Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 8/2023-T
Data da decisão: 2023-05-30  IVA  
Valor do pedido: € 23.646,00
Tema: IVA. Notas de crédito e direito a regularização. Anulação administrativa do acto na pendência da lide. Impossibilidade superveniente da lide e extinção da instância.
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SUMÁRIO:

1) A Liquidação objecto de Impugnação Judicial/de Pedido de Pronúncia Arbitral pode ser alvo de anulação administrativa na pendência da lide até ao encerramento da fase da discussão. 2) A anulação administrativa da Liquidação corresponde à antiga “revogação-anulação” cfr., respectivamente, Novo versus Antigo CPA. 3) A ocorrência de anulação administrativa da Liquidação na pendência da lide determina inutilidade superveniente da mesma (rectius impossibilidade) e, na respectiva medida, extinção da instância, cfr. art.º 277.º, al. e) do CPC. 4) Tendo pela anulação administrativa sido determinada a anulação do acto em crise com as legais consequências, a impossibilidade superveniente - da lide em que tanto fora peticionado - é total.

 

DECISÃO ARBITRAL

1. Relatório

A…, S.A., doravante “Requerente”, “Sujeito Passivo”, “SP” ou simplesmente “A…”, nipc …, com sede na Av. …, Lisboa, veio, ao abrigo dos art.ºs 2.º, n.º 1 al. a) e 10.º, n.º 1 al. a) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (D.L. n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, doravante “RJAT”), submeter ao CAAD pedido de constituição do Tribunal Arbitral.

 

Peticiona, assim, a declaração de ilegalidade de acto de liquidação de tributos, mais concretamente de IVA, reportado ao ano de 2021.

 

À liquidação em crise (“a Liquidação”), com o n.º 2022…., de 31.01.2022, e referente ao período 202110, corresponde um valor a pagar de € 23.646,00. Liquidação efectuada em resultado de correcção automática da declaração periódica enviada para o período indicado (cfr. Demonstração de liquidação junta pelo SP), na qual a Requerente fez constar um montante total de € 25.742,40 a título de “Regularizações mensais/trimestrais e anuais”.

 

No âmbito da sua actividade, a Requerente, sujeito passivo de IVA no regime normal mensal, prestou serviços à Universidade B… e emitiu duas  facturas à Faculdade C… daquela (C…) entidade à qual havia já prestado serviços em 2016.

 

Liquidou IVA nas referidas duas facturas e incluiu-o nas Declarações dos períodos seguintes à emissão (Julho e Setembro de 2021). Mais entregou o correspondente IVA ao Estado. Desconhecia então a C… ter cessado a sua actividade para efeitos de IVA, refere.

 

A C… devolveu os originais das facturas à Requerente e delas fez constar menção “Contribuinte errado”. Em consequência do que a Requerente as anulou, emitindo uma nota de crédito que comunicou à Requerida AT e registou no Portal e-fatura. E emitiu, na mesma data, duas novas facturas em substituição daquelas.

 

Após, entregou a já referida Declaração periódica relativa a Outubro de 2021, onde procedeu à regularização a seu favor do correspondente IVA entregue ao Estado.

 

Foi, depois, notificada de alegada incorrecção em número de contribuinte ali indicado. Porém não procedeu à entrega de Declaração de substituição, por considerar correcta a Declaração que havia entregue.

 

Na sequência, foi-lhe emitida Liquidação de IVA no montante de € 23.646,00, e Demonstração de liquidação de juros de € 99,47.

 

A 22.03.2022 procedeu ao respectivo pagamento. E a 06.06.2022 submeteu reclamação graciosa (RG), peticionando a anulação dos referidos actos por ilegais. À qual não recebeu resposta.

A seu ver a Liquidação é ilegal por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, impondo-se a correcção do imposto indevidamente facturado, regularizando-o a seu favor.

 

Assim, vem interpor Pedido de Pronúncia Arbitral (PPA), requerendo a anulação do indeferimento da RG e da Liquidação - que reputa de ilegais -, o reembolso das quantias pagas e juros indemnizatórios. 

 

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD a 04.01.2023 e notificado à AT.

