Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 695/2016-T
Data da decisão: 2017-10-11  IRS  
Valor do pedido: € 39.006,38
Tema: IRS - Retenção na fonte - Suprimentos
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Decisão Arbitral

O árbitro, Nuno de Oliveira Garcia, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o Tribunal Arbitral Singular, constituído em 06-02-2017, decide no seguinte:

 

  1. RELATÓRIO

No dia 24.11.2016, a sociedade ‘A…, Lda.’, NIPC …, apresentou um pedido de constituição do tribunal arbitral, nos termos dos artigos 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.

A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) do RJAT, o Conselho Deontológico designou o ora signatário como árbitro do presente Tribunal Arbitral, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável, tendo as Partes sido notificadas dessa designação em 20.01.2017.

Em 06.02.2017, o presente tribunal arbitral foi constituído.

Em 17.03.2017, a AT remeteu a este Tribunal a sua Resposta e fez juntar o respetivo processo administrativo.

No dia 21.06.2017, este Tribunal despachou no sentido da dispensa a realização de audiência de inquirição de testemunhas, uma vez que ambas as partes assentam as suas pretensões em torno da suficiência, ou insuficiência, de documentos que comprovem que determinado valor entregue pela Requerente a um dos seus sócios consistia no reembolso de suprimento(s).

Na mesma data, o Tribunal solicitou à Requerente para, num prazo de 20 dias, vir remeter e entregar a este Tribunal Arbitral os seguintes elementos da sua contabilidade; a saber:

a.      Extratos da conta # 26 821 relativa ao sócio B… e respeitantes aos exercícios e anos de 2010 e 2011;

b.      Extrato da conta de bancos (# 12 e/ou # 13) onde se encontrem refletidos os «reembolsos» dos alegados suprimentos em causa;

c.       Cópias legíveis dos extratos bancários já entregues pela Requerente, mas que se encontram ilegíveis na plataforma do CAAD.

Em 23.08.2017, e uma vez que o despacho acima referido apenas foi validamente notificado ao Mandatário da Requerente quase um mês depois do seu proferimento, o Tribunal Arbitral, em face do disposto nos artigos 15.º, e 21.º n.º 1, e ao abrigo do artigo 21.º, n.º 2, todos do RGTAL determinou a prorrogação dos presentes Autos por um período de 2 meses.

Finalmente, e na sequência da junção pela Requerente dos documentos solicitados pelo Tribunal Arbitral, este despachou, em 9.10.2017 no sentido da dispensa de alegações finais.

Em crise encontra-se a liquidação de IRS (RF) n.º 2016… e a liquidação de juros compensatórios n.º 2016…, ambas relativas ao exercício de 2012, com um valor total de 39 006,38€.

A Requerente sustenta, em síntese, o seu pedido da seguinte forma:

  1. Existe falta de fundamentação no que respeita aos atos em crise;
  2. Verifica-se a ilegalidade do enquadramento dos alegados reembolsos de suprimento como rendimentos de capital;
  3. Inexiste facto tributário;
  4. Verifica-se vício de lei na liquidação de juros compensatórios.

 

Por sua vez, a AT concluiu o seguinte:

  1. A fundamentação constante do relatório de inspeção tributária é suficientemente clara e inequívoca;
  2. Em momento algum a Requerente procedeu à comprovação de que o valor de 100 000€ em causa foi pago a título de reembolso de suprimentos;
  3. O disposto no n.º 4 do artigo 6.º do Código do IRS opera uma presunção legal, pelo que o facto tributário não é inexistente;
  4. A liquidação de juros compensatórios decorre da violação do referido normativo em sede de Código do IRS, pelo que a sua liquidação é legal.

 

  1. FACTOS PROVADOS E NÃO PROVADOS

II.I. O Tribunal considera provados os seguintes factos essenciais para o objeto do pedido:

  1. A conta bancária n.º … junto do C… é titulada por ambos os sócios B…e D…– facto assente por confirmado pela AT (cfr. p. 2 da Resposta da AT).
  2. A transferência, em 24 de fevereiro de 2012, do valor de 100 000€ da sociedade A… para a referida conta bancária titulada pelos dois sócios acima identificados – facto assente por não sofrer contestação entre as Partes.
  3. No que respeita à aquisição de imóvel na R. …, n.º…, o preço foi pago por cheque bancário saído da conta acima mencionada, sendo que quer a escritura de compra e venda, quer a contabilidade da A… (# 31162 Inventário) demonstram que foi esta sociedade a adquirente.
  4. Ainda no que respeita à referida aquisição, consta registado o respetivo empréstimo de acionista (# 26822) a favor de D… .
  5. Quanto às transferências de 50 000€ e 2 500€ com referência a ‘E…’, existe registo de empréstimo de acionista (# 26822) e de entrada (# 121 Depósitos).
  6. No que respeita às demais transferências a favor da A…, confirma-se o recebimento de acordo com extrato de conta.

