Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 112/2013-T
Data da decisão: 2013-11-15  IRC  
Valor do pedido: € 530.706,85
Tema: Derrama, tributações autónomas e juros; princípio da plena concorrência
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Decisão Arbitral

 

 

            Processo n.º 112/2013-T

 

            Os árbitros Juiz Conselheiro Dr. Jorge Lino Ribeiro Alves de Sousa (árbitro-presidente), Prof. Doutor João Sérgio Ribeiro e Prof. Doutor Jorge Landeiro de Vaz (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 15 de julho de 2013, acordam no seguinte:

 

            1. Relatório

 

            A … –, S.A., contribuinte fiscal n.º (…), com sede em (…) Setúbal, (…), abrangida pelo 2.º serviço periférico local de (…), Serviço de Finanças de (…), Código Fiscal n.º (…), com o capital social Euro 264.600.000,00 (duzentos e sessenta e quatro milhões e seiscentos mil euros, (doravante a “Requerente”) vem, nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (doravante “RJAT”), requerer a constituição de tribunal arbitral, para pronúncia arbitral sobre a legalidade da liquidação adicional, da autoria da Direcção-Geral dos Impostos, relativa a IRC, derrama, tributações autónomas e juros (compensatórios e de mora), com o n.º (…), datada de 16 de junho de 2010 e de 16 de julho de 2010 (esta última notificação procedendo à demonstração de um reacerto financeiro à liquidação sem lhe alterar a numeração), relativa ao exercício de 2007, a qual, tendo em conta os valores constantes da «Demonstração de Acerto de Contas», n.º (…), datada de 15 de julho de 2010, originou o valor a pagar de Euro 676.571,27.

            A Requerente apresentou Reclamação graciosa contestando a referida liquidação adicional.

            A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, tendo nela defendido a legalidade do ato cuja declaração de ilegalidade é pedida.

            Na reunião prevista no art. 18.º do RJAT, ficou acordado que a Requerente e Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante «AT») apresentariam alegações por escrito.

            O tribunal arbitral foi regularmente constituído.

            As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

            O processo não enferma de nulidades.

 

            Em síntese,

 

1.1. Vem pedida pronúncia arbitral sobre a legalidade da liquidação adicional de IRC n.º (…), relativa ao exercício de 2007, a qual, «tendo em conta os valores constantes da “Demonstração de Acerto de Contas” n.º (…), datada de 15 de julho de 2010, originou o valor a pagar de € 676.571,27».

 

1.2. A Requerente faz o pedido seguinte, especificadamente:

- que a liquidação impugnada seja anulada, por violação do princípio da plena concorrência;

- que «a presente liquidação deve ainda ser considerada inconstitucional por violação do disposto nos artigos 2.º, 13.º, 61.º, 62.º, 80.º, alínea c), 103.º, n.º 2, 104.º, n.º 2, e 105.º, alínea i), da Constituição da República Portuguesa, caso o artigo 63.º do Código do IRC seja interpretado por forma a impor uma tributação sobre o aporte de capitais próprios, investidos pela Requerente na B.»;

- que seja atribuída à Requerente indemnização em virtude de prestação de garantia indevida.

 

 

1.3. A Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira, em resposta, veio dizer que não existe ilegalidade da liquidação em causa, concluindo pela total improcedência do pedido.

 

1.4. Cumpre decidir as questões levantadas.

Em primeiro lugar, decidir se a liquidação impugnada respeita os pressupostos de aplicação do artigo 58.º do Código do IRC (vigente a essa data).

Em caso de resposta afirmativa à anterior, cumpre decidir sobre a aduzida questão da inconstitucionalidade da liquidação.

Por fim, decidir sobre a atribuição, ou não, da pedida indemnização à Requerente, por prestação de garantia indevida.