 

Nos termos do disposto na al. b) do n.º 1 do art.º 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do Tribunal Arbitral singular a ora signatária, que atempadamente aceitou o encargo.

 

A 22.02.2023 as Partes foram notificadas da designação de árbitro e não manifestaram intenção de a recusar, cfr. art.º 11º, n.º 1, al. a) e b) do RJAT e art.ºs 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

Nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 do art.º 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 13.03.2023.

 

Por despacho do Tribunal de 14.03.2023 a Requerida foi notificada para apresentar Resposta e solicitar prova adicional, querendo, e para juntar o PA.

 

A 26.04.2023 a Requerida veio aos autos informar da revogação do acto em crise com as devidas consequências legais, determinada por despacho do Sub-director Geral da mesma de 26.04.2023, que então juntou com a Informação respectiva. Mais referiu dever ser declarada, em consequência, a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.

 

Na dita Informação, assim junta aos autos e à qual no despacho de revogação se adere, conclui--se que a Requerente reúne os requisitos formais e materiais exigidos pelo CIVA que legitimam o direito à regularização a seu favor do valor em questão, como havia sido pela mesma declarado. E reconhece-se o direito da Requerente à devolução da quantia paga e juros indemnizatórios.

 

Face ao que antecede, e consequente apreciação de eventual inutilidade superveniente da lide, o Tribunal notificou a Requerente para se pronunciar, querendo.

 

A Requerente, por requerimento de 29.05.2023, veio “consignar que, até à presente data, a Autoridade Tributária e Aduaneira não procedeu ao reembolso do imposto indevidamente pago nem ao pagamento dos juros indemnizatórios peticionados”.

 

*

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, é competente e as Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas, cfr. art.s 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e art.º 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22.03.

 

O Processo não enferma de nulidades e o Pedido é tempestivo, apresentado dentro do prazo legal de 90 dias - ao abrigo do art.º 10.º, n.º 1 al. a), do RJAT (v. art.º 102.º, n.º 1, al. d) do CPPT).

 

Vem invocada, como já supra, matéria de excepção. A saber, da extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.

 

2. Saneamento

 

Cabe desde já apreciar, então, se se verifica causa de extinção da instância. Como segue.

 

A Requerida veio aos autos, em prazo para apresentação de Resposta, comunicar a revogação do acto. A revogação da Liquidação foi determinada por despacho da mesma, junto, e da Informação que o integra consta, entre o mais, o que já supra se deixou referido.

 

Assim, foi já no decurso dos presentes autos de processo Arbitral que a Requerida veio comunicar a revogação da Liquidação, determinada por aquele seu despacho. Ocorrida, a própria revogação, também ela no decurso dos presentes autos, a 26.04.2023. Com efeito, o PPA foi aceite a 04.11.2023, a Requerida foi notificada da interposição do mesmo a 09.01.2023, e o Tribunal Arbitral veio a ser constituído a 13.03.2023.

 

Vejamos então.

 

Determina o legislador - art.º 277.º do CPC[1] - configurar causa de extinção da instância, entre outras, “a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide” - cfr. al. e).

 

Ora, como se sabe e bem se compreende, entre os elementos essenciais da causa – na ausência dos quais a mesma carecerá de condições de existência/validade - encontramos, precisamente, o seu objecto. Que se alcança pela conjugação entre pedido e causa de pedir.

 

Sem prejuízo do que antecede, poderá também perspectivar-se o próprio acto em crise como o objecto (stricto sensu) da acção.

 

Sendo que, nestes autos de processo Arbitral, a Requerente vem submeter ao Tribunal pretensão de anulação do acto administrativo de liquidação supra melhor identificado, tendo por causa (fundamento) a alegada violação de lei do mesmo. E a Requerida, como visto já, veio revogar aquele acto, o acto em crise. Independentemente da questão terminológica implicada, a que de seguida atentaremos, aquele último acto decisório, administrativo, destina-se a extinguir os efeitos do acto seu objecto, a Liquidação.

A terem sido extintos os efeitos da Liquidação, ocorrerá impossibilidade superveniente da lide, por deixar de existir o seu objecto. Quando o objecto da causa, no decurso da mesma, se extinga, vimo-lo já, ocorre impossibilidade superveniente da lide.[2] Causa de extinção da instância.[3]

 

Apreciemos então se tal efectivamente sucede nos autos.

