Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 749/2016-T
Data da decisão: 2017-06-30  IRC  
Valor do pedido: € 448.790,29
Tema: IRC - Tributações autónomas - Dedução dos PEC - Lei interpretativa
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Os Árbitros Maria Fernanda dos Santos Maçãs (Árbitro Presidente), Nuno Oliveira e Fernando de Jesus Amado dos Santos, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o presente Tribunal Arbitral, acordam na seguinte

 

DECISÃO ARBITRAL [1] [2]

 

I – RELATÓRIO

 

1.      A…, SA. (adiante designada por “Requerente”), com sede social na…, Lote …, …, …- … Lisboa, com o número de identificação de pessoa colectiva…, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa sob o mesmo número, com o capital social de Euro 4 680 000,00 (quatro milhões, seiscentos e oitenta mil Euros), veio  solicitar a constituição de Tribunal Arbitral, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 2.° e 10.° do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (adiante designado por RJAT, aprovado pelo Decreto- Lei n.° 10/2011, de 20 de Janeiro).

2.      O pedido tem por objecto as decisões da Autoridade Tributária e Aduaneira – Direção de Finanças de Lisboa – que indeferiu os pedidos de revisão oficiosa número …/2016, relativa à autoliquidação de IRC do ano de 2011, e número …/2016 referente ao período 2012, apresentados pela Requerente, em 15 de Março de 2016, tendo sido a Requerente notificada do seu indeferimento em 4 de Outubro de 2016.

3.      O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 29 de Dezembro de 2016.

4.      A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo, os quais comunicaram a aceitação da designação dentro do prazo.

5.      Em 10 de Fevereiro de 2017, as Partes foram notificadas da designação dos árbitros, não tendo sido arguido qualquer impedimento.

6.      Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 27 de Fevereiro de 2017.

7.      A fundamentar o Pedido de Pronúncia Arbitral a Requerente alega, em síntese, o seguinte:

a)      Segundo a Requerente o «montante pago a título de PEC e suscetível de dedução no período de 2011, pode e deve ser deduzido à coleta total do IRC formada pelas tributações autónomas referente ao mesmo período […], pelo que a Requerente considera ser-lhe devido pela AT um total de 245.413,58 € (duzentos e quarenta e cinco mil, quatrocentos e treze euros e cinquenta e oito cêntimos), equivalente à dedução do montante de PEC pago até à concorrência absoluta da coleta (constituída integralmente, neste período, por tributação autónoma)»;

b)      «De acordo com a informação disponibilizada na declaração Modelo 22 de IRC referente ao período de tributação de 2012, é ainda possível confirmar que não foi deduzido qualquer montante a título de PEC e que o montante liquidado de tributações autónomas ascendeu a Euro 203 376,71 (duzentos e três mil, trezentos e setenta e seis euros e setenta e um cêntimos)»;

c)      «Desta forma, e à semelhança do entendimento da Requerente com referência ao período de tributação de 2011, deverão ser deduzidos até à concorrência da coleta total do IRC de 2012 (constituída integralmente, neste período, por tributações autónomas), a qual ascendeu ao montante de 203.376,71 € (duzentos e três mil, trezentos e setenta e seis euros e setenta e um cêntimos), o montante de 209.586,42 € (duzentos e nove mil, quinhentos e oitenta e seis euros e quarenta e dois cêntimos), relativo ao PEC que se encontrava disponível para dedução»;

d)      As tributações autónomas em IRC integram o conceito de colecta total do IRC, apurada nos termos do artigo 90.º, pelo que deverão as mesmas usufruir de igual tratamento, nomeadamente, ao nível das deduções previstas no n.º 2 daquele artigo;

e)      De acordo com a sequência de dedução prevista no n.º 2 do artigo 90.º do Código do IRC, a Requerente entende ser justificada a dedução e/ou a compensação dos montantes pagos à AT a título de Pagamento Especial por Conta (PEC) contra a colecta total do IRC, a qual inclui as tributações autónomas, estando esta última, inclusivamente, consagrada no próprio formulário da declaração de rendimentos Modelo 22;

f)       Parece claro à Requerente que o percurso do instituto do PEC representa, desde a sua criação, um momento de afastamento com a Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, ao qual se tem seguido um movimento de paulatina aproximação ao enquadramento original de efectivo PEC, encetado pela Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro, e reforçado pelas alterações que lhe sucederam e que culminam na Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro;

g)      A Requerente reconhece, na esteira de da posição do Dr. André Salgado de Matos, que «os pagamentos por conta do imposto […] constituem deduções à coleta por natureza: uma vez que se trata de montantes de imposto antecipadamente pagos, é evidente que, sob pena de dupla tributação, têm que ser subtraídos à coleta» (cit.);

h)      A Requerente defende a integração das tributações autónomas no conceito da colecta total do IRC e solicita que os créditos oriundos dos adiantamentos do imposto a final que foram feitos a título de PEC, e que se encontram susceptíveis de dedução nos períodos de 2011 e de 2012, sejam deduzidos às tributações autónomas, por as mesmas constituírem uma parcela da colecta do imposto;

i)       Entende a Requerente que o PEC disponível para utilização nos períodos de tributação de mencionados deverá ser deduzido à colecta de IRC, na qual se incluem, entre outras realidades, as tributações autónomas;

j)       Nos termos do n.º 21.º do art.º 88.º do CIRC [introduzido com a Lei do Orçamento do Estado (LOE) de 2016]: «a liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos no artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado» (cit.);

k)      Conforme se pode facilmente constatar, o art.º 90.º do CIRC não foi alterado e continua a referir-se à colecta do IRC;

l)       Atendendo ao elemento literal da alínea d) do n.º 2 do art.º 90.º n.º 2 do CIRC, entende-se, que ao montante da colecta de IRC apurado, é dedutível o PEC a que se refere o art.º 106.º do mesmo Código;

m)    Logo, o n.º 21.º do art.º 88.º do CIRC veio proibir que a esta colecta se efectuem quaisquer deduções até ao momento em que, apurada a colecta global de IRC, se efectuam as deduções do art.º 90.º do CIRC;

n)      Não estamos perante qualquer norma interpretativa, uma vez que esta norma altera o sentido, conteúdo ou o alcance da norma interpretada – estamos no domínio de uma nova norma, instituindo novos direitos, deveres e obrigações;

o)      O n.º 21.º do art.º 88.º do CIRC é, por inteiro, um novo preceito, que não existia previamente à LOE de 2016 e cuja aplicação terá de se limitar aos novos casos;

p)      Não se pode admitir uma aplicação do n.º 21 do art.º 88.º do CIRC, na interpretação de que esta é uma norma interpretativa, porque tal interpretação implicaria a possibilidade de aplicação retroactiva do n.º 21 do art.º 88.º do CIRC, o que significaria uma inconstitucionalidade material do art.º 135.º da LOE de 2016, por violação do disposto no n.º 3 do art.º 103.º da CRP, o que para os devidos efeitos desde já se invoca expressamente;

q)      Aceitar o carácter interpretativo do n.º 21 do art.º 88º do CIRC, implica a não aplicação do n.º 1 do art.º 90.º do CIRC, que é a norma que determina como é feita a liquidação do IRC, ou seja, ao invés de se fazer a liquidação do IRC de acordo com a norma em vigor no exercício em causa, está-se a aplicar uma lei nova e, portanto, a violar o princípio da legalidade tributária;

r)      Nestes termos, a Requerente pede ao Tribunal que dê como provada a presente acção arbitral e consequentemente anule a decisão da Autoridade Tributária, de indeferimento da reclamação graciosa, identificada supra, e, em consequência, determinar a anulação das autoliquidações referentes aos exercícios de 2011 e de 2012, com a consequente restituição dos montantes em causa, acrescidos dos respectivos juros indemnizatórios, previstos no art.º 43.º da Lei Geral Tributária (LGT) e no art.º 61.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

 

8.      A Requerida apresentou Resposta, onde apresenta defesa por excepção e por impugnação.

8.1.  Na defesa por excepção invocou, entre o mais, o seguinte:

a)      Nos termos do artigo 2.º do o Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que instituiu o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante RJAT), sob a epígrafe ‘Competência dos tribunais arbitrais e direito aplicável’, determina-se que a competência dos tribunais arbitrais compreende, designadamente [cfr. alínea a)] a apreciação e a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;

b)      Todavia, por força do disposto pelo n.º 1 do artigo 4.º do RJAT: «A vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos» (cit.); 

c)      A aludida Portaria (n.º 112-A/2011, de 22 de Março) define, no seu artigo 2.º, alínea a), que a AT se encontra vinculada às pretensões arbitrais que tenham por objeto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhe esteja cometida, referidas no n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, «com exceção das pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário» (cit.);

d)      O pedido de pronúncia arbitral sub judice dirige-se, ainda que de forma mediata, à declaração de ilegalidade de um acto de autoliquidação de imposto, no caso IRC, sem que esse acto de autoliquidação tenha sido procedido de impugnação administrativa «nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário» (cit.), o que determina, inelutavelmente, fique afastada a sua apreciação em sede arbitral;

e)      Ou dito de outro modo, a sindicância de actos de autoliquidação de imposto apenas é admitida em sede arbitral se, em momento prévio, os mesmos tiverem sido impugnados administrativamente, nos termos do artigo 131.º do CPPT;

f)       Com efeito, o artigo 2.º, alínea a), da mencionada Portaria exclui, literalmente, do âmbito da vinculação da AT à jurisdição arbitral, «as pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário» (cit.), sem que aí seja mencionado o mecanismo de revisão oficiosa previsto no artigo 78.º da Lei Geral Tributária (LGT);

g)      Sem conceder, o entendimento supra pugnado, de que os litígios que tenham por objeto a declaração de ilegalidade de atos de retenção na fonte, como sucede na situação sub judice, estão excluídos da competência material dos tribunais arbitrais, se não forem precedidos de reclamação graciosa nos termos do artigo 132.º do CPPT, impõe-se igualmente por força dos princípios constitucionais do Estado de direito e da separação dos poderes (cft. artigos 2.º e 111.º, ambos da CRP), bem como da legalidade (cft. artigos 3.º, n.º 2, e 266.º, n.º 2, ambos da CRP), como corolário do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários ínsito no artigo 30.º, n.º 2 da LGT, que vinculam o legislador e toda a atividade da AT;

h)      Efetivamente, os termos em que está redigido o n.º 1 do artigo 4.º do RJAT impõem a conclusão de que a vinculação da AT está dependente e delimitada pela vontade expressa na Portaria n.º 112-A/2011;

i)       É constitucionalmente vedada, por força dos princípios constitucionais do Estado de direito e da separação dos poderes (cfr. artigos 2.º e 111.º, ambos da CRP), bem como da legalidade (cfr. artigos 3.º, n.º 2, e 266.º, n.º 2, ambos da CRP), como corolário do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários ínsito no artigo 30.º, n.º 2 da LGT, a interpretação, ainda que extensiva, que amplie a vinculação da AT à tutela arbitral fixada legalmente, por tal pressupor, necessariamente, a consequente dilatação das situações em que esta obrigatoriamente se submete a tal regime, renunciando nessa mesma medida ao recurso jurisdicional pleno [cfr. artigo 124.º, n.º 4, alínea h) da Lei n.º 3-B/2010 e artigo 25.º e 27.º do RJAT, que impõe uma restrição dos recursos da decisão arbitral].