 

 

            2. Matéria de facto

 

Com relevo para a decisão da causa, julgamos provada a seguinte matéria:

 

a)      A Direção de Serviços de Inspeção Tributária efetuou uma inspeção à Requerente, que terminou com o “Relatório de Inspeção Tributária”, de 17 de dezembro de 2009, em que, além do mais, se entendeu deverem ser efetuadas correções à matéria tributável relativas à violação do princípio da plena concorrência em financiamentos concedidos, no montante de € 1.863.810,00, e em serviços não redebitados aos beneficiários, no montante de Euro 65.732,96, à variação patrimonial negativa decorrente da reserva de conversão cambial, no montante de € 503.198,00 (cópia do relatório págs. 2 a 81 do documento junto com a resposta da Autoridade Tributária e Aduaneira com a designação “P (… T 2013) Relatório de Inspeção Âmbito Singular – 1.pdf”, cujo teor se dá como reproduzido / relatório de inspeção);

b)      A Direcção-Geral de Impostos elaborou a liquidação adicional de IRC, derrama, tributações autónomas e juros compensatórios e juros de mora n.º 2010 (…), com a data de 16 de julho de 2010, relativa ao ano de 2007, no valor total de € 2.4099.503,41 (documento n.º 9 junto com o pedido de constituição do tribunal arbitral e folha 3 do documento junto com a resposta da Autoridade Tributária e Aduaneira com a designação “P (…) T 2013 – R. Graciosa).pdf”, cujo teor se dá como reproduzido / reclamação graciosa);

c)      A ora Requerente não contestou a Liquidação Adicional na parte correspondente à alegada violação do princípio da plena concorrência, em serviços não redebitados aos beneficiários, nem na parte referente às correções decorrentes da inclusão do seu perímetro da sociedade C… (documento n.º 2 junto com o pedido de constituição do tribunal arbitral);

d)     Em 10 de novembro de 2010 a Requerente apresentou uma reclamação graciosa tendo por objeto a alegada violação do princípio da plena concorrência (em financiamentos concedidos) e contabilização da reserva de conversão cambial, à qual foi atribuído o n.º (…), e foi parcialmente deferida, na medida em que veio anular a correção referente à reserva de conversão cambial, por despacho de 31 de janeiro de 2013, notificado à ora Requerente em 14 de fevereiro de 2013 (folha 2 da reclamação graciosa);

e)      Em 10 de maio de 2013, a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo (cujo teor se dá como reproduzido);

f)       A Requerente era titular da totalidade do capital social da sociedade – B, com sede na Holanda (doravante designada por B) (art. 43.º do pedido de constituição do tribunal arbitral e pág. 7 do relatório da inspeção);

g)      Em documento datado de 1 de junho de 2006, referente a resoluções de acionistas (“Shareholder’s resolutions”), a Requerente manifesta, por um lado, a intenção de efetuar uma contribuição adicional de capital em dinheiro no valor de € 42.500.000,00 a favor da B, para ser considerada por esta como share premium e sem dever de emissão de novas ações; considerando, por outro, ser do interesse da  B investir parte deste capital adicional na aquisição de 178.111 ações da D…, SGPS, S.A. (doravante designada por D…) e conceder um empréstimo à mesma no montante aproximado de € 41.000.000,00 (anexo n.º 1 ao relatório da inspeção);

h)      Em junho de 2006 a Requerente entregou à B… a quantia de € 42.500.000,00, que não conduziu à emissão de novas ações por esta nem a pagamento de qualquer remuneração (arts. 45.º e 46.º do pedido de constituição do tribunal arbitral e pág. 9 do relatório da inspeção);

i)        Uma parte daquela contribuição adicional foi utilizada pela B… na concessão de um financiamento remunerado, no montante de € 41.170.000,00 à X…, que foi reembolsado no exercício de 2007 (arts. 55.º e 56.º do pedido de constituição do tribunal arbitral, art. 27.º-3 da resposta e pág. 25 do relatório da inspeção);

j)        A correção efetuada pela Administração Tributária, quanto à invocada violação do princípio da plena concorrência, consistiu em fazer acrescer ao lucro tributável da Requerente no ano de 2007 a quantia de € 1.863.810,00, calculada com base no valor de € 41.170.000,00 (entre 01-01-2007 e 25-10-2007) e a taxa de juro de 5,92% (página 26 do relatório da inspeção);

k)      A correção referida na alínea anterior foi justificada no relatório da inspeção em que se formularam as seguintes conclusões:

