Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 24/2023-T
Data da decisão: 2023-06-14   Outros 
Valor do pedido: € 2.485.247,28
Tema: Contribuição de Serviço Rodoviário. Conformidade com o direito europeu. Repercussão de impostos indiretos. Reembolso do imposto.
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Sumário:

I – A Contribuição de Serviço Rodoviário, criada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, não prossegue “motivos específicos”, na aceção do artigo l.°, n.° 2, da Diretiva 2008/118, na medida em que as suas receitas têm essencialmente como fim assegurar o financiamento da rede rodoviária nacional, não podendo considerar-se como suficiente, para estabelecer uma relação direta entre a utilização das receitas e um “motivo específico”, os objetivos genéricos de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental que se encontram atribuídos à concessionária;

II – A recusa do reembolso do imposto indevidamente liquidado, por violação do direito da União Europeia, apenas é admissível se a Administração Tributária provar que o imposto foi suportado, na íntegra ou parcialmente, por uma pessoa diferente do sujeito passivo, de modo que o reembolso pudesse gerar um enriquecimento sem causa;

III – A prova da repercussão no consumidor final de impostos indiretos suportados pelo operador económico não pode ser efetuada através de meras presunções.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam em tribunal arbitral

 

I – Relatório

 

1. A... - ..., S.A., pessoa coletiva n.º …, com sede na Avenida …, n.…, …, … Lisboa, vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, para apreciar a legalidade do ato de liquidação da Contribuição de Serviço Rodoviário n.º ..., referente ao mês de maio de 2018, no montante de € 2.485.247,28, e, bem assim, do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa contra ela deduzido, requerendo ainda o reembolso do imposto indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios.

 

            Fundamenta o pedido nos seguintes termos.

 

A Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR), criada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, constitui a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, medida através do consumo de combustíveis e constitui fonte de financiamento e receita própria da rede rodoviária nacional a cargo da Estradas de Portugal, entretanto substituída pela Infraestruturas de Portugal, S.A.

 

A CSR incide sobre a gasolina e o gasóleo rodoviário, encontrando-se sujeita às taxas estabelecidas pela Portaria n.º 16-C/2008, de 9 de janeiro, que são objeto de atualização, passando o gasóleo a ser tributado através da aplicação de uma taxa de Imposto sobre os Produtos Petrolíferos e Energéticos (ISP) a que acresce o montante estabelecido a título de CSR.

 

No que concerne à incidência subjetiva, a CSR é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo, na lei geral tributária e no Código de Procedimento e Processo Tributário, com as devidas adaptações.

 

Da análise conjugada das disposições legais que regulam a CSR conclui-se se trata de um tributo ou imposição que incide sobre o gasóleo rodoviário/gasolina sujeito ao ISP e dele não isento e é devida pelos sujeitos passivos de ISP, como é o caso da Requerente.

 

A tributação dos produtos petrolíferos e energéticos é enquadrada pela Diretiva n.º 2008/118, de 16 de dezembro de 2008, que determina, nos termos do artigo 1.º, n.º 2, que os Estados-Membros podem cobrar, por motivos específicos, outros impostos indiretos sobre os produtos sujeitos a impostos especiais de consumo.

 

No entanto, a CSR foi criada por razões de ordem puramente orçamental, visando apenas a angariação de receitas próprias para financiamento da EP - Estradas de Portugal, E. P. E. (atual Infraestruturas de Portugal, S.A.), empresa pública concessionária da rede nacional de estradas, em violação do direito europeu, e, especialmente, da referida disposição do artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva n.º 2008/118.

 

Assim concluiu o despacho do TJUE, proferido em sede de reenvio prejudicial, segundo o qual o artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva 2008/118/CE deve ser interpretado no sentido de que não prossegue “motivos específicos”, na aceção desta disposição, o imposto cujas receitas ficam genericamente afetadas a uma empresa pública concessionária da rede rodoviária nacional e cuja estrutura não atesta a intenção de desmotivar o consumo dos principais combustíveis rodoviários.

 

A Autoridade Tributária, na sua resposta, suscita a exceção da incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria, considerando que a CSR deve ser qualificada como contribuição financeira.

 

 

Segundo alega, a CSR foi criada com o objetivo de financiar a rede rodoviária nacional, a cargo da Infraestruturas de Portugal, S.A. e constitui uma contraprestação pela utilização dos serviços prestados aos utentes/utilizadores das vias rodoviárias, existindo um vínculo entre o destino dado às receitas da CSR e o motivo específico que levou à sua criação. 

 Tratando-se de um tributo de carácter comutativo, embora baseado numa relação de bilateralidade genérica ou difusa, que interessa a um grupo homogéneo de destinatários (os utilizadores da rede rodoviária nacional) e se efetiva na compensação da conservação e requalificação da rede rodoviária nacional.

Considera ainda que se verifica a incompetência do tribunal em razão da matéria, na medida em que a Requerente, no pedido de pronúncia arbitral, vem questionar o regime jurídico da CSR in totum, pretendendo discutir a sua conformidade jurídico-constitucional, o que extravasa o âmbito da arbitragem tributária, e, em especial, o disposto no artigo 2.º do RJAT, que não consente o escrutínio sobre a integridade de normas emanadas no exercício da função político-legislativa do Estado. 

A Autoridade Tributária invoca ainda a ilegitimidade da Requerente, tendo em conta que o mecanismo de liquidação da CSR representa uma forma de substituição tributária, porquanto a contribuição é devida pelos sujeitos passivos de ISP como contrapartida pela utilização dos serviços prestados aos utentes das vias rodoviárias, e, nesse sentido, é suportada pelo consumidor final do combustível. 

 

Com efeito, os montantes pagos para a comercialização de produtos petrolíferos, designadamente para a sua introdução no consumo, são repercutidos no preço de venda ao público, pelo que o montante das liquidações de CSR que viessem a ser anuladas teriam de ser restituídas ao consumidor final, que suporta o encargo fiscal, não podendo a Requerente invocar a titularidade de um interesse legalmente protegido para efeito da impugnação contenciosa da liquidação.

 

Na resposta vem suscitada também a exceção dilatória da caducidade do direito de ação, por se considerar que o pedido de revisão oficiosa foi apresentado intempestivamente, tendo em conta que o prazo de 4 anos previsto no artigo 78.º, n.º 1, segunda parte, da LGT apenas é aplicável quando ao ato de liquidação seja imputável um erro dos serviços.

 

Para assim concluir, a Requerida refere que Administração se limitou a fazer a interpretação das normas segundo o princípio da legalidade, não dispondo da prerrogativa de desaplicar normas com base na pretensa desconformidade com o direito europeu, pelo que não existe erro imputável aos serviços, que legitime procedimento de revisão oficiosa do ato tributário, nos termos da referida disposição da LGT.  

