Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 661/2016-T
Data da decisão: 2017-05-31  IVA  
Valor do pedido: € 5.230,14
Tema: IVA - Qualificação de serviços de reparação e/ou recuperação de muros de xisto integrados em terrenos agrícolas
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Decisão Arbitral

 

 

 

 

            I – Relatório

 

            1.1. A…, S.A., sociedade comercial com sede na …, …, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de … sob o número único de matrícula e de pessoa colectiva … (doravante designada por «Requerente»), tendo sido notificada das liquidações adicionais de IVA identificadas com o n.º …, n.º…, n.º …, n.º…, n.º …, n.º…, n.º…, n.º …, n.º …, n.º … e n.º…, referentes aos períodos 1402M a 1412M, que motivaram as demonstrações de acerto de contas relativas às compensações com os n.os 2016 …, 2016 …, 2016 … e 2016…, no montante global de €5140,23, apresentou, em 31/10/2016, pedido de constituição de Tribunal Arbitral, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), 5.º, n.º 3, al. a), 6.º, n.º 2, al. a), e 10.º e segs. do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/1 (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante somente designado por «RJAT»), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), tendo em vista a “obtenção de pronúncia arbitral relativamente à declaração de ilegalidade, e consequente anulação, das liquidações adicionais de IVA e respectivas compensações das demonstrações de acerto de contas acima identificadas e, a acrescer, a devolução do montante de imposto indevidamente pago pela Requerente e dos respectivos juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária”.

 

            1.2. Em 19/1/2017 foi constituído o presente Tribunal Arbitral Singular.

 

            1.3. Nos termos do artigo 17.º, n.º 1, do RJAT, foi a AT citada, como parte Requerida, para apresentar resposta, nos termos do referido artigo. A AT apresentou a sua resposta em 1/3/2017, tendo argumentado, em síntese, no sentido da total improcedência do pedido da ora Requerente.

 

            1.4. Por despacho de 22/5/2017, o Tribunal considerou, nos termos do art. 16.º, al. c) e e), do RJAT, e 19.º do RJAT, ser dispensável a produção de prova testemunhal e a reunião do art. 18.º do RJAT, e que o processo estava pronto para decisão. Foi, ainda, fixada a data de 31/5/2017 para a prolação da decisão arbitral.

            1.5. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, é materialmente competente, o processo não enferma de vícios que o invalidem e as Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, configurando-se legítimas.

           

II – Alegações das Partes

 