No âmbito da presente acção de inspecção efectuou-se a análise, à luz do Princípio de Plena Concorrência, da opção de investimento efectuada pela A, materializada numa dotação de capital sob a forma de share premium, à sociedade de direito holandês B, em detrimento da concessão de um financiamento remunerado a outra empresa do grupo, a D, considerando que os fundos concedidos à primeira, foram, por determinação da acionista Al, utilizados para o posterior financiamento da D… .

Considerando a existência de relações especiais entre a A e as duas sociedades financiadas e em face do Princípio de Plena Concorrência vertido no n.º 1 do artigo 58° do CIRC e das orientações da OCDE em matéria de Preços de Transferência concluiu-se que a opção tomada foi lesiva do ante mencionado princípio, não correspondendo á opção que, entidades independentes, em circunstâncias comparáveis, teriam tomado segundo critérios comerciais racionais. Por aplicação do Método do Preço Comparável de Mercado, e considerando a disposição constante do parágrafo 7.34 das Guidelines da OCDE, segundo o qual "(...) é possível que o valor de mercado de serviços intra-grupo não seja superior às despesas incorridas pelo fornecedor de serviços. Este caso pode apresentar-se quando, por exemplo o serviço não corresponde a uma actividade normal ou recorrente do fornecedor, mas é fornecido ocasionalmente aos membros do grupo (...) a título de comodidade", foi determinada a remuneração de plena concorrência associada à operação controvertida, propondo-se um ajustamento ao lucro tributável da  - A. … SA de 1.863.810 Euro (um milhão, oitocentos e sessenta e três mil, oitocentos e dez Euro), no exercício de 2007. (pp. 26 e 27 do relatório da inspeção).

l)        A Requerente, para garantir a dívida liquidada pela liquidação adicional n.º 2010 (…) e suspender a execução fiscal n.º (…), do Serviço de Finanças de Setúbal, instaurada para sua cobrança, prestou, em 27 de julho de 2010, garantia bancária, no valor de € 851.338,95 (documento n.º 20, junto com o pedido de constituição do tribunal arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

m)    A prestação da garantia bancária referida na alínea anterior implicou para a Requerente custos no valor de € 10.439,55 (documento n.º 45, junto com o pedido de constituição do tribunal arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, e que não foi impugnado pela Autoridade Tributária e Aduaneira);

n)      Por despacho de 30 de novembro de 2011, proferido no processo de execução fiscal n.º (…), do Serviço de Finanças de Setúbal, foi reconhecida a caducidade da garantia em causa (documento n.º 22, junto com o pedido de constituição do tribunal arbitral, cujo teor se dá como reproduzido).

 

           

            Os juízos probatórios apresentados baseiam-se nos documentos e afirmações das partes indicados relativamente a cada um dos pontos da matéria de facto.

Julgamos não haver factos não provados com interesse para a decisão da causa.

 

            3. Matéria de Direito

 

            3.1. Questão da violação do princípio da plena concorrência

 

            Como resulta da matéria de facto fixada, a Direção de Serviços de Inspeção Tributária efetuou uma inspeção à Requerente, que terminou com o “Relatório de Inspeção Tributária”, de 17 de dezembro de 2009, em que, além do mais, se entendeu deverem ser efetuadas correções à matéria tributável relativas à violação do princípio da plena concorrência, no montante de € 1.863.810,00.

