Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 70/2013-T
Data da decisão: 2013-11-04  IRS  
Valor do pedido: € 933.715,61
Tema: Cláusula geral anti-abuso
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Decisão Arbitral

 

 

Acordam os árbitros, Conselheiro Jorge Lino Ribeiro Alves de Sousa (Árbitro Presidente), Dr. Luís Máximo dos Santos e Dr. Paulo Manuel Marques Lourenço, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral:

 

1. Relatório

A …, contribuinte fiscal n.º …, B.., contribuinte fiscal n.º … e C… , contribuinte fiscal nº …, formularam pedido de pronúncia arbitral tendo em vista a anulação dos acertos de liquidação de IRS n.ºs …, … e …, referentes ao ano de 2008, no montante global de € 933.715,61 (novecentos e trinta e três mil setecentos e quinze euros e sessenta e um cêntimos).

Os Requerentes apresentaram o pedido essencialmente com os seguintes fundamentos:

 

i) Falta de fundamentação e incumprimento do dever de audição;

ii) Violação de lei, por aplicação da cláusula antiabuso sem estarem verificados os pressupostos exigidos pelo n.º 2 do artigo 38.º da Lei Geral Tributária.

Os Requerentes, a final, apresentaram ainda pedido de indemnização por prestação de garantia indevida, pedido que não sofreu qualquer contestação ou resposta da Autoridade Tributária.

 

Os Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.°, n.º 2, alínea a), do RJAT, os signatários foram designados pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para integrar o presente tribunal arbitral coletivo, tendo declarado expressamente a respetiva aceitação.

Em 22 de maio de 2013 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 06 de junho de 2013.

Em 09 de julho de 2013, a Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, defendendo que o pedido deve ser julgado improcedente, dele devendo ser absolvida a Requerida.

No dia 18 de setembro de 2013, realizou-se a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, tendo-se decidido proceder à inquirição de testemunhas arroladas no dia 4 de outubro de 2013.

As Partes não apresentaram alegações.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 30.º, n.º 1, do RJAT, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

As partes gozam de personalidade jurídica e capacidade judiciária e são legítimas (artigos 4.° e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O processo não enferma de nulidades e não foram suscitadas questões que possam obstar à apreciação do mérito da causa.

2. Matéria de facto

2.1. Factos provados

A matéria de facto relevante para apreciar as questões suscitadas é a seguinte:

  1. Em 19 de abril de 1989 foi constituída, por escritura pública outorgada no cartório notarial de …, a sociedade comercial por quotas com a denominação "D... , Limitada", doravante abreviada para "D...", com o capital social de € 14963,94, repartido por cinco quotas, sendo quatro com o valor nominal de € 4.264,72, pertencentes aos sócios A…, B… e C…, uma outra, com o valor nominal de € 897,84, pertencente ao sócio E…, e uma outra, com o valor nominal de € 1.271,93, pertencente à sócia F... – …, S.A.

  2. Em 1991 foi efetuado um aumento de capital da sociedade D..., que passou a ser de € 149.639,37, mantendo-se a proporcionalidade das quotas no capital social, ficando, cada um dos autores, com uma participação social correspondente a € 42.647,22;

  3. Em 2 de dezembro de 2008, a sociedade foi transformada em sociedade anónima, após um aumento de capital por incorporação de reservas livres de € 360,63, passando a ter um capital social de € 150.000,00 e as participações dos sócios o valor nominal de € 42.750,00 cada uma;

  4. Em 30 de dezembro de 2008, os autores venderam as suas ações da D... à sociedade G... Holding – …, S.A, pelo preço global de € 8.557.500,00 (oito milhões quinhentos e cinquenta e sete mil e quinhentos euros);

  5. O valor das referidas vendas ficou retido na sociedade adquirente, a título de prestações acessórias gratuitas, aí permanecendo até à data atual;

  6. No dia 29 de janeiro de 2009, os autores entregaram, nos Serviço de Finanças de …, a declaração Modelo 4, destinada a participar a alienação das ações;

