Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 725/2019-T
Data da decisão: 2020-06-12  IVA  
Valor do pedido: € 24.898,39
Tema: IVA – Direito à Dedução.
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 DECISÃO ARBITRAL

 

I.             RELATÓRIO

 

“A..., LDA.”, pessoa colectiva ..., com sede na Rua ... n.º..., ...-..., em Ponte de Lima,  apresentou um pedido de constituição do Tribunal Arbitral singular, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante AT), com o objectivo de obter a anulação do indeferimento da reclamação graciosa apresentada, com vista à anulação dos actos tributários de liquidação adicional de IVA e juros compensatórios, devidamente identificados nos autos, referente aos períodos de tributação de 2015, 2016 e 2017, no global de valor global de €24.898,39,

 

A 19 de Fevereiro de 2020, a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante AT, respondeu defendendo a improcedência do pedido de pronúncia arbitral, por não provado.

 

Foi dispensada a realização da reunião prevista no artigo 18.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT).

 

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março) e estão devidamente representadas.

 

O processo não enferma de nulidades.

 

II.            MATÉRIA DE FACTO

 

1. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

a)            A Requerente é uma sociedade por quotas tributada pelo exercício da actividade de natureza comercial ou industrial, com o CAE 02200 (exploração florestal);

b)           Esta sociedade dedica-se essencialmente à actividade de exploração florestal, nomeadamente compra de madeira em lotes e troncos de árvores, extracção e venda da mesma, isto é, compra os lotes de árvores, subcontrata os serviços de outras empresas para o abate das mesmas e depois transporta-as para os clientes;

c)            A Requerente foi objecto de uma acção inspectiva a coberto das ordens de serviço externas n.ºs OI2018..., OI2018..., OI2018... e OI2018..., emitidas em 2018.10.01, nos termos do artigo 46.º do RCPITA, cujo procedimento inspectivo foi iniciado em 2018.10.17, com a assinatura das referidas Ordens de Serviço, e finalizado com a notificação do RIT;

d)           Os SIT concluíram que, por imposição da alínea a) do n.º 2 e do n.º 6 do artigo 19.º do Código do IVA, conjugada com a alínea b) do n.º 5 do artigo 36.º do mesmo diploma, não pode ser deduzido o IVA contido nas facturas que não identificam a quantidade e designação exacta dos bens transmitidos;

e)           Segundo o Relatório de Inspecção Tributária, as facturas respeitantes à aquisição, pela ora Requerente de madeira a particulares (autofacturação) e a pequenos agricultores e silvicultores, não mencionavam nem a designação do bem adquirido nem a respectiva quantidade, elementos indispensáveis à verificação dos requisitos substantivos necessários ao exercício do direito à dedução;

f)            Em resultado das correções efectuadas, foram emitidas as liquidações adicionais de IVA dos anos de 2015, 2016 e 2017, respectivamente nos valores totais de €10.578,55, €10.133,89 e €3.518,31, melhor identificadas no artigo 1.º da PI;

g)            A Requerente apresentou Reclamação Graciosa (n.º ...2019...) contra as liquidações adicionais de IVA, pedindo a final a anulação das liquidações identificadas nos autos;

h)           A Requerente foi notificada por despacho de 28/07/2019 do Director de Finanças de ... do indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra as liquidações de IVA já identificadas nos autos (ofícios nº ..., de 29.07.2019 e n.º..., igualmente de 29.07.2019), segundo o qual: “a falta da menção das quantidades nas faturas de auto-faturação e nas facturas emitidas por pequenos agricultores ou silvicultores (à frente discriminadas) põe em causa o direito à dedução do IVA relativo às mesmas pelo facto da AT (Administração Tributária e Aduaneira) não dispor de todos os dados para verificar se os requisitos substantivos relativos a este direito se encontram satisfeitos.

