

 

c) Ilegalidade que ora se invoca e que gera a anulabilidade do acto

 

Nestes termos, e nos demais de Direito que v.Exª suprirá requer-se ao abrigo do disposto nos 68.°nº 1 do CPPT a anulação do acto de liquidação de derrama, com as legais consequências.

 

Adicionalmente, requer-se ainda a V. Exª. que se digne a pagar à Reclamante juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.°, da LGT. ”


 


 

  1. Em 30 de novembro de 2011, a Requerente foi notificada pelo Serviço Local de Finanças de Oeiras – … por meio de carta registada, na pessoa do seu mandatário para exercer o direito de audição, ao abrigo do disposto no artigo 60º da LGT, no prazo de 8 (oito) dias, cujo termo se verificou em 9 de dezembro de 2012, não o tendo exercido. Foi notificada em 21 de dezembro de 2011 por ofício postal registado com aviso de receção pela mesma entidade da improcedência da reclamação.


 

  1. Em 24 de janeiro de 2012, foi aberto pelo Serviço de Finanças Oeiras – …, procedimento de recurso hierárquico com o n.º …, remetido à Direção de Serviços de IRC para decisão, entretanto não proferida, por ter sido apenso aos presentes autos de arbitragem.


 

  1. O recurso hierárquico considera-se inteiramente reproduzido nos autos visando o mesmo recorrer do despacho de indeferimento da reclamação graciosa em tempo apresentada. Os fundamentos do recurso hierárquico são os mesmos dos reiterados em sede de reclamação graciosa. O procedimento adotado pela Requerente é próprio, fê-lo tempestivamente ao abrigo do disposto nos artigos 66º, n.º 2 e 76º n.º 1, ambos do CPPT, e a Requerente tem igualmente legitimidade para o ato conforme o disposto no artigo 65º da LGT.


 

  1. A 20 de janeiro de 2012, a Requerente deu entrada do pedido de constituição do presente tribunal arbitral no CAAD.


 

 

 

Factos dados como não provados:

 

Inexistem.

 

Motivação dos factos dados como provados.

 

Os factos dados como provados integram matéria não contestada pelas partes e documentalmente demonstrada nos autos.

 

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V. DO DIREITO

 

1 Da ilegalidade da liquidação de derrama municipal

 

A questão material controvertida consiste em determinar se a liquidação da derrama municipal relativa ao exercício fiscal de 2010 por parte da … SA ao abrigo do artigo 14º da NLFL (Lei 2/2007 de 15 de janeiro) enferma ou não de ilegalidade por violação dos princípios da capacidade contributiva, igualdade e tributação pelo lucro real pela não consideração de prejuízos fiscais reportáveis de anos anteriores.

 

O regime jurídico da derrama municipal sofreu alterações nomeadamente em termos de regras de cálculo sobre a mesma levando a doutrina e a jurisprudência a pronunciar-se sobre a respetiva evolução jurídica.

 

Assim, no Acórdão do STA de 22 de junho 2011 processo 309/11 (disponível em www.dgsi.pt) relativamente à autoliquidação da derrama municipal do exercício fiscal de 2007 ao abrigo da NLFL – Lei 2/2007 de 15 de janeiro – onde a questão material controvertida era o de se saber como é calculada a derrama municipal quando é aplicado o Regime de Tributação de Grupo de Sociedades (RTGS), o referido Tribunal Superior pronunciou-se e, na parte que é relevante para a questão material controvertida nos seguintes termos:

 

«O actual regime da derrama é o que resulta da Lei das Finanças Locais (LFL), aprovada pela Lei 2/2007, de 15 de Janeiro.