 

            8.2.Na defesa por impugnação argumentou, entre o mais, o seguinte:

a)      As tributações autónomas, pese embora se tratar de uma colecta em IRC, distinguem-se por incidir não sobre os lucros mas, antes sim, sobre despesas incorridas pelo sujeito passivo ou por terceiros que com ele tenham relações;

b)      Em face da sua teleologia, as tributações autónomas, enquanto instrumento fiscal anti abusivo, esvaziar-se-iam de qualquer conteúdo prático-tributário na eventualidade de se acolher a tese defendida pela Requerente;

c)      A interpretação defendida pela Requerente permitiria uma inadmissível limitação da liberdade de conformação da iniciativa do legislador, que ao criar as tributações autónomas o fez com um propósito de i) luta contra a evasão fiscal, ii) tributação do rendimento de terceiros cujo acréscimo de rendimento, de outra maneira, se subtrairia à tributação e iii) a penalização, pela via fiscal, do pagamento de rendimentos considerados excessivos face à conjuntura de crise económica de que, ainda hoje, existem resquícios;

d)      As pretensões da Requerente assentam numa construção fantasiosa e falaciosa sem qualquer sustentáculo legal, escorando-se numa qualquer tentativa forçada de interpretação ab-rogante do normativo vigente, termos em que fenecem in totum os argumentos por si esgrimidos;

e)      A posição defendida pela Requerente traduz-se numa interpretação ab-rogante, podendo constituir uma violação ao princípio da separação de poderes;

f)       Face ao que, não merecem censura os actos tributários impugnados pela Requerente, devendo os mesmos permanecer válidos na ordem jurídica;

g)      Nestes termos, deve o Pedido de Pronúncia Arbitral ser julgado improcedente por não provado, e, consequentemente, absolvida a Requerida do pedido, tudo com as devidas e legais consequências.

 

9.      A Requerente respondeu às matérias de excepção argumentando, no essencial, que a jurisprudência do STA vai no sentido de considerar que o pedido de revisão do acto tributário é um mecanismo de abertura da via contenciosa, perfeitamente equiparável à reclamação graciosa necessária. Na verdade, «o pedido de revisão oficiosa serve o propósito de filtragem administrativa, porque a AT se vai pronunciar sobre os atos de autoliquidação, retenção na fonte ou de pagamento por conta» (cit.).

10.  A Requerente sustenta a sua tese em jurisprudência, quer arbitral, quer do STA, concluindo «que excluir a jurisdição arbitral apenas porque o meio utilizado não foi efetivamente uma reclamação graciosa seria violar o princípio da tutela jurisdicional efetiva, tal como consagrado no art.º 20.º da CRP» (cit.).     

11.  Por despacho de 28 de Abril de 2017, o Tribunal indeferiu o pedido de produção de prova testemunhal apresentado pela Requerente, dispensou a realização da reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e fixou o dia 26 de Agosto de 2017 como data limite para a prolação da decisão arbitral.

12.  Nas alegações produzidas, as Partes reafirmaram, no essencial, os argumentos constantes do Pedido de Pronúncia Arbitral e da Resposta.

 

II.      SANEAMENTO

 

13.    As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

14.    O tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído.

14. A cumulação de pedidos aqui efectuada pela Requerente, é legal e válida, nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 1, do RJAT, dado que a procedência dos pedidos depende, essencialmente, da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito.

15.O processo não enferma de nulidades.

16.Como vimos, a Requerida suscitou a excepção da incompetência material decorrente da circunstância do pedido arbitral ter sido formulado na sequência do indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa, sem prévia reclamação necessária, que cumpre apreciar.

A AT sustenta, em suma, que o art. 2.º, al. a), da Portaria 112-A/2011, de 22/3, mediante a qual ficou vinculada à jurisdição arbitral, exclui as pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa, nos termos previstos nos art. 131.º a 133.º do CPPT. Entendimento que, para a AT, além do elemento literal, se impõe «por força dos princípios constitucionais do Estado de direito e da separação dos poderes (cfr. artigos 2.º e 111.º, ambos da CRP), bem como da legalidade (cfr. artigos 3.º, n.º 2, e 266.º, n.º 2, ambos da CRP), como corolário do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários ínsito no artigo 30.º, n.º 2 da LGT, que vinculam o legislador e toda a atividade da AT» (ponto 56.º da Resposta). «Efetivamente, a vinculação da AT à tutela arbitral necessária, na qual vigora o princípio da irrevogabilidade das decisões, pressupõe uma limitação das situações em que esta pode plenamente decidir se deve ou não interpor recurso de uma decisão judicial desfavorável, ou seja, do poder de optar entre abdicar definitivamente da cobrança do crédito tributário ou adotar o comportamento potencialmente adequado a procurar efetivá-la» (ponto 60.º da Resposta). 

A Requerente, em exercício do contraditório que lhe foi concedido quanto à excepção, defendeu a sua improcedência invocando jurisprudência do CAAD em sentido divergente ao sustentado pela AT.

Vejamos:

A competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é, em primeira linha, balizada pelas matérias indicadas no art. 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT). Numa segunda linha, a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é também limitada pelos termos em que AT foi vinculada àquela jurisdição pela portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, já que o art. 4.º do RJAT estabelece que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos» (cit.).

Em face desta segunda limitação da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, a resolução da questão da competência depende essencialmente dos termos e da natureza desta vinculação, pois, mesmo que se esteja perante uma situação enquadrável naquele art. 2.º do RJAT, se ela não estiver abrangida pela vinculação, estará afastada a possibilidade de o litígio ser jurisdicionalmente decidido por este Tribunal Arbitral. Ou seja: «o âmbito (…) dos processos arbitrais restringe-se às questões da legalidade dos atos dos tipos referidos no artigo 2.º [do RJAT] que são abrangidos pela vinculação que foi feita na Portaria n.º 112-A/2011 (…)»cit. Ac. TCAS de 28/4/2016 (proc. 09286/16, relatora: Anabela Russo).

Sucede que na al. a) do art. 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 são expressamente excluídos do âmbito da vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD as «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário». Ou seja, comparando a portaria de vinculação com o RJAT, aquela é mais exigente do que este, por acrescentar um requisito para delimitar abstratamente o objeto da vinculação da AT à jurisdição arbitral.

Como ficou consignado na Decisão Arbitral, proferida no processo n.º 143/2016-T, «A respeito da natureza da portaria, há quem entenda que aí reside fundamentalmente um acto decisório da Administração, de manifestação voluntária de consentimento à vinculação ao RJAT, e nas restrições ao objeto uma limitação concreta, ainda que manifestada em termos de disposição genérica» (cfr. foi entendimento maioritário no Ac. 236/2013 de 22/4/2014, ou 364/2014 de 19/12/2014, ambos do CAAD). Há por outro lado quem deixe transparecer um entendimento mais regulamentar (normativo) da Portaria (jurisprudência maioritária). «Não obstante existirem elementos sugestivos para ambos as posições, consideramos que sobressai o caráter regulamentar da portaria, sobretudo quanto ao objeto da vinculação, que se projeta em todos os litígios a dirimir por via da arbitragem tributária. E nessa medida, essa parte da portaria configura-se como um regulamento administrativo, que se integra no RJAT» (cit.).

«O que antes se disse serve para parametrizar a seleção de critérios interpretativos. Dada a natureza da portaria, deverá ser adotada uma orientação subjetivista, sendo de prevalecer a aceção do texto normativo que melhor corresponda ao pensamento real do ‘legislador’, em que se privilegie o elemento teleológico, a finalidade da disposição estatuída. Ora o que carece de especial labor interpretativo é a exigência de “via administrativa” necessária (prévia), “nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário».

«Desde logo, em obediência a esses mesmos termos, previstos no art. 131.º CPPT, o requisito de via administrativa prévia será apenas aplicável aos casos em que tal recurso é obrigatório, através da reclamação graciosa. De facto, no caso de autoliquidações, exige-se a reclamação graciosa, mas apenas em casos de erros que não se fundem exclusivamente em matéria de direito, e em que as autoliquidações hajam sido efetuadas de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária (cfr. n.º 1 e n.º 3 do art. 131.º CPPT)[3]».

«O sentido útil da portaria, face ao estabelecido no RJAT, a vontade do legislador, foi o de assegurar que o contribuinte não recorre ao Tribunal «antes de qualquer tomada de posição da administração sobre a situação gerada com o ato do contribuinte (…) pois não é detetável, ainda, qualquer litígio»[4] [5]. Assim se percebe que sejam excluídos da exigência de reclamação os casos previstos no art. 131.º n.º 3 CPPT, visto que nesses a AT já se pronunciou, a priori, através de orientações genéricas».

Regressando aos pedidos de pronúncia arbitral, recorde-se que os mesmos surgem como culminar de processos iniciados com pedidos de revisão oficiosa, expressamente indeferidos. A Requerente não recorreu, portanto, previamente a uma reclamação graciosa, antes recorreu diretamente ao pedido de revisão, e fê-lo mais de dois anos após a declaração de autoliquidação.

Contudo, o que verdadeiramente importa é que, nos casos em que é formulado um pedido de revisão oficiosa de acto de liquidação, é igualmente proporcionada à AT, com esse pedido, uma oportunidade de se pronunciar sobre o mérito da pretensão do contribuinte, antes de este recorrer à via jurisdicional. Logo, por «coerência com as soluções adotadas nos n.ºs 1 e 3 do art. 131.º do CPPT, não pode ser exigível que, cumulativamente com a possibilidade de apreciação administrativa no âmbito desse procedimento de revisão oficiosa, se exija uma nova apreciação administrativa através de reclamação graciosa. Por outro lado, é inequívoco que o legislador não pretendeu impedir aos contribuintes a formulação de pedidos de revisão oficiosa nos casos de atos de autoliquidação, pois estes são expressamente referidos no n.º 2 do artigo 78.º da LGT. Neste contexto, permitindo a lei expressamente que os contribuintes optem pela reclamação graciosa ou pela revisão oficiosa de atos de autoliquidação e sendo o pedido de revisão oficiosa formulado no prazo da reclamação graciosa perfeitamente equiparável a uma reclamação graciosa[6] (…) não pode haver qualquer razão que possa explicar que não possa aceder à via arbitral um contribuinte que tenha optado pela revisão do ato tributário em vez da reclamação graciosa» (cit.) [7].

Face ao exposto, conclui-se[8] que a Portaria n.º 112-A/2011, ao referir expressamente o artigo 131.º do CPPT quanto a pedidos de declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, disse imperfeitamente o que pretendia. Querendo impor a apreciação administrativa necessária à impugnação contenciosa de atos de autoliquidação, acabou por fazer referência expressa ao artigo 131.º, esquecendo-se que esta via não esgota as possibilidades de apreciação administrativa desses actos. A interpretação sufragada é a interpretação a que melhor traduz a vontade do legislador e que não colide quaisquer princípios constitucionais, nem põe em crise a indisponibilidade dos créditos tributários.

Aliás a invocação do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários será possivelmente um lapso, já que ao decidir sobre a sua competência, relevante apenas enquanto pressuposto processual, o Tribunal Arbitral não está seguramente a praticar qualquer acto de disposição de um crédito tributário, no sentido do invocado art. 30.º, n.º 2, da LGT.

Por outro lado, excluir a jurisdição arbitral apenas porque o meio utilizado devia ter sido uma reclamação prévia graciosa seria violar os princípios do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efectiva.

Com efeito, a regra, quer para a impugnação judicial, quer para a arbitragem, é que se submetam ao crivo da AT todos aqueles actos relativamente aos quais esta entidade ou ainda não se pronunciou ou ainda não teve qualquer intervenção, razão pela qual lhe deve ser dada a oportunidade para se pronunciar antes de o tribunal judicial ou arbitral se pronunciar quanto à sua legalidade.

É, assim, manifesta a equiparação entre o pedido de revisão do acto tributário à reclamação graciosa sobre atos de autoliquidação, retenção na fonte e de pagamento por conta. Na verdade, como ficou consignado no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (Pleno da seção do CT, processo n.º 0793/2014), de 3 de Junho de 2015: «o meio procedimental de revisão do ato tributário não pode ser considerado como um meio excecional para reagir contra as consequências de um ato de liquidação, mas sim como meio alternativo dos meios impugnatórios administrativos e contenciosos (quando for usado em momento em que aqueles ainda podem ser utilizados) ou complementar deles (quando já estiverem esgotados os prazos para utilização dos meios impugnatórios do ato de liquidação)» (cit.). Na senda do mencionado Acórdão, o Supremo Tribunal Administrativo decidiu que «o Indeferimento, tácito ou expresso, do pedido de revisão é suscetível de controlo judicial [cfr. art. 95.º, n.ºs 1 e 2, alínea d), da LGT]» (cit.).