Na documentação que serviu de base aos registos contabilísticos do sujeito passivo, para as referidas faturas não há documentação de suporte que nos permita aferir que tipo de bens foram adquiridos (tipos de madeira) e as respectivas quantidades, logo, não temos como aferir a veracidade das bases tributáveis constantes das facturas que serviram de base à liquidação do imposto, bem como, não nos permite a realização de controlos do pagamento do imposto devido pelos transmitentes dos bens e, no caso em apreço, a existência do direito à dedução do IVA.”

i)             O sujeito passivo adquire madeira a pequenos agricultores ou silvicultores com “atividade declarada” e sem “atividade declarada” (particulares).

j)             O preço pago pela Requerente pela aquisição de um lote de madeira de um conjunto de árvores é influenciado por um conjunto de variáveis, como a acessibilidade e acidentalidade do local de corte das árvores, a idade, a largura, a altura, o tipo e estado das árvores, a presença de vegetação densa, entre outros.

k)            A definição do preço, para um bem que é aparentemente o mesmo, pode variar ao abrigo de outros factores externos ao próprio bem, como foi demonstrado acima, mas que têm uma influência muito significativa nessa operação.

l)             Apenas num momento posterior ao corte das árvores é que é possível afastar um conjunto vasto de variantes com influência no preço e definir um preço objectivo e similar à realidade económica subjacente, recorrendo às variantes “peso” e “tipo de árvores”.

 

2. Fundamentação da fixação da matéria de facto

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada [cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT].

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

Não se deram como provadas ou não provadas alegações que consistam em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

III.          MATÉRIA DE DIREITO

 

Como questão-prévia, defendeu a AT em 4.º e ss da sua Resposta que a Requerente impugnou os actos de liquidação adicional de IVA e não a decisão e indeferimento da reclamação graciosa. Vejamos:

 

Analisada a petição arbitral constata-se que a Requerente não formulou directamente o pedido de impugnação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, mas resulta de toda a defesa desenvolvida (por exemplo, artigo 7.º e 23.º e ss.), que é a decisão de indeferimento que é impugnada, por assentar em actos de liquidação de IVA, também eles contestados.

 

Tendo em conta o pedido formulado, entende-se que a principal questão que se coloca nos presentes autos prende-se com saber se os actos de liquidação adicional de IVA subjacentes ao acto de indeferimento impugnado são ou não válidos, atendendo à desconsideração do direito à dedução de IVA da Requerente, com fundamento em falta de formalidades legais das facturas em questão.

 

Clarificado o pedido, importa saber que a este propósito, a Requerente alega no seu pedido de constituição do Tribunal Arbitral, em síntese, o seguinte:

 

a)            A análise dos documentos contabilísticos levada a cabo no âmbito da inspecção tributária, desembocou na liquidação adicional de IVA, relativamente a facturas resultantes da compra de madeira por parte da Requerente a particulares, ao abrigo do regime de autofacturação, e a pequenos agricultores e silvicultores, perfazendo um total de €24.898,39;

b)           Em resultado das correções de natureza meramente aritmética apuradas, o crédito de IVA, que existe a favor da Requerente, será no montante €24.898,39, e não de €40.000,00, como consta do pedido de reembolso do IVA, através do diferimento parcial do reembolso do IVA (n.º..., período 201806M) nesse montante.

c)            A Autoridade Tributária e Aduaneira refere que “a indicação de “venda de madeira” nas faturas que respeitam a aquisição de madeira a particulares e a pequenos comerciantes é muito abrangente, vaga e insuficiente para perceber quais os tipos de madeira que foram efetivamente adquiridos e em que quantidades, pondo em causa a determinação da quantidade e do montante unitário, bem como os controlos dos inventários da empresa e as vendas declaradas/imposto liquidado pelo sujeito passivo, no âmbito da atividade exercida”.

d)           Como se demonstrará, a decisão da AT assenta num conjunto de equívocos e falta de apreensão da efectiva realidade da Requerente, carecendo por isso de uma detalhada análise.