            2.1. Vem a Requerente alegar na sua petição inicial que: a) “a correcção proposta pela AT parte essencialmente do seu entendimento quanto à qualificação de serviços de reparação e/ou recuperação de muros de xisto integrados em terrenos agrícolas, para suporte de taludes, como serviços comuns de construção civil, sujeitos à aplicação do regime de inversão do sujeito passivo («reverse charge»), nos termos da alínea j), do n.º 1, do artigo 2.º do Código do IVA”; b) “pelo facto de os serviços em causa se tratarem de serviços de cariz agrícola, conforme se demonstrará, as facturas de suporte aos mesmos foram emitidas pelos fornecedores da Requerente com IVA à taxa de 6%, sem aplicação do regime de reverse charge aplicável aos serviços de construção civil, previsto na alínea j), do n.º 1, do artigo 2.º do Código do IVA”; c) “não obstante, no entendimento da AT, que considera que os serviços de reparação de muros de xisto integrados nas culturas agrícolas são meros serviços de construção civil e não serviços de cariz agrícola, deveria ter sido aplicado o regime do reverse charge, emitindo-se as correspondentes facturas com a menção «IVA-autoliquidação» - nos termos do n.º 13 do artigo 36.º do Código do IVA, com a liquidação de IVA a caber à Requerente (adquirente dos serviços)”; d) “a Requerente não pode concordar com o entendimento da AT, que, conforme se demonstrará, provoca uma distorção da aplicação das normas fiscais, desconsiderando a substância das operações que estão na origem das correcções por si efectuadas”; e) “no âmbito da sua actividade agrícola, a Requerente cultiva um conjunto de culturas/explorações agrícolas, através das quais produz, designadamente, vinho e azeite, e que se encontram especificamente localizadas na região do Douro. Neste sentido, não raras vezes, a Requerente é confrontada com a necessidade de recorrer a serviços de recuperação e/ou rconstrução de muros de xisto, que são parte integrante dos terrenos agrícolas em que se encontram instaladas as vinhas e as explorações agrícolas”; f) “de facto, fruto das características morfológicas próprias dos terrenos localizados na região do Douro – marcada por socalcos – para que seja possível criar, manter ou desenvolver qualquer cultura/exploração agrícola, são impreterivelmente necessários os muros de xisto, que se instalam e se confundem com o próprio terreno, e que são determinantes na sustentação dos taludes”; g) “[assim,] estes muros não poderão ser enquadrados no conceito mais tradicional de muro [...] [visto que] cuidamos aqui de muros que integram os próprios socalcos onde são plantadas a vinha e as oliveiras. Ou seja, os muros de xisto são absolutamente indissociáveis do próprio terreno agrícola, na medida em que, sem eles, o terreno e a cultura/exploração agrícola não existiriam”; h) “os terrenos da região do Douro nem sequer poderiam existir sem os muros de contenção, que, por isso, são deles indissociáveis. [...] não está [, portanto,] em causa a reparação e/ou reconstrução de um qualquer muro num terreno agrícola, que seja destinado a dividir um terreno ou a separar um terreno de outro terreno”; i) “sempre que a Requerente procede, por exemplo, à contratação de serviços de reparação ou construção dos muros das suas instalações (e não das culturas) – esses sim, serviços de construção civil – aplica o reverse charge, liquidando o respectivo IVA. Sendo importante distinguir esses serviços, os de construção civil propriamente ditos, realizados nos imóveis, ou nos muros que cercam as quintas, em que o único objectivo do serviço consiste numa intervenção relacionada com uma determinada construção, dos serviços de cariz agrícola, cujo objectivo primordial consiste na manutenção do próprio terreno agrícola, e não em efectuar uma qualquer construção, no sentido de a qualificar como integrante do conceito de construção civil”; j) “ao considerar a aplicabilidade da taxa reduzida a estes serviços [de «preparação de um terreno para plantação de vinha», segundo a Informação Vinculativa relativa ao Processo n.º 5964, de 18/11/2013], por inclusão dos mesmos na Verba 4.1 da Lista I [anexa ao Código do IVA], a AT confirma que, em substância, estamos perante serviços de preparação de terreno agrícola, e não perante serviços de construção civil [...]. Ou seja, a AT enquadrando as operações aqui em causa na Verba 4.1 da tabela anexa ao Código do IVA, demonstra inequivocamente que a mesma é indissociável do conceito de «intervenção cultural» aí previsto, devendo estar abrabgida pelo conjunto de serviços/operações que beneficiam da taxa reduzida de IVA, fruto da sua estreita conexão com a agricultura”; l) “aqui, como em qualquer outra operação, o Direito Fiscal deverá atender à substância da mesma, bem como à aplicação integrada e sistematizada das disposições instituídas pelo legislador”; m) “[impõe-se] um enquadramento em sede de IVA uniforme, sistematizado, e com ponderação da substância das operações, evitando-se a qualificação da operação como serviço agrícola para efeitos de determinação da taxa de IVA aplicável e como serviço de construção civil para efeitos de aplicabilidade do regime de reverse charge”; n) “a AT considera que, «tratando-se de construção ou reconstrução de muros de suporte de socalcos ou muros de delimitação, ainda que respeitem a propriedades agrícolas, verifica-se a existência de serviços de construção civil, previstos na Portaria n.º 19/2004, de 10 de janeiro. No entanto, refira-se, uma vez mais, é a substância da operação que deve relevar para a aplicação ou não do regime de reverse charge, sendo que, neste caso, não estamos perante serviços de construção civil, mas sim perante intervenções culturais. [...] não estamos perante um serviço de construção civil porque a reparação/reconstrução é levada a cabo especificamente em muros que são parte integrante do próprio terreno agrícola, ou seja, estamos perante uma intervenção na própria cultura, e não em muros comuns, destinados a dividir terrenos em partes distintas ou a separar um terreno de outro”; o) “[se para os serviços de surriba] a AT, atenta à substância dos trabalhos e, mesmo que considerando que os serviços em causa são, em abstracto, serviços de construção civil, entende, e bem, que, fruto da sua natureza eminentemente agrícola, não deverão ser considerados como serviços de construção civil, para efeitos de aplicação do regime de reverse charge [então,] consequentemente, impõe-se que a AT mantenha uma posição coerente e que, em todos os casos, atente à substância das operações efectivamente praticadas”; p) “para efeitos agrícolas, a preparação e manutenção dos muros é tão relevante como a manutenção do próprio terreno, na medida em que um não existe sem o outro”; q) “independentemente da aplicação ou não do reverse charge, importa salientar que o IVA aqui em causa foi efectivamente pago. Tendo sido liquidado pelos fornecedores da Requerente em todas as facturas aqui em causa, com a respectiva inclusão nas suas declarações periódicas de IVA, conforme confirmado pelos próprios fornecedores nas Declarações que aqui se juntam em anexo e se dão por integralmente reproduzidas (Cfr. Doc. 18 e 19). Desta forma, verifica-se que, na situação em apreço, não existiu qualquer tipo de dano para o Estado, na medida em que o imposto foi efectivamente liquidado. Ou seja, não poderá a AT exigir à Requerente que liquide €5230,14 de IVA que, na realidade, já foram pagos, sob pena de duplicar a cobrança do imposto”; r) “deverão ser anuladas as liquidações adicionais de IVA relativas ao ano de 2014, bem como todos os actos subsequentes, nomeadamente as demonstrações de acertos de contas, sendo a AT condenada na devolução do imposto pago pela Requerente, no montante de €5140,23, bem como no pagamento dos juros indemnizatórios que se mostrarem devidos nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 30.º, n.º 1, alínea e), e artigo 43.º, ambos da LGT, e artigo 61.º do CPPT.”        