É, hoje, jurisprudência consolidada que, podendo a AT, por sua iniciativa, proceder à revisão oficiosa do acto tributário, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços (art. 78.º, n.º1, da Lei Geral Tributária), também o contribuinte pode, naquele prazo da revisão oficiosa, pedir esta mesma revisão com aquele fundamento.

Em suma, o pedido de revisão oficiosa do acto tributário é um mecanismo de abertura da via contenciosa perfeitamente equiparável à reclamação graciosa necessária, porquanto serve o propósito de permitir que a AT se pronuncie sobre os actos de autoliquidação.

Pelos fundamentos expostos improcede o argumento da AT no sentido da inconstitucionalidade do art. 2.º, alínea a), da Portaria n.º 112-A/2011 na interpretação sufragada por este tribunal.

Termos em que improcede, assim, esta excepção de incompetência.

 

III.1. Matéria de facto

 

§1. Factos dados como provados

 

a)     A Requerente assume a forma jurídica de uma sociedade anónima de direito português, com sede e direção efetiva em Portugal e qualificada, em sede do IRC, como um sujeito passivo residente nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do Código daquele imposto;

b)     A Requerente exerce a sua atividade no mercado das telecomunicações, operando no âmbito das soluções de telecomunicação, bem como no das tecnologias da informação;

c)      No cumprimento das obrigações declarativas legalmente impostas (cfr. n.ºs 1 e 2 do artigo 120.º do Código do IRC à data dos factos), a Requerente submeteu, […], a declaração Modelo 22 do IRC, referente ao período de tributação de 2011, a 30 de novembro de 2012 – cfr. cópia da declaração que se junta como Doc. n.º 5 e se dá por reproduzido para todos os efeitos legais;

d)      De acordo com a informação disponibilizada na área da Requerente, no site da AT (https://www.portaldasfinancas.gov.pt > Os seus serviços > Pagar > Documentos de Pagamento > IRC > Pagamentos Antecipados), o montante total dos Pagamentos Especiais por Conta (PEC) ainda passível de dedução no período de tributação de 2011, ascendia a Euro 385.000 (trezentos e oitenta e cinco mil euros), conforme tabela abaixo e cópia do documento do Portal das Finanças (de que junta cópia como Doc. n.º 6 se dá por reproduzido para todos os efeitos legais;

 

Períodos de Tributação

PEC pago

Último ano de reporte

2007

105 000,00

2011

2008

70 000,00

2012

2009

70 000,00

2013

2010

70 000,00

2014

2011

70 000,00

2015

Total

385 000,00

Total

 

 

e)      Da tabela acima e da documentação apresentada, comprova-se, então, que o total de PEC passível de dedução no período de tributação de 2011 era composto pelos montantes pagos e não deduzidos desde 2007;

f)       A Requerente não apurou coleta do IRC stricto sensu em qualquer um daqueles períodos em função da qual fosse possível deduzir os PEC pagos (Docs. n.ºs 7 a 11);

g)      De acordo com a informação disponibilizada na declaração Modelo 22 do IRC referente ao período de tributação de 2011, o montante liquidado pela Requerente a título de tributações autónomas ascendeu a Euro 245 413,58 (duzentos e quarenta e cinco mil, quatrocentos e treze euros e cinquenta e oito cêntimos);

h)      Este montante foi efetivamente pago pela Requerente, como comprova o Doc. n.º 6 (vide, para o efeito, o valor pago sob a designação de ‘AL’ (autoliquidação) na informação respeitante ao período de 2011 e a correspondência do mesmo com o montante de tributações autónomas declarado na declaração de rendimentos);

i)       No cumprimento das obrigações declarativas legalmente impostas (cfr. n.ºs 1 e 2 do artigo 120.º do Código do IRC à data dos factos), a Requerente submeteu […], a declaração Modelo 22 do IRC, referente ao período de tributação de 2012, a 29 de novembro de 2013 – cfr. cópia da declaração que se junta como Doc. n.º 12 e se dá por reproduzido para todos os efeitos legais;

j)       De acordo com a informação disponibilizada na área da Requerente, no site da AT (https://www.portaldasfinancas.gov.pt > Os seus serviços > Pagar > Documentos de Pagamento > IRC > Pagamentos Antecipados), o montante total dos Pagamentos Especiais por Conta (PEC) ainda passível de dedução no período de tributação de 2011, ascendia a Euro 385 000 (trezentos e oitenta e cinco mil euros), conforme tabela abaixo e cópia do documento do Portal das Finanças (de que junta cópia como Doc.º n.º 13 e se dá por reproduzido para todos os efeitos legais;


 

Períodos de Tributação

PEC pago

Último ano de reporte

2007

105 000,00

2011

2008

70 000,00

2012

2009

70 000,00

2013

2010

70 000,00

2014

2011

70 000,00

2015

Total

385 000,00

Total

 

k)       Da tabela acima e da documentação apresentada, comprova-se, então, que o total de PEC passível de dedução no período de tributação de 2011 era composto pelos montantes pagos e não deduzidos desde 2007;

l)       A Requerente não apurou coleta do IRC stricto sensu em qualquer um daqueles períodos em função da qual fosse possível deduzir os PEC pagos (cfr. Docs. n.ºs 7 a 11 reproduzidos);

m)    De acordo com a informação disponibilizada na declaração Modelo 22 do IRC referente ao período de tributação de 2011, o montante liquidado pela Requerente a título de tributações autónomas ascendeu a Euro 245 413,58 (duzentos e quarenta e cinco mil, quatrocentos e treze euros e cinquenta e oito cêntimos);

n)      Este montante foi efetivamente pago pela Requerente, como comprova o Doc.º n.º 13 reproduzido (vide, para o efeito, o valor pago sob a designação de ‘AL’ (autoliquidação) na informação respeitante ao período de 2011 e a correspondência do mesmo com o montante de tributações autónomas declarado na declaração de rendimentos);

o)      Os PEC pagos em 2012 totalizaram Euro 70 000 (setenta mil euros), conforme comprova a informação disponibilizada no site da AT (https://www.portaldasfinancas.gov.pt > Os seus serviços > Pagar > Documentos de Pagamento > IRC > Pagamentos Antecipados), na área da Requerente (cfr. Doc. n.º 13 reproduzido);

p)      De acordo com a informação disponibilizada na declaração Modelo 22 de IRC referente ao período de tributação de 2012, é ainda possível confirmar que não foi deduzido qualquer montante a título de PEC e que o montante liquidado de tributações autónomas ascendeu a Euro 203 376,71 (duzentos e três mil, trezentos e setenta e seis euros e setenta e um cêntimos).

q)      Em 15 de Março de 2016, a Requerente apresentou dois pedidos de revisão oficiosa, por referência aos exercícios de 2011 e 2012, os quais foram autuados, respectivamente, com os números …2016… (RO…/16) e …201… (RO…/16), que culminou com despachos de indeferimento, datados de 16.09.2016, tendo sido notificado à ora Requerente através do Ofício n.º… e … de 03.10.2016 – cfr. Processo Administrativo (PA);

r)      Notificada para exercer o direito de audição (nos termos do ofício n.º…, de 2016-08-19) do projecto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, a Requerente não exerceu tal direito, convertendo-se em definitivo o projecto de decisão de indeferimento  (Doc n.º3, junto pelo Requerente e o PA); 

s)      Na decisão de indeferimento pode ler-se, entre o mais, que:

«Tendo em conta que as tributações autónomas correspondem a uma forma de obstar a determinadas situações abusivas, afigura-se que seria contrário ao espírito do sistema, permitir que, por força das deduções a que se refere o n.º2 do artigo 90.º do Código do IRC, fosse retirado às tributações autónomas esse caráter anti abusivo que presidiu à sua implementação no sistema de IRC.(…) entende-se que as tributações autónomas não são de considerar para o efeito das deduções previstas no n.º 2 do artigo 90.º do IRC. De notar, ainda que esta questão perdeu relevância face à introdução do n.º 21 do art. 88.º do Código do IRC, aditado plea Lei n.º 7-A/2018, de 30 de Março, cuja redação o tem natureza interpretativa» (cfr. o citado doc n.º 3 e o PA).  

 

§2. Factos não provados

Com relevo para a decisão não existem outros factos que devam considerar-se provados.

 

§3. Fundamentação da matéria de facto

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

III.2. Matéria de Direito

Com o Pedido de Pronúncia Arbitral, apresentado pela Requerente, é peticionado que o Tribunal Arbitral proceda à «anulação da decisão da Autoridade Tributária, de indeferimento das Revisões Oficiosas anteriormente identificadas e, consequentemente, determine “a anulação das autoliquidações referentes aos exercícios de 2011 e de 2012, e evidenciadas no documento (Doc anexo nº13)  obtido no Portal das Finanças onde estão evidenciados  as respectivas Autoliquidações e pagamentos e a consequente restituição do montante de € 448 790,29, correspondente à soma dos montantes de € 245 416,58 (relativo ao exercício de 2011) e € 203 376,71 (referente ao exercício de 2012), acrescido dos respetivos juros indemnizatórios» (cit.).

A fundamentar o pedido alega a Requerente, no essencial, que o PEC disponível para utilização nos períodos de tributação de 2011 e 2012 deverá ser deduzido à colecta de IRC, na qual se incluem, as tributações autónomas.

Defente a Requerente, que a colecta do IRC, prevista no artigo 90.º, n.ºs 1 e 2, alíneas b) e c), na redação em vigor em cada um daqueles exercícios, abrange também a colecta das tributações autónomas em IRC, ou seja, entende a Requerente que  «uma vez que se considera que as tributações autónomas em IRC integram o conceito de coleta total do IRC, apurada nos termos do artigo 90º, então deverão as mesmas usufruir de igual tratamento, nomeadamente ao nível das deduções previstas no nº 2 daquele artigo» (cit.).

Nessa conformidade «a Requerente entende ser justificada a dedução e/ou compensação dos montantes pagos à AT a título de PEC contra a coleta total de IRC, a qual inclui as tributações autónomas» (cit.).

Adicionalmente, entende ainda a Requerente, no que diz respeito ao âmbito e natureza do artigo 135.º da Lei nº 7-A/2016, de 30 de Março, que o n.º 21 do artigo 88.º do Código do IRC, introduzido por aquela Lei, não se trata de uma «qualquer norma interpretativa, uma vez que esta norma altera o sentido, conteúdo ou o alcance da norma interpretada, pelo que deve ser interpretada como uma nova norma, instituindo novos direitos, deveres e obrigações, pelo que a sua aplicação terá de se limitar aos novos casos e que um qualquer outro entendimento violaria o princípio da não retroactividade previsto no art. 103º da CRP. Segundo o ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroativa ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei» (cit.).

Em particular, no que diz respeito ao alegado efeito interpretativo conferido pelo artigo 135.º constante da Lei do Orçamento do Estado para 2016, entende a Requerente  que «qualquer interpretação que não aplique a norma que permita a dedução à parte da colecta do IRC produzida pelas taxas de tributação autónoma do pagamento especial por conta efectuado em sede de IRCé materialmente inconstitucional, por violação do princípio da legalidade» (cit.).

Ante o exposto, a questão central a decidir (atento o pedido e a causa de pedir), está em saber se as autoliquidações de IRC (na parte que respeitam às tributações autónomas) relativas aos exercícios de 2011 e 2012, padecem do vício material de violação de lei, porquanto, segundo entende a Requerente, não deve ser vedada a dedução do PEC à parte da colecta de IRC correspondente às referidas tributações autónomas.