Dispõe o nº 1 do artigo 14º desta Lei que “Os municípios podem deliberar lançar anualmente uma derrama, até ao limite máximo de 1,5% sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC), que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português, que exerçam, a título principal, uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território”.
Na vigência da LFL de 1987 (Lei nº 1/87, de 6 de Janeiro) as derramas só podiam ser lançadas para «ocorrer ao financiamento de investimentos ou no quadro de contratos de reequilíbrio financeiro» e eram calculadas por aplicação de uma taxa à colecta.
A actual LFL exige apenas uma “deliberação fundamentada” da Assembleia Municipal, passando a derrama a ser calculada por aplicação de uma taxa à matéria colectável.
A derrama perdeu, assim, a natureza de imposto extraordinário e deixou de ser um adicional ao IRC para passar a ser um adicionamento (v. Passado, Presente e Futuro da Derrama, de Rui Duarte Morais, in Fiscalidade, nº 38, p. 110 e 111).
A circunstância, porém, de a derrama sempre ter prefigurado um mero imposto adicional, assente sobre as regras de incidência e liquidação dos impostos da administração central, levou a que a sua disciplina legal se mantivesse relativamente ligeira.
Mas, como assinala Sérgio Vasques, in “O sistema de tributação local e a derrama” (Fiscalidade citada, p. 122), a complexidade da vida económica das empresas dos nossos tempos talvez impusesse que o velho adicional merecesse maior atenção por parte do legislador que as regras sucintas que lhe dedica o artigo 14º da LFL.
Até porque surgem, com frequência problemas delicados na gestão deste imposto, quer para a administração, quer para os contribuintes, como é o caso da partilha da receita da derrama quando estejam em causa empresas com actividade em municípios diversos (n.º 2 do artigo 14º da LFL).
É certo que, de acordo com a actual redacção da LFL de 2007, se trata claramente de um imposto autónomo em relação ao IRC, pois todos os seus elementos estruturantes ora resultam da lei (sujeito activo, margem de taxas) ou obedecem à intervenção da autarquia local (tributação ou não, taxas concretas), apenas comungando, para efeitos do seu cálculo e por simplicidade de gestão, de uma incidência objectiva comum (v. Saldanha Sanches, in revista citada, p. 137 e 138).
Por outro lado, a base de incidência da derrama deslocou-se, como vimos, da colecta de IRC para o lucro tributável em IRC.
A base de incidência da derrama passou, deste modo, a coincidir com a do IRC, no que respeita aos sujeitos passivos que exerçam a título principal actividade comercial, industrial ou agrícola, quer sejam residentes ou não residentes que exerçam tal actividade através de estabelecimento estável situado em território português (artigo 3º, nº 1, alíneas a) e c) do CIRC).
Esta coincidência entre bases de incidência apenas foi afastada quanto aos lucros sujeitos mas isentos de IRC, os quais ficaram expressamente excluídos da base de incidência da derrama.
Esta deslocação suscita novas questões, entre as quais sobressai a da determinação da matéria colectável da derrama cujas regras permanecem omissas no actual regime legal.
Não obstante a autonomização acima assinalada em relação à incidência, à colecta e à taxa do IRC, a derrama continua, todavia, a depender do regime do IRC em todos os outros campos que definem a sua relação jurídica tributária.
Com efeito, além de remeter expressamente para o IRC na definição da sua base de incidência e dos seus sujeitos passivos, o regime da derrama é omisso quanto a regras próprias de determinação da matéria colectável, liquidação, pagamento, obrigações acessórias e garantias, para elencar apenas aquelas em que tradicionalmente se analisa a relação jurídica tributária.
Ora, como sustenta Manuel Anselmo Torres, a propósito da relevância dos prejuízos fiscais na matéria colectável da derrama, in Fiscalidade nº 38, a fls. 159, a única via para integrar essas lacunas consiste em aplicar à derrama o regime previsto para o IRC.
Na verdade, como refere o autor citado, só o CIRC nos permite concluir, por exemplo, que a derrama deve ser objecto de autoliquidação e paga até ao fim do 5º mês seguinte ao fim do período de tributação
».
 

Assim, decorrente da evolução ocorrida a nível de modelo de financiamento do poder local, foi publicada a NLFL. É pacífico quer a nível de doutrina quer de jurisprudência, que a derrama municipal deixou de ser um imposto extraordinário e adicional ao IRC para ser um “adicionamento” ao IRC como refere Rui Duarte Morais (v. Passado, Presente e Futuro da Derrama, in Fiscalidade, nº 38, p. 110 e 111); passou a ser considerado um imposto autónomo.

 

Como é referido no Acórdão do STA de 22 de junho 2011, processo 309/11, acima parcialmente transcrito, a mudança do paradigma de cálculo da derrama municipal concretizada através da NLFL suscita novas questões. Para a resolução das mesmas, terá que se fazer apelo às regras de interpretação existentes no ordenamento jurídico-tributário português.