 

II.II. O Tribunal considera como não-provados os seguintes factos:

  1. Quanto às transferências de 50 000€ e 2 500€ com referência a ‘E…’, não está demonstrada a sua saída, ou seja não se comprova que sejam fundos provenientes dos sócios B… e D… .
  2. No que respeita às demais transferências a favor da A…, não existe registo na contabilidade da A… que as confirme como empréstimos de acionista, nem sequer de entrada como depósito.

 

  1. DO DIREITO

III.I.      O QUADRO LEGAL E POSIÇÃO DAS PARTES PERANTE O MESMO

Em causa nos presentes Autos encontra-se a transferência, em 24 de fevereiro de 2012, do valor de 100 000€ proveniente da sociedade A… para uma conta bancária titulada pelos dois sócios. No âmbito de uma inspeção tributária, a AT veio a requerer evidência contabilística que pudesse comprovar o alegado por um dos sócios no sentido de que tal valor consistia no reembolso de um suprimento.

Foram juntos diversos documentos no sentido de procurar demonstrar a existência de créditos de acionistas por parte dos sócios da A… que pudessem justificar o referido reembolso de suprimento(s). Ainda no âmbito dos presentes Autos, foram remetidos pela Requerente documentos nesse sentido, tal como requeridos por este Tribunal.

A AT mantém o entendimento de que a documentação entregue não permite aferir que o pagamento dos 100 000€ se tratasse, efetivamente, de restituição de suprimentos efetuados pelo sócio B… . Nessa medida pugna pela manutenção da tributação por entender que tal valor consubstancia adiantamento de lucros colocados à disposição dos sócios, ao abrigo da alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do Código do IRS, com fundamento ainda no disposto no n.º 4 do artigo 6.º do Código do IRS.

A A… mantém o entendimento de que se encontra provado existirem créditos de acionista em valor superior ao valor transferido para os sócios, e de que não existe facto tributário.

 

III.II.     OS VÍCIOS INVOCADOS

  1. Da alegada falta de fundamentação dos atos de liquidação

Os documentos em anexo aos presentes Autos são mais do que suficientes para que o Tribunal fique convencido de que ocorreu um procedimento inspetivo previamente à emissão dos atos de liquidação em crise. De resto, esse facto nem sequer é contestado pela Requerente. Acresce que no procedimento inspetivo já consta, de forma expressa diga-se, os motivos pelos quais a AT (mal ou bem, é outro assunto) entendeu que determinado pagamento da A… aos sócios consubstanciava uma antecipação de lucros, o que implicaria a tributação em sede de IRS (RF), como veio a ocorrer.

A própria Requerente, no início do seu pedido de constituição de Tribunal Arbitral, faz referência ao procedimento inspetivo revelando ter conhecimento que os atos em crise decorrem daquele.

Termos em que a ausência de motivação expressa dos próprios atos de liquidação não é suficiente para a anulação dos mesmos pois a respetiva fundamentação consta de um procedimento inspeção que, não só visou a análise do pagamento de 100 000€ em causa, como antecedeu tais atos. Neste sentido, improcede a invocação da Requerente quando ao vício de falta de fundamentação dos atos em crise.

  1. Da alegada inexistência de facto tributário

Igualmente não tem razão a Requerente quanto alega que inexiste facto tributário. Como refere a AT, e bem, o disposto no n.º 4 do artigo 6.º do Código do IRS consagra uma presunção de que lançamentos a favor de sócios, quando não resultem de mútuos, consubstanciam antecipações de lucros, o que implica a tributação em sede de retenção na fonte, tal como efetuada, de resto, pela AT.

O ato tributário é o pagamento pela empresa ao sócio, que tem a natureza de rendimento de capital e que provoca um aumento de capacidade contributiva neste. Por regra, os pagamentos das sociedades aos seus sócios são rendimentos destes. Só excecionalmente, um pagamento ao sócio não é um efetivo rendimento deste. O que significa, portanto, e como veremos de seguida, que o tema é de prova; ou se demonstra a existência de um mútuo, ou a presunção opera os seus termos, não sendo elidida.

Neste sentido, improcede a invocação da Requerente a propósito da inexistência de facto tributário.

  1. Do enquadramento do valor entregue aos sócios como rendimento de capitais

Do que acima já se disse, resta apurar se existem comprovativos no sentido de empréstimos de acionista feitos pelos sócios B… e D… que possam justificar o alegado reembolso de suprimento.