Neste contexto, a resposta à questão central a decidir (e acima enunciada) pressupõe, desde logo, que se analise a evolução da figura das tributações autónomas com vista a averiguar se o seu regime jurídico (compreendendo a análise da sua natureza e a sua razão de ser) é compaginável com a pretensão da Requerente ou, se pelo contrário, assiste razão na posição defendida pela Requerida.

 

 

III.2.1.1. Da natureza das tributações autónomas na jurisprudência e na doutrina nacional

Conforme posição adoptada nas Decisões Arbitrais nºs 722/2015-T, de 28 de Junho de 2016, nº 443/2016 de 23 de Fevereiro de 2017 e voto de vencido junto à decisão Arbitral n.º 5/2016-T, cujos colectivos foram presididos pelo aqui também Árbitro Presidente (e para as quais desde já aqui remetemos), concorda este Tribunal Arbitral com a jurisprudência que defende que com as tributações autónomas se tributa a despesa e não o rendimento, posição que é assumida pelo Exmo. Senhor Conselheiro Vítor Gomes (voto de vencido aposto no Acórdão n.º 204/2010 do Tribunal Constitucional), nos termos do qual afirma, referindo-se às tributações autónomas, que «embora formalmente inserida no CIRC e o montante que permita arrecadar seja liquidado no seu âmbito e a título de IRC, a norma em causa respeita a uma imposição fiscal que é materialmente distinta da tributação nesta cédula» (cit.).

«Com efeito, estamos perante uma tributação autónoma […] e isso faz toda a diferença. Não se trata de tributar um rendimento no fim do período tributário, mas determinado tipo de despesas em si mesmas, pelas compreensíveis razões de política fiscal que o acórdão aponta».[9]

E acrescenta que:

«Deste modo, o facto revelador de capacidade tributária que se pretende alcançar é a simples realização dessa despesa, num determinado momento. Cada despesa é, para este efeito, um facto tributário autónomo, a que o contribuinte fica sujeito, venha ou não a ter rendimento tributável em IRC no fim do período, sendo irrelevante que esta parcela de imposto só venha a ser liquidada num momento posterior e conjuntamente com o IRC» (cit., sublinhado nosso).

 

No mesmo sentido, foi igualmente reconhecido pela jurisprudência do STA:

«Que sob a designação de tributações autónomas se escondem realidades muito diversas, incluindo, nos termos do n.º 1 do (então) art.º 81.º do CIRC, as despesas confidenciais ou não documentadas, que são tributadas autonomamente, à taxa de 50%, que será elevada para 70%, nos casos de despesas efectuadas por sujeitos passivos total ou parcialmente isentos, ou que não exerçam, a título principal, actividades de natureza comercial, industrial ou agrícola (n.º 2 do [então] art.º 81.º) e que não são consideradas como custo no cálculo do rendimento tributável em IRC. Refira-se contudo que já as despesas de representação e as relacionadas com viaturas ligeiras, nos termos do disposto no (então) art. 81.º n.º 3 do CIRC e ajudas de custo estão afectas á actividade empresarial e indispensáveis pelo que são fiscalmente aceites nalguns casos ainda que dentro de certos limites[10]» (cit.).

No que diz respeito à posição que era assumida pelo Tribunal Constitucional, cite-se o Acórdão n.º 18/11, nos termos do qual se refere que:

«Existem factos sujeitos a tributação autónoma, que correspondem a encargos comprovadamente indispensáveis à realização dos proveitos e […] isto significa que a tributação autónoma também recai sobre encargos que correspondem ao núcleo do conceito de rendimento real, rendimento líquido e cumprimento de obrigações contabilísticas» (cit., sublinhado nosso).

«Este argumento do Tribunal Constitucional […] interessa-nos apenas salientar que o Tribunal reconhece que este regime constitui uma limitação à tributação do rendimento real (a qual é garantida pelo art.º 104.º n.º 2 da CRP)» (cit.).

Mais recentemente, o Tribunal Constitucional vem reformular a doutrina do Acórdão n.º 18/11 (acima referido), aproximando-se do então voto de vencido do Conselheiro Vítor Gomes e do Acórdão do STA n.º 830/11 (acima também citado), no sentido de entender que:

«Contrariamente ao que acontece na tributação dos rendimentos em sede de IRS e IRC, em que se tributa o conjunto dos rendimentos auferidos num determinado ano (o que implica que só no final do mesmo se possa apurar a taxa de imposto, bem como o escalão no qual o contribuinte se insere), no caso tributa-se cada despesa efetuada, em si mesma considerada, e sujeita a determinada taxa, sendo a tributação autónoma apurada de forma independente do IRC que é devido em cada exercício, por não estar diretamente relacionada com a obtenção de um resultado positivo, e por isso, passível de tributação. Assim, e no caso do IRC, estamos perante um imposto anual, em que não se tributa cada rendimento percebido de per si, mas sim o englobamento de todos os rendimentos obtidos num determinado ano, considerando a lei que o facto gerador do imposto se tem por verificado no último dia do período de tributação (cfr. artigo 8.º, n.º 9, do CIRC). Já no que respeita à tributação autónoma em IRC, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, não se estando perante um facto complexo, de formação sucessiva ao longo de um ano, mas perante um facto tributário instantâneo» (cit., sublinhado nosso).

Ora, ainda segundo este Acórdão do Tribunal Constitucional:

«Esta característica da tributação autónoma remete-nos, assim, para a distinção entre impostos periódicos (cujo facto gerador se produz de modo sucessivo, pelo decurso de um determinado período de tempo, em regra anual, e tende a repetir-se no tempo, gerando para o contribuinte a obrigação de pagar imposto com caráter regular) e impostos de obrigação única (cujo facto gerador se produz de modo instantâneo, surge isolado no tempo, gerando sobre o contribuinte uma obrigação de pagamento com caráter avulso). Na tributação autónoma, o facto tributário que dá origem ao imposto, é instantâneo: esgota-se no ato de realização de determinada despesa que está sujeita a tributação (embora, o apuramento do montante de imposto, resultante da aplicação das diversas taxas de tributação aos diversos atos de realização de despesa considerados, se venha a efetuar no fim de um determinado período tributário). Mas o facto de a liquidação do imposto ser efetuada no fim de um determinado período não transforma o mesmo num imposto periódico, de formação sucessiva ou de caráter duradouro. Essa operação de liquidação traduz-se apenas na agregação, para efeito de cobrança, do conjunto de operações sujeitas a essa tributação autónoma, cuja taxa é aplicada a cada despesa, não havendo qualquer influência do volume das despesas efetuadas na determinação da taxa» (cit., sublinhado nosso). [11]

No que diz respeito à doutrina, constatamos que, no essencial, o conceito e a natureza das tributações autónomas não se afasta substancialmente do entendimento da jurisprudência produzida pelo Tribunal Constitucional (acima sumariamente enunciada).

Na verdade, como refere o Prof. RUI MORAIS:

«Está em causa uma tributação que incide sobre certas despesas dos sujeitos passivos, as quais são havidas com constituindo factos tributários. É difícil descortinar a natureza desta forma de tributação e, mais ainda, a razão pela qual aparece prevista nos códigos dos impostos sobre o rendimento» (cit.).[12]

No mesmo sentido, JOSÉ ALBERTO PINHEIRO PINTO afirma que:

«Não se trata propriamente de IRC – que visa tributar o rendimento das pessoas colectivas e não despesa por elas efectuadas -, mas da substituição de uma tributação de rendimentos ‘implícitos’ de pessoas singulares, que se considera não exequível directamente» (cit.).[13]

Em suma, alguma doutrina e a jurisprudência dos tribunais superiores nacionais e do Tribunal Constitucional consideram que as tributações autónomas são factos tributários autónomos, que incidem sobre a despesa pelo que, apesar de inseridas formalmente no Código do IRC, dizem respeito a uma tributação distinta do imposto sobre o rendimento.

Adicionalmente, refira-se que é também aceite pela generalidade da doutrina e jurisprudência que as tributações autónomas visam prevenir práticas abusivas de remuneração de trabalhadores, gerentes e sócios/accionistas da sociedade.

Com efeito, e como referia o saudoso Prof. J. L. SALDANHA SANCHES:

«Neste tipo de tributação, o legislador procura responder à questão reconhecidamente difícil do regime fiscal de despesas que se encontram na zona de intersecção da esfera pessoal e da esfera empresarial, de modo a evitar remunerações em espécie mais atraentes por razões exclusivamente fiscais ou a distribuição oculta de lucros. Apresenta a norma uma característica semelhante à que vamos encontrar na sanção legal contra custos não documentados, com uma subida de taxa quando a situação do sujeito passivo não corresponde a uma situação de normalidade fiscal (cit).[14]

Nestes termos, «trata-se de uma tributação que se explica pela necessidade de prevenir e evitar que, através dessas despesas, as empresas procedam à distribuição camuflada de lucros, sobretudo de dividendos que, assim, ficariam sujeitos ao IRC enquanto lucros da sociedade, bem como combater a fraude e evasão fiscais que tais despesas ocasionam» (cit.).[15]

 

III.2.1.2. Da evolução da figura das tributações autónomas

Nesta matéria, refira-se que, na redação inicial do Código do IRC (aprovada pelo Decreto-Lei n.º 442-B/88, de 30 de Novembro), não se fazia nenhuma referência expressa ou implícita a tributações autónomas sendo que, só com a Lei n.º 101/89, de 29 de Dezembro (diploma que aprovou o Orçamento do Estado para 1990), foi feita uma primeira referência a tributações autónomas no âmbito do IRC, através da autorização legislativa que constava do n.º 3 do seu artigo 15.º [nos termos da qual se preceituava que ficava o Governo autorizado a tributar autonomamente em IRS ou IRC, conforme os casos, a uma taxa agravada em 10% e sem prejuízo do disposto na alínea h) do n.º 1 do artigo 41.º do CIRC, as despesas confidenciais ou não documentadas efectuadas no âmbito do exercício de actividades comerciais, industriais ou agrícolas por sujeitos passivos de IRS que possuam ou devam possuir contabilidade organizada ou por sujeitos passivos de IRC não enquadrados nos artigos 8.º e 9.º do respectivo Código].

Como é consabido, a origem no ordenamento jurídico fiscal português das tributações autónomas remonta a 1990, com a publicação do Decreto-Lei nº 192/90, de 9 de Junho, nos termos do qual (no seu artigo 4º), se estabelecia uma tributação autónoma:

a)        À taxa de 10% relativa a despesas confidenciais ou não documentadas e;

b)        À taxa de 6.4%, relativamente a despesas de representação e encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros.

Com efeito, foi com a aprovação do Decreto-Lei n.º 192/90 (e concretizando aquela autorização legislativa), que foi incluída à margem dos códigos do IRS e do IRC, uma norma sobre tributações autónomas, nos termos da qual «as despesas confidenciais ou não documentadas efectuadas no âmbito do exercício de actividades comerciais, industriais ou agrícolas por sujeitos passivos de IRS que possuam ou devam possuir contabilidade organizada ou por sujeitos passivos de IRC não enquadrados nos artigos 8.º e 9.º do respectivo Código são tributadas autonomamente em IRS ou IRC, conforme os casos, a uma taxa de 10% sem prejuízo do disposto na alínea h) do n.º 1 do artigo 41.º do CIRC» (cit.).

Esta norma (e, de uma forma geral, o regime das tributações autónomas), veio a ser objecto de diversas alterações (v. g. a Lei n.º 52-C/96, de 27 de Dezembro, a Lei n.º 87-B/97, de 31 de Dezembro, a Lei n.º 3-B/2000, de 4 de Abril e a Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro), nomeadamente, através de sucessivas modificações, quer das taxas, quer da sistematização e redação às mesmas conferida, nos respectivos códigos sobre os impostos sobre os rendimentos (ou seja, quer no Código do IRC, quer no Código do IRS).