 

            2.2. Vem a Requerente, em síntese, solicitar ao Tribunal Arbitral que “se digne dar provimento ao presente pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral, declarando a ilegalidade das liquidações adicionais de IVA identificadas com o n.º…, n.º…, n.º…, n.º…, n.º…, n.º…, n.º…, n.º…, n.º…, n.º … e n.º…, referentes aos períodos 1402M a 1412M, no montante global de €5230,14, e que motivaram as demonstrações de acerto de contas relativas às compensações com os n.os 2016 …, 2016 …, 2016 … e 2016 …, no montante global de €5140,23, e condenando a AT na devolução do montante de imposto pago pela Requerente, acrescido dos respectivos juros indemnizatórios.”  

           

            2.3. Por seu lado, a AT vem alegar, na sua contestação: a) que, “quando se esteja perante serviços de construção civil deve-se aplicar a regra de inversão do sujeito passivo prevista na al. j) do n.º 1 do art. 2.º do CIVA, sendo certo que se estes serviços forem prestados no âmbito de uma intervenção cultural realizada numa exploração agrícola ou silvícola, se lhe aplica a taxa reduzida de imposto, por se enquadrar na verba 4.1 da Lista I anexa ao CIVA. Ou seja, deve ser o destinatário dos serviços a autoliquidar o imposto, no caso, autoliquidando-o à taxa reduzida. [...]. Pelo que, e sem mais delongas, facilmente se conclui que a aplicabilidade ou não da regra de inversão do sujeito passivo, prevista na al. j) do n.º 1 do art. 2.º do CIVA, em nada interfere com a aplicação da taxa reduzida de imposto, quando esta seja de aplicar”; b) que “entende a Requerente ter o destino da obra relevância para a aplicação da regra de inversão do sujeito passivo prevista na al. j) do n.º 1 do art. 2.º do CIVA. No entanto, assim não é. Ao contrário da verba 4.1 da Lista I anexa ao CIVA, para a aplicação desta regra de inversão do sujeito passivo de imposto, em nada importa o destino ou finalidade da mesma. Nem a necessidade daquela para consolidação/sustentação do terreno na sua actual morfologia, pois que se assim fosse, à construção de qualquer muro de sustentação não se aplicaria tal regra. Na verdade, qualquer muro de sustentação de terras pretende consolidar a terra de determinado terreno, na sua configuração morfológica desejada”; c) que “a aplicação da regra de inversão do sujeito passivo prevista na al. j) do n.º 1 do art. 2.º do CIVA, depende apenas da verificação de dois requisitos, sendo o primeiro que os serviços prestados sejam de construção civil, e o segundo que o destinatário de tais serviços seja um sujeito passivo de imposto com direito (total ou parcial) à dedução do imposto suportado. Assim, no caso em apreço, tendo em conta que a Requerente é sujeito passivo de imposto com direito à dedução, a aplicação daquela regra verificar-se-á sempre que a Requerente seja destinatária de serviços de construção civil (tal como a mesma assume no art. 41.º da P.I.)”; d) que “o referido Ofício-Circulado [n.º 30101, de 24/5/2007], no seu anexo I, tem alguns exemplos dos serviços que se consideram para o efeito serviços de construção civil e, neste, designadamente, na 6.ª subcategoria da categoria 5, prevêm-se os muros de contenção. De resto, a própria Portaria 19/2004, de 10/01, que estabelece as categorias e subcategorias relativas à actividade da construção, prevê como trabalhos de construção civil, na 6.ª subcategoria da categoria 5, as paredes de contenção”; e) que, “sendo certo que este mecanismo [de reverse charge] constitui um desvio ao mecanismo normal de entrega do IVA, não é verdade que deva ser alvo de uma interpretação restrita, e tal desiderato não encontra qualquer sustentação, nem na Lei, nem na Doutrina e Jurisprudência. A aplicação da verba 4.1, essa sim, deve ser interpretada restritivamente, tal como as isenções previstas no artigo 9.º do CIVA, mas não esta norma”; f) que “falecem, in totum, as pretensões da Requerente [quanto à alegada duplicação da colecta]”; g) que, “de tudo quanto supra se expôs resulta claro que os actos tributários em crise são válidos e legais [...], pelo que, não ocorreu, in casu, qualquer erro imputável aos serviços. Assim sendo, não se encontram reunidos os pressupostos legais que conferem o direito aos juros indemnizatórios”.