  7. Os autores entregaram igualmente a declaração Modelo 3 do IRS, juntamente com o anexo G1, destinado exatamente a revelar a venda das participações sociais;

  8. No dia 07 de julho de 2011, foi proposta a abertura de um procedimento inspetivo, que deu origem à ordem de serviço externa n.º OI2011…, cujo conhecimento aos autores foi dado através do ofício n.º …, de 11 de julho de 2011;

  9. Em 04 de agosto de 2011, os autores foram notificados, através do ofício n.º …, do Despacho de 04 de agosto de 2011, da abertura do procedimento de aplicação das normas antiabuso;

  10. Em 17 de agosto de 2011, os autores foram notificados, através do ofício n.º …, para exercerem o direito de audição sobre o Despacho que determinou a aplicação das normas antiabuso;

  11. No dia 14 de setembro de 2011, foi exercido o direito de audição e, em 13 de outubro de 2011, através do ofício n.º …, foi enviada ao Diretor Geral dos Impostos a informação para a aplicação da cláusula antiabuso;

  12. Por Despacho de 15 de novembro de 2011, exarado na informação n.º …/2011, de 9 de novembro de 2011, notificado aos autores no dia 28 de novembro de 2011, o Diretor Geral dos Impostos autorizou a aplicação das disposições antiabuso, com vista à desconsideração da operação de transformação da sociedade D... – … sociedade anónima;

  13. No dia 28 de dezembro de 2011, foi efetuada a notificação aos autores, através do ofício n.º …, do projeto de relatório da inspeção tributária, com vista ao exercício do direito de audição;

  14. Os autores foram notificados das liquidações adicionais, cujo prazo de pagamento terminou no dia 14 de março de 2012;

  15. Os autores deduziram reclamações graciosas, as quais vieram a ser indeferidas por Despachos de 20 de março de 2013.

 

2.2. Fundamentação da matéria de facto


 

Os factos provados baseiam-se nos documentos juntos ao processo e nos elementos que constituem o processo administrativo, e também nos depoimentos das testemunhas inquiridas.

Não há factos não provados com relevo para a decisão da causa.

 

3. Matéria de direito

 

3.1. Da falta de fundamentação e do incumprimento do dever de audição

A falta de fundamentação e o eventual incumprimento do dever de audição, apenas são relevantes no caso de se concluir que estão reunidos os pressupostos para a aplicação da cláusula geral antiabuso.

Na verdade, se eventualmente se vier a concluir pela falta de verificação dos pressupostos para a aplicação da referida cláusula, é irrelevante a apreciação referente à falta de fundamentação, pelo que importa analisar em primeiro lugar se estão ou não verificados os requisitos legais exigíveis para que a Autoridade Tributária possa proceder à aplicação da supra mencionada cláusula.


 

3.2 Da existência ou não dos requisitos legais e dos factos objetivos e subjetivos para aplicação da cláusula geral antiabuso

3.2.1. Planeamento fiscal legítimo e ilegítimo

Nas definições elaboradas por SALDANHA SANCHES, Os limites do planeamento fiscal, Coimbra Editora, 2006, pág. 21, o planeamento fiscal legítimo "consiste numa técnica de redução da carga fiscal pela qual o sujeito passivo renuncia a um certo comportamento por este estar ligado a uma obrigação tributária ou escolhe, entre as várias soluções que lhe são proporcionadas pelo ordenamento jurídico aquela que, por ação intencional ou omissão do legislador fiscal, está acompanhada de menos encargos fiscais". Por outro lado, o planeamento fiscal ilegítimo "consiste em qualquer comportamento de redução indevida, por contrariar princípios ou regras do ordenamento jurídico-tributário, das onerações fiscais de um determinado sujeito passivo".

Dentro do quadro do planeamento fiscal podemos, assim, distinguir as situações em que o sujeito passivo atua contra legem, extra legem e intra legem.