 

Na interpretação das normas tributárias de acordo com o artigo 12º n.º1 da LGT “ Na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam, são obervadas as regras e principios gerais de interpretação e aplicação das leis”.

 

Relativamente à interpretação de normas jurídicas, no Acórdão de 21 de Junho 2012 do Tribunal da Relação do Porto (JusNet 4029/2012) foi referido o seguinte:

(…)

Assim, é sabido, porém, que a interpretação não se esgota na letra da lei.

Com efeito, nos termos do art. 9º nº 1 do CC, a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (nº 2).

Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (nº 3).

O elemento literal é, assim, o ponto de partida da interpretação, cabendo-lhe, desde logo, uma função negativa: eliminar aquele sentido que não tenha qualquer apoio ou, pelo menos, qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei1 .

A apreensão do sentido literal deve, por isso, ser acompanhada de uma actividade de interligação e valoração em que intervêm elementos de ordem sistemática, histórica e racional ou teleológica. ”.

 

A nivel da própria doutrina afirma-se que “Assim, não se pode, na interpretação, transcender a linguagem, a construção linguística (sintático-formal) para afirmar um significado que não resulte expresso” (v. Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues, Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, 4ª edição, 2012, Encontro da Escrita, p. 120). Assim há que atender não só ao elemento literal mas também a outros elementos como o sistemático e histórico com vista à aplicação das regras da hermenêutica jurídica.

 

Quanto ao elemento literal, o legislador da NLFL relativamente à base de incidência da derrama municipal faz uma remissão expressa para o conceito de lucro tributável para efeitos de IRC relativamente a sujeitos passivos daquele imposto sujeitos e não isentos e a mais nenhum outro conceito de lucro tributável existente noutro tributo. Passou a haver uma coincidência entre bases de incidência para efeitos de IRC e de derrama municipal, conforme é reconhecido jurisprudencialmente a nível do STA (Acórdão proferido em 2 de maio de 2012, processo n.º 234/12, Acórdão do STA de 22 de junho 2011, processo 309/11, Acórdão de 2 de fevereiro de 2011, processo n.º 909/2010 – disponíveis em www.dgsi.pt). Fazendo apelo ao elemento sistemático constata-se que o legislador quis reforçar a ideia de que da base de incidência da derrama para sujeitos passivos de IRC não isentos não deveriam fazer parte da mesma prejuízos fiscais de anos anteriores referidos no artigo 52º do CIRC porque o que faz parte dessa base de incidência é o conceito de lucro tributável existente no CIRC no artigo 17º.

O lucro tributável é definido no artigo 17º n.º1 do IRC como “ O lucro tributável das pessoas colectivas e outras entidades mencionadas na alínea a) do nº 1 do artigo 3º é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do exercício e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código.” Na definição do conceito, lucro tributável, está expurgado qualquer “elemento” ligado a prejuízos fiscais de anos anteriores que um sujeito passivo de IRC possa deduzir pois senão teria de fazer apelo a outro conceito existente que é o de matéria tributável, conforme vem definido no artigo 15º do CIRC.

Adicionalmente se atendermos ao elemento histórico da norma referente à forma de cálculo da derrama municipal, artigo 14º da NLFL, verifica-se uma opção clara do legislador na NLFL de ter mudado o paradigma de cálculo da derrama. Ao abrigo da NLFL, não se quis entrar em linha de conta com os prejuízos fiscais reportáveis de exercícios anteriores àquele exercício relativamente ao qual estava ser calculada a derrama municipal e daí se ter usado o conceito de lucro tributável conforme definido no CIRC comparativamente com a anterior regra de cálculo ao abrigo do artigo 18º da Lei n.º 42/98 (antiga Lei de Finanças Locais que esteve em vigor até ao exercício de 2006, inclusivé). De fato, ao abrigo do referido artigo 18º, onde o cálculo da derrama era efetuada sobre a coleta de IRC, era levado em linha de conta o montante de prejuízos fiscais anteriores reportáveis que o sujeito passivo de IRC tinha com as inerentes consequências a nível das receitas locais devido à potencial volatilidade das mesmas derivada da existência do montante de prejuízos fiscais que pudessem ser utilizados pelos sujeitos passivos.