 

Quanto à matéria de fundo, considera a Autoridade Tributária que, sendo a CSR uma receita própria da Infraestruturas de Portugal, IP, a questão dos objetivos/finalidades 

 

subjacentes à contribuição terá de ser analisada à luz do Decreto-Lei n.º 380/2007, de 13 de novembro, que atribui àquela entidade a concessão do financiamento, conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional e que aprova as bases da concessão. Havendo de atender-se, desde logo, ao n.º 4 da alínea b) da Base 2, segundo a qual a concessionária deve “prosseguir os objetivos de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental referidos no quadro II anexo às presentes bases”. 

 

Verifica-se, assim, que o “motivo específico” para a criação da CSR se consubstancia em objetivos ambientais e de redução de sinistralidade, não estando em causa a angariação de verbas com finalidades puramente orçamentais.

 

No que se refere à questão do reembolso da CSR e da repercussão efetiva nos preços praticados ao consumidor, constitui jurisprudência do TJUE que o Estado tem o direito de recusar o reembolso de impostos cobrados em violação do direito europeu na condição de provar que o encargo fiscal foi efetivamente suportado por uma pessoa diferente do sujeito passivo do imposto e que o reembolso do imposto a este último determinaria uma situação de enriquecimento sem causa.

 

Ainda de acordo com a jurisprudência do TJUE, não são admissíveis as modalidades de prova cujo efeito seja fazer com que seja praticamente impossível ou excessivamente difícil a devolução dos impostos arrecadados contra as disposições de direito europeu, considerando o Tribunal de Justiça que tal se verifica quando se imponha ao contribuinte o ónus de provar que os tributos indevidamente pagos não foram repercutidos sobre outros sujeitos. 

 

Na ausência de um mecanismo formal de repercussão da CSR, a prova da repercussão da contribuição dos preços praticados ao consumidor, só pode partir da análise de factos conhecidos e demonstráveis e que possuam alguma consistência prática. 

 

Em vista a fazer a prova da repercussão efetiva da CSR pela Requerente, foi aberto um procedimento administrativo cujos resultados comprovam que a contribuição liquidada relativamente às introduções no consumo efetuadas em maio de 2018, foi incluída no preço de venda dos combustíveis e, consequentemente constituiu encargo, não da Requerente, mas dos adquirentes dos combustíveis. 

 

Por outro lado, o reembolso dos montantes pagos a título de CSR a quem paga o imposto ao Estado mas não o suporta configuraria uma situação de enriquecimento sem causa, e, nesses termos, será de entender que, ainda que o regime jurídico do tributo seja desconforme ao direito europeu, não há lugar ao reembolso do montante pago pelo sujeito passivo, relativamente a introduções no consumo efetuadas em maio de 2018, uma que esse montante foi incluído no preço de venda dos combustíveis e o respetivo encargo recaiu sobre os consumidores finais. 

 

2. Na resposta à matéria de exceção, a Requerente acompanha a decisão arbitral proferida no processo n.º304/2022-T, que igualmente tinha por objeto a CSR e em que foram analisadas as mesmas questões, dizendo ainda o seguinte.

 

A alegada exceção de incompetência material do Tribunal em virtude da natureza do tributo improcede, uma vez que a competência dos tribunais arbitrais abrange a apreciação das pretensões referentes a qualquer espécie de tributo, nos termos do artigo 2.º do RJAT, e também não se verifica a falta de vinculação da Autoridade Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais, por força do artigo 2.º da Postaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, que limita essa vinculação às "pretensões relativas a imposto".

 

Por outro lado, a Requerente é, na qualidade de depositário autorizado para efeitos de Impostos Especiais de Consumo, sujeito passivo de ISP e de CSR, competindo-lhe, nessa qualidade, proceder à entrega, junto das alfândegas competentes, das Declarações de Introdução no Consumo de produtos sujeitos a ISP e CSR, as quais originam as liquidações de ISP e de CSR, e, tendo sido notificada da liquidação de ISP e de CSR n.º ..., ora impugnada, não pode deixar de lhe ser reconhecida a legitimidade ativa para a impugnação judicial. Acresce que o artigo 2.º do CIEC, na redação anterior à Lei n.º 24-E/2022, de 30 de dezembro, não consagrava a repercussão dos IEC nos consumidores finais, obrigação essa que apenas foi estabelecida através dessa Lei a que foi atribuída natureza interpretativa, conforme o disposto no seu artigo 6.º. E, nesse sentido, a criação retroativa da obrigação de repercussão dos IEC é inconstitucional por violação do artigo 103.º, n.º 3, da CRP. 

 

É ainda improcedente a alegada caducidade do direito de ação, porquanto, nos termos das disposições conjugadas dos n.ºs 1 e 7 do artigo 78.º da LGT, o pedido de revisão oficiosa pode ser requerido pelo sujeito passivo, no mesmo prazo de que a Autoridade Tributária dispõe para o efeito, na medida em que se verifique um erro imputável aos serviços, sendo que o conceito de “erro imputável aos serviços” abrange  o erro de direito, tal como se verifica quando a Administração efetua uma interpretação contrária ao direito europeu.

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 20 de março de 2023.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído. 

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março). 

 

O processo não enferma de nulidades.

 

Foram suscitadas as exceções da incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria, da ilegitimidade da Requerente e da caducidade do direito de ação.

 

II – Saneamento

 

Incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria 

 

5. A Autoridade Tributária começa por suscitar a questão da incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria por considerar que a contribuição de serviço rodoviário deve ser qualificada como contribuição financeira, e não como imposto, encontrando-se excluída da arbitragem tributária, por força do disposto nos artigos 2.º e 3.º do RJAT e do artigo 2.º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de março, defendendo a este propósito o entendimento expresso no acórdão proferido no processo arbitral n.º 714/2020-T, que teve por objeto a Contribuição Extraordinária Sobre o Sector Energético (CESE). 

 

   É esta pois a questão que primeiramente cabe analisar.

 

A competência contenciosa dos tribunais arbitrais em matéria de arbitragem tributária, tal como resulta do artigo 2.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), compreende a apreciação de pretensões que visem a “declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta” e a “declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais”.

 

O artigo 4.º, n.º 1, do RJAT faz ainda depender a vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que deverá estabelecer, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos. 

 

E o diploma que, em execução desse preceito, define o âmbito e os termos da vinculação da Autoridade Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, que no seu n.º 2, sob a epígrafe “Objeto de vinculação”, e com a alteração resultante da Portaria n.º 287/2019, de 3 de setembro, dispõe o seguinte: 

 

“Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objeto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com exceção das seguintes: 

a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário; 

b) Pretensões relativas a atos de determinação da matéria coletável e atos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indiretos, incluindo a decisão do procedimento de revisão; 

c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indiretos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; 

 d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efetuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira;

e) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade da liquidação de tributos com base na disposição antiabuso referida no n.º 1 do artigo 63.º do CPPT, que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos do n.º 11 do mesmo artigo.”