 

2.4. A AT conclui que o presente pedido deve ser “julgado improcedente, mantendo-se na ordem jurídica o acto tributário de liquidação impugnado e absolvendo-se, em conformidade, a entidade requerida do pedido, tudo com as devidas e legais consequências.”

            III – Factualidade Provada, Não Provada e Respectiva Fundamentação

 

3.1. Consideram-se provados os seguintes factos:

 

            i) A Requerente é uma sociedade comercial que tem o código de actividade principal “11021 – produção de vinhos comuns e licorosos”, e secundários “01261 – olivicultura”, “55202 – turismo no espaço rural” e “01210 – viticultura”.

 

            ii) A ora Requerente dedica-se à exploração agrícola, nomeadamente: à produção e comercialização de vinhos de mesa e do Porto; à exploração agropecuária; a actividades de turismo, recreativas e de lazer; e à locação de espaços para eventos. No âmbito da sua actividade agrícola, cultiva um conjunto de explorações agrícolas, através das quais produz, designadamente, vinho e azeite, e que se encontram localizadas na região do Douro.

 

            iii) A Requerente – dadas as características morfológicas dos terrenos localizados na região do Douro, uma região marcada por socalcos – recorreu a serviços de recuperação e/ou reconstrução de muros de xisto, necessários à sustentação dos taludes.  

 

            iv) A Requerente é um sujeito passivo de IVA, nos termos e para os efeitos da al. a) do n.º 1 do art. 2.º do CIVA, estando enquadrada no regime normal de periodicidade mensal do IVA e no regime geral em sede de IRC.

 

            v) As liquidações ora em causa foram notificadas à Requerente em 2/8/2016. São, especificamente, as seguintes: liquidação adicional de IVA relativa ao período 1402M, com o n.º…; liquidação adicional de IVA relativa ao período 1403M, com o n.º…; liquidação adicional de IVA relativa ao período 1404M, com o n.º…; liquidação adicional de IVA relativa ao período 1405M, com o n.º…; liquidação adicional de IVA relativa ao período 1406M, com o n.º…; liquidação adicional de IVA relativa ao período 1407M, com o n.º …; liquidação adicional de IVA relativa ao período 1408M, com o n.º…; liquidação adicional de IVA relativa ao período 1409M, com o n.º…; liquidação adicional de IVA relativa ao período 1410M, com o n.º…; liquidação adicional de IVA relativa ao período 1411M, com o n.º…; e liquidação adicional de IVA relativa ao período 1412M, com o n.º … (vd. Docs. 1 a 11). Na sequência das supra mencionadas liquidações, a Requerente foi notificada, adicionalmente: das compensações com o n.º 2016 … (no montante de €2956,32), n.º 2016 … (€1901,40), n.º 2016 … (€115,64), e n.º 2016 … (€166,87). Todos os actos tributários em causa foram emitidos na sequência de uma inspecção tributária de âmbito parcial de que a ora Requerente foi alvo através da Ordem de Serviço n.º OI2015…, que teve como objecto o IVA do ano de 2014.