Com a aprovação da Lei nº 30-G/2000, de 29 de Dezembro, o decreto que consagrou as tributações autónomas foi revogado, aditando-se ao Código do IRC o artigo 69º-A [correspondente à data dos factos subjacentes (2011 e 2012) ao artigo 88º] no qual, para além da manutenção da incidência destas às despesas não documentadas, às despesas de representação e às despesas com viaturas, se estendeu a mesma a outras situações da natureza diversa.

Em consequência desta análise da evolução da figura das tributações autónomas, entendemos ser possível retirar, desde logo, duas ilações:

(i) A primeira é a de que as tributações autónomas incidem quer sobre encargos dedutíveis, quer sobre encargos não dedutíveis em sede de IRC;

(ii) A segunda é a de que as tributações autónomas visam evitar a erosão da base tributável em sede de IRC, fazendo incidir tributação sobre encargos que podem ser deduzidos pelos sujeitos passivos de IRC mas que, sendo-o, se transformam num agravamento da tributação, pretendendo, portanto, servir como desincentivo à despesa com tais encargos.

Em relação às tributações autónomas sobre despesas não dedutíveis, caso se admitisse a sua dedutibilidade, estaria a admitir-se a dedutibilidade de um encargo não indispensável para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora.

Assim, pode ter-se como assente, e para o que relevará no sentido da decisão a proferir no âmbito dos presentes autos, os seguintes pressupostos:

(i) As tributações autónomas de IRC, ancoradas nos diversos números e alíneas do artigo 88º do Código do IRC, traduzem situações diversas, às mesmas cabendo também taxas de tributação diferentes;

(ii) As tributações autónomas de IRC, incidentes sobre determinados encargos de sujeitos passivos de IRC, devem ser entendidas como pagamentos independentes da existência ou não de matéria coletável;

(iii) Interpretadas como pagamentos, associados ao IRC, ou com este pelo menos relacionados, podendo entender-se como uma excepção no que respeita ao princípio da tributação das pessoas colectivas de acordo com o lucro real e efectivo apurado (artigo 3º do Código do IRC),

(iv) Nas tributações autónomas, o facto tributário que dá origem à tributação é instantâneo, ou seja, esgota-se no acto de realização de determinadas despesas que estão sujeitas a tributação (embora o apuramento do montante de imposto resultante das diversas taxas de tributação aos diversos actos de realização de despesas considerados, se venha a efetuar no fim de um determinado período tributário);

(v) O facto de a liquidação do imposto ser efectuada no fim de um determinado período não o transforma num imposto periódico, de formação sucessiva ou de carácter duradouro, porquanto essa operação de liquidação traduz-se apenas na agregação, para efeito de cobrança, do conjunto de operações sujeitas a essa tributação, cuja taxa é aplicada a cada despesa, não havendo qualquer influência do volume das despesas efetuadas na determinação da taxa;

(vi) A tributação autónoma não é equivalente à não dedutibilidade das despesas realizadas pelo sujeito de IRC.

Por outro lado, e no que diz respeito às características das tributações autónomas, reconhecem-se aqui aquelas que, há já alguns anos, a doutrina vem apontando a este tipo de tributações, ou seja:

a) A tributação autónoma só faz sentido porque os custos/gastos relevam como componentes negativas do lucro tributável do IRC, sendo isso que motiva os sujeitos passivos do IRC a relevar um valor tão elevado quanto possível desses gastos para diminuir a matéria tributável do IRC, a colecta e, consequentemente, o imposto a pagar;

b) Com o regime fiscal associado, pretende-se desincentivar esse tipo de gastos em sujeitos passivos que apresentam resultados negativos mas que, independentemente disso, continuam a evidenciar estruturas de consumo pouco ou nada compagináveis com a saúde financeira das suas empresas;

c) Trata-se, em tese mais geral, de modelar o sistema fiscal de modo que este revele um certo equilíbrio tendo em vista uma melhor repartição da carga tributária efectiva entre contribuintes e tipos de rendimento;

d) Considera-se desfavoravelmente determinados gastos em que, reconhecidamente, não é fácil determinar a medida exacta da componente que corresponde a consumo privado e relativamente aos quais é conhecida a prática geral de abuso na sua relevação.

 

III.2.1.3. Da causa e da função das tributações autónomas em sede de IRC

É pacífico que as tributações autónomas radicam, como se aflorou, na necessidade de evitar abusos quanto à relevação de certos encargos ou despesas e que poderão ser facilmente objeto de desvio para consumos privados ou que, de algum modo, são susceptíveis de configurar, formalmente, um gasto de uma pessoa colectiva mas que, substancialmente, representam ou podem configurar abusos em ordem a minimizar a medida real do imposto.

Ciente desta dificuldade de, muitas vezes, se efetuar uma separação rigorosa destas duas realidades, foi sucessivamente enxertado, conforme supra descrito, no regime de tributação do lucro real e efectivo estabelecido no Código do IRC, como padrão geral, um regime autónomo de tributação de certos gastos, no todo ou em parte indesejados e indesejáveis, que contaminam os termos do dever de imposto que, assim, surge configurado abaixo da real capacidade contributiva da entidade que a releva como tal.

Nestes termos, pode afirmar-se que as tributações autónomas surgem integradas no regime do IRC, são apuradas e devidas no âmbito da relação jurídica de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas e é, neste quadro, que se efectua o seu apuramento.

Mas não são IRC, tout court, como a Requerente lapidar e definitivamente o afirma.

Com efeito, para que fossem assim consideradas teriam, desde logo, que tributar o rendimento e isso, como vimos, não é o que sucede, em momento algum.

Na verdade, embora exista uma instrumentalidade evidente entre o IRC e o modelo de tributação da renda em Portugal e as tributações autónomas (facto de resto bem evidenciado na jurisprudência dos Tribunais Superiores e, em especial, do Tribunal Constitucional), prevalece o entendimento de que as tributações autónomas tributam despesas.

De facto, as tributações autónomas são um instrumento que (afastando-se e introduzindo alguma medida de entorse num sistema que declara tributar rendimentos reais e efetivos), afinal também tributa gastos, dedutíveis ou não em IRC, sem que com isso sejam violados os preceitos constitucionais já que a norma aplicável (art.º 104.º, n.º 2 da CRP) declara imperativa a tributação das empresas fundamentalmente sobre o seu rendimento real, sem prejuízo quer das situações de tributação segundo os lucros ou o rendimento real (quando seja apurado por métodos indiretos), quer das situações de tributação de gastos objeto de tributação autónoma (por expressa opção de lei), do estabelecimento de soluções técnicas (como é o caso do PEC) e das regras específicas visando a sua devolução.

Neste âmbito, vale a pena ainda recordar que, nem os sistemas fiscais, nem os modelos de imposição concreta correspondem a modelos puros, isentos de elementos de extraneidade ao próprio sistema fundacional, de valores, ou ao próprio regime geral de um qualquer imposto abstratamente considerado. Com efeito, todos os impostos possuem caraterísticas ou soluções que, quando vistas isoladamente, podem representar objectivamente uma descaraterização do modelo tal como na pureza dos conceitos foi concebido mas que, quando articuladas com o modelo, se verifica que concorrem para a sua efectividade, e lhe conferem ou reforçam a sua coerência.

Essas soluções, mais pragmáticas ou específicas, não ferem tais ditames valorativos essenciais, sejam eles de proteção da receita ou de densificação dos ideais valorativos gerais (da ordem tributária) ou específicos do imposto (como é o caso da necessidade de evitar abusos) desde que, eles mesmos, não sejam de tal modo relevantes que abjurem o modelo de tributação-regra ou falseiem estruturalmente os valores em que radica.

No caso em análise, embora a opção da lei fundamental e da lei ordinária, por consequência, haja sido claramente no sentido de tributar o rendimento das pessoas colectivas e, nas formas possíveis de apuramento deste, se haja escolhido a tributação do rendimento real e efectivo como manifestação do mais elevado padrão de justiça fiscal, a verdade é que o sistema sempre conheceu desvios mais ou menos relevantes, seja porque certos gastos não são considerados como tal pela lei fiscal (embora objectivamente possam ser imputáveis a uma actividade comercial), seja porque a lei fiscal, reconhecendo essa essencialidade, teme a ocorrência de abusos (como é o caso das tributações autónomas, genericamente falando).

Em parte, este afastamento da pureza dos conceitos é uma consequência inevitável da complexidade das relações da vida, seja porque modelos de imposição fiscal puros são mais onerosos de implementar e gerir já que requerem informação relevante muito mais apurada, seja porque no campo dos impostos, como noutros campos da vida, há que temperar o ideal de justiça consagrado com soluções de razoabilidade normativa na qualificação dos factos relevantes e técnica nas soluções e exigências a estabelecer, com o objectivo de evitar que os modelos tributários sejam excessivamente complexos e onerosos deixando de atingir realidades e práticas que mitiguem a carga tributária ou concorram para uma má distribuição da mesma.

Ora, deste balanceamento dos valores que suportam o dever de estabelecer/suportar imposto com as realidades da vida pode resultar a necessidade de estabelecer limites (fiscais ou outros) ao comportamento dos sujeitos passivos, com o objectivo de manter dentro de padrões gerais de equilíbrio, as soluções legais do sistema.

Por outro lado, importa ter presente (porque isso releva para efeitos da decisão a tomar) que as tributações autónomas configuram normas anti-abuso dirigidas a racionalizar comportamentos específicos dos contribuintes (face ao dever de imposto) pelos quais, tradicionalmente, conseguiam alcançar uma medida de imposto inferior ao que o evidenciava a sua capacidade contributiva efectivamente revelada mas que, mercê, desses comportamentos abusivos era passível de ser mitigada ou eliminada, com evidente violação ou postergação do princípio da justiça, de justa repartição da carga fiscal por quem revela capacidade contributiva.

Consequentemente, faz sentido admitir que se façam deduções gerais à colecta do imposto, que são permitidas por lei para dar sentido efectivo ao princípio da tributação do rendimento real e efectivo.

Contudo, no que diz respeito à colecta devida por tributações autónomas, essa dedução geral deixa de fazer sentido porque, não tributando os lucros, mas despesas, não se coloca, quanto a elas, a questão da justiça na repartição do encargo geral do imposto, pelo que seria ilógico permitir a dedução de encargos quando tal dedução, na prática, destruiria o sentido anti-abusivo que as impregna, ou seja, o desincentivo de comportamentos desviantes que a sua instituição reprime ou dirime.

Ora, as tributações autónomas, como parece claro, não têm uma finalidade marcadamente reditícia, isto é, não visam, primacialmente, a obtenção de (mais) receita fiscal, embora este possa não ser um aspecto despiciendo, verificável.

Com efeito, elas visam dissuadir comportamentos, práticas ou opções das empresas radicadas em razões essencialmente de natureza de poupança fiscal, reditícia e, por outro lado, preservam os equilíbrios próprios do regime de tributação das pessoas colectivas, evitando distorções não apenas ao nível dos resultados tributáveis, como ondas de comportamentos desviantes, afectadores da expectativa jurídica da receita, em cada ano económico.

E, através destas cláusulas gerais anti-abuso, forçam a manutenção de uma correlação saudável entre os volumes de negócios, os lucros tributáveis e o imposto devido a final pelas entidades sujeitas a IRC, em linha com os níveis médios de carga fiscal efectiva que recai sobre os diferentes grupos de contribuintes, dentro do sistema fiscal português e, até, comparativamente com a dos estados membros da OCDE ou fora dela.