A referência a serviços e organismos que se vinculavam à jurisdição arbitral era feita para a Direcção-Geral dos Impostos e a Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo, que foram, entretanto, extintas, tendo-lhes sucedido a Autoridade Tributária e Aduaneira.

A Portaria n.º 112-A/2011, também chamada Portaria de vinculação, fixa, por conseguinte, um segundo nível de delimitação das pretensões que poderão ser sujeitas à jurisdição arbitral. Tratando-se de um mero regulamento de execução, a Portaria não poderia ir além do estabelecido na lei quanto ao âmbito de competência material dos tribunais arbitrais, mas poderia estabelecer restrições quanto ao âmbito da vinculação à arbitragem tributária, mormente por referência ao tipo de litígios e ao valor do processo.

Ainda a este propósito, o acórdão proferido no Processo n.º 48/2012-T, depois seguido por diversos outros arestos, consignou o seguinte: 

 

 

 

“A competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é, em primeiro lugar, limitada às matérias indicadas no artigo 2.º, n.º 1, do [RJAT].

Numa segunda linha, a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é também limitada pelos termos em que Administração Tributária se vinculou àquela jurisdição, concretizados na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, pois o artigo 4.º do RJAT estabelece que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos».

Em face desta segunda limitação da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, a resolução da questão da competência depende essencialmente dos termos desta vinculação, pois, mesmo que se esteja perante uma situação enquadrável naquele artigo 2.º do RJAT, se ela não estiver abrangida pela vinculação estará afastada a possibilidade de o litígio ser jurisdicionalmente decidido por este tribunal arbitral”.

 

No caso, a Portaria de vinculação, aparentemente, estabelece duas limitações: refere-se a pretensões “relativas a impostos”, de entre aquelas que se enquadram na competência genérica dos tribunais arbitrais, e a impostos cuja administração esteja cometida à Autoridade Tributária. Haverá de concluir-se, nestes termos, que a vinculação se reporta a qualquer das pretensões mencionadas no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT que respeitem a impostos - com a exclusão de outros tributos - e a impostos que sejam geridos pela Autoridade Tributária.

 

6. A constitucionalização das contribuições financeiras resultou da alteração introduzida no artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da Lei Fundamental, pela revisão constitucional de 1997, que autonomizou as contribuições financeiras a favor das entidades públicas como uma terceira categoria de tributos.

 

A LGT, aprovada em 1998, passou a incluir entre os diversos tipos de tributos, os impostos e outras espécies criadas por lei, designadamente as taxas e as contribuições financeiras a favor das entidades públicas, definindo, em geral, os pressupostos desses diversos tipos de tributos no subsequente artigo 4.º.

 

A doutrina tem caracterizado as contribuições financeiras como um tertium genus de receitas fiscais, que poderão ser qualificadas como taxas coletivas, na medida em que visam retribuir os serviços prestados por uma entidade púbica a um certo conjunto ou categoria de pessoas. Como referem Gomes Canotilho/Vital Moreira“a diferença essencial entre os impostos e estas contribuições bilaterais é que aqueles visam financiar as despesas públicas em geral, não podendo, em princípio, ser consignados a certos serviços públicos ou a certas despesas, enquanto que as segundas, tal como as taxas em sentido estrito, visam financiar certos serviços públicos  e certas despesas públicas (responsáveis pelas prestações públicas de que as contribuições são contrapartida), aos quais ficam consignadas, não podendo, portanto, ser desviadas para outros serviços ou despesas” (Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., 4ª edição, Coimbra, pág. 1095). Neste sentido, as contribuições são tributos com uma estrutura paracomutativa, dirigidos à compensação de prestações presumivelmente provocadas ou aproveitadas pelos contribuintes, distinguindo-se das taxas que são tributos rigorosamente comutativos e que se dirigem à compensação de prestações efetivas (Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, Coimbra, 2015, pág. 287).

 

            Por outro lado, o Tribunal Constitucional tem também reconhecido a existência dessas diferentes categorias jurídico-tributárias, designadamente para efeito de extrair consequências quanto à competência legislativa, admitindo que as taxas e outras contribuições de carácter bilateral só estão sujeitas a reserva parlamentar quanto ao seu regime geral, mas não quanto à sua criação individual e quanto ao regime concreto, podendo portanto ser criadas por diploma legislativo governamental e reguladas por via regulamentar desde que observada a lei-quadro (cfr., entre outros, o Acórdão n.º 365/2008, de 2 de Julho de 2008, Processo n.º 22/2008).

 

Ou seja, não há dúvida que as contribuições financeiras se distinguem dos impostos.

 

7. A Contribuição de Serviço Rodoviário, criada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, visa financiar a rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, E. P. E. (artigo 1.º), que, entretanto, passou a denominar-se Infraestruturas de Portugal, S.A., sendo que o financiamento da rede rodoviária nacional a cargo desta entidade é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável (artigo 2.º).

 

A mesma contribuição corresponde à contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis, e constitui uma fonte de financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da Infraestruturas de Portugal, S.A, no que respeita à respetiva conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento, ainda que a exigência da contribuição não prejudique a eventual aplicação de portagens em vias específicas ou o recurso da entidade concessionária a outras formas de financiamento (artigo 3.º).

A contribuição incide sobre a gasolina e o gasóleo rodoviário sujeitos ao imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos e dele não isentos (artigo 4.º, n.º 1) e é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo (artigo 5.º, n.º 1).

O produto da Contribuição de Serviço Rodoviário constitui receita própria da EP - Estradas de Portugal, E.P.E., atualmente denominada  Infraestruturas de Portugal, S.A. (artigo 6.º). 

A atividade de conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional, que é objeto de financiamento através da Contribuição de Serviço Rodoviário foi atribuída, em regime de concessão, à EP - Estradas de Portugal, E. P. E. pelo Decreto-Lei n.º 380/2007, de 13 de novembro, que aprovou as bases da concessão e nas quais se prevê que, entre outros rendimentos, essa contribuição constitua receita própria dessa entidade (Base 3, alínea b)). E, por outro lado, nelas se estabelece, como uma das obrigações da concessionária, a prossecução dos “objetivos de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental” (Base 2, n.º 4, alínea b)).

 

8. À luz do regime jurídico sucintamente descrito, dificilmente se poderia concluir que a Contribuição de Serviço Rodoviário constitui uma contribuição financeira.

Como se refere no acórdão proferido no Processo n.º 269/2021, corroborado pelo acórdão tirado no Processo n.º 304/2022, a Contribuição de Serviço Rodoviário não tem como pressuposto uma prestação, a favor de um grupo de sujeitos passivos, por parte de uma pessoa coletiva. A contribuição é estabelecida a favor da EP - Estradas de Portugal, E. P. E. (artigo 3.º, n.º 2), sendo essa mesma entidade a titular da receita correspondente (artigo 6.º). No entanto, os sujeitos passivos da contribuição (as empresas comercializadoras de produtos combustíveis rodoviários) não são os destinatários da atividade da EP - Estradas de Portugal, E. P. E., a qual consiste na “conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento” da rede de estradas (artigo 3.º, n.º 2).