 

            vi) A correcção proposta pela AT em sede de IVA, na sequência da referida acção inspectiva, assentou, conforme o RIT (que foi junto como Doc. 17 aos presentes autos), no entendimento de que, quanto à qualificação de serviços de reparação e/ou recuperação de muros de xisto integrados em terrenos agrícolas, para suporte de taludes, estes devem ser considerados como serviços comuns de construção civil – sujeitos, nessa medida, à aplicação do regime de inversão do sujeito passivo («reverse charge»), nos termos da alínea j), do n.º 1, do artigo 2.º do CIVA.

           

vii) A ora Requerente procedeu ao pagamento de todos os montantes exigidos pela AT (e ora impugnados), como se comprova pelo Doc. 16 apenso aos autos.

            viii) A Requerente deduziu, a 31/10/2016, o presente pedido de pronúncia arbitral.

 

            3.2. Não há factos não provados relevantes para a decisão da causa.

 

3.3. Os factos considerados pertinentes e provados (v. 3.1) fundamentam-se na análise das posições expostas pelas partes e da prova documental junta aos presentes autos.

 

            IV – Do Direito

 

            No presente caso, as questões essenciais que se colocam são as de saber se: 1) como alega a AT, quanto à qualificação de serviços de reparação e/ou recuperação de muros de xisto integrados em terrenos agrícolas, para suporte de taludes, estes devem ser considerados como serviços comuns de construção civil – sujeitos, nessa medida, à aplicação do regime de inversão do sujeito passivo («reverse charge»), nos termos da alínea j), do n.º 1, do artigo 2.º do CIVA; 2) como alega a Requerente, as liquidações em causa são ilegais “por duplicação de colecta (artigo 205.º do CPPT)”; 3) se são devidos os peticionados juros indemnizatórios.

 

            Vejamos, então.

 

            1) Alega a Requerente que “a correcção proposta pela AT parte essencialmente do seu entendimento quanto à qualificação de serviços de reparação e/ou recuperação de muros de xisto integrados em terrenos agrícolas, para suporte de taludes, como serviços comuns de construção civil, sujeitos à aplicação do regime de inversão do sujeito passivo («reverse charge»), nos termos da alínea j), do n.º 1, do artigo 2.º do Código do IVA”.

 

Acrescenta que, “no âmbito da sua actividade agrícola, [...] cultiva um conjunto de culturas/explorações agrícolas, através das quais produz, designadamente, vinho e azeite, e que se encontram especificamente localizadas na região do Douro. Neste sentido, não raras vezes, a Requerente é confrontada com a necessidade de recorrer a serviços de recuperação oe/ou rconstrução de muros de xisto, que são parte integrante dos terrenos agrícolas em que se encontram instaladas as vinhas e as explorações agrícolas”. “[...] de facto, fruto das características morfológicas próprias dos terrenos localizados na região do Douro – marcada por socalcos – para que seja possível criar, manter ou desenvolver qualquer cultura/exploração agrícola, são impreterivelmente necessários os muros de xisto, que se instalam e se confundem com o próprio terreno, e que são determinantes na sustentação dos taludes”. Assim “estes muros não poderão ser enquadrados no conceito mais tradicional de muro [...] [visto que] cuidamos aqui de muros que integram os próprios socalcos onde são plantadas a vinha e as oliveiras. Ou seja, os muros de xisto são absolutamente indissociáveis do próprio tereno agrícola, na medida em que, sem eles, o terreno e a cultura/exploração agrícola não existiriam”.