            Pelo referido relatório, conclui-se que a Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu, usando as suas próprias palavras, que

«a opção de investimento tomada pela A, mediante a qual alocou meios financeiros de que dispunha, a um financiamento não remunerado à B para que esta efectuasse um financiamento remunerado à D, quando, na qualidade de accionista de ambas as sociedades, e agindo de um modo comercialmente racional que caracterizaria uma empresa independente, poderia ter optado por efectuar o financiamento directamente à D, alocando à sua esfera patrimonial o proveito inerente aos juros suportados pela beneficiária do financiamento» (pág. 9 do relatório da inspeção);

– a Administração Fiscal não pretende, nem nunca pretendeu, converter o financiamento efectuado pela –  A à  - B num empréstimo remunerado, mas tão-somente repercutir na esfera tributária da primeira, o efeito do custo de oportunidade da opção tomada para o destino do seus meios financeiros, custo este que uma entidade independente não estaria disposta a suportar quando tinha disponível uma opção que lhe proporcionaria um superior rendimento (pág. 61 do relatório da inspeção);

– «a questão controvertida circunscreve-se à avaliação do cumprimento do Principio de Plena Concorrência reportado à opção tomada pela A de, perante a possibilidade de efectuar um investimento remunerado, ter decidido efectuar um investimento não remunerado materializado num financiamento a uma entidade relacionada, que possibilitou que esta efectuasse o investimento remunerado não aproveitado pela sua accionista, e à avaliação de se esta seria a opção tomada por entidades independentes, em circunstâncias comparáveis, agindo de um modo comercial racional» (pág. 18 do relatório da inspeção);

– «A opção da A em realizar um financiamento sob a forma de share Premium não remunerado a uma entidade participada para que esta financiasse uma outra entidade detida maioritariamente pela A, abdicando da opção que lhe conferiria uma remuneração constitui uma violação do Princípio de Plena Concorrência (vide § 1.37 das Guidelines da OCDE)» (pág. 20 do relatório);

«A correcção proposta do montante de 1.863.810,00 Euro resulta da determinação da remuneração de plena concorrência para um financiamento efectuado à sociedade sua participada B, sem remuneração, em conformidade com o n.º 1 do art. 58.° do CIRC» (pág. 2 do relatório da inspeção).

 

            A matéria de facto revela inequivocamente que a Requerente, ao atribuir €42.500.000,00 à B… teve em vista, além do mais, o financiamento por esta da D… no montante aproximado de € 41.000.000,00, o que é afirmado expressamente nas “Shareholder’s resolutions”. Também é manifesto, em face da detenção pela Requerente da totalidade do capital da B…, que há relações especiais entre a Requerente e a B…, à luz do preceituado no n.º 4 do referido art. 58.º.

            A Requerente defende que o art. 58.º do CIRC (a que corresponde o art. 63.º na redação vigente) «impõe como requisito básico e essencial, que a correcção opere em relação a uma operação ou série de operações efectuadas» e que a comparação é feita com base na operação que o contribuinte «efectua e outras substancialmente idênticas». E acrescenta que, «em contrapartida, o n.º 2 do artigo 38.º da LGT determina a ineficácia fiscal das operações efectuadas, ou seja, permite que seja desrespeitada, para efeitos fiscais, a operação efectuada entre as partes, aplicando um princípio de substância sobre a forma» (artigos 104.º a 106.º do pedido de pronúncia arbitral).

            No entendimento da Requerente, na situação a decidir, o tratamento fiscal da operação financeira praticada como uma operação remunerada implica uma requalificação da mesma para efeitos fiscais, pelo que só seria legalmente admissível através do uso do procedimento previsto no art. 63.º do CPPT.

            Em acórdão arbitral do Centro de Arbitragem Administrativa - CAAD, proferido no Proc. n.º 76/2012, de 29 de outubro de 2012 (que tem vindo a seguir-se de perto), sobre a mesma questão de direito e com base nos mesmos factos, respeitantes ao ano de 2006, discreteou-se do seguinte modo:

 

            «Antes de mais, tem de se reconhecer que, não tendo sido utilizado o procedimento previsto neste art. 63.º, está afastada a possibilidade de a legalidade do acto impugnado ser assegurada ao abrigo do art. 38.º, n.º 2, da LGT.