e)           A Requerente é uma empresa cuja actividade comercial consiste, essencialmente, na exploração florestal, nomeadamente compra de madeira em lotes e troncos de árvores, extração e venda da mesma, numa cadeia de operações comerciais que passamos a esquematizar:1º Compra de lotes de árvores; 2º Subcontratação os serviços de abate de árvores; 3º Transporte e venda das árvores/troncos/madeira para seus clientes.

f)            A Requerente adquire a madeira a outros sujeitos passivos, com “actividade declarada” e sem “actividade declarada”, sendo que neste último caso as facturas são emitidas pelo adquirente dos bens, ao abrigo do regime de autofacturação, nos termos do n.º 11 do artigo 36º do Código do IVA.

g)            O preço pago pela Requerente pela aquisição de um lote de árvores é influenciado por um conjunto de variáveis, como a acessibilidade e acidentalidade do local de corte das árvores, a idade, a largura, a altura, o tipo e estado das árvores, a presença de vegetação densa, entre outros.

h)           Ora, a definição do preço, para um bem que é aparentemente o mesmo, pode variar ao abrigo de outros factores externos ao próprio bem, como foi demonstrado acima, mas que têm uma influência muito significativa nessa operação.

i)             Assim, a simples quantificação das árvores adquiridas, não seria exacta e nunca seria uma projecção da realidade económica, até porque o mesmo número de árvores pode ter um preço bastante díspar quando se encontra sob a influencia de outros factores, senão a mera quantidade.

j)             Como tal, a Requerente, na hora de definir o preço a pagar por um lote de árvores, passa sempre por uma análise mais ou menos exigente das variantes referidas, e define um preço médio, sem nunca se basear exclusivamente em quantidades ou características objectivas do bem a adquirir.

k)            A Requerente apenas procede à definição do montante a pagar à empresa que procede ao abate das árvores no momento em que lhe é possível pesar a carga constante dos camiões de transporte para as entidades adquirentes, quando estes seguem directamente para o comprador, ou através do cálculo médio de toneladas que um camião se encontra apto para transportar, quando não existe comprador imediato para a madeira cortada e preparada pela empresa subcontratada;

l)             Ora, a Requerida identificou e destacou as facturas das quais consta como descrição do bem adquirido “venda de madeira”, mas das quais não consta a quantidade de madeira adquirida;

m)          Como resposta à Reclamação Graciosa apresentada pela Requerente no dia 15/05/2019, a AT decide pelo indeferimento da pretensão da Requerente de ver anulados os actos de liquidação de imposto;

n)           Como fundamento da sua decisão, a AT invoca que “em sede de IVA, nos termos do n.º 2 do artigo 19.º do Código do IVA, só as operações tituladas por fatura que respeitem todos os requisitos do mencionado artigo 36.º n.º 5 do mesmo código possibilitam o exercício do direito à dedução do imposto. Inexistindo fatura ou documento equivalente com os requisitos previstos no n.º 5 do artigo 36.º do Código do IVA, fica logo afastada a dedutibilidade do IVA.”

o)           Assim, e porque das facturas aqui em discussão não consta qualquer quantitativo dos bens sob troca comercial, a AT considera que “é condição para a não dedução do imposto, nos termos do n.º 2 e 6 do artigo 19.º, do mesmo Código”.

p)           As correções efectuadas neste âmbito recaíram sobre as facturas discriminadas no Projeto de Relatório apresentado pela AT para fundamentar a liquidação adicional de imposto, nas tabelas descritivas, constantes das páginas 10 e 11, sendo que, relativamente às facturas emitidas no âmbito do regime de auto-facturação, a ATA desconsiderou a dedução do IVA constante e pago pelo sujeito passivo, de todas as facturas emitidas nos períodos abrangidos pela inspecção, (Cfr. facturas desconsideradas pela AT para efeitos de dedução do IVA, como DOC. 1, que ora se junta e se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais).

q)           Ora, conforme exposto pelos autores Miguel Durham Agrellos e Paulo Pichel (in cadernos de IVA 2015, Editora Almedina, página 210 e 211):