Assim, as tributações autónomas, incluindo as previstas na alínea b), do n.º 13, do art.º 88.º do Código do IRC têm, pois, uma função disciplinadora geral que não é alheia às finalidades sistémicas do imposto, até porque, como mecanismo anti abuso, as tributações autónomas não são alheias aos fins gerais do sistema fiscal.[16]

Nestes termos, a adopção de regimes legais que limitem os efeitos nefastos que resultem de comportamentos afectadores da equilibrada repartição da carga fiscal sobre os diferentes grupos de contribuintes não constitui apenas uma opção do legislador mas, é antes, uma obrigação estrita, em resultado na obrigatoriedade de gizar e fazer funcionar o sistema como um todo de forma equilibrada.

Com efeito, as tributações autónomas introduzem mecanismos de tributação que, naturalmente, desagradarão aos seus destinatários, mas impedem ou limitam os efeitos nefastos de práticas abusivas que prejudicariam outros e são, por isso, necessárias à preservação dos equilíbrios do sistema.

Ora, as empresas, tal como as pessoas singulares, também estão sujeitas e com a mesma intensidade ao dever geral de pagar impostos e, nesta medida, a lei fiscal não pode deixar de consagrar mecanismos que limitem procedimentos desviantes porquanto cada um deve suportar imposto segundo pode, isto é, segundo são as suas capacidades contributivas reveladas.

Importa ainda notar que, nos nossos dias, se adoptou, como regra geral, o regime da tributação segundo o rendimento real e efectivo para as pessoas colectivas, não constituindo este uma mera opção de funcionamento do sistema fiscal de entre várias outras possíveis.

Na verdade, ela é, antes, uma manifestação concreta da modernidade e da maturidade de um sistema fiscal que exige dos seus destinatários/beneficiários uma madureza da mesma estatura pois representa também uma nova forma de responsabilização ética e social perante o fenómeno do imposto. [17]

Como referiu, oportunamente, SALDANHA SANCHES (citado na Decisão arbitral 187/2013-T, pp. 28), as tributações autónomas constituem uma forma de obstar a actuações abusivas «que o normal funcionamento do sistema de tributação era incapaz de impedir, sendo que outras, incluindo formas mais gravosas para o contribuinte, eram possíveis. Este caráter anti abuso das tributações autónomas, será não só coerente com a sua natureza “anti sistémica” (como acontece com todas as normas do género), como com uma natureza presuntiva, apontada quer pelo Prof. Saldanha Sanches quer pela jurisprudência que o cita. Elas terão então materialmente subjacente uma presunção de empresarialidade parcial das despesas sobre que incidem, em função da supra apontada circunstância de tais despesas se situarem numa linha cinzenta que separa aquilo que é despesa empresarial, produtiva, daquilo que é despesa privada, de consumo, sendo que, notoriamente, em muitos casos, a despesa terá mesmo na realidade uma dupla natureza (parte empresarial, parte particular)». [18]

Todas estas considerações convocam o que nos parece ser a verdadeira sententia legis, posto que a descoberta do verdadeiro sentido da lei constitui um imperativo, pois que importa assegurar que a actividade do intérprete atinja um sentido interpretativo pelo qual a lei exteriorize o seu sentido mais benéfico, mais profícuo e mais salutar, no dizer de FRANCESCO FERRARA.[19]

Por outro lado, o sentido lógico da interpretação não nos conduz senão no sentido de que as tributações autónomas assentam numa lógica segundo a qual a lei pretende evitar ou desincentivar tais pessoas colectivas de relevar (abusivamente) como gastos valores relativos a bónus ou remunerações variáveis. Assim, é a relevação como gasto para efeitos de IRC, na sua inteireza, que se pretende desincentivar.

Fazendo apelo à ratio legis fica claro que as tributações autónomas são cobradas, no âmbito do processo de liquidação do IRC, de acordo com uma raiz e uma dogmática próprias que levam a que a colecta total do imposto não seja uma realidade unitária mas composta.[20]

Com efeito, é nela possível descortinar a colecta de imposto propriamente dita, resultante da mecânica geral de apuramento do IRC, que é devida com fundamento constitucional assente no dever geral de cada um (neste se englobando as pessoas colectivas) de contribuir para as despesas públicas segundo os seus haveres (art.º 103.º, n.º 1 da CRP).

Tudo no respeito e em cumprimento dos princípios da justiça, da igualdade e do dever de pagar imposto segundo a capacidade contributiva revelada. E a que se deduzem as importâncias referidas no artigo 90.º do Código do IRC e nos termos e modos ali referenciados.

A esta colecta geral, radicada neste fundamento de ordem fundacional, adiciona-se a colecta específica, devida por tributações autónomas, que tem, como se deixou claro, uma raiz, um sentido e um fundamento próprios, qual seja o de desincentivar a adopção dos comportamentos por elas tributados, elencados no art.º 88.º do Código, que configura uma norma anti abuso, o que nos permite convocar aqui toda a dogmática própria em que se fundamenta.

Neste caso, por se tratar de cumprir finalidades que extravasam os fins puramente reditícios do imposto, para se situar no campo dos comportamentos que a lei considera abusivos e/ou não desejados, parece claro que não faz sentido que se lhe efectuem deduções, sob pena de se esvaziar, na prática, de qualquer sentido o regime anti abusivo criado.

Assim, atento o que vai exposto, estamos agora em condições de analisar o pedido da Requerente, quanto à legalidade da dedução do PEC à parte da colecta de IRC correspondente às taxas de tributações autónomas, em cada um dos exercícios (de 2011 e 2012).

 

III.2.2. A evolução do PEC – Pagamento Especial por conta de IRC devido a final e seu regime

A génese e a evolução do PEC desenvolvem-se em três estádios, designadamente (i) o regime que vai do seu nascimento até ao ano 2000; (ii) o regime aplicável aos exercícios de 2001 e 2002; e o regime subsequente que vigora até hoje.

Na sua versão inicial, o PEC foi apresentado como ferramenta de melhoria do sistema, que era e é muito baseado na declaração dos rendimentos pelos contribuintes. A sua introdução no sistema fiscal foi simultânea com a redução da taxa geral do IRC em dois pontos percentuais.

A ocorrência dos dois factos não é coincidência porquanto, se por um lado, se reduziu a taxa aplicável aos contribuintes pagadores de imposto, por outro lado, através do PEC, promoveu-se o pagamento especial de quantia a título de imposto, ainda que a título provisório, pelos sujeitos passivos que apesar de continuarem a desenvolver a sua actividade ano após ano, persistiam em declarar rendimentos negativos ou nulos, escapando à tributação efectiva.

Nestes termos, foi pois, como medida de combate às «práticas evasivas de ocultação de rendimentos ou de empolamento de custos» que o PEC foi justificado no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 44/98, de 3 de Março (diploma que o instituiu).

A provisoriedade do pagamento do imposto residia afinal na possibilidade de deduzir as quantias pagas como PEC ao IRC, apurado nos termos gerais, fixados no artigo 71.º do CIRC então vigente (do qual ainda não faziam parte as tributações autónomas), embora essa dedução só fosse possível se, apesar dessa operação, o valor do imposto a pagar fosse positivo (conforme artigo 71º, n.º 6 do CIRC/1998).

Não havendo IRC a pagar nos termos gerais, o valor do PEC satisfeito podia ser reportado para o exercício seguinte (conforme artigo 74º-A, n.º 1) ou reembolsado mais tarde (conforme artigo 74º-A, n.º 2).

Assim, procurava-se garantir que a generalidade dos sujeitos passivos satisfizesse valor por conta do IRC, calculado provisoriamente sobre o volume de negócios do exercício anterior (conforme artigo 83º-A).

No fundo, ficcionava-se que todas as empresas teriam por tendência um lucro tributável, calculado de acordo com os parâmetros gerais, equivalente a 1% do seu volume de negócios do ano anterior, acertando-se posteriormente a conta se assim não fosse.

A reforma do IRC operada em 2000-2001, através da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, reduziu o carácter de pagamento por conta que o imposto tinha, impedindo o seu reembolso enquanto o contribuinte se mantivesse em actividade e impôs que o reporte das quantias satisfeitas fosse feito apenas até ao quarto exercício subsequente (conforme artigo 74º-A, n.º 1, do Código do IRC/2001).

Desta norma restritiva resulta, pela primeira vez, a possibilidade do PEC se transformar em colecta mínima quando não fosse possível deduzir as quantias satisfeitas, por se esgotar o período de reporte.[21]

Em síntese, é possível afirmar que as alterações introduzidas nesta reforma não só mantiveram como acentuaram a tónica de combate à evasão fiscal que tinha animado a introdução do PEC. Contudo, apesar de nesta ocasião as tributações autónomas terem sido introduzidas no CIRC, não foi previsto qualquer mecanismo de articulação entre os dois instrumentos.

A terceira configuração do PEC foi introduzida pela Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro, que no seu artigo 27.º introduziu um novo regime da dedutibilidade do PEC no artigo 87.º, n.º3, do CIRC, repondo a possibilidade de reembolso das quantias entregues a título de PEC e não abatidas na liquidação anual de IRC.

Manteve-se ainda aqui o carácter de medida de perseguição da evasão fiscal, embora se tenha aligeirado, sem o abolir completamente, o cunho de colecta mínima, face aos apertados condicionalismos impostos para o reembolso.

Dispõe o artigo 104.º do CIRC que «as entidades que exerçam, a título principal, actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, bem como as não residentes com estabelecimento estável em território português, devem proceder ao pagamento do imposto […] em três pagamentos por conta, com vencimento em Julho, Setembro e 15 de Dezembro do próprio ano a que respeita o lucro tributável ou, nos casos dos nºs 2 e 3 do artigo 8.º, no 7.º mês, no 9.º mês e no dia 15 do 12.º mês do respectivo período de tributação».

E o art.º 106.º do CIRC dispõe que «sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 1 do

artigo 104.º, os sujeitos passivos aí mencionados ficam sujeitos a um pagamento especial por conta, a efectuar durante o mês de Março ou em duas prestações, durante os meses de Março e Outubro do ano a que respeita ou, no caso de adoptarem um período de tributação não coincidente com o ano civil, nos 3.º e 10.º meses do período de tributação respetivo».

Do que antecede resulta a obrigatoriedade, para os sujeitos passivos de IRC, de efectuarem pagamentos por conta do IRC que será devido a final.

Como é sabido, a técnica dos pagamentos por conta consiste, no geral, num mero mecanismo de antecipação do imposto que venha a ser devido a final.

Com efeito, trata-se, como é pacificamente aceite, de um meio que tem vantagens para o Estado pois permite-lhe antecipar o recebimento do imposto, ao mesmo tempo que assegura a sua colecta no momento ou à medida que o rendimento se produz, sem prejuízo do apuramento final e com observância do apuramento do que for devido, segundo o método geral de tributação pelo lucro real.

É verdade que a razão de ser dos pagamentos por conta e do PEC, partindo deste tronco comum (já que, inequivocamente, ambos são o produto de uma técnica tributária pela qual a colecta do imposto devido a final) é antecipada. Contudo, ainda assim, apresentam (no segundo caso), justificações algo diferenciadas.

Desde logo, no que diz respeito à razão de ser dos pagamentos, no caso dos pagamentos por conta, porquanto estes esgotam-se, em nossa opinião, nos fundamentos supra evidenciados, mas já o PEC, não perdendo essa finalidade de vista, tem ainda uma outra que se lhe adicionou.

Com efeito, como bem se refere na Decisão Arbitral proferida no âmbito do processo n.º 113/2015-T «na doutrina e na jurisprudência o regime do PEC sempre foi tido como sistema para evitar a evasão fiscal e para garantir o pagamento de imposto por todas as empresas em atividade» (cit.).