 

Adicionalmente há que referir que com a revisão constitucional de 1997 foi atribuído expressamente poder tributário às autarquias locais decorrentes da consagração constitucional do princípio da autonomia do poder local previsto no artigo 238º da CRP.

 

A autonomia local implica a existência de receitas próprias acompanhada de despesas próprias. Assim, a autonomia financeira das autarquias locais passa pelo reconhecimento de poderes tributários próprios tendo as autarquias que assegurar as receitas próprias para financiar as suas atividades, o que passaria pela alteração do modelo existente que se consubstanciou nomeadamente a nível da derrama municipal pela alteração da regra de cálculo da mesma. Deste modo, com a entrada em vigor da NLFL a derrama municipal passou a considerar como base tributável o lucro tributável do IRC dos sujeitos passivos de IRC não isentos em vez da coleta, alargando assim a base tributável da derrama municipal pela desconsideração de prejuízos fiscais de exercícios anteriores reportáveis.

 

Assim, quando a Requerente refere na Petição Inicial que o regime jurídico da derrama municipal é lacunar nalguns aspetos, tal entendimento vem de encontro ao que é defendido a nível de jurisprudência do STA (vide Acórdão de 2 de maio de 2012, processo n.º 234/12, Acórdão de 22 de junho 2011, processo 309/11e Acórdão de 2 de fevereiro de 2011, processo n.º 909/2010 – disponíveis em www.dgsi.pt). Com vista a reforçar a ideia de que o regime jurídico da derrama municipal nalguns aspetos é lacunar e por isso tem que se socorrer do regime estatuído em IRC, transcreve-se parte do Acórdão do STA de 22 de junho 2011, processo 309/11 onde se afirma “Ora, como sustenta Manuel Anselmo Torres, a propósito da relevância dos prejuízos fiscais na matéria colectável da derrama, in Fiscalidade nº 38, a fls. 159, a única via para integrar essas lacunas consiste em aplicar à derrama o regime previsto para o IRC.
Na verdade, como refere o autor citado, só o CIRC nos permite concluir, por exemplo, que a derrama deve ser objecto de autoliquidação e paga até ao fim do 5º mês seguinte ao fim do período de tributação”.

 

No entanto, a mesma jurisprudência vem afirmar que com a NLFL “a base de incidência da derrama deslocou-se da coleta de IRC para o lucro tributável em IRC. A base de incidência da derrama passou, deste modo, a coincidir com a do IRC, no que respeita aos sujeitos passivos que exerçam a título principal actividade comercial, industrial ou agrícola, quer sejam residentes ou não residentes que exerçam tal actividade através de estabelecimento estável situado em território português (artigo 3º, nº 1, alíneas a) e c) do CIRC).”

 

A Requerida tem razão quando afirma que não é licito presumir que o legislador quando disse “lucro tributável” se estava a referir a “matéria tributável” porque pelas regras de interpretação estatuídas no artigo 12º da LGT, a intenção do legislador foi utilizar o conceito de “lucro tributável” que é utilizado para efeitos de IRC como base de incidência para efeitos de cálculo da derrama municipal e não tomar em consideração quaisquer prejuízos fiscais de anos anteriores no cálculo da mesma. Se assim fosse, o artigo 14º n.º1 da NLFL deveria ter a seguinte redação: “Os municípios podem deliberar lançar anualmente uma derrama, até ao limite máximo de 1,5% sobre a matéria tributável sujeita e não isenta de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português, que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território”, o que não se verifica.

 

Pode concluir-se que com a NLFL no cálculo da derrama municipal não se deve ter em conta prejuízos fiscais de exercícios anteriores, uma vez que para efeitos desse cálculo se deve usar o conceito de lucro tributável tal como ele é definido no CIRC no artigo 17º e, como tal, a ausência da utilização de prejuízos fiscais de exercícios anteriores.

 

 

***

 

A Requerente levanta a questão de, por respeito ao principio da capacidade contributiva, da tributação do lucro real e do principio da igualdade, na liquidação da derrama municipal, se deva tomar em linha de conta prejuízos fiscais de exercícios anteriores. Caso isso não seja possível, qualquer liquidação de derrama municipal enferma de uma ilegalidade tendo como consequência a anulabilidade do ato tributário com base no artigo 99º n.º2 do CPPT e dos artigos 135º e 136º do CPA.