 

Por outro lado, nada permite afirmar que a responsabilidade pelo financiamento da atividade administrativa que se encontra atribuída à EP - Estradas de Portugal, E. P. E. é imputável aos sujeitos passivos da contribuição, que são as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários. Quando é certo que o artigo 2.º da Lei n.º 55/2007 declara expressamente que o “financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, E.P. E. (...) é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável.” 

 

Nestes termos, o financiamento da rede rodoviária nacional é assegurado pelos respetivos utilizadores, que são os beneficiários da atividade pública desenvolvida pela EP - Estradas de Portugal, E. P. E., verificando-se, no entanto, que a contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, que, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do CIEC, são os “depositários autorizados” e os “destinatários registados”.

 

Não existindo, deste modo, qualquer nexo específico entre o benefício emanado da atividade da entidade pública titular da contribuição e o grupo dos sujeitos passivos. 

 

9. Resta acrescentar que o regime jurídico da CSR não é equiparável ao previsto para a Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético (CESE).

 

Com efeito, a CESE, criada pela Lei do Orçamento do Estado para 2014, é tida como uma contribuição extraordinária que tem “por objetivo financiar mecanismos que promovam a 

 

sustentabilidade sistémica do sector energético, através da constituição de um fundo que visa contribuir para a redução da dívida tarifária e para o financiamento de políticas sociais e ambientais do sector energético”, incidindo sobre as pessoas singulares ou coletivas que integram o sector energético nacional.

 

 A receita obtida é consignada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Sector Energético (FSSSE), criado pelo Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de Abril, com o objetivo de estabelecer mecanismos que contribuam para a sustentabilidade sistémica do sector energético, designadamente através da contribuição para a redução da dívida e ou pressão tarifárias e do financiamento de políticas do sector energético de cariz social e ambiental, de medidas relacionadas com a eficiência energética, de medidas de apoio às empresas e da minimização dos encargos financeiros para o Sistema Elétrico Nacional (artigo 11.º).

 

Assim sendo, a CESE tem por base uma contraprestação de natureza grupal, na medida em que constitui um preço público a pagar pelo conjunto de pessoas singulares ou coletivas que integram o sector energético nacional à entidade à qual são consignadas as receitas.

 

Não se reconduz à taxa stricto sensu, visto que não incide sobre uma prestação concreta e individualizada que a Administração dirija aos respetivos sujeitos passivos, nem preenche o requisito de unilateralidade que caracteriza o imposto, uma vez que não tem como finalidade exclusiva a angariação de receita, nem se destina à satisfação das necessidades financeiras do Estado, antes se pretendendo que o sector energético contribua para a cobertura do risco sistémico que é inerente à sua atividade.

 

Trata-se, nestes termos, de um tributo de carácter comutativo, embora baseado numa relação de bilateralidade genérica ou difusa, que, interessando a um grupo homogéneo de destinatários e visando prevenir riscos a este grupo associados, se efetiva na compensação de eventual intervenção pública na resolução de dificuldades desse sector, assumindo assim a natureza jurídica de contribuição financeira.

 

Por todas as considerações anteriormente expendidas, essa caracterização não é extensiva à CSR, pelo que não é aplicável ao caso a jurisprudência arbitral que veio declarar a incompetência do tribunal arbitral ratione materiae para a apreciação de litígios que tinham como objeto a Contribuição sobre o Sector Energético. 

 

Por todo o exposto, a alegada exceção da incompetência material do tribunal arbitral com fundamento na qualificação da CSR como contribuição financeira, mostra-se ser improcedente.

 

Incompetência material do tribunal em razão da causa de pedir

10. A Autoridade Tributária suscitou ainda a exceção da incompetência do tribunal arbitral para conhecer do presente pedido na medida em que se pretende discutir a legalidade do regime da CSR no seu todo e a sua própria conformidade constitucional.

 

A arguição assenta num evidente equívoco.

A Requerente formulou um pedido de pronúncia arbitral sobre a legalidade do ato de liquidação de CSR referente ao mês de maio de 2018, invocando como causa de pedir, a desconformidade da contribuição com a Diretiva 2008/118, do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa ao Regime Geral dos Impostos Especiais de Consumo, não tendo suscitado em termos processualmente adequados a inconstitucionalidade de qualquer das normas do respetivo regime jurídico.

 

Mas ainda que o tivesse feito, importa reter que a Constituição admite o controlo difuso de constitucionalidade pelos tribunais (artigo 204.º) e prevê o recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que recusem a aplicação norma com fundamento na sua inconstitucionalidade ou apliquem norma cuja constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo (artigo 280.º, n.º 1). 

 

A desaplicação de normas pelos tribunais, por iniciativa oficiosa ou por suscitação das partes, corresponde a uma forma de fiscalização concreta de constitucionalidade para que os tribunais têm competência própria, não se confundindo com a competência do Tribunal Constitucional, que intervém em sede de recurso de constitucionalidade ou no âmbito da fiscalização abstrata da constitucionalidade (artigo 281.º da CRP).

 

Por outro lado, o referido artigo 204.° da Constituição, ao admitir o controlo difuso da constitucionalidade, refere-se genericamente aos tribunais, não distinguindo entre tribunais estaduais e tribunais arbitrais, e o artigo 280.°, ao definir o âmbito da fiscalização concreta de constitucionalidade, admite o recurso de constitucionalidade relativamente a decisões dos tribunais, referindo-se a decisões de quaisquer tribunais. E, como o Tribunal Constitucional tem também vindo a afirmar, os tribunais arbitrais (necessários ou voluntários) são também tribunais, dispondo do poder-dever de verificar a conformidade constitucional de normas aplicáveis no decurso de um processo arbitral e de recusar a aplicação das que considerem inconstitucionais (entre outros, o Acórdão n.º 181/2007, de 8 de março de 2007, Processo n.º 343/2005).

 

Como é bem de ver, ainda que tivesse sido suscitada, no pedido arbitral, a inconstitucionalidade de qualquer das normas do regime da CSR, nada obstava a que o tribunal arbitral se pronunciasse sobre a questão de constitucionalidade no âmbito do controlo difuso a que se refere o artigo 204.° da Constituição.

 

Estando em causa, no caso vertente, a desconformidade da CSR com a Diretiva 2008/118, não pode deixar de concluir-se, do mesmo modo, pela competência contenciosa do tribunal para a apreciação do litígio.

 

As normas de direito europeu derivado, como normas de direito internacional convencional, vigoram diretamente na ordem jurídica interna com a mesma relevância das normas de direito interno, vinculando imediatamente o Estado e os cidadãos (artigo 8.º da Constituição)

 

A impugnação judicial de um ato de liquidação pode ser deduzida com fundamento em qualquer ilegalidade (artigo 99.º do CPPT), nada permitindo distinguir entre a ilegalidade resultante de normas de direito interno ou de direito convencional.