É, também isso que resulta do trabalho doutrinário desenvolvido pelo Tribunal Constitucional porquanto, do seu Acórdão n.º 494/2009, resulta que o PEC, no recorte que que lhe foi dado no CIRC, está também «indissociavelmente ligado à luta contra a evasão e fraude fiscais», procurando garantir que os rendimentos manifestados pelos contribuintes «correspond[i]am ao rendimento tributável realmente auferido» (cit.). [22]

Na verdade, o citado Acórdão do Tribunal Constitucional identifica múltiplos trabalhos científicos que se pronunciaram no mesmo sentido, como é o caso de Teresa Gil, (ob. e loc. cit.), que deu conta das circunstâncias que rodearam a introdução do PEC, designadamente das dificuldades na aplicação do princípio da tributação pelo lucro real, constatadas face à «divergência que existe entre os lucros efetivamente obtidos e aqueles que são declarados pelas empresas e, portanto, objeto de tributação» (cit.).

Como se tem dito, e neste passo, fazemos nossas a síntese invocada na supra referida Decisão Arbitral, em que o regime actual do PEC é assim caracterizado por «(i) ter ligação indissociável à luta contra a evasão e fraude fiscais; (ii) ter sido introduzido no CIRC em março de 1998, antes das taxas de tributação autónoma que só passaram a fazer parte da sua sistemática na reforma de 2000-2001; (iii) na conceção do PEC previu-se a sua dedução à colecta na liquidação do IRC calculado sobre o rendimento real; (iv) a recuperação do crédito resultante do PEC está subordinada a condições de obtenção de rácios de rentabilidade próprios das empresas do sector de atividade em que se inserem ou à justificação da situação de crédito por ação de inspeção feita a pedido do sujeito passivo (87º-3 do CIRC)» (cit.).

Questão subsequente é a de saber se estas razões especiais são de molde a permitir que se deduza, à colecta das tributações autónomas, o próprio PEC, porquanto ele não é mais do que um pagamento por conta do IRC que será (presumivelmente) devido a final pelo sujeito passivo, ainda que com algumas caraterísticas especiais. E, logo assim, ele é IRC para todos os efeitos legais havendo, todavia, regras especiais para a sua devolução.

Ao contrário das tributações autónomas, que são colecta devida em razão de comportamentos que a lei deseja desincentivar e, por isso, penalizam a relevação de certos gastos pelas razões indicadas, no PEC do que se trata é de garantir que seja adiantado a título de IRC, e sem prejuízo da sua dedução à colecta geral do imposto, apurada por efeito da operação de liquidação stricto sensu, certa medida do imposto.

Ora, como bem se refere na Decisão Arbitral acima referida, proferida no âmbito do processo 113/2015-T:

«O PEC passou a fazer parte do sistema do IRC cuja liquidação foi concebida para apurar o imposto diretamente incidente sobre o rendimento declarado. Quando haja lugar a prejuízo fiscal o sujeito passivo tem ainda assim que suportar o PEC; essa foi aliás a razão da sua introdução. Se determinada empresa tiver sucessivamente prejuízos fiscais, suportará sistematicamente imposto, pois o sistema duvida da sua possibilidade de funcionamento em situação permanentemente deficitária, exigindo-lhe que satisfaça provisoriamente (por conta), determinado valor.

Poderá reembolsá-lo se provar que essa situação é comum no seu setor de atividade ou se a AT verificar a regularidade das suas declarações. Este foi o equilíbrio que o CIRC exigiu para manter um sistema baseado nas declarações feitas pelos contribuintes. Já o imposto resultante da tributação autónoma fundamenta-se tão só na perseguição à evasão fiscal por transferência de rendimento e tem o efeito dissuasor e compensatório. Se se permitir a dedução do PEC à colecta resultante da tributação autónoma, gorar-se-ão os propósitos do sistema em que a norma do 83º-2-e CIRC se insere, pois o produto do pagamento especial por conta que deveria manter-se “estacionado” na titularidade da Fazenda Pública será afetado à extinção da dívida do sujeito passivo resultante das tributações autónomas, aligeirando assim a pretendida pressão para evitar a evasão fiscal “declarativa”. Existe efetivamente um conflito inconciliável entre a ratio do PEC – o combate à evasão ou a pressão para correção das declarações – e a afetação dos seus créditos à satisfação de outras obrigações que não sejam as que resultam do apuramento do IRC calculado sobre o resultado tributável.

Em termos práticos a possibilidade de dedução do PEC às tributações autónomas implicaria que mesmo que determinada empresa estivesse eternamente em situação de prejuízo, nenhum imposto sobre o seu rendimento real teria que suportar, enquanto aplicasse o PEC à satisfação das tributações autónomas. Para mais as próprias tributações autónomas (Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 617/2012, citado) perderiam o seu caráter anti abuso, passando a confundir-se afinal com o imposto calculado sobre o lucro tributável.

Ora não são esses os objetivos do sistema de tributação do rendimento das pessoas coletivas e a melhor interpretação da norma contida no artigo 83º-2-e CIRC não é essa decididamente aquela que permite deduzir os pagamentos especiais por conta à coleta resultante da aplicação das taxas de tributação autónoma» (cit.).

Em suma, ponderáveis razões, derivadas das finalidades que se pretenderam alcançar legislativamente com a criação do PEC, justificam uma interpretação restritiva dos artigos 90.º, n.º 1, e 93.º, n.º 3, do CIRC, em especial da referência que neste último se faz «ao montante apurado na declaração a que se refere o artigo 120.º do CIRC» (cit.).

De realçar que este entendimento arbitral se encontra mais uma vez em sintonia com o novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC aditado, como vimos, pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, ao estabelecer que ao montante apurado das tributações autónomas não são «efectuadas quaisquer deduções».

Também, neste caso, o legislador se limitou a acolher, clarificando-a, uma solução que os tribunais, com o recurso às regras vigentes e por aplicação dos critérios de hermenêutica jurídica estavam em condições de extrair do regime a aplicar, o que se limitou a fazer este colectivo, no caso dos autos.

Assim sendo, improcede também o argumento invocado pela Requerente, no sentido de que deve ser declarada a ilegalidade das liquidações das tributações autónomas por ausência de base legal para a sua efectivação e, por outro lado, porque ao conferir-se o alcance de norma interpretativa ao n.º 21 do art.º 88º do CIRC, coloca-se em causa a proibição da retroactividade que está consagrada no nº 3 do art.º 103.º da CRP, nos termos do qual «ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação e cobrança e não façam nos termos da lei» (cit.).

Neste âmbito, refira-se que, embora o artigo 135.º da LOE de 2016 atribua, como já ficou dito, natureza interpretativa ao n.º 21 do artigo 88.º do CIRC (o que conjugado com o artigo 13.º do Código Civil conduz à sua aplicação retroactiva), como ficou demonstrado da argumentação supra exposta, a solução encontrada por este colectivo não necessitou de fazer aplicação deste novo preceito, caindo, assim, por terra, as inconstitucionalidades que a Requerente imputa ao referido preceito.

Assim sendo, deixa de fazer sentido a invocada inconstitucionalidade do nº 21 do artigo 88.º do CIRC aditado pela Lei n.º 7.º-A/2016, de 30 de março, por violação do princípio da retroactividade da lei, proibida pelo artigo 103.º, nº3, da CRP, na medida em que tal normativo não é convocado sequer na resolução do caso em apreço.

No mesmo sentido vai o Acórdão Arbitral n.º 673/2015-T, onde a este propósito se concluiu igualmente, entre o mais, que a solução já resultava do teor literal do artigo 93.º, n.º1, do CIRC, «sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei, já que a interpretação restritiva é admissível quando haja razões ponderosas para concluir que o alcance do texto legal atraiçoa o pensamento legislativo ou é necessário optimizar a harmonização de interesses conflituantes que duas normas visam tutelar» (cit.).

Apreciados os factos e a pretensão da Requerente, no sentido de ver deduzido à parte da colecta do IRC, produzida pelas taxas de tributação autónoma, o montante do PEC efectuado em sede de IRC, a mesma não pode deixar de improceder, à luz de tudo quanto vem exposto.

Com efeito, pelas razões acima expostas a pretensão da Requerente tem necessariamente que improceder, uma vez que as autoliquidações impugnadas cumprem com o princípio da legalidade, pois assentam em correcta interpretação das normas acima citadas e analisadas.

Termos em que improcede totalmente o pedido de declaração de ilegalidade das autoliquidações de IRC, referentes aos exercícios de 2011 e 2012, mais especificamente a ilegalidade no que se refere à não dedução à parte da colecta do IRC produzida pelas tributações autónomas do PEC efectuado em sede do IRC, que originou um montante de imposto liquidado respectivamente no valor de € 245 413,58 (2011) e € 203 376,71 (2012), num total de € 448790,29. Em consequência, improcede também a alegada ilegalidade do indeferimento das Revisões Oficiosas apresentadas com respeito ao IRC dos anos acima já referidos.

 

III. 2.3. Outros pedidos

Improcedendo o pedido de declaração de ilegalidade das liquidações impugnadas ficam igualmente prejudicados os pedidos feitos pela Requerente de devolução de quantias pagas e de respectivos juros indemnizatórios.

 

III. 2.4. Da responsabilidade pelo pagamento das custas arbitrais

De harmonia com o disposto no artigo 22º, nº 4, do RJAT, «da decisão arbitral proferida pelo tribunal arbitral consta a fixação do montante e a repartição pelas partes das custas directamente resultantes do processo arbitral» (cit.).

Assim, nos termos do disposto no artigo 527º, nº 1 do CPC, aplicável por força do artigo 29º, nº 1, alínea e) do RJAT, deve ser estabelecido que será condenada em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito.

Neste âmbito, o nº 2 do referido artigo concretiza a expressão «houver dado causa», segundo o princípio do decaimento, entendendo que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.

No caso em análise, tendo em consideração o acima exposto, o princípio da proporcionalidade impõe que seja atribuída a responsabilidade integral por custas à Requerente, de acordo com o disposto no artigo 12º, nº 2 do RJAT e artigo 4º, nº 4 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

IV. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

a)        Julgar improcedente a excepção de incompetência material do Tribunal deduzida pela Entidade Requerida;

b)        Julgar improcedente o pedido arbitral de declaração de ilegalidade das autoliquidações de IRC, nas partes produzidas pelas tributações autónomas, dos exercícios de 2011 e 2012, objecto de impugnação, absolvendo-se a Requerida deste pedido;

c)         Manter a decisão de indeferimento dos pedidos de Revisão Oficiosa respeitante aos actos tributários de autoliquidação de IRC relativos aos exercícios de 2011 e 2012, absolvendo-se a Requerida do respectivo pedido;

d)        Em consequência, julgar improcedente o pedido de reembolso do montante de IRC, respeitante ao exercício de 2011 (no montante de € 245 413,58) e respeitante ao exercício de 2012 (no montante de € 203 376,71), acrescido de juros indemnizatórios, conforme formulado pela Requerente, absolvendo-se a Requerida do respectivo pedido;

e)         Condenar a Requerente no pagamento das custas do presente processo.

 

 

V. VALOR DO PROCESSO

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 448 790,29.

 

VI. CUSTAS

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em
€ 7 038,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 30 de Junho de 2017

 

O Árbitro Presidente

 

 

(Fernanda Maçãs)

 

 

 

O Árbitro Adjunto

 

 

(Fernando de Jesus Amado dos Santos)

 

 

 

O Árbitro Adjunto

Nuno de Oliveira Garcia,

 (Vencido conforme voto que se segue e integra a presente decisão)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Voto de Vencido

 

Sigo integralmente, o voto de vencido de José Baeta Queiroz, no processo n.º 122/2016 – T, processo que versou precisamente sobre a dedução de pagamentos especiais por conta, e relevo, com especial destaque, a mais recente jurisprudência constitucional.

Começo por referir que a jurisprudência produzida pelos tribunais arbitrais que funcionam no âmbito do CAAD tem entendido, quase unanimemente, que as tributações autónomas integram o IRC, com a argumentação de que também o presente acórdão se não afastou. E, se não fosse como se vem decidindo, não haveria norma legal que suportasse a respetiva liquidação, e as tributações autónomas teriam de se considerar inconstitucionais, por violação do nº 3 do artigo 103º da Constituição. Assim, a coleta encontrada mediante a liquidação efetuada nos termos do artigo 90º nº 1 inclui as tributações autónomas.