Quando este atua contra legem, a sua atuação é frontal e inequivocamente ilícita, pois infringe diretamente a lei fiscal, e configura uma fraude fiscal passível, inclusive, de ser objeto de censura contra ordenacional ou criminal (acórdão do TCA Sul, de 12 de fevereiro de 2011).

A atuação extra legem ocorre quando o sujeito passivo aproveita de forma abusiva a lei para chegar a um resultado fiscal mais favorável, pese embora este não a violar diretamente. Este adota “um comportamento que tem como finalidade exclusiva ou principal contornar uma ou várias normas jurídico-fiscais, de modo a conseguir a redução ou a supressão do encargo fiscal", conforme salientam JÓNATAS MACHADO e NOGUEIRA DA COSTA, Curso de Direito Tributário, Coimbra Editora, 2009, pág. 340.

Sendo que, como refere SALDANHA SANCHES, na obra supra citada, pág. 181, dessa ou dessas normas jurídico-fiscais se deve detetar uma tentativa de contornar "uma clara intenção de tributar afirmada pelos princípios estruturantes do sistema".

Este tipo de atuação écomummente designada de ''fraude à lei fiscal" mas, conforme alerta SALDANHA SANCHES, pretendendo melhor ilustrar e distinguir estas situações das de fraude fiscal, também designada de "evitação abusiva de encargos fiscais", "evitação fiscal abusiva" ou ainda "elisão fiscal".

Só se afigura legítima - e, assim, planeamento fiscal legítimo ou não abusivo - a atuação intra legem. Com efeito, a obtenção de uma poupança fiscal não constitui um comportamento proibido pela lei, desde que a atuação não se enquadre na supra referida atuação extra legem.

Sucintamente, os requerentes contestam que configure planeamento fiscal abusivo a transformação de uma sociedade por quotas em sociedade anónima, por considerarem que o negócio jurídico se insere no reenquadramento das participações dos três principais sócios da D... no âmbito de uma sociedade gestora de participações sociais, de cujo capital os mesmos eram titulares.

A entidade financiadora, a …, S.A., entendia que a carteira de participações da G... Holding apresentava um peso excessivo de ativos cotados em bolsa, para além de ter uma autonomia financeira relativamente reduzida, sendo estas as razões que determinaram a transformação da sociedade e a respetiva integração na referida G....

Acresce ainda que a transformação e a consequente integração tiveram igualmente em vista a imagem da empresa, que exporta cerca de 70% da respetiva produção, sendo certo que, em resultado da venda das ações, nenhum dos autores recebeu qualquer quantia.

Este comportamento que a Autoridade Tributária entende constituir um planeamento fiscal abusivo, na medida em que, através daquela transformação em sociedade anónima, que considera desnecessária e fiscalmente motivada, mais considerando que os demais atos e negócios jurídicos foram "encenados" e subsequente venda de ações (em vez de quotas), os requerentes evitam a tributação de mais-valias em sede de IRS.

 

Assim sendo, a questão colocada a este tribunal, na sequência do procedimento de aplicação da cláusula geral antiabuso - um dos mecanismos legais a que o legislador recorre para dar resposta aos comportamentos de planeamento fiscal abusivo - reside em saber se a atuação do sujeito passivo se situa intra ou extra legem, ou seja, se o planeamento fiscal que adotou é legítimo ou ilegítimo, se é não abusivo ou abusivo.


 

3.2.2. Elementos da cláusula geral antiabuso

Sob a epígrafe "Ineficácia de atos e negócios jurídicos", dispõe o artigo 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária em relação à denominada cláusula geral antiabuso no direito tributário.

A letra plasmada pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, passou a ser a seguinte:

"São ineficazes no âmbito tributário os atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efetuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas".

Esta norma é complementada pelo artigo 63.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, quecontém um conjunto de normas concretizadorasdos parâmetros conformadores do procedimento de aplicação das disposições antiabuso.