 

Diz-nos o legislador, no art.º 165.º do CPA[4], versão actual, que a revogação é o acto administrativo que determina a cessação dos efeitos de outro acto por razões de mérito, conveniência ou oportunidade, e que o acto administrativo que determina a destruição dos efeitos de outro acto com fundamento em invalidade constitui anulação administrativa (cfr., respectivamente, n.ºs 1 / 2 do artigo).

 

Temos, pois, que o legislador, pelo Novo CPA[5], passou – diferentemente do que sucedia no anterior CPA - a distinguir com conceitos diferenciados as duas realidades ali subjacentes, subjacentes à eliminação do acto: no primeiro caso - “revogação” - eliminação fundada em razões de oportunidade, e, no segundo –não já “revogação” mas sim “anulação administrativa” -, eliminação fundada na desconformidade do acto à ordem jurídica.

 

No primeiro caso - “revogação” - poderá assim também dizer-se, destruição de efeitos fundada em razões extrínsecas ao acto, enquanto que no segundo - “anulação administrativa” - fundada, ao invés, em razões que são intrínsecas ao acto que vem a ser anulado.

 

E às referidas duas figuras concede o legislador tratamento distinto. Entre o mais no que aos respectivos efeitos - v. art.º 171.º do CPA - e consequências se refere. A revogação por regra produzindo efeitos para futuro. Já a anulação comportando em geral efeitos retroactivos, ex tunc, com as demais consequências - cfr., desde logo, art.º 172.º do CPA.

Ora, muito embora o legislador tributário, no art.º 79.º da LGT, tenha referido acto decisório de “revogação”, e não tendo estabelecido os critérios de qualificação da invalidade dos respectivos actos objecto daquele, não deixará de ser de convocar a disciplina do CPA na matéria (v. também art.º 29.º, n.º 1, al.s c) e d) do RJAT e art.ºs 2.º, al. c) da LGT e 2.º al. d) do CPPT).

 

No sentido da aplicação do regime do CPA à revogação prevista no art.º 79.º da LGT já se pronunciou o STA, entre outros, no Acórdão de 15.03.2017, proc. 449/14, como também o TCA Sul no Acórdão de 14.10.2021, proc. 23/16.8BELRS.

 

No caso dos autos, e por tudo o que antecede, não pode deixar de considerar-se estarmos perante um acto de “anulação administrativa” no sentido do n.º 2 do art.º 165.º do CPA. O acto objecto da - como tal referida no despacho da Requerida e no art.º 79.º da LGT - revogação é um acto vinculado, e a revogação (revogação-anulação; e na actual terminologia expressa do CPA “anulação administrativa”) vem determinar a eliminação, a destruição dos efeitos, desse outro acto, a Liquidação (o acto aqui em crise, objecto do presente processo), – ex tunc e com fundamento em invalidade, cfr. supra.

 

É, pois, uma anulação administrativa (cfr. art.º 165.º/2 do CPA), aquilo de que aqui se trata.

 

A Requerida, pelo referido acto decisório superveniente, determinou a destruição dos efeitos jurídicos do primeiro acto (a Liquidação), e a sua eliminação da Ordem Jurídica.

 

Poderia a Requerida fazê-lo, operar a anulação administrativa nos termos em que o fez?

 

Revertendo novamente, e no enquadramento que ficou exposto, ao disposto pelo legislador no CPA, determina-se no respectivo art.º 168.º, n.º 3, que quando o acto tenha sido objecto de impugnação jurisdicional a anulação administrativa pode ter lugar até ao encerramento da discussão.

 

E dispõe, por outro lado, o n.º 1 do art.º 172.º, igualmente do CPA, que: “Sem prejuízo do eventual poder de praticar novo ato administrativo, a anulação administrativa constitui a Administração no dever de reconstituir a situação que existiria se o ato anulado não tivesse sido praticado (...).”

 

Não só o referido Diploma Legal, já se viu, é de aplicação subsidiária também em sede de processo arbitral tributário como, ainda, este processo traduz, como se sabe, um meio alternativo ao processo de impugnação judicial[6]. Pelo que, mais uma vez, não se vêm razões senão para que também aqui a regulamentação em causa seja de convocar.