 

Por seu lado, a AT entende que, quanto à qualificação de serviços de reparação e/ou recuperação de muros de xisto integrados em terrenos agrícolas, para suporte de taludes, estes devem ser considerados como serviços comuns de construção civil – sujeitos, nessa medida, à aplicação do regime de inversão do sujeito passivo («reverse charge»), nos termos da alínea j), do n.º 1, do artigo 2.º do CIVA.

 

            Considera, assim, que, para a aplicação da referida regra de inversão do sujeito passivo de imposto, “em nada importa o destino ou a finalidade da mesma. Nem a necessidade daquela para consolidação/sustentação do terreno na sua actual morfologia, pois que se assim fosse, à construção de qualquer muro de sustentação, não se aplicaria tal regra. Na verdade, qualquer muro de sustentação de terras, pretende consolidar a terra de determinado terreno, na sua configuração morfológica desejada”.

 

            Por outro lado, assinala que o “Ofício-Circulado [n.º 30101, de 24/5/2007], no seu Anexo I, tem alguns exemplos dos serviços a que se consideram para o efeito serviços de construção civil e, neste, designadamente na 6.ª subcategoria da categoria 5, prevêem-se os muros de contenção [por remissão do Anexo I para “outros serviços previstos na Portaria n.º 19/2004, de 10 de Janeiro, e não expressamente mencionados no Anexo II”]. De resto, a própria Portaria 19/2004, de 10/01, que estabelece as categorias e subcategorias relativas à actividade da construção prevê como trabalhos de construção civil, na [atrás mencionada] 6.ª subcategoria da categoria 5, as paredes de contenção”.

 

            A questão que se coloca é, pois, a de saber se os muros aqui em causa podem não ser considerados como “paredes de contenção”. E, fazendo uma leitura ajustada às circunstâncias do presente caso, não se vislumbra como é que os supra referidos muros de xisto, ainda que integrados em terrenos agrícolas e para suporte de taludes, podem não ser considerados, à luz do que dispõem os referidos Ofício-Circulado e Portaria, como “paredes de contenção”.

 

            Com efeito, uma parede ou um muro de contenção (seja ele de que tipo for) não pode evitar ser parte integrante do terreno (agrícola) que visa suportar. Tais paredes (ou muros) são, inevitavelmente, “parte integrante do próprio terreno agrícola” (para utilizar as expressões da Requerente). Contudo, se tal circunstância servisse para concluir – como alega a Requerente – que “não estamos perante serviços de construção civil, mas sim perante intervenções culturais” (ou “perante uma intervenção na própria cultura”), então inviabilizar-se-ia a aplicação do regime de inversão do sujeito passivo («reverse charge») a todas as obras ou trabalhos que, sendo inquestionavelmente de construção civil, consistissem – como sucede neste caso – na edificação ou reabilitação de muros visando a contenção de terrenos agrícolas (note-se, por outro lado, que as especificidades referidas e invocadas a respeito do Vale do Douro não permitem, ainda assim, que se aplique a este um tratamento diferente daquele que se aplica a outros contextos geográficos e geomorfológicos que também obrigam à edificação ou reabilitação de “paredes de contenção”).  

 

            Pelo acima exposto, conclui-se que os actos tributários em causa são válidos e legais, dado que, atendendo ao que dispõem o Ofício-Circulado n.º 30101, de 24/5/2007, e a Portaria 19/2004, de 10/1, não existe fundamento para não considerar os serviços de reparação e/ou recuperação de muros de xisto integrados em terrenos agrícolas, para suporte de taludes, como serviços comuns de construção civil – sujeitos, nessa medida (e também na medida em que o adquirente é sujeito passivo de IVA em Portugal e aqui pratica operações que conferem, total ou parcialmente, o direito à dedução do IVA), à aplicação do regime de inversão do sujeito passivo («reverse charge»), nos termos da alínea j), do n.º 1, do art. 2.º do CIVA.

 

2) Quanto à invocação, pela Requerente, da alegada duplicação de colecta (vd. §100.º da p.i.), constata-se que a mesma não pode proceder.