A doutrina e a jurisprudência têm vindo a descortinar no sentido da norma cinco elementos nela patentes. Correspondendo um dos elementos à estatuição da norma, os restantes quatro afiguram-se requisitos cumulativos que permitem aferir, como se de um teste se tratasse, quanto à verificação de uma atividade caracterizável como um planeamento fiscal abusivo.

Estes elementos, em torno dos quais ambas as partes aliás constroem a sua argumentação, consistem:

 

  1. no elemento meio, que diz respeito à via livremente escolhida - ato ou negócio jurídico, isolado ou parte de uma estrutura de atos ou negócios jurídicos sequenciais, lógicos e planeados, organizados de modo unitário pelo contribuinte para obter o desejado ganho ou vantagem fiscal;

  2. no elemento resultado, que contende com a obtenção de uma vantagem fiscal, em virtude da escolha daquele meio, quando comparada com a carga tributária que resultaria da prática dos atos ou negócios jurídicos "normais" e de efeito económico equivalente;

  3. no elemento inteletual, que exige que a escolha daquele meio seja "essencial ou principalmente dirigido(a) [...] à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos" (artigo 38.°, n.° 2, da Lei Geral Tributária), ou seja, que exige não a mera verificação de uma vantagem fiscal, mas antes que se afira, objetivamente, se o contribuinte "pretende um ato, um negócio ou uma dada estrutura, apenas ou essencialmente, pelas prevalecentes vantagens fiscais que lhe proporcionam";

  4. no elemento normativo, que "tem por sua função primordial distinguir as casos de elisão fiscal dos casos de poupança fiscal legítima, em consideração dos princípios de Direito Fiscal, sendo que só nos casos em que se demonstre uma intenção legal contrária ou não legitimadora do resultado obtido se pode falar naquela";

  5. e, por fim, no elemento sancionatório, que, pressupondo a verificação cumulativa dos restantes elementos, conduz à sanção de ineficácia, no exclusivo âmbito tributário, dos atos ou negócios jurídicos tidos por abusivos, "efetuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas" (parte final do artigo 38.°, n.º 2, da Lei Geral Tributária).

A análise destes apontados elementos, porém, não pode ser estanque, pois, como realça GUSTAVO LOPES COURINHA, A cláusula geral anti-abuso no Direito Tributário, Contributos para a sua compreensão, Almedina, 2009, pág. 166, "a fixação de um elemento pode, na prática, depender de um outro", pelo que estes "não deixarão com frequência [...] de auxiliar-se mutuamente".

Tendo em atenção este aspecto, apreciemos então os elementos da cláusula geral antiabuso, levando em consideração os factos provados, mormente os constantes do processo administrativo, e em especial a fundamentação empregada pelo Fisco para a utilização no caso da cláusula antiabuso, bem como ainda a argumentação jurídica das partes neste caso.

A Autoridade Tributária fundamenta a sua decisão defendendo que, em torno dos negócios jurídicos ditos centrais - a transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima e a subsequente venda das ações, que assim configuram, na sua ótica, o meio artificiosamente utilizado - 'foram encenados vários atos jurídicos, mais ou menos complexos e dispendiosos". Atos "que, face à realidade e dimensão económica, estrutural e societária em concreto, se revelam manifestamente desnecessários e denunciam claramente a intenção artificiosa da sua utilização, ou seja, evitar a tribulação que seria devida”, assim considerando que aqueles negócios jurídicos visaram, “em primeira instância, a exclusão da tributação das mais-valias em sede de IRS”.

3.2.2.1. Elemento resultado

Comparando de uma forma isolada e objetiva os negócios jurídicos da transformação da sociedade em sociedade anónima e a subsequente venda das ações (atos ou negócios jurídicos realizados) e da eventual manutenção da sociedade como sociedade por quotas e a subsequente venda das quotas (atos ou negócios jurídicos equivalentes ou de idêntico fim económico), é inequívoco que a primeira situação beneficia de um regime legal de tributação mais vantajoso do que a segunda, pois, enquanto a primeira não é objeto de tributação, nos termos do artigo 10.°, n.º 2, do Código do IRS, na redação do Decreto-Lei n.º 228/2002, de 31 de outubro, a segunda é considerada uma mais-valia, nos termos do artigo 10.°, n.º 1, alínea b), do mesmo diploma, rendimento tributado a uma taxa de 10%, nos termos do artigo 72.°, n.º 4, do CIRS, na redação do Decreto-Lei n.º 192/2005, de 7 de novembro.