De resto, e citando o voto de vencido de José Baeta Queiroz, no processo n.º 122/2016 – T, para o qual remetemos:

«Não vemos como esta norma [artigo 90.º do Código do IRC, in casu em conjugação com o artigo 38.º do Código Fiscal do Investimento] possa legitimamente interpretar-se senão literalmente. Todos os elementos a que se atende para a interpretação das leis, designadamente, a intenção do legislador, ou a unidade do sistema, de nada valem se o resultado a que se chega não tem expressão bastante na letra da lei. E essa letra, no caso, é clara e não comporta, a nosso ver, senão um sentido» […]

Cumpre, porém, atentar em que o artigo 133.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, introduziu no artigo 88.º do CIRC um novo nº. 21, deste teor: ‘A liquidação das tributações autónomas em IRC é efectuada nos termos previstos no artigo 89º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efectuadas quaisquer deduções ao montante global apurado’ (cit.). E o artigo 135.º da dita Lei afirmou a natureza interpretativa do transcrito n.º 21 do artigo 88.º, não do 90.º.

Sucede que as nossas doutrina e jurisprudência sustentam, desde há muito, que não basta a uma norma, para ser interpretativa, a afirmação do legislador em tal sentido.

Verdade que, no caso, há uma controvérsia jurisprudencial que, em princípio, justificaria uma intervenção interpretativa do legislador. Verdade é, também, que a nova norma, afirmada como interpretativa, vai no sentido de uma das correntes jurisprudenciais pré-existentes, ou seja, já antes alguns julgadores tinham chegado à interpretação agora feita pelo legislador.

Mas atente-se no que em 1997 escreveu o Professor Oliveira Ascensão: ‘não basta que em relação a um ponto duvidoso surja uma lei posterior que consagre uma das interpretações possíveis para que a lei seja interpretativa’ (apud Saldanha Sanches, «Lei interpretativa e retroactividade em matéria fiscal», in FISCALIDADE, n.º 1, pág. 87). Ao que acrescenta o Professor Saldanha Sanches: ‘É necessário que haja uma efectiva controvérsia, conhecida pelos destinatários da norma, sobre a incerteza da interpretação’.

Este ponto parece-nos relevante. É que os destinatários da norma não são, prima facie, os juristas, os julgadores, mas os cidadãos em geral, todos obrigados ao pagamento de impostos e todos vinculados à lei, cujo desconhecimento não podem invocar.

Ora, a interpretação a que chegaram aqueles tribunais arbitrais não está ao alcance de qualquer cidadão, sem sequer de qualquer jurista, mas só de um fiscalista altamente especializado, capaz de conjugar vários elementos, sejam eles histórico, sistemático e outros, interpretativos, razoavelmente ignorados da maioria das pessoas, destinatários da lei, e nem sequer atingíveis pelos mais empenhados em entendê-la.

Ou seja: o cidadão comum, o bonus pater familias, mesmo que empresário, investidor ou gerente, não conhecendo, nem tendo que conhecer, a jurisprudência dos tribunais arbitrais, contava, antes da lei dita interpretativa, com a possibilidade de dedução à colecta, nela incluídas as tributações autónomas, dos pagamentos especiais por conta. Era isso o que lia na lei então existente.

O que vale por dizer que a norma interpretativa ‘por não corresponder a qualquer coisa com que o contribuinte devesse ou pudesse contar, vem constituir pelo seu carácter imprevisível um comportamento lesivo da segurança jurídica’ (Saldanha Sanches, obra e local citados, pág. 86).

Mais: para o Autor cujo ensinamento temos vindo a acompanhar, ‘não nos parece que a lei interpretativa possa ter lugar em matéria fiscal […] a [IV] revisão constitucional veio impedir os efeitos retroactivos de qualquer norma em matéria fiscal. Incluindo os provocados por lei interpretativa’ (obra e local citados, pág. 88).

E, para quem pense que esta posição possa ter sido meramente circunstancial, reportada ao ano de 2000, em que foi escrito o artigo que temos vindo a referir, é ver o MANUAL DE DIREITO FISCAL do mesmo professor, em cuja edição de 2007 se lê, a págs. 195, que ‘(…) mesmo quando estamos perante uma lei verdadeiramente interpretativa, e não uma daquelas que o legislador designa de interpretativa para tornar menos perceptível a retroactividade da lei estamos, em todas estas situações, perante casos abrangidos pela proibição constitucional da retroactividade’.

Mais assim é para quem, como nós, entende que a letra da lei anterior à Lei do Orçamento para 2016 não comportava a interpretação depois adoptada pelo legislador, pois era unívoco o sentido que dessa letra se retirava: os pagamentos especiais por conta eram dedutíveis à colecta apurada nos termos do n.º 1 do artigo 90.º, incluísse esta, ou não, tributações autónomas. Ou seja, que o n.º 21 do artigo 88.º do CIRC não é uma verdadeira norma interpretativa. Como, aliás, logo indicia o modo como o legislador procedeu: em vez de dar à norma supostamente ambígua uma nova redacção, agora inequívoca, criou uma outra norma, nova – o n.º 21 do artigo 88.º do CIRC –, em colisão com o artigo 90.º, que não pode deixar de ser a ‘norma interpretada’. E, se o falado n.º 21.º do artigo 88.º do CIRC fosse uma verdadeira norma interpretativa, seria desconforme com o artigo 103.º n.º 3 da Constituição».

À extensa citação acima aposta, acresce a mais recente jurisprudência do Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 267/2017 (processo n.º 466/16, 2ª Secção, Rel: Cons. Pedro Machete), segundo a qual se julga inconstitucional, por violação da proibição de criação de impostos com natureza retroativa, precisamente a norma do artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, na parte em que, por efeito do caráter meramente interpretativo que lhe atribui, determina que a norma do artigo 88.º, n.º 21, 2.ª parte, do Código do IRC – segundo a qual, ao montante global resultante das tributações autónomas liquidadas num dado ano em sede de IRC, não podem ser deduzidos os valores pagos a título de pagamento especial por conta nesse mesmo ano – se aplique aos anos fiscais anteriores a 2016.

Tudo termos em que, quanto a nós, concluiríamos no sentido de julgar procedente o pedido nestes Autos Arbitrais.

 

Nuno de Oliveira Garcia

 

 



[1] A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990, excepto no que diz respeito às transcrições efectuadas e “Voto de Vencido”.

[2] Texto elaborado em computador, nos termos do disposto no artigo 131.º, n.º 5, do CPC, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.

[3] Além disso, como se afirma no Ac. 617/2015 CAAD, de 22/2/2016, «nem se compreenderia que, não sendo necessária a impugnação administrativa prévia se fosse afastar a jurisdição arbitral por essa impugnação administrativa, tida como desnecessária, não ter sido efetuada» (cit.).

[4] Cfr. Lopes de Sousa, Código do Procedimento e Processo Tributário Anotado e Comentado. Vol. II, Áreas Ed., p.407.

[5] Adicionalmente, como se refere, no Ac. 617/2015 CAAD já citado, «além de não se vislumbrar qualquer outra justificação para a essa exigência, o facto de estar prevista idêntica reclamação graciosa necessária para impugnação contenciosa de atos de retenção na fonte e de pagamento por conta (nos artigos 132.º, n.º 3, e 133.º, n.º 2, do CPPT), que têm de comum com os atos de autoliquidação a circunstância de também não existir uma tomada de posição da Administração Tributária sobre a legalidade dos atos, confirma que é essa a razão de ser daquela reclamação graciosa necessária» (cit.).

[6] Cfr. Ac. STA de 12/6/2006 (proc. 0402/06, relator: Jorge de Sousa).

[7] Cfr. Ac. 617/2015 CAAD, de 22/2/2016.

[8] Cfr. no mesmo sentido Ac. 117/2013, 244/2013, 299/2013, 613/2014, 56/2015, 203/2015 e 617/2015, todos do CAAD.

[9] No mesmo sentido, vide também o “Voto de Vencido” do mesmo Árbitro Presidente, aposto na Decisão Arbitral nº 5/2016-T, de 27 de Julho de 2016 (e para cujo teor desde já aqui remetemos).

[10] Vide processo nº 830/11, de 21-03-2012 (2ª secção).

[11] Neste sentido, vide Acórdão n.º 310/12, de 20 de Junho (Relator Conselheiro João Cura Mariano), jurisprudência reiterada pelo Acórdão do Plenário, no Acórdão n.º 617/2012 (processo n.º 150/12, de 31 de Janeiro de 2013) e no Acórdão n.º 197/2016 (processo n.º 465/2015, de 23 de Maio de 2016).

[12] Vide RUI DUARTE MORAIS, inApontamentos ao IRC”, Almedina, 2009, pp. 202-203.

[13] Também CASALTA NABAIS considera que se “trata de uma tributação sobre a despesa e não sobre o rendimento” (inDireito Fiscal, 6.ª Ed., p. 614) e, no mesmo sentido, cfr. ANA PAULA DOURADO (inDireito Fiscal, Lições”, 2015, p. 237).

[14] Vide SALDANHA SANCHES, in “Manual de Direito Fiscal”, 3.ª Ed., Coimbra Editora, 2007, p. 406.

[15] Vide CASALTA NABAIS, Idem, p. 614.

[16] Com efeito, conforme se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 197/2916, de 23 de Maio, “(…) o IRC e as tributações autónomas são impostos distintos, com diferente base de incidência e sujeição a taxas específicas. O IRC incide sobre os rendimentos obtidos e os lucros diretamente imputáveis ao exercício de uma certa atividade económica, por referência ao período anual, e tributa, por conseguinte, o englobamento de todos os rendimentos obtidos no período de tributação. Pelo contrário, na tributação autónoma em IRC – segundo a própria jurisprudência constitucional – o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, caracterizando-se como acto tributário instantâneo que surge isolado no tempo e gera uma obrigação de pagamento com caráter avulso (…)”.

Por outro lado, conforme se refere no Acórdão do STA, de 12 de Abril de 2012 (processo nº 77/12), citado no Acórdão acima referido, “(…) a tributação autónoma, embora prevista no CIRC e liquidada conjuntamente com o IRC para efeitos de cobrança, nada tem a ver com a tributação do rendimento e dos lucros imputáveis ao exercício económico da empresa, uma vez que incidem sobre certas despesas que constituem factos tributários autónomos que o legislador, por razões de política fiscal, quis tributar separadamente mediante a sujeição a uma taxa predeterminada que não tem qualquer relação com o volume de negócios da empresa (…)”.

[17] A propósito das questões sobre os limites da moral face ao imposto vejam-se SUSANNE LANDREY, STEF VAN WEEGHEL e FRANK EMMERINK). No que diz respeito à interligação profunda e indiscutível entre o direito e a moral, vide JOÃO BAPTISTA MACHADO, Introdução do Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 9.ª Reimp. pp. 50 e segs.

[18] A Decisão Arbitral do CAAD nº 210/13-T refere que as “despesas (…) partilham entre si um risco de não empresarialidade, isto é, um risco de não serem realizadas com fins empresariais, mas sim extra-empresariais ou privados”.

[19] In “Interpretação e Aplicação das Leis”, Arménio Amado, editores, 1978, p. 137 e segs.

[20] Vide MANUEL DE ANDRADE, in “Ensaio sobre a teoria da interpretação das leis”.

[21] Neste sentido, vide TERESA GIL, inPagamento Especial por Conta”, Revista Fisco. Ano XIV, (Março 2003), n.º 107-108, pág. 12).

[22][22] Neste sentido, cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional (plenário) n.º 494/2009 de 29-09-2009, processo n.º 150/12 (VÍTOR GOMES), disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20090494.