            Por isso, não tem utilidade para a decisão da questão em apreço apurar se estavam ou não preenchidos os requisitos legais de que depende a aplicação da referida norma geral anti-abuso.

            Assim, importa apenas apreciar se a actuação da Administração Tributária tem cobertura legal no art. 58.º do CIRC, na redacção vigente em 2006, que foi o regime efectivamente aplicado no acto impugnado.

            O art. 58.º, n.º 1, do CIRC contém uma norma dirigida aos contribuintes, impondo-lhes a obrigação de, nas operações comerciais ou financeiras que efectuem com entidades com as quais tenham relações especiais, contratem, aceitem ou pratiquem termos ou condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis.

            Não se impõe nesta norma ao contribuinte qualquer limitação às suas opções em matéria de operações comerciais ou financeiras a realizar com entidades cm quem mantenha relações especiais.

            Apenas se impõe ao contribuinte que, relativamente às operações comerciais ou financeiras que entenda realizar com entidades com quem mantenha relações especiais, adopte termos e condições idênticos aos que seriam adoptadas entre pessoas independentes.

            Não há suporte legal neste art. 58.º para restringir a liberdade do contribuinte quanto aos tipos de operações comerciais ou financeiras que entenda realizar com entidades com quem mantenha relações especiais.

            No âmbito do regime de preços de transferência não se impõe ao contribuinte a opção pelas operações comerciais ou financeiras mais rentáveis, mas apenas que, relativamente àquelas por que optar, estabeleça termos e condições idênticos aos que seriam estabelecidos por pessoas independentes em operações comparáveis.

            Não se está, no âmbito do regime de preços de transferência, perante abuso no tipo de operações realizadas, mas sim perante ‘abuso da liberdade de decisão em matéria de quantificação de preços que cabe ao sujeito passivo e que se encontra limitada nesta situação especial[1](5).

            No caso em apreço, à face da prova produzida, não há qualquer elemento que permita concluir que a operação financeira efectuada pela Requerente, independentemente de a sua denominação adequada ser ou não Share Premium, tenha sido realizada com assunção pela B do dever de restituição da quantia recebida ou do dever de remunerar a Requerente por qualquer forma que não seja a forma geral de as sociedades proporcionarem aos sócios retorno pelos seus investimentos.

            Uma opção deste tipo, consubstanciada por uma dotação patrimonial efectuada aparentemente a título gratuito por uma sociedade comercial a favor de outra, é perfeitamente compreensível numa situação como a que se mostra nos autos, em que a sociedade que a faz é detentora da totalidade do capital da sociedade beneficiária e, por isso, tem a expectativa de obter retorno, a nível de dividendos e, eventualmente, de mais valias.

            Mesmo que se entenda que à operação realizada pela Requerente seja aplicável, eventualmente por analogia, o regime das prestações suplementares, previsto nos arts. 210.º a 213.º do Código das Sociedades Comerciais, está-se perante o uso de uma forma jurídica distinta dos contratos de mútuo e de suprimento, designadamente quanto ao elemento essencial característico destes contratos típicos que é a obrigação de quem recebe restituir o que foi recebido, em género e qualidade (arts. 1142.º do Código Civil e 243.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais), que, no caso das prestações suplementares apenas existirá eventualmente, dentro do circunstancialismo previsto no art. 213.º do Código das Sociedades Comerciais.

            Assim, é de concluir que o regime jurídico desta operação realizada pela Requerente, traduzido na inexistência de obrigação de restituição da quantia recebida pela B e na eventual obtenção de contrapartida por aquela a nível de dividendos e mais valias, é substancialmente diferente do regime do contrato de mútuo e do contrato de suprimento.