3.2.2.2. Elementos meio e inteletual

Embora tal constatação baste para preencher aquele requisito, o seu preenchimento é, por si só, irrelevante para a aplicação da cláusula geral antiabuso, em função da estrutura de atos e negócios jurídicos realizados: como bem refere GUSTAVO LOPES COURINHA, A cláusula geral anti-abuso no Direito Tributário, Contributos para a sua compreensão , Almedina, 2009, pág. 165, "em caso algum, uma vantagem ou um benefício fiscal indiciarão por si qualquer ideia de abuso jurídico".

A denominada "step transaction doctrine", teoria construída nos ordenamentos anglo-saxónicos e em que a Autoridade Tributária alicerça a sua argumentação, consiste na consideração do conjunto complexo de atos ou negócios jurídicos que surgem numa arquitetura global, planeada, composta por atos ou negócios jurídicos preparatórios e complementares, para além do ato ou negócio jurídico que é objetivamente censurado, na medida em que somente através da sua visão completa se deteta o desenho elisivo.

Conforme decorre da matéria de facto provada, a transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima é um negócio jurídico inserido num vasto conjunto de atos e negócios jurídicos executados no âmbito de uma reorganização empresarial, tendo em vista os objetivos acima mencionados.

Neste quadro, é manifesto que a transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima e a subsequente venda de ações (em vez de quotas) não se afigura como o alegado epicentro de um puzzle elisivo.

Verifica-se, sub iudice, um planeamento e uma estrutura de atos e negócios jurídicos, tanto relacionados com a reorganização empresarial como com o investimento que a motiva, que têm uma evidente justificação económica. Por conseguinte, aquela transformação e venda não se assumem como atos e negócios "centrais" de uma estrutura de atos e negócios jurídicos "essencial ou principalmente dirigidos" à obtenção de uma vantagem fiscal, tanto mais que, como se referiu, os autores nunca receberam as importâncias referentes à venda das ações.

3.2.2.3. Elemento normativo

Acresce que, conforme refere SALDANHA SANCHES, na obra supra citada, pág. 180, é "necessário encontrar, no ordenamento jurídico-tributário e como condição sine qua non de aplicação da cláusula antiabuso, os sinais inequívocos de uma intenção de tributar [...], primeiro, porque a evitação fiscal abusiva não pode confundir-se com a permanente tentativa do contribuinte para reduzir a sua tributação ou para ponderar cuidadosamente -planeamento fiscal não abusivo - as consequências da Lei fiscal na sua atividade empresarial ou pessoal […], segundo, porque nesse esforço permanente para reduzir a carga fiscal podemos encontrar o aproveitamento pelo contribuinte do que podemos qualificar como omissões deliberadas - justas, ou não, é uma outra coisa - do legislador fiscal e, se isso aconteceu, não pode atribuir-se ao aplicador da lei a tarefa que cabe primariamente ao legislador" (20). Com efeito, continua o autor, deve ser possível extrair-se uma "intenção inequívoca de tributação".

Este autor dá, inclusive, como exemplo de "lacuna consciente de tributação" a situação que aqui é objeto de aplicação da cláusula geral antiabuso (a transformação de uma sociedade por quotas em sociedade anónima e a subsequente venda das ações), sublinhando que “se o legislador, ao mesmo tempo que tributa as mais-valias das alienações das quotas, deixa por tributar as mais-valias das ações ou as tributava com uma taxa mais reduzida, não pode deixar de se aceitar fiscalmente a transformação de uma sociedade comercial em sociedade por ações mesmo que a transformação seja motivada por razões exclusivamente fiscais".