“Os requisitos formais estabelecidos na Diretiva IVA, ou que esta permite aos Estados-membros estabelecerem, deverão ter como finalidade a exata cobrança e correta fiscalização da aplicação do imposto;

Os vícios formais não podem, só por si, pôr em causa o direito à dedução dada a sua importância na mecânica do imposto, garantindo a realização do princípio da neutralidade. Tais vícios poderão, quanto muito, e por si só, dar origem á aplicação de sanções;

Se uma determinada fatura, embora contendo vícios formais, permite assegurar a exata cobrança da respetiva fiscalização do imposto, deverá ser aceite para efeitos de exercício do direito à dedução;”

r)            Das facturas submetidas ao escrutínio da AT, verifica-se que relativamente a estas não se encontra preenchido o requisito formal da “quantidade e da denominação usual dos bens transmitidos” porque a Requerente não vendeu árvores, vendeu lotes de madeira, atendendo a vários elementos para a formação do preço, como tipo de árvore, quantidade calculada a olho,  idade,  condição.

s)            No “Acórdão Barlis, S.A.”, processo C-516/14, no âmbito do qual o TJUE debruçou-se sobre a questão levantada pelo CAAD, ao abrigo do regime do reenvio prejudicial, esclareceu-se que não é exigível uma descriminação ou descrição minuciosa dos serviços prestados, concluindo “que é obrigatório especificar a extensão e natureza dos serviços prestados, mas não diz que seja necessário descrever os serviços específicos prestados de forma exaustiva”.

t)            O TJUE concluiu que a Administração Fiscal não se pode ficar pelo simples exame das facturas para admitir a dedução do imposto pago, deve antes atender a todas as informações e dados existentes e constantes da contabilidade da empresa para obter um conhecimento completo e fundado para tecer considerações e tomar decisões que respeitem o princípio fundamental do IVA – a sua neutralidade.

u)           Figura-se de extrema desproporcionalidade a simples não aceitação da dedução do IVA efetivamente pago e entregue aos cofres do Estado.

v)            Esta desconsideração do imposto pago, aliás, duplamente pago, dado que a Requerente exerce uma actividade económica que se encontra em funcionamento pleno, e, como tal, o IVA é efectivamente pago pelo consumidor final a jusante, assume montantes excessivos, que colocam em causa a viabilidade financeira da Requerente, provoca distorções na concorrência acentuadas e maléficas, e têm como efeito o enriquecimento sem causa da AT.

w)          Diga-se que, apesar da verificação do efectivo não preenchimento de todos requisitos formais exigidos, é possível a AT diligenciar no sentido de averiguar a substância da relação jurídica subjacente às facturas, assegurar o controlo do apuramento do imposto e fiscalização do mesmo, incluindo a taxa aplicável, e da sua legalidade.

x)            Sublinhe-se que, tal como estabelecido no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, processo n.º 1356/10.2BELRA, de 15/12/2016 “a expressão “quantidade e denominação usual dos bens transmitidos ou dos serviços prestados, com especificação dos bens necessários à determinação da taxa aplicável” tem como finalidade permitir quer ao cliente quer à AT controlarem se a taxa incidente sobre o valor tributável é a correta.”

y)            Como já aqui foi afirmado, os vícios formais contidos nas facturas em questão não impedem a exacta cobrança do imposto devido e a respectiva fiscalização, e, como tal, o direito à dedução pode ser exercido.

 

Por sua vez, a AT defende:

 

1.            Em sede de IVA, nos termos do n.º 2 do artigo 19.º do Código do IVA, só as operações tributáveis tituladas por factura que respeitem todos os requisitos do mencionado no artigo 36.º nº 5 do mesmo Código possibilitam o exercício do direito à dedução do imposto. Inexistindo factura ou documento equivalente com os requisitos previstos no n.º 5 do artigo 36º do Código do IVA, fica logo afastada a dedutibilidade do IVA.