            Não pode, ao abrigo do art. 58.º, n.º 1, do CIRC, impor-se ao contribuinte que pretende investir numa sociedade de que é detentor da totalidade de capital, que, em vez de utilizar um meio jurídico que lhe permite a prazo obter dividendos e mais valias, opte por um meio jurídico que lhe assegure directamente a restituição do capital investido e remuneração a título de juros.

            Não pode também, ao abrigo daquele art. 58.º, n.º 1, impor-se que à Requerente que, em vez da opção de investimento materializada numa dotação de capital sob a forma de share premium, não remunerada a título de juros e sem obrigação de restituição do capital, a uma sociedade cujo capital detinha em 100%, optasse por um tipo de negócio jurídico completamente diferente, que seria a concessão de um financiamento remunerado a outra empresa do grupo (…)

            Por isso, não pode também a Administração Tributária corrigir o lucro tributável da Requerente com fundamento em hipotética violação do dever imposto naquele n.º 1 do art. 58.º do CIRC.

            Na aplicação da norma sobre preços de transferência, a Administração Tributária tem de atender à operação realmente praticada, à ‘forma jurídica’ utilizada pelo contribuinte na sua operação comercial ou financeira, podendo alterar, para efeitos fiscais, os seus termos ou condições quando os considere diferentes dos que seriam contratados aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis.

            São essas operações efectivamente realizadas que se ficciona, para efeitos fiscais, terem-no sido noutros termos ou condições.

            Diferentes destas situações e fora do regime dos preços de transferência ficam as situações em que a Administração Tributária conclui que, em vez das operações comerciais ou financeiras realmente efectuadas, pessoas independentes realizariam outras operações, de tipos diferentes, com outras ‘formas jurídicas’. Nestes casos, os requisitos para deixar de considerar eficazes, para efeitos fiscais, as operações efectivamente realizadas não são os previstos no art. 58.º do CIRC, mas sim os previstos no art. 38.º, n. 2, da LGT e no art. 63.º do CPPT.

            No caso em apreço, a operação financeira realizada entre a Requerente e a B… consistiu numa dotação patrimonial a título gratuito e não num empréstimo remunerado à D… só podendo considerar-se irrelevante fiscalmente aquela dotação e efectuada tributação como se ela não existisse se, eventualmente, se verificassem todos os requisitos exigidos pelo art. 38.º, n.º 2, da LGT e fosse utilizado o procedimento previsto no art. 63.º do CPPT.

            Assim, conclui-se que tem razão a Requerente quanto à questão da correcção efectuada com invocação de violação do art. 58.º, n.º 1, do CIRC, pelo que tem de ser declarada a ilegalidade da liquidação impugnada, na parte em que assentou naquela correcção».

 

            Este Tribunal Arbitral adere por completo aos fundamentos de direito que vêm de ser transcritos, adotados em situação idêntica (da aqui Requerente relativa ao ano de 2006), atenta a inteira bondade desses fundamentos, os quais, por isso, aqui perfilhamos.

            Com a verificação desta ilegalidade fica prejudicado o conhecimento da questão suscitada pela Requerente relativamente à inconstitucionalidade da liquidação.

 

 

            3.2. Indemnização por prestação de garantia indevida

 

            A Requerente formula ainda um pedido de indemnização por garantia indevida. Tal como na questão anterior, também no que concerne a esta, há uma sobreposição plena entre os factos que a induzem e os que estiveram na base da apreciação que foi feita, numa questão idêntica, no já citado Acórdão do Tribunal Arbitral, proferido no Proc. n.º 76/2012, de 29 de outubro de 2012. Assim sendo, a solução também aqui, não poderá deixar de ser idêntica, pelo que, na mesma linha, aderimos aos fundamentos de direito que de seguida se transcrevem.

 

            «De harmonia com o disposto na alínea b) do art. 24.º do RJAT a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, ‘restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito’.

            Na autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, concedida pelo art. 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, proclama-se, como directriz primacial da instituição da arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária, que ‘o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária’.