 

Convém delimitar os conceitos supra mencionados.

 

O princípio da capacidade contributiva2 é caracterizado consensualmente pela doutrina e jurisprudência do Tribunal Constitucional como um princípio estruturante do sistema fiscal que exprime e concretiza o princípio da igualdade tributária e que tem assento implícito na “Constituição Fiscal” por força dos artigos 103º e 104º da CRP, assim como no Direito Fiscal português no artigo 4º da LGT. O princípio declara o dever de todos pagarem impostos de acordo com um critério uniforme implicando isso que cada um deve ser tributado de acordo com a sua capacidade económica. De acordo com o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 452/2003 “«O princípio da capacidade contributiva exprime e concretiza o princípio da igualdade fiscal ou tributária na sua vertente de “uniformidade” – o dever de todos pagarem impostos segundo o mesmo critério – preenchendo a capacidade contributiva o critério unitário da tributação. Consiste este critério em que a incidência e a repartição dos impostos – dos “impostos fiscais” mais precisamente – se deverá fazer segundo a capacidade económica ou “capacidade de gastar” (na formulação clássica portuguesa, de Teixeira Ribeiro, “A justiça na tributação” in “Boletim de Ciências Económicas”, vol. XXX, Coimbra 1987, n.º 6, autor que também se lhe refere como “capacidade para pagar”) de cada um e não segundo o que cada um eventualmente receba em bens ou serviços públicos (critério do benefício).

Decorre do princípio da capacidade contributiva que ao ser postulado que cada sujeito passivo deva pagar na medida das suas possibilidades (“capacidade de pagar”), este constitua um pressuposto de justiça fiscal no que diz respeito à repartição dos impostos pelas pessoas (singulares ou coletivas). Por outro lado, o pagamento na medida das possibilidades de cada sujeito passivo implica que os sujeitos passivos com maior capacidade económica venham a pagar um imposto mais elevado comparativamente a sujeitos passivos com menor capacidade económica.

 

Adicionalmente o princípio da capacidade contributiva engloba em si mesma duas dimensões - o pressuposto ou fonte de tributação e o limite ou medida do valor do imposto. Na vertente do pressuposto ou fonte de tributação, a capacidade económica manifesta-se através da titularidade ou utilização da riqueza; como limite veda a possibilidade de o legislador adotar elementos no ordenamento jurídico tributário contrários à ideia de justiça fiscal que o principio comporta em si mesmo. As manifestações de riqueza que usualmente manifestam capacidade económica do sujeito passivo são o rendimento, património e consumo.

 

Na questão material controvertida, o princípio da capacidade contributiva nas empresas (quer a titulo individual quer a titulo societário) manifesta-se através do apuramento em determinado exercício fiscal de rendimento tributável que poderá assumir a forma de lucro tributável ou prejuízo fiscal (rendimento tributável negativo).

 

O direito à dedução de prejuízos fiscais anteriores a ocorrer dentro do prazo de caducidade por parte das empresas não decorre do principio da capacidade contributiva mas sim do princípio da solidariedade dos exercícios da empresa, dentro de certos limites, mas tão somente nos precisos termos da tributação em IRC – e não, obviamente em sede de derrama municipal.

 

Como já foi reconhecido jurisprudencialmente confirmando o que a doutrina vinha propugnando há algum tempo, nomeadamente nas pessoas dos Professores Doutores A. Sousa Franco e J.L. Saldanha Sanches, a derrama municipal é um imposto autónomo face ao IRC e por isso a perspetiva de continuidade e de solidariedade de exercícios subjacente no IRC não tem que estar presente forçosamente na derrama. Assim, não se descortina a razão pela qual no cálculo da derrama municipal se devesse entrar com os prejuízos fiscais de anos anteriores em respeito ao principio da capacidade contributiva.

 

Assim, não assiste razão à Requerente quando a mesma refere que a consideração de prejuízos fiscais de anos anteriores decorre do princípio da capacidade contributiva.

 

A Requerente afirma que a dedutibilidade dos prejuízos fiscais de exercícios anteriores impõe-se quer ao legislador quer à AT devido ao princípio de tributação das empresas pelo respetivo lucro real estatuído no artigo 104º n.º2 da CRP.