 

Torna-se claro que não existe qualquer obstáculo a que o tribunal arbitral se pronuncie sobre o fundamento de ilegalidade do ato de liquidação baseado em desconformidade da CSR com Diretiva europeia, sendo manifestamente improcedente a invocada exceção de incompetência do tribunal em razão da causa de pedir.

 

Ilegitimidade da Requerente

 

11. A Autoridade Tributária alega ainda que se verifica a ilegitimidade processual da Requerente tendo em consideração que o mecanismo de liquidação da CSR representa uma forma de substituição tributária, porquanto a contribuição é devida pelos sujeitos passivos de ISP como contrapartida pela utilização dos serviços prestados aos utentes das vias rodoviárias, e, nesse sentido, é suportada pelo consumidor final do combustível.  

 

Para a apreciação desta questão, interessa considerar o disposto no artigo 9.º, n.ºs 1 e 4, do CPPT. Segundo o n.º 1, “têm legitimidade no procedimento tributário, além da administração tributária, os contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido”.  Por sua vez, o n.º 4 consigna que “têm legitimidade no processo judicial tributário, além das entidades referidas nos números anteriores, o Ministério Público e o representante da Fazenda Pública.”

 

Também o artigo 18.º da LGT, no seu n.º 3, define como sujeito passivo da relação tributária a “pessoa singular ou coletiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte direto, substituto ou responsável”. Acrescentando o n.º 4, alínea a), que não é sujeito passivo quem “suporte o encargo do imposto por repercussão legal, sem prejuízo do direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias”.  

 

Da conjugação destas disposições, conclui-se que o contribuinte, seja o contribuinte direto, substituto ou responsável, tem legitimidade processual para propositura do processo judicial tributário por ser aquele que se encontra vinculado ao cumprimento da prestação tributária.

 

A substituição tributária, a que se refere o artigo 20.º da LGT, pressupõe a deslocação da obrigação tributária do contribuinte direto - que se encontra abrangido pelas normas de incidência do imposto - para um terceiro que é devedor dos rendimentos sujeitos a tributação e a quem incumbe a dedução de uma parcela desses rendimentos aquando do seu pagamento para entrega ao Estado. A responsabilidade do substituto tributário – como especifica o artigo 28.º 

 

da mesma Lei - traduz-se na obrigação de dedução das importâncias que estiverem sujeitas a retenção e da sua entrega nos cofres do Estado que, uma vez satisfeita, desonera o substituído do pagamento dessas importâncias.

 

É patente que a repercussão da CSR no consumidor final, por efeito do disposto no artigo 2.º da CIEC, na redação dada pela Lei n.º 24/E/2022, de 30 de dezembro, não corresponde a uma forma de substituição tributária, visto que não é o consumidor final que responde pela prestação tributária, e, por outro lado, é a própria lei que exclui do conceito de sujeito passivo quem “suporte o encargo do imposto por repercussão legal”.

 

Sendo a Requerente, enquanto depositário autorizado, sujeito passivo do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, de acordo com a norma de incidência subjetiva constante do artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do CIEC, e, consequentemente, responsável pelo pagamento da contribuição de serviço rodoviário, como resulta do disposto nos artigos 4.º, n.º 1, e 5.º, n.º 1, da Lei n.º 55/2007, não pode deixar de concluir-se que, na qualidade de contribuinte direto, é titular da relação jurídica tributária e parte legítima no processo.

 

A alegada exceção da ilegitimidade ativa é também improcedente.

 

Caducidade do direito de ação

 

12.  A Autoridade Tributária coloca ainda a questão prévia da caducidade do direito de ação, dizendo que o pedido de revisão oficiosa não poderia ter sido  apresentado no prazo de 4 anos previsto no artigo 78.º, n.º 1, segunda parte, da LGT, que é  apenas aplicável quando se verifique um erro dos serviços no ato de liquidação, e, não dispondo a Administração da prerrogativa de desaplicar normas com base em  desconformidade com o direito europeu, não pode ser considerada a existência de um erro imputável aos serviços.  

 

Deve começar por dizer-se - como se afirma, entre outros, nos acórdãos do STA de 14 de Março de 2012 (Processo n.º 01007/11) e de 8 de Março de 2017 (Processo n.º 01019/14) – que a revisão oficiosa do acto tributário pode ser efetuada a pedido do contribuinte no prazo de quatro anos contados da liquidação (ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago) quando houver erro imputável aos serviços, devendo entender-se como tal o erro material, o erro de facto ou o erro de direito, independentemente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na emissão da liquidação.

É o que resulta do disposto no artigo 78.º, n.º 7, da LGT, pelo qual a revisão oficiosa, nos termos previstos no n.º 1 desse artigo, pode ser desencadeada pelo sujeito passivo mediante requerimento dirigido ao órgão competente da Administração Tributária e com base nos mesmos pressupostos legais: no prazo de quatro anos e com fundamento em erro imputável aos serviços. O que se tem entendido como uma decorrência do princípio da justiça e da verdade material (cfr., neste sentido, Joaquim Freitas da Rocha, Lições de Procedimento Tributário, 5.ª edição, Coimbra, págs. 227-228; Serena Cabrita Neto/Carla Castelo Trindade, Contencioso Tributário, vol. I, Coimbra, 2017, pág. 605).

 

Conforme é também jurisprudencialmente aceite, existindo um erro de direito numa liquidação efetuada pelos serviços da administração tributária, e não decorrendo essa errada aplicação da lei de qualquer informação ou declaração do contribuinte, o erro em questão é imputável aos serviços, em resultado da obrigação genérica de a administração tributária atuar em plena conformidade com a lei.

 

Por outro lado, como é evidente, a existência do erro que constitui fundamento do pedido de revisão não pode ser aferida a partir da posição jurídica que tenha sido assumida pela Autoridade Tributária na apreciação do pedido de revisão, mas com base nos vícios de ilegalidade que tenham sido arguidos pelo sujeito passivo na formulação do pedido. Sendo que o processo arbitral foi deduzido precisamente para discutir a validade do entendimento adotado pela Administração na decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa.

 

Nestes termos, tendo sido invocado um erro imputável aos serviços e verificando-se que pedido de revisão oficiosa deu entrada em 13 de junho de 2022 e reporta-se ao ato de liquidação emitido em 12 de junho de 2018, no momento da apresentação do pedido, considerando a regra de contagem do prazo do artigo 279.º, alínea b), do Código Civil, não tinha ainda decorrido o prazo de quatro anos após a liquidação a que se refere o artigo 78.º, n.º 1, da LGT.

 

Tendo sido apresentado o pedido arbitral em 9 de janeiro de 2023, dentro do prazo de 90 dias após o termo do prazo legalmente cominado para a decisão sobre o pedido de revisão oficiosa, o pedido arbitral é igualmente tempestivo.