 

Com efeito, e como se assinala, por ex., no seguinte aresto do STA: “I – Por aplicação das regras gerais, o prestador de serviços é o sujeito passivo de IVA, mas nas denominadas situações de reversão da dívida tributária ou inversão da sujeição ou do sujeito passivo (reverse charge), o adquirente dos serviços ou dos bens torna-se o sujeito passivo do imposto pela respectiva aquisição, devendo proceder, em conformidade, à liquidação do imposto, sendo-lhe atribuído o direito à dedução do IVA pago pela aquisição dos serviços. II – A duplicação da colecta, prevista no art. 205.º do CPPT, resulta da aplicação do mesmo preceito legal mais do que uma vez ao mesmo facto tributário ou situação tributária concreta, sendo que a não exigência de segundo pagamento [à recorrente/requerente], a que a invocação da duplicação de colecta se reconduz, apenas se pode justificar se o primeiro [exigido à prestadora de serviços] era devido, pois, se não o foi, o que foi pago poderá ser ulteriormente reembolsado, através dos meios adequados de impugnação e revisão do acto tributário e, numa situação desse tipo, não se justifica que se prescinda do segundo pagamento, que é efectivamente devido.” (Ac. do STA de 27/2/2013, rec. 1079/12).

 

Acrescenta, ainda, o citado aresto: “não se verificam os pressupostos da duplicação da colecta, pois, como refere o Ministério Público, no seu douto Parecer, «(...) o pagamento do IVA efectuado pela prestadora de serviços de construção de civil não é devido, uma vez que o sujeito passivo do imposto é a recorrente. Não sendo devido tal pagamento não faz qualquer sentido que se prescinda do pagamento por parte da recorrente, esse sim, legalmente, devido». Assim sendo, sempre assistirá à prestadora de serviços a possibilidade de poder obter o reembolso do imposto indevidamente liquidado através dos mecanismos e meios processuais adequados. Como observa, neste sentido, o Ministério Público, no seu douto Parecer, «O indevido pagamento do IVA por parte da prestadora de serviços poderia ter sido resolvido pela devolução das facturas pela recorrente para serem rectificadas ou solicitando àquela que efectuasse a regularização prevista no artigo 78.º/3 do CIVA, sendo a impugnante/recorrente reembolsada, pela prestadora dos serviços, do IVA que lhe foi indevidamente liquidado. (...). A recorrente não pode é, por via da acção de impugnação judicial, pretender o reembolso do IVA, indevidamente pago, por via da anulação do acto tributário sindicado, pois que, como se viu, a liquidação tem arrimo legal, uma vez que o sujeito passivo do IVA é ela mesma e não a prestadora de serviços, não se verificando, pois, a alegada duplicação de colecta»”.

 

3) À luz do que dispõe o n.º 5 do art. 24.º do RJAT – “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário” –, tem-se entendido que esta norma permite o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios em processos arbitrais. Justifica-se, assim, a análise do presente pedido.

   

            São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, ter havido erro imputável aos serviços do qual resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido (vd. art. 43.º, n.º 1, da LGT). É, por isso, condição necessária para a atribuição dos mencionados juros a demonstração da existência de erro imputável aos serviços: “O direito a juros indemnizatórios previsto no n.º 1 do art. 43.º da LGT [...] depende de ter ficado demonstrado no processo que esse acto está afectado por erro sobre os pressupostos de facto ou de direito imputável à AT.” (Ac. do STA de 30/5/2012, proc. 410/12).

 

Não tendo havido, como decorre do que se disse em 1), qualquer erro imputável aos serviços, tal determina a improcedência do pedido de pagamento de juros indemnizatórios.

 

***

 

            V – DECISÃO

 

            Em face do supra exposto, decide-se:

 

            - Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se integralmente na ordem jurídica os actos de liquidação ora impugnados, e absolvendo-se, em conformidade, a entidade requerida do pedido.

            - Julgar improcedente o pedido também na parte que diz respeito ao reconhecimento do direito a juros indemnizatórios a favor da requerente.

                       

 

Fixa-se o valor do processo em €5230,14 (cinco mil duzentos e trinta euros e catorze cêntimos), nos termos do art. 32.º do CPTA e do art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no art. 29.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT, e do art. 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

Custas a cargo da Requerente, no montante de €612,00, nos termos da Tabela I do RCPAT, e em cumprimento do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do disposto no art. 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

 

Notifique.

 

Lisboa, 31 de Maio de 2017.

 

 

O Árbitro,

 

 

(Miguel Patrício)

 

 

***

 

Texto elaborado em computador, nos termos do disposto

no art. 131.º, n.º 5, do CPC, aplicável por remissão do art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.