 

2.            Como concluíram os SIT, “Em suma, para efeitos de faturação, nos termos da alínea b) do n.º 5 do artigo 36º do Código do IVA, a quantidade e denominação usual dos bens transmitidos ou serviços prestados, com especificação dos elementos necessários à determinação da taxa aplicável é um dos elementos a constar das referidas faturas, sob pena de não conferir direito à dedução do imposto nelas contido”.

 

3.            “No caso em apreço, o sujeito passivo, adquire madeira a pequenos agricultores ou silvicultores com "atividade declarada" e sem "atividade declarada" (particulares). Quanto às aquisições de madeira a particulares, as faturas são elaboradas pelo adquirente dos bens, ou seja, o sujeito passivo em análise.”

 

4.            O n.º 11 do artigo 36.º do Código do IVA permite o recurso à autofacturação por  parte  do  adquirente  dos bens, desde que cumpridas as condições aí descritas, pelo que, sendo o caso, o adquirente da madeira (sujeito passivo) emite a factura por conta do transmitente, que deve conter os elementos do n.º  5 do mesmo artigo.

 

5.            A este propósito, os SIT, concluíram como se segue: “A falta da menção das quantidades nas faturas de autofaturação e nas faturas emitidas por pequenos agricultores ou silvicultores (à frente discriminadas) põe em causa o direito à dedução do IVA relativo às mesmas pelo facto da AT (Administração Tributária e Aduaneira) não dispor de todos os dados para verificar se os requisitos substantivos relativos a este direito se encontram satisfeitos. Na documentação que serviu de base aos registos contabilísticos do sujeito passivo, para as referidas faturas não há documentação de suporte que nos permita aferir que tipo de bens foram adquiridos (tipos de madeira) e as respetivas quantidades, logo, não temos como aferir a veracidade das bases tributáveis constantes nas faturas que serviram de base à liquidação do imposto, bem como, não nos permite a realização de controlos do pagamento do imposto devido pelos transmitentes dos bens e, no caso em apreço, a existência do direito à dedução do IVA.

Deste modo, é de considerar que as faturas sem menção da quantidade e designação concreta dos bens transacionados, são insuficientes para que se possa afirmar que os requisitos substantivos relativos ao direito à dedução do IVA se encontram satisfeitos.

Ressalva-se o facto de, ao estarmos perante o sistema de autofacturação referida no nº 11 do artigo 36° do CIVA, o sujeito passivo tem conhecimento imediato e concreto dos elementos caracterizadores dos bens. conforme impõe o Código do IVA. Ao optar por não cumprir a lei, nomeadamente o disposto no n.º 5 do artigo 36.º do Código do IVA, o sujeito passivo agiu, no mínimo, de forma negligente.

Com efeito fica-se sem saber e sem se poder determinar quais as quantidades e os bens concretamente transacionados/faturados, elementos essenciais à prossecução da finalidade das menções que devem obrigatoriamente constar da fatura, elencadas no n.º 5 do artigo 36.º do Código do IVA

Assim, por força da alínea a) do n.º 2 e do n.º 6 do artigo 19.º e da alínea b) do nº  5 do artigo 36.º ambos do Código do IVA, o sujeito passivo (adquirente) não pode deduzir o imposto liquidado, por falta de indicação da quantidade e designação exata dos bens transmitidos, daí resultando o apuramento de IVA em falta, para os períodos e nos montantes indicados nos quadros que se seguem.”

 

6.            Nestes termos, cfr. fls. 26 e 84 do RIT, é apresentado o IVA dedutível dos gastos apurados pela contabilidade do sujeito passivo, mas que não confere o direito à dedução de acordo com o artigo 19.º, n.º 5 al.b) do Código do IVA, no montante de €24.230,75.

 

7.            Ali se concluiu que, por imposição da alínea a) do n.º 2 e do n.º 6 do artigo 19.º do Código do IVA, conjugada com a alínea b) do n.º 5 do artigo 36.º do mesmo diploma, não pode ser deduzido o IVA contido nas facturas que não identificam a quantidade e designação exacta dos bens transmitidos.