 

No caso da derrama municipal a capacidade contributiva manifesta-se através do lucro tributável (leia-se rendimento tributável positivo). Em sede de derrama municipal, se um sujeito passivo não isento para efeitos de IRC apurar lucro tributável conforme vem definido no IRC, há lugar a tributação porque o seu lucro real para efeitos de derrama municipal existe e como tal tem que ser tributado e é-o por força do artigo 14º da NLFL. Se outro sujeito passivo não isento para efeitos de IRC apresentar no mesmo exercício prejuízo fiscal, tal como vem definido no IRC, a sua capacidade contributiva nesse exercício é zero e, como tal, a tributação em sede de derrama municipal não existe, igualmente por força do artigo 14º da NLFL, porque o seu lucro real para efeitos de derrama não existe. Daqui decorre que havendo tributação de acordo com o lucro real aferido através da capacidade contributiva, então, o princípio da capacidade contributiva é respeitado dando-se cumprimento ao que se encontra plasmado no artigo 104º n.º2 da CRP conforme jurisprudência do Tribunal Constitucional firmada no Acórdão 142/2004 de 10 de Março:

 

(…)

Não obstante o silêncio da Constituição, é entendimento generalizado da doutrina que a 'capacidade contributiva' continua a ser um critério básico da nossa 'Constituição fiscal', sendo que a ele se pode (ou deve) chegar a partir dos princípios estruturantes do sistema fiscal formulados nos artigos 103.º e 104.º da CRP (cf. Casalta Nabais, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, pp. 445 e segs., onde, no entanto, se defende que, embora o princípio não careça - para ter suporte constitucional - de preceito específico e directo, não é de todo inútil ou indiferente a sua consagração expressa).

 

Assim, não assiste razão à Requerente quando afirma que a tributação do lucro real pressupõe a dedutibilidade dos prejuízos fiscais anteriores devido aos termos supra expostos.

 

A Requerente refere que também devido ao princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da CRP, para efeitos de cálculo da derrama municipal se deveriam deduzir os prejuízos fiscais de exercícios anteriores.

 

O princípio da igualdade tem um conteúdo material através do qual se deve “dar tratamento igual ao que é igual e tratamento desigual ao que é desigual”.

 

A NLFL cumpre com este principio uma vez que um sujeito passivo de IRC não isento – sujeito passivo A- que apresente lucro tributável terá de liquidar e pagar derrama municipal de acordo com o estatuído no artigo 14º da NLFL, a não ser qua haja alguma isenção lançada pela assembleia municipal de acordo com o estatuído no artigo 12º da NLFL. No mesmo exercício outro sujeito passivo de IRC não isento – sujeito passivo B - caso apure prejuízo fiscal, não terá que liquidar derrama municipal. Está-se perante situações desiguais, no 1º caso – lucro tributável do exercício – no 2º caso – prejuízo fiscal do exercício – com regimes fiscais diferentes para efeitos de derrama municipal.

 

A dedutibilidade de prejuízos fiscais de exercícios anteriores não tem a ver com o principio da igualdade mas sim com o principio da solidariedade de exercícios decorrentes de uma perspetiva de continuidade subjacente no IRC mas que não existe no derrama municipal.

 

Assim não assiste razão à Requerente quando afirma que a não dedutibilidade de prejuízos fiscais de exercícios anteriores viola o princípio da igualdade.

 

***

 

Do que acima ficou dito, é entendimento deste tribunal arbitral que a base de cálculo da derrama municipal ao abrigo do estatuído no artigo 14º da NLFL, à data dos fatos em causa nestes autos, deverá tomar em consideração o conceito de lucro tributável tal como ele é definido no artigo 17º do CIRC.

 

A não consideração dos prejuízos fiscais de exercícios anteriores na base de cálculo da derrama municipal não viola os princípios da capacidade contributiva, igualdade tributária e tributação pelo lucro real.

 

Nestes termos, a liquidação objeto do presente processo arbitral não está inquinada do vício de violação de lei por erro nos pressupostos de direito, pelo que é legal, devendo a mesma ser mantida.

 

***

 

2 Dos juros indemnizatórios

 

A requerente peticiona ainda o pagamento de juros indemnizatórios.