            Embora o art. 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão ‘declaração de ilegalidade’ para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD e não faça referência a decisões constitutivas (anulatórias) e condenatórias, deverá entender-se, em sintonia com a referida autorização legislativa, que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários em relação aos actos cuja apreciação de legalidade se insere nas suas competências.

            Apesar de o processo de impugnação judicial ser essencialmente um processo de mera anulação (arts. 99.º e 124.º do CPPT), pode nele ser proferida condenação da administração tributária no pagamento de juros indemnizatórios e de indemnização por garantia indevida.

            Na verdade, apesar de não existir qualquer norma expressa nesse sentido, tem-se vindo pacificamente a entender nos tribunais tributários, desde a entrada em vigor dos códigos da reforma fiscal de 1958-1965, que pode ser cumulado em processo de impugnação judicial pedido de condenação no pagamento de juros indemnizatórios com o pedido de anulação ou de declaração de nulidade ou inexistência do acto, por nesses códigos se referir que o direito a juros indemnizatórios surge quando, em reclamação graciosa ou processo judicial, a administração seja convencida de que houve erro de facto imputável aos serviços. Este regime foi, posteriormente, generalizado no Código de Processo Tributário, que estabeleceu no n.º 1 do seu art. 24.º que ‘haverá direito a juros indemnizatórios a favor do contribuinte quando, em reclamação graciosa ou processo judicial, se determine que houve erro imputável aos serviços’, a seguir, na LGT, em cujo art. 43.º, n.º 1, se estabelece que ‘são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido’ e, finalmente, no CPPT em que se estabeleceu, no n.º 2 do art. 61.º (a que corresponde o n.º 4 na redacção dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro), que ‘se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea’.

            Relativamente ao pedido de condenação no pagamento de indemnização por

prestação de garantia indevida, o art. 171.º do CPPT, estabelece que ‘a indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada será requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda’ e que ‘a indemnização deve ser solicitada na reclamação, impugnação ou recurso ou em caso de o seu fundamento ser superveniente no prazo de 30 dias após a sua ocorrência’.

            Assim, é inequívoco que o processo de impugnação judicial abrange a possibilidade de condenação no pagamento de garantia indevida e até é, em princípio, o meio processual adequado para formular tal pedido, o que se justifica por evidentes razões de economia processual, pois o direito a indemnização por garantia indevida depende do que se decidir sobre a legalidade ou ilegalidade do acto de liquidação.

            O pedido de constituição do tribunal arbitral tem como corolário passar a ser no

processo arbitral que vai ser discutida a ‘legalidade da dívida exequenda’, pelo que, como resulta do teor expresso daquele n.º 1 do referido art. 171.º do CPPT, é também o processo arbitral o adequado para apreciar o pedido de indemnização por garantia indevida.

            Aliás, a cumulação de pedidos relativos ao mesmo acto tributário está implicitamente pressuposta no art. 3.º do RJAT, ao falar em ‘cumulação de pedidos ainda que relativos a diferentes actos’ o que deixa perceber que a cumulação de pedidos também é possível relativamente ao mesmo acto tributário e os pedidos de indemnização por juros indemnizatórios e de condenação por garantia indevida são susceptíveis de ser abrangidos por aquela fórmula, pelo que uma interpretação neste sentido tem, pelo menos, o mínimo de correspondência verbal exigido pelo n.º 2 do art. 9.º do Código Civil.

            O regime do direito a indemnização por garantia indevida consta do art. 53.º da LGT, que estabelece o seguinte:

Artigo 53.º

Garantia em caso de prestação indevida

            1. O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objecto a dívida garantida.

            2. O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.

            3. A indemnização referida no número 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.

            4. A indemnização por prestação de garantia indevida será paga por abate à receita do tributo do ano em que o pagamento se efectuou.