 

Não se verifica, por conseguinte, a pretendida caducidade do direito de ação.

 

III - Fundamentação 

 

Matéria de facto

 

13. Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes.

            

A) A A... - ..., S.A. é uma sociedade que tem como objeto social, entre outras atividades, a exploração de postos de abastecimento e comércio por grosso de produtos petrolíferos.

B) No contexto da sua atividade, e com base nas declarações de introdução no consumo por esta realizadas, a Administração Tributária procedeu a atos de liquidação conjunta de Imposto sobre Produtos Petrolíferos e Energéticos (ISP) e Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR) com referência ao mês de maio de 2018.

C) Através do ato de liquidação n.º ..., emitido em 12 de junho de 2018, por referência ao mês de maio de 2018, resultou um valor a pagar de ISP e CSR no total de € 12.505.020,57 e um montante parcelar de € 2.485.247,28, correspondente aos atos de liquidação de CSR.

  

 

D) O montante total de ISP e a CSR, apurado através da liquidação n.º ..., foi pago em 29 de junho de 2018.

   E) A Autoridade Tributária, através da Unidade dos Grandes Contribuintes, elaborou a informação n.º 06-Norte 1/2013, respeitante ao período de 2018, tendo como objetivo analisar o tratamento contabilístico e o enquadramento fiscal que a empresa A…, S.A. confere à Contribuição de Serviço Rodoviário, que consta do processo administrativo junto pela Requerida e aqui se dá como reproduzido.

F)  Em 13 de junho de 2022, a Requerente apresentou um pedido de revisão do ato tributário de liquidação, que não foi objeto de decisão no prazo legalmente cominado. 

  G) O pedido arbitral deu entrada em 9 de janeiro de 2023. 

 

Factos não provados

 

Não se provou que tenha havido efetiva repercussão, parcial ou integral, da contribuição de serviço rodoviário liquidada pela Requerentes nos consumidores finais.

 

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta.

 

Matéria de direito

 

14. A questão que vem colocada é a de saber se a Contribuição de Serviço Rodoviário, criada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, que constitui um imposto incidente sobre os combustíveis rodoviários também sujeitos ao Imposto sobre Produtos Petrolíferos, e que se encontra enquadrada pela Diretiva n.º 2008/118, tem um “motivo específico” na aceção do artigo 1.º, n.º 2, dessa Diretiva.

À luz do regime jurídico já anteriormente descrito (cfr. supra 7.), a Requerente sustenta que a Contribuição de Serviço Rodoviário foi criada por razões de ordem puramente orçamental, em vista à angariação de receitas próprias para financiamento da empresa pública concessionária da rede nacional de estradas, em violação do direito europeu, e, especialmente, do referido artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva n.º 2008/118.

 

Em contraposição, a Autoridade Tributária sustenta que a atividade da Infraestruturas de Portugal tem subjacente a prossecução de objetivos de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental, que se pode entender como “motivo específico” ou a “razão de ser” da criação da contribuição e não pode circunscrever-se a mera finalidade de natureza orçamental.

 

Suscita-se ainda a divergência entre as partes quanto ao direito ao reembolso do imposto suportado pelo sujeito passivo em face possível repercussão do imposto no consumidor final.

 

Conformidade da Contribuição de Serviço Rodoviário com o direito europeu

15. Analisando a primeira questão, interessa começar por ter presente a Diretiva 2008/118/CE, que estabelece o regime geral dos impostos especiais de consumo que incidem direta ou indiretamente sobre o consumo, entre outros, dos produtos energéticos, e, em especial, o seu artigo 1.º, n.º 2, que tem a seguinte redação:

Os Estados-Membros podem cobrar, por motivos específicos, outros impostos indiretos sobre os produtos sujeitos a impostos especiais de consumo, desde que esses impostos sejam conformes com as normas fiscais da Comunidade aplicáveis ao imposto especial de consumo e ao imposto sobre o valor acrescentado no que diz respeito à determinação da base tributável, à liquidação, à exigibilidade e ao controlo do imposto, regras estas que não incluem as disposições relativas às isenções.

Interpretando esta disposição na perspetiva de saber se a CSR prossegue um “motivo específico” na aceção da Diretiva, o despacho do TJUE de 7 de fevereiro de 2022, proferido em reenvio prejudicial requerido no Processo n.º 564/2020-T, começou por assinalar que “para se considerar que prossegue um motivo específico, na aceção da referida disposição, um imposto deve visar, por si só, assegurar a finalidade específica invocada, de tal forma que exista uma relação direta entre a utilização das receitas e a finalidade da imposição em causa” (parágrafo 25). Acrescentando que “só se pode considerar que um imposto que incide sobre produtos sujeitos a impostos especiais de consumo prossegue um motivo específico, na aceção do artigo 1.º, n.° 2, da Diretiva 2008/118, se esse imposto for concebido, no que respeita à sua estrutura, nomeadamente, à matéria coletável ou à taxa de tributação, de modo a influenciar o comportamento dos contribuintes num sentido que permita realizar o motivo específico invocado, por exemplo, através da tributação significativa dos produtos considerados para desencorajar o respetivo consumo (parágrafo 27).

No desenvolvimento destes critérios gerais, o despacho do TJUE, na parte que mais releva, formula ainda as seguintes considerações.

 

29. No caso em apreço, importa salientar, em primeiro lugar, como resulta da jurisprudência referida no n.° 26 do presente despacho, que, embora a afetação predeterminada do produto da CSR ao financiamento, pela concessionária da rede rodoviária nacional, das competências gerais que lhe são atribuídas possa constituir um elemento a tomar em consideração para identificar a existência de um motivo específico, na aceção do artigo l.°, n.° 2, da Diretiva 2008/118, essa afetação não pode, enquanto tal, constituir um requisito suficiente.

 

30. Em segundo lugar, para se considerar que prossegue um motivo específico, na aceção desta disposição, a CSR deveria destinar-se, por si só, a assegurar os objetivos de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental que foram atribuídos à concessionária da rede rodoviária nacional. Seria esse o caso, nomeadamente, se o produto deste imposto devesse ser obrigatoriamente utilizado para reduzir os custos sociais e ambientais especificamente associados à utilização dessa rede que é onerada pelo referido imposto. Seria então estabelecida uma relação direta entre a utilização das receitas e a finalidade da imposição em causa (-).

 

31. Em terceiro lugar, como resulta do n.° 14 do presente despacho, é certo que a Autoridade Tributária sustenta que existe uma relação entre a afetação das receitas geradas pela CSR e o motivo específico que levou à instituição deste imposto, uma vez que o decreto-lei que atribuiu a concessão da rede rodoviária nacional à IP impõe a esta última que trabalhe em prol, por um lado, da redução da sinistralidade nessa rede e, por outro, da sustentabilidade ambiental.