Efetivamente, "mesmo que a transformação fosse motivada por razões exclusivamente fiscais", é o legislador que opta, expressamente, por tributar a venda das quotas e por não tributar a venda das ações naquele contexto, conforme decorre dos artigos supra citados.

3.2.2.4. Elemento sancionatório

Não se tendo demonstrado a verificação cumulativa de todos os requisitos exigidos para aplicação da cláusula geral antiabuso, particularmente dos elementos meio, inteletual e normativo, não há lugar à aplicação da estatuição da norma, conducente à ineficácia dos negócios jurídicos no âmbito tributário, contrariamente ao que é pretendido pela Autoridade Tributária.

3.3. Conclusão

Assim, conclui-se que não se verificam os pressupostos de facto e de direito de que depende a aplicação da cláusula geral antiabuso.

Consequentemente, é ilegal o ato de liquidação cuja declaração de ilegalidade é pedida, que tem como pressupostos a verificação dos requisitos de aplicação da cláusula geral antiabuso, por violação do preceituado no artigo 38.°, n.º 2, da Lei Geral Tributária.

Por isso, tem de ser julgado procedente o pedido de declaração de ilegalidade dos atos de liquidação de IRS n.º…, n.º … e n.º…, referentes ao ano de 2008, no montante global de € 933.715,61 (novecentos e trinta e três mil setecentos e quinze euros e sessenta e um cêntimos), por enfermarem de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, o que justifica a sua anulação, ao abrigo do disposto no artigo 135.º do Código do Procedimento Administrativo.

Não se verificando os pressupostos para a aplicação da cláusula geral antiabuso, torna-se desnecessário verificar da procedência da alegação de outros vícios das liquidações impugnadas.

Tudo visto, o pedido formulado pelos requerentes tem de ser julgado totalmente procedente, nessa procedência se incluindo o pedido de indemnização por prestação de garantia indevida.Com efeito, a Lei Geral Tributária determina que o sujeito passivo que ofereça garantia bancária ou equivalente para suspender a execução, será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, em proporção do vencimento das suas causas que tenham por objeto a dívida garantida, independentemente do prazo pelo qual tenha sido prestada, quando se verifique que decorreu de erro na liquidação imputável aos serviços da AT, conforme dispõe o artigo 53.º da Lei Geral Tributária.

Acerca do apuramento do montante da indemnização reclamada, dispõe o referido artigo 53.º da Lei Geral Tributária que a mesma deverá consistir no montante do prejuízo resultante da prestação da garantia em causa.

O facto de o montante do prejuízo não se encontrar apurado no processo (pois que nem sequer foi apontado) não será impeditivo de aqui ser reconhecido tal direito.

O montante devido poderá ser apurado em execução da presente decisão, como é entendimento constante da jurisprudência do Centro de Arbitagem Administrativa (CAAD).

 

4. Valor do processo

De harmonia com o disposto no artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 933.715,61 (novecentos e trinta e três mil setecentos e quinze euros e sessenta e um cêntimos).

5. Custas

Nos termos do artigo 22.°, n.º 4, do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 12.852,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributaria, a cargo da requerida Autoridade Tributária.

 

6. Decisão

Nestes termos, acordam neste Tribunal Arbitral:

- Julgar procedente o pedido de declaração da ilegalidade das liquidações de IRS n.º …, n.º … e n.º …, referentes ao ano de 2008, no montante global de € 933.715,61 (novecentos e trinta e três mil setecentos e quinze euros e sessenta e um cêntimos);

- Julgar procedente o pedido de condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar aos Requerentes a indemnização que for liquidada em execução do presente acórdão, pelos custos suportados com a garantia prestada para suspender a respetiva execução fiscal;

- Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar as custas do presente processo.

 

Lisboa, 4 de novembro de 2013


 

Os Árbitros,

 

 

 

 

 

 

Jorge Lino Alves de Sousa

 

 

 

 

 

 

Luís Máximo dos Santos

 

 

 

 

 

 

Paulo Lourenço