 

8.            No caso em concreto, apurou-se que as facturas respeitantes à aquisição, pela reclamante, de madeira a particulares (autofacturação) e a pequenos agricultores e silvicultores, não mencionavam nem a designação do bem adquirido nem a respectiva quantidade, elementos indispensáveis à verificação dos requisitos substantivos necessários ao exercício do direito à dedução.

 

9.            A falta daquela informação nas facturas impede a AT de aferir a veracidade das bases tributáveis constantes das facturas que serviram de base à liquidação do imposto, e não permite a realização do controlo dos pagamentos do imposto devido pelos transmitentes dos bens.

 

10.          O exercício do direito à dedução do IVA por parte dos sujeitos passivos de IVA está condicionado ao cumprimento de requisitos formais e materiais. Os primeiros respeitam ao conjunto de formalidades a que deve obedecer a emissão das facturas e os segundos à efectividade das operações e respectiva conexão com actividades exercidas pelos sujeitos passivos que confiram tal direito.

11.          Os requisitos formais das facturas são os enumerados pelo artigo 36.º, n.º 5 do Código do IVA, que dispõe:

 

Artigo 36.º

Prazo de emissão e formalidades das facturas

“(…)

5 - As faturas devem ser datadas, numeradas sequencialmente e conter os seguintes elementos: 

a) Os nomes, firmas ou denominações sociais e a sede ou domicílio do fornecedor de bens ou prestador de serviços e do destinatário ou adquirente sujeito passivo do imposto, bem como os correspondentes números de identificação fiscal; (Redação dada pelo Decreto-Lei n.º 28/2019, de 15 de fevereiro)

b) A quantidade e denominação usual dos bens transmitidos ou dos serviços prestados, com especificação dos elementos necessários à determinação da taxa aplicável; as embalagens não efetivamente transacionadas devem ser objeto de indicação separada e com menção expressa de que foi acordada a sua devolução;

c) O preço, líquido de imposto, e os outros elementos incluídos no valor tributável;

d)  As taxas aplicáveis e o montante de imposto devido;

e) O motivo justificativo da não aplicação do imposto, se for caso disso;

f) A data em que os bens foram colocados à disposição do adquirente, em que os serviços foram realizados ou em que foram efetuados pagamentos anteriores à realização das operações, se essa data não coincidir com a da emissão da fatura.(…).”

 

12.          Está em causa aferir a natureza dos serviços que deve ser indicada pela denominação normal dos mesmos e a sua extensão ou medida, tendo sempre em vista o objectivo a que se destina: permitir o controlo pelas autoridades tributárias;

 

13.          Sem prejuízo do exposto, caso se entendesse, por apelo a um critério restritivo, suscitarem-se algumas dúvidas quanto à extensão (ou “quantidade”, na terminologia do Código do IVA) dos serviços prestados, pela variação mensal dos valores facturados que resulta da metodologia de cálculo prevista nos contratos, estaríamos perante uma insuficiência parcial do descritivo das facturas em análise, relativamente à extensão dos serviços prestados.

 

14.          Por certo que a falta da menção nas facturas (emitidas pelo adquirente, portanto, de autofacturação - art.º 36.º, n.º11 do CIVA) das quantidades e dos bens concretamente transacionados/facturados [cumprindo o disposto na alínea b) do n.º5 do artigo 36.º do CIVA], põe em causa o direito à dedução do IVA relativo às mesmas, pelo facto da AT não dispor de todos os dados para verificar se os requisitos substantivos relativos a este direito [alínea a) do n.º 2 e do n.º 6 do artigo 19.º do CIVA] se encontram satisfeitos, daí resultando o apuramento de IVA em falta.

 

15.          Quanto ao facto das facturas não conterem a quantidade dos bens transmitidos ou dos serviços prestados, é condição para a não dedução do imposto, nos termos dos n.º 2 e 6 do artigo 19.º, do mesmo Código, pois só confere direito à dedução o imposto mencionado em facturas ou documentos equivalentes passados em forma legal e que contenham os elementos previstos no artigo 36.º do Código do IVA.