Em primeiro lugar, diga-se que o facto de a conta bancária n.º … junto do C… ser titulada por duas pessoas, e ambos os sócios, não permite que a AT entenda que a transferência seja efetuada apenas para um deles. Nesse sentido, quando se comprova a existência de uma transferência da referida conta com a indicação D… tal não significa inexoravelmente que seja ela a ordenante, pelo que um reembolso desse crédito para a mesma conta mas a favor de B… pode ser considerado como um efetivo reembolso de suprimento a qualquer dos titulares.

Em todo o caso, o que tem de existir é uma efetiva e inequívoca comprovação quer do movimento de entrada do dinheiro na empresa, quer do movimento de saída, bem como a correta documentação contabilística.

Ora, como já se referiu quanto aos factos provados, no que respeita à aquisição de imóvel na R. …, n.º…, não existem dúvidas de que o preço foi pago (movimento de entrada por conta da empresa) por cheque bancário saído da conta bancária n.º … junto do C…, sendo que quer a escritura de compra e venda, quer a contabilidade da A… (# 31162 Inventário) demonstram que foi esta sociedade a adquirente. Ainda no que respeita à referida aquisição, consta registado o respetivo empréstimo de acionista (# 26822) a favor de D… (movimento de saída). Ou seja, o preço da aquisição do imóvel foi entregue pelos sócios B… e D… por conta da A…, tendo isso ficado registado na contabilidade da empresa, precisamente como suprimento. Termos em que é de aceitar que o valor de 60 000€ pago pelos sócios por conta da sua sociedade, registado como um suprimento, se tratou efetivamente de um mútuo, ou seja surgiu nesse momento um crédito a acionista. Nessa medida, a transferência dos 100 000€ que deu azo às liquidações em crise encontra, parcialmente (na medida dos 60 000€), justificação. O que significa que, no que respeita ao crédito no valor de 60 000€, procede a pretensão da Requerente.

Todavia, o mesmo não sucede com os demais movimentos/transferências invocados. Efetivamente, não se deu por provado a origem das transferências de 50 000€ e 2 500€ com referência a ‘E…, ou seja não se comprova que sejam fundos provenientes dos sócios B… e D…, pelo que não se pode concluir, inevitavelmente, pela existência de um ‘empréstimo de acionista’.

E o mesmo se conclui no que respeita às demais transferências a favor da A…, em relação às quais não existe registo na contabilidade da A… que as confirme como empréstimos de acionista (mas apenas extratos de conta da empresa com mera referência transferências provenientes de uma conta bancária terceira e/ou ao nome de D…).

  1. Dos juros compensatórios

Apesar de não concordarmos que a liquidação de juros compensatórios seja um ato vinculado, como sustenta a AT, a verdade é que esta tem o direito à sua liquidação quando fique demonstrado, como ficou, que o atraso ou não-liquidação do tributo se deveu, em parte, a uma atuação do contribuinte.

Uma vez que o relatório de inspeção contém fundamentos suficientes para que a correção aritmética se encontre motivada (como defendemos atrás), e não consistindo a atuação da AT uma decisão-surpresa (bem pelo contrário, à luz das várias transferências que não se encontram, como vimos acima também, totalmente registadas na contabilidade da Requerente) afigura-se justificada e explícita a liquidação de juros num caso como o presente em que existiu atraso imputável ao contribuinte na liquidação de parte do imposto.

Em todo o caso, e chegados aqui, não podemos deixar de concluir pela anulação da liquidação dos juros compensatórios na proporção da anulação da liquidação de IRS também em crise, posto que nessa parte não houve qualquer atraso na medida em que não incide imposto.

 

  1. DECISÃO

Termos em que decide este Tribunal Arbitral:

            a) Julgar parcialmente procedente o pedido, na medida em que do valor total de 100 000€, não devem ser considerados como sendo rendimentos de capital o montante de 60 000€ por se tratar de um reembolso de suprimento;

            b) Declarar, em consequência, a ilegalidade parcial da liquidação de IRS (RF) n.º 2016 … e a da liquidação de juros compensatórios n.º 2016 …, carecendo ambas de serem corrigidas em conformidade com o ponto anterior, com as consequências legais inerentes;

            c) Condenar ambas as partes nas custas deste processo, de acordo com o decaimento (ratio 60/40).

 

  1. Valor da ação

O valor da ação é fixado em € 39 006,38 nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

Notifique-se.

Lisboa, 11 de outubro de 2017

 

O Tribunal Arbitral,

Nuno de Oliveira Garcia