 

Nos termos do disposto nos artigos 61º do CPPT e 43º da LGT, são devidos juros indemnizatórios, quando se determine que houve erro imputável aos serviços de que resulte o pagamento da dívida tributária em montante superior ao devido, considerando-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar de a liquidação ser efetuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.

 

No presente caso, a Requerente apresentou a declaração de rendimentos, declaração modelo 22 do exercício fiscal de 2010 de acordo com as instruções de preenchimento da declaração modelo 22 constantes do Despacho n.º 16/2010-XVIII, de 27 de Janeiro, de 10 de Fevereiro de 2010, no Diário da República, 2.ª Série, n.º 28, tendo como consequência o apuramento e o pagamento de um valor de derrama municipal de acordo com o legalmente exigido, conforme demonstrado nos termos supra expostos.

 

Não procede o pedido de pagamento de juros indemnizatórios por parte da Requerida à Requerente.

 

A Requerente não tem, assim, direito a juros indemnizatórios que seriam contados desde a data do pagamento do imposto até à data da emissão da respetiva nota de crédito, contando-se o prazo para esse pagamento do início do prazo para a execução espontânea da presente decisão (artigo 61º, n.ºs 2 a 5, do CPPT), à taxa apurada de harmonia com o disposto no n.º 4 do artigo 43º da LGT.

 

 

3 Indemnização ao abrigo da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado

 

A Requerente peticiona o pagamento de uma indemnização ao abrigo do regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado previsto na Lei 67/2007 de 31 de Dezembro e decorrente do artigo 22º da CRP.

 

Face ao disposto no artigo 266º n.º1 da CRP, os órgãos e agentes da Administração Pública em geral, e da Administração Tributária (leia-se Autoridade Tributária e Aduaneira) em particular, estão subordinados, no exercício das sua funções e competências à lei e à CRP.

 

No caso controvertido, a liquidação da derrama municipal resultante da interpretação e aplicação da NLFL pela AT, não enferma de qualquer ilegalidade conforme demonstrado nos termos supra expostos, não dando origem a qualquer dano na esfera patrimonial da Requerente.

 

Adicionalmente o procedimento da Requerida em sede de reclamação graciosa esteve igualmente conforme com a lei e a CRP.

 

Decorre do supra exposto que não merece provimento o pedido de indemnização por parte da Requerente.

 

 

DECISÃO:

 

Em face do exposto, o Tribunal Arbitral Singular decide:

 

- Julgar improcedente o pedido formulado no presente processo arbitral tributário.

 

- Manter o ato tributário objeto do presente processo arbitral tributário relativo a derrama municipal do exercício de 2010, na parte correspondente ao montante de Euros 29.251,72 (vinte e nove mil, duzentos e cinquenta e um Euros e setenta e dois cêntimos), ao abrigo do disposto no artigo 14º, n.º 1 da NLFL – Lei 2/ 2007 de 15 de janeiro;

 

- Condenar a Requerente no pagamento das custas.

 

Fixa-se o valor do processo em Euros 29.251,72 (vinte e nove mil, duzentos e cinquenta e um Euros e setenta e dois cêntimos), e o valor da correspondente taxa de arbitragem em Euros 1.530,00 (mil quinhentos trinta euros), nos termos dos artigos 12º n.º 2 e 29º, ambos, do RJAT, do artigo 4º n.º 3 do Regime de Custas Processuais de Arbitragem Tributária (RCPAT), da Tabela I do Regulamento de Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e artigo 97º- A do CPPT.

 

Custas a cargo da entidade Requerente.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 31 de Julho de 2012


 


 

Júlio César Nunes Tormenta

 

Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 138º n.º 5 do Código Processo Civil (CPC) aplicável por remissão do artigo 29º n.º 1 alínea e) do Regime de Arbitragem Tributária, com versos em branco e por mim revisto.

 

1 Baptista Machado, Introdução ao Direito e Discurso Legitimador, 10ª Reimp., 182.

2 A aplicação do princípio da capacidade contributiva no ordenamento jurídico-tributário foi objeto de análise em diversas situações por parte do Tribunal Constitucional – Acórdão 142/2004 de 10 de Março processo 453/2003; Acórdão 711/2006 de 29 de Dezembro 2006 processo 1067/06; Acórdão 306/2010 de 14 de Julho 2010 processo 107/10.