 

16.          Em suma, para efeitos de facturação nos termos da alínea b) do n.º 5 do artigo 36.º do Código do IVA, a quantidade e denominação usual dos bens transmitidos ou serviços prestados, com especificação dos elementos necessários à determinação da taxa aplicável é um dos elementos a constar das referidas facturas, sob pena de não conferir direito à dedução do imposto nelas contido;

 

17.          Deste modo, é de considerar que as facturas sem menção da quantidade e designação concreta dos bens transaccionados são insuficientes para que se possa afirmar que os requisitos substantivos relativos ao direito à dedução do IVA se encontram satisfeitos.

 

18.          Não se colocou em causa, em nenhum momento, que as operações não configurassem transações reais ou respeitassem a negócios simulados ou falsos, aliás, e tal como referido no RIT no Capítulo IX – análise do direito de audição, se essa situação estivesse em causa, o procedimento inspetivo teria desencadeado um processo crime, ou teria sido efetuado a coberto de um.

 

19.          Assim, entendemos que as facturas, por não respeitarem todos os requisitos especificamente previstos na legislação, não servem de documento comprovativo para efeitos de dedução do imposto nelas contido.

 

Vejamos o que deve ser entendido.

 

Com vista a determinar-se se as facturas desconsideradas pela AT reúnem ou não os requisitos legais exigidos pelo n.º 5 do artigo 36.º, conjugado com o artigo 19.º, n.º 2 do Código do IVA, importa ter, então, presente que a AT não aceitou o IVA deduzido pela Requerente por considerar que as facturas relacionadas não indicam as quantidades dos bens concretamente transacionados/facturados, alegando-se que, por isso, não é possível verificar se os requisitos substantivos relativos ao direito à dedução se encontram satisfeitos.

 

Como é sabido, o IVA é um imposto geral sobre o consumo que visa tributar a utilização final de bens e serviços, ou seja, a sua utilização pelo consumidor final.

 

Sendo um imposto indirecto de matriz comunitária e plurifásico, o IVA atinge tendencialmente todo o acto de consumo, sendo o direito à dedução um elemento essencial do funcionamento do imposto, devendo garantir a sua principal característica – a neutralidade.

 

É jurisprudência constante do TJUE que, sendo o direito à dedução um elemento fundamental do regime de IVA, só é possível limitar este direito nos casos expressamente previstos pela Directiva IVA e, ainda assim, com respeito pelos princípios da proporcionalidade e da igualdade, não se podendo esvaziar o sistema comum do IVA do seu conteúdo.

 

Tal como se salienta no Acórdão BP Soupergaz, o chamado método subtractivo indirecto, das facturas, do crédito de imposto ou sistema dos pagamentos fracionados, é o mecanismo essencial de funcionamento deste tipo de imposto. Como se refere nas conclusões deste Acórdão, “(…) o direito à dedução previsto nos artigos 17.º e seguintes da Sexta Diretiva, que faz parte integrante do mecanismo do imposto sobre o valor acrescentado, não pode, em princípio, ser limitado e exerce-se imediatamente em relação à totalidade dos impostos que incidiram sobre as operações efetuadas a montante, tem incidência no nível do encargo fiscal e deve aplicar-se similarmente em todos os Estados-Membros, de modo que só são permitidas derrogações nos casos expressamente previstos pela diretiva.”

 

Mais se defende que “as disposições que preveem derrogações ao princípio do direito à dedução do IVA, que garante a neutralidade deste imposto são de interpretação restrita”  .

 

Por isso, o princípio da neutralidade do IVA exige que a dedução do imposto pago a montante seja concedida caso os requisitos substanciais tenham sido cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais. 

 

Neste contexto, de acordo com o TJUE, desde que a Administração Fiscal disponha dos dados necessários para determinar que o sujeito passivo, enquanto destinatário das operações, é devedor do IVA, não pode impor, no que diz respeito ao seu direito à dedução, condições adicionais que possam ter por efeito a inviabilização absoluta do exercício desse direito.  