 

32. No entanto, como foi salientado no n.° 15 do presente despacho, resulta da resulta da decisão de reenvio que o produto do imposto em causa no processo principal não se destina exclusivamente ao financiamento de operações que supostamente concorrem para a realização dos dois objetivos mencionados no número anterior do mesmo despacho. Com efeito, as receitas provenientes da CSR destinam-se, mais amplamente, a assegurar o financiamento da atividade de conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional.

 

33. Em quarto lugar, os dois objetivos atribuídos à concessionária da rede rodoviária nacional portuguesa estão enunciados em termos muito gerais e não deixam transparecer, à primeira vista, uma real vontade de desencorajar a utilização quer dessa rede quer dos principais combustíveis rodoviários, como a gasolina, o gasóleo rodoviário ou o gás de petróleo liquefeito (GPL) automóvel. A este respeito, é significativo que o órgão jurisdicional de reenvio destaque, na redação da sua primeira questão prejudicial, que as receitas geradas pelo imposto são genericamente afetadas à concessionária da rede rodoviária nacional e que a estrutura deste imposto não atesta a intenção de desmotivar um qualquer consumo desses combustíveis.

 

34. Em quinto lugar, o pedido de decisão prejudicial não contém nenhum elemento que permita considerar que a CSR, na medida em que incide sobre os utilizadores da rede rodoviária nacional, foi concebida, no que respeita à sua estrutura, de tal modo que dissuade os sujeitos passivos de utilizarem essa rede ou que os incentiva a adotar um tipo de comportamento cujos efeitos seriam menos nocivos para o ambiente e que seria suscetível de reduzir os acidentes.

 

35. Por conseguinte, sem prejuízo das verificações que caberá ao órgão jurisdicional de reenvio efetuar atendendo às indicações que figuram nos n.ºs 29 a 34 do presente despacho, as duas finalidades específicas invocadas pela Autoridade Tributária para demonstrar que a CSR prossegue um motivo específico, na aceção do artigo l.°, n.° 2, da Diretiva 2008/118, não se distinguem de uma finalidade puramente orçamental (-).

 

16. Revertendo à situação do caso, o que se constata é que a Contribuição de Serviço Rodoviário visa financiar a rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, E. P. E. (atual Infraestruturas de Portugal, S.A.), sendo o financiamento assegurado pelos respetivos utilizadores, como contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, utilização essa que é verificada pelo consumo dos combustíveis. Ademais, o produto da Contribuição de Serviço Rodoviário constitui uma receita própria da Infraestruturas de Portugal, S.A. e o financiamento da rede rodoviária nacional apenas subsidiariamente é assegurado pelo Estado. 

Tal como alega a Autoridade Tributária, a atividade de financiamento, conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional foi atribuída, em regime de concessão, à EP - Estradas de Portugal, E. P. E. (agora denominada Infraestruturas de Portugal, S.A.) pelo Decreto-Lei n.º 380/2007, de 13 de novembro. Nas bases da concessão igualmente se prevê que, entre outros rendimentos, a Contribuição de Serviço Rodoviário constitua receita própria dessa entidade (Base 3, alínea b)). E, por outro lado, nelas se estabelece, como uma das obrigações da concessionária, a prossecução dos “objetivos de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental referidos no quadro II do anexo às presentes bases” (Base 2, n.º 4, alínea b)).

 

No quadro II do anexo apenas se estabelece, na Parte I, alguns objetivos de redução de sinistralidade por referência a certos indicadores de atividade (número de pontos negros, gravidade dos acidentes nas travessias urbanas, número de vítimas mortais), e, na Parte II, alguns objetivos de sustentabilidade ambiental em vista a assegurar, tendencialmente, os indicadores ambientais que aí são referenciados.

 

Como resulta com clareza do despacho do Tribunal de Justiça proferido em reenvio prejudicial, as receitas provenientes da CSR destinam-se essencialmente a assegurar o financiamento da rede rodoviária mediante a consignação à Infraestruturas de Portugal, S.A., e têm uma finalidade puramente orçamental. Nem a estrutura do imposto revela a intenção de desmotivar o consumo dos combustíveis. E, por outro lado, a finalidade específica que poderia justificar a criação da CSR de modo a poder considerar-se conforme o direito europeu é apresentada em termos muito genéricos, não tendo sido sequer feita a prova – que incumbia à Autoridade Tributária - de que tenham sido cumpridos os objetivos de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental, que se encontram definidos no quadro II do anexo às bases da concessão.

 

Haverá de concluir-se, face a todo o exposto, que a CSR, criada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, não prossegue “motivos específicos”, na aceção do artigo l.°, n.° 2, da Diretiva 2008/118, na medida em que as suas receitas têm essencialmente como fim assegurar o financiamento da rede rodoviária nacional, não podendo considerar-se como suficiente, para estabelecer uma relação direta entre a utilização das receitas e um “motivo específico”, os objetivos genéricos de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental.

 

Reembolso da contribuição indevidamente liquidada

 

17. A segunda questão em debate respeita a saber se o reembolso da CSR indevidamente liquidada ao contribuinte é admissível quando a carga fiscal resultante da incidência do imposto é repercutida nos consumidores finais através do correspondente aumento do preço, gerando uma situação de enriquecimento sem causa.

 

Quanto a esta matéria, e para considerar apenas os aspetos mais relevantes em apreciação, o Tribunal de Justiça pronunciou-se nos seguintes termos.

 

38. (…) Assim, um Estado-Membro está, em princípio, obrigado a reembolsar os impostos cobrados em violação do direito da União, ao abrigo das regras processuais nacionais aplicáveis e no respeito pelos princípios da equivalência e da efetividade (-).

 

39. A obrigação de reembolsar os impostos cobrados num Estado-Membro em violação das disposições da União conhece apenas uma exceção. Com efeito, sob pena de conduzir a um enriquecimento sem causa dos titulares do direito, a proteção dos direitos garantidos na matéria pela ordem jurídica da União exclui, em princípio, o reembolso dos impostos, direitos e taxas cobrados em violação do direito da União quando seja provado que o sujeito passivo responsável pelo pagamento desses direitos os repercutiu efetivamente noutras pessoas (-).

 

40. Por conseguinte, incumbe às autoridades e aos órgãos jurisdicionais nacionais assegurar o respeito pelo princípio da proibição do enriquecimento sem causa, incluindo quando nada conste a este respeito no direito nacional.

 

42. Por conseguinte, um Estado-Membro só se pode opor ao reembolso de um imposto indevidamente cobrado à luz do direito da União quando as autoridades nacionais provarem que o imposto foi suportado na íntegra por uma pessoa diferente do sujeito passivo e quando o reembolso do imposto conduzisse, para este sujeito passivo, a um enriquecimento sem causa. Daqui resulta que, se só tiver sido repercutida uma parte do imposto, as autoridades nacionais só estão obrigadas a reembolsar o montante não repercutido (-).