 

            No caso em apreço, é manifesto que os erros do acto de liquidação, na parte correspondente às correcções ao lucro tributável da Requerente efectuadas com invocação de violação do princípio da plena concorrência (…) são imputáveis à administração tributária, pois as correcções foram da sua iniciativa e a Requerente em nada contribuiu para que esses erros fossem praticados.

            Por isso, a Requerente tem direito a indemnização pela garantia prestada, na parte proporcional à parte da liquidação cuja declaração de ilegalidade foi pedida no presente processo (outra parte é objecto de processo de impugnação judicial, pendente nos tribunais tributários)».

 

            Como resulta da matéria de facto provada, a prestação da garantia bancária implicou para a Requerente despesas no montante global de € 10.439,55 [alínea m) da matéria de facto provada].

            As correções efetuadas pela administração tributária ao lucro tributável da Requerente decorrentes da liquidação adicional n.º 2010 (…) importam, na parte não contestada, no valor de € 2.367.008,00.

            No processo em decisão é pedida a declaração da ilegalidade de correções no valor de € 1.863.810,00 o que corresponde a 78,74% das correções contestadas decorrentes da liquidação adicional. Consequentemente, a parte proporcional dos custos derivados da prestação de garantia que podem ser imputados às correções cuja declaração de ilegalidade é objeto do presente processo, é de € 8.220,10.

            Impõe-se determinar se esta quantia não excede o limite previsto no n.º 3 do transcrito art. 53.º da LGT, resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios.

            O valor total garantido foi de € 851.338,95 [alínea l) da matéria de facto fixada], pelo que é de € 670344,28 a fração da garantia que corresponde à parte da liquidação baseada nas correções que são objeto do presente processo, de 78,74%.

            Foi demonstrado que a garantia foi mantida durante 491 dias, entre 27-7-2010 e 30-11-2011 [alíneas l) e n) da matéria de facto fixada].

            A taxa anual de juros indemnizatórios no período referido é de 4%, nos termos dos arts. 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, com remissão para o art. 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.

            Aplicando esta taxa ao período de 491 dias conclui-se que o valor dos juros indemnizatórios correspondentes é de € 3.6070,03 (€ 670344,28 x 0,04 /365 dias x 491 dias).

            Constata-se que parte dos custos da garantia correspondentes à liquidação impugnada no presente processo, que é de € 8.220,10, é manifestamente inferior ao limite máximo previsto no referido art. 53.º, n.º 3, da LGT. Não resulta, portanto, impedimento a que seja reconhecido à Requerente esse valor de € 8.220,10 pelo direito a indemnização por prestação de garantia indevida (sendo certo que a Requerente pede a esse título a quantia de € 8.820,10).

 

            Pelos fundamentos de facto e de direito, supra expostos, acorda este Tribunal Arbitral em:

̶            julgar procedente o pedido de anulação da liquidação adicional de IRC n.º 2010 (…), relativa ao exercício de 2007, tendo em conta «os valores constantes da “Demonstração de Acerto de Contas” n.º 2010 (…), datada de 15 de julho de 2010», que originou «o valor a pagar de € 676.571,27» (conforme a petição inicial);

̶            julgar procedente o pedido de indemnização por garantia indevida e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar à Requerente a quantia de € 8.220,10, a título de indemnização por garantia indevida;

̶            condenar a Requerida Autoridade Tributária e Aduaneira ao pagamento das custas devidas.

 

 

            Valor do processo: De harmonia com o disposto no art. 305.º n.º 1, do CPC e 97.º- A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 685.391,37 (soma dos valores pedidos: 676.571,27 da liquidação, e 8.820,10 de indemnização).

 

 

Registe e Notifique.

Lisboa, 15-11-2013

 

O Árbitros,

 

 

Jorge Lino Ribeiro Alves de Sousa (árbitro presidente)

 

João Sérgio Ribeiro (árbitro)

 

Jorge Landeiro de Vaz (árbitro)



(5) SALDANHA SANCHES, Os limites do planeamento fiscal, página 194.