 

Vejamos então.

Nos autos, havia já sido constituído o Tribunal Arbitral e, quando a Requerida procedeu à anulação, e mais veio da mesma informar os autos, não se encontrava, ainda, encerrada a fase da discussão - cfr. art.º 168.º, n.º 3 do CPA. A anulação teve assim lugar em tempo, não obstante na pendência do processo Arbitral.

 

E, diga-se, não deixou também de ficar cumprido o art.º 13.º do RJAT, máxime no seu n.º 3, não tendo a Requerida, enquanto na pendência da lide, e já transcorrido o prazo do n.º 1 do mesmo dispositivo, vindo praticar um novo acto.

 

Por outro lado, se dúvidas houvesse, o acto era passível de anulação administrativa: a Liquidação mantinha-se na Ordem Jurídica e não configurava acto ferido de nulidade - v. art.º 166.º, n.º 1 do CPA.

 

Acresce, também se dúvidas houvesse, que a anulação pode ser determinada e só em momento posterior, sendo o caso, ser praticado novo acto administrativo - v. art.º 172.º, n.º 1 do CPA.

 

Isto sem prejuízo de, como também em outros dispositivos legais, tributários, desde logo o art.º 100.º da LGT, e como também determina aquele mesmo art.º 172.º, n.º 1 do CPA, em a Requerida anulando, dever reconstituir a situação que existiria se o acto anulado não tivesse sido praticado.

 

E, assim:

 

Resta ao Tribunal em alguma medida matéria sobre a qual haja que decidir?

 

Não resta sobre que decidir, a Liquidação já não existe na Ordem Jurídica (como assim também não o indeferimento da RG que, presumido por lei, a confirmara). A lide carece, in totum, de objecto. A pretensão da Requerente não pode mais ser satisfeita pelo Tribunal. Inexiste Liquidação e foram acauteladas pelo acto que a eliminou da Ordem Jurídica as respectivas consequências legais (cfr., entre o mais, art.º 100.º da LGT).

 

Verifica-se impossibilidade superveniente da lide.

 

A impossibilidade superveniente da lide é causa de extinção da instância (cfr. supra). Que assim será declarada pelo Tribunal.

 

Tendo a Requerente sido notificada para exercício do contraditório, como supra, veio fazer constar não ter sido ainda ressarcida do valor pago em excesso e juros. Facto que em nada prejudica o que já antecede, competindo ao Tribunal determinar a extinção da instância, e à Requerida dar cumprimento ao seu acto anulatório, tudo nos termos legais.

 

3. Decisão

Termos em que decide este Tribunal Arbitral julgar extinta a instância, por impossibilidade superveniente da lide.

 

 

4. Valor do processo

Nos termos conjugados do disposto nos art.ºs 3.º, n.º 2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, 97.º-A, n.º 1, al. a) do CPPT, e 306.º, n.º 2 do CPC, fixa-se o valor do processo em € 23.646,00.

 

5. Custas

Conforme disposto no art.º 22.º, n.º 4 do RJAT, no art.º 4.º, n.º 4 do Regulamento já referido e na Tabela I a este anexa, fixa-se o montante das custas em € 1.224,00, a cargo da Requerida - cfr. também art.º 536.º, n.ºs 3 e 4 do CPC (e não sendo, em todo o caso, imputável à Requerente a anulação do acto depois de iniciada a lide).

 

 

Lisboa, 30 de Maio de 2023

 

O Árbitro,

 

(Sofia Ricardo Borges)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Aplicável ex vi art.º 29.º do RJAT

[2] “A impossibilidade superveniente da lide ocorre ou porque se extinguiu o sujeito, ou porque se extinguiu o objecto, ou porque se extinguiu a causa.” – Cfr. Alberto dos Reis, Comentário ao CPC, Volume III, p. 368.

[3] Assim, também de conhecimento oficioso.

[4] Aplicável ex vi art.º 29.º do RJAT.

[5] Aprovado pelo DL n.º 4/2015, de 07.01

[6] Cfr., entre o mais, n.º 2 da Lei de Autorização (LOE 2010, art.º 124.º)