 

43. Constituindo esta exceção ao princípio do reembolso dos impostos incompatíveis com o direito da União uma restrição a um direito subjetivo resultante da ordem jurídica da União, há que interpretá-la de forma restritiva, atendendo nomeadamente ao facto de que a repercussão de um imposto no consumidor não neutraliza necessariamente os efeitos económicos da tributação no sujeito passivo (-).

 

45. Não se pode, no entanto, admitir que, no caso dos impostos indiretos, exista uma presunção segundo a qual a repercussão teve lugar e que cabe ao contribuinte provar negativamente o contrário. Sucede o mesmo quando o contribuinte tenha sido obrigado, pela legislação nacional aplicável, a incorporar o imposto no preço de custo do produto em causa. Com efeito, essa obrigação legal não permite presumir que a totalidade do imposto tenha sido repercutida, mesmo no caso de a violação de essa obrigação conduzir a uma sanção (-).

 

46. O direito da União exclui assim que se aplique toda e qualquer presunção ou regra em matéria de prova destinada a fazer recair sobre o operador em causa o ónus de provar que os impostos indevidamente pagos não foram repercutidos noutras pessoas e que visem impedir a apresentação de elementos de prova destinados a contestar uma pretensa repercussão (-).

 

47. Além disso, mesmo na hipótese de vir a ser provado que o imposto indevido foi repercutido sobre terceiros, o respetivo reembolso ao operador não implica necessariamente um enriquecimento sem causa por parte deste, visto que a integração do montante do referido imposto nos preços praticados pode dar origem a prejuízos associados à diminuição do volume das suas vendas (-).

 

Como sublinha ainda o TJUE, “a questão da repercussão ou da não repercussão em cada caso de um imposto indireto constitui uma questão de facto que é da competência do órgão jurisdicional nacional, cabendo a este último apreciar livremente os elementos de prova que lhe tenham sido submetidos” (parágrafo 44).

 

18. No caso vertente, não há prova evidente de que tenha havido uma efetiva repercussão do imposto nos consumidores, de modo a poder a admitir-se que o reembolso do imposto indevidamente liquidado, por violação do direito da União Europeia, podia traduzir-se numa situação de enriquecimento sem causa por parte do operador.

 

Para efetuar essa demonstração, a Autoridade Tributária limita-se a juntar uma informação interna dos serviços que parte de meras ilações ou considerações genéricas, que, em substância, não permitem concluir que o imposto tenha sido parcial ou integralmente repercutido.

 

Com efeito, a informação em causa faz apelo ao próprio objetivo legislativo da criação da CSR, que terá sido o de onerar os utilizadores da rede rodoviária mediante o agravamento dos custos dos combustíveis. Reporta-se ao critério contabilístico do registo do custo das mercadorias vendidas quando os impostos imputáveis à aquisição devam incorporar esse custo. E argumenta ainda com a margem de comercialização para justificar que o operador não poderia deixar de repercutir o imposto sob pena de praticar preços de venda inferiores ao custo.  

 

Ou seja, a Autoridade Tributária, para justificar a ocorrência de uma efetiva repercussão do imposto nos consumidores, assenta em meros juízos presuntivos, sem efetuar a demonstração objetiva da realidade dos factos através de elementos de prova que se relacionem com os fatores inerentes às transações comerciais que foram realizadas.

 

 

Ora, como resulta com evidência do despacho proferido pelo TJUE em reenvio prejudicial e outra jurisprudência nele citada, não é admissível a prova da repercussão de impostos indiretos através de presunção. E, como se refere no parágrafo 45, há pouco transcrito, mesmo que exista uma obrigação legal de incorporar o imposto no preço de custo do produto, essa obrigação, por si só, não permite presumir que a totalidade do imposto tenha sido repercutido. Não podendo extrair-se, por conseguinte, do tratamento contabilístico do custo das mercadorias vendidas, quando este custo deva incluir todos os gastos incorridos, incluindo a incidência do imposto, que a totalidade do imposto tenha sido repercutida no consumidor final.  

 

Resta acrescentar, tal como foi também assinalado pelo Tribunal de Justiça, que  a repercussão de um imposto no consumidor não neutraliza necessariamente os efeitos económicos da tributação no sujeito passivo e mesmo que viesse a provar-se que o imposto indevidamente liquidado foi repercutido sobre terceiros, o respetivo reembolso ao operador não implica necessariamente um enriquecimento sem causa por parte deste, visto que a integração do montante do referido imposto nos preços praticados pode dar origem a prejuízos associados à diminuição do volume das suas vendas. 

 

Pelo que sempre seria necessário demonstrar que, nas condições de mercado resultantes do agravamento da tributação, o contribuinte teria beneficiado, ao menos parcialmente, por efeito da repercussão do imposto.

 

Por todo o exposto, não pode opor-se ao pedido de reembolso do imposto indevidamente liquidado uma suposta situação de enriquecimento sem causa por efeito da repercussão do imposto nos consumidores.

 

No mesmo sentido, quer quanto à questão da conformidade da Contribuição de Serviço Rodoviário com o direito europeu, quer quanto ao reembolso da contribuição indevidamente liquidada, se pronunciou o acórdão proferido no Processo n.º 564/2020-T.

 

Reembolso do imposto indevidamente pago e juros indemnizatórios

 

19. A Requerente pede ainda a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.

 

De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”. O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

 

Por efeito da reconstituição da situação jurídica em resultado da anulação do ato tributário, há assim lugar ao reembolso do imposto indevidamente pago.

 

Ainda nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito. 

 

Nos casos de pedido de revisão oficiosa, em face do disposto na alínea c) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, apenas são devidos juros indemnizatórios depois de decorrido um ano após a iniciativa do contribuinte, e não desde a data do desembolso da quantia liquidada, constituindo esse o entendimento jurisprudencial corrente (cfr., entre outros, os acórdãos do STA de 27 de fevereiro de 2019, Processo n.º 022/18, de 3 de julho de 2019, Processo n.º 04/19, e de 20 de junho de 2022, Processo n.º 093/21).

 

No caso, o pedido de revisão oficiosa foi apresentado em 13 de julho de 2022, pelo que são devidos juros indemnizatórios desde 14 de julho de 2023, ou seja a partir de um ano depois da apresentação do pedido de revisão oficiosa, até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

 

III – Decisão

 

Termos em que se decide:

 

a)    Julgar procedente o pedido arbitral e anular o ato de liquidação impugnado, bem como a decisão de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa;

b)    Condenar a Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago e no pagamento de juros indemnizatórios desde 14 de julho de 2023 até à data do processamento da respetiva nota de crédito. 

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 2.485.247,28, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 32.130,00, que fica a cargo da Requerida.

 

Notifique.

 

Lisboa, 14 de junho de 2023   

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

 

 

 

Carlos Fernandes Cadilha

 

A Árbitro vogal

 

 

 

Raquel Franco

 

A Árbitro vogal

 

 

 

Nina Aguiar