 

Na realidade, o direito à dedução consubstancia-se como o elemento essencial do funcionamento do imposto, a “trave-mestra do sistema do imposto sobre o valor acrescentado”, assentando no designado método da dedução do imposto, método do crédito de imposto, método subtractivo indirecto ou ainda método das facturas.

 

De acordo com este método, e em conformidade com o disposto no artigo 19.º do Código do IVA, através de uma operação aritmética de subtracção, ao imposto apurado nas vendas e prestações de serviços (outputs) e identificável nas respectivas facturas, deduz-se o imposto suportado nas compras e outros gastos (inputs).

 

As regras do exercício do direito à dedução do imposto contemplam requisitos objectivos, mais ligados ao tipo de despesas, subjectivos, relativos ao sujeito passivo, e temporais, atinentes ao período em que é possível exercer o direito à dedução do IVA, os quais se devem verificar em simultâneo para se exercer o direito à dedução.

 

Como requisitos objectivos do exercício do direito à dedução do imposto temos, nomeadamente, o facto de o imposto suportado dever constar de factura passada na forma legal (artigo 36.º do Código do IVA), de se tratar de IVA português, e de a despesa, por si, conferir o direito à dedução do IVA (isto é, não se deve tratar de uma despesa excluída do direito à dedução, nos termos do disposto no artigo 21.º do Código do IVA).  Como requisitos subjectivos do exercício do direito à dedução do imposto determina-se, nomeadamente, que os bens e serviços deverão estar directamente relacionados com o exercício da actividade em causa.

 

A obrigação da factura base conter a “quantidade e denominação usual dos bens transmitidos com especificação dos elementos necessários à determinação da taxa aplicável”, em discussão, constitui um requisito objectivo ou formal do exercício do direito à dedução do IVA.

 

“O TJUE declarou que o princípio fundamental da neutralidade do IVA exige que a dedução deste imposto pago a montante seja concedida se os requisitos materiais estiverem cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais. Por conseguinte, quando a Administração Fiscal dispõe dos dados necessários para saber que os requisitos materiais foram cumpridos, não pode impor condições suplementares ao direito do sujeito passivo de dedução do imposto que possam ter por efeito eliminar esse direito (v., neste sentido, acórdãos de 21 de Outubro de 2010, Nidera Handelscompagnie, C-385/09, EU:C:2010:627, n.º 42; de 1 de março de 29012, Kopalnia Odkrywkowa Polski Trawertyn P. Granatowiccz, M. Wasiewicz, C-280/10, EU:C:2012:107, n.º 4; e de 9 de julho de 2015, Salomie e Oltean, C-183/14, EU:C2015:454, n.ºs 58, 59 e jurisprudência aí referida.”

 

Daqui resulta que a AT não pode recusar o direito à dedução do IVA pelo simples facto de a factura não preencher os requisitos exigidos pelo artigo 226.º, n.º 6 e 7, da Directiva IVA, se dispuser de todos os dados para verificar que os requisitos substantivos relativos a este direito se encontram satisfeitos - Cfr. Acórdão do TJUE, de 15 de setembro de 2016, no processo C-516/14 – Acórdão Barlis.

 

De facto, tem sido entendido que “ Não se poderá deixar de ter aqui em conta, por um lado a especificidade do IVA, que leva a que o mesmo intervenha em praticamente todas as transacções económicas que se concretizam no espaço europeu, pelo que, naturalmente, na concepção do respectivo regime legal se terá tido a preocupação de não criar formalismos, para lá dos estritamente necessário, que entorpeçam a operacionalidade e a capacidade de actuação dos agentes económicos. Para o que ora importa, esta preocupação reflectir-se-á, além do mais, na admissibilidade de que aqueles empreguem no descritivo das facturas, expressões que, identificando de uma forma genérica os bens ou serviços fornecidos, sejam suspectíveis de ser utilizadas repetitivamente, de modo a minimizar o trabalho burocrático (e, necessariamente entorpecedor da actividade económica) necessário ao cumprimento da obrigação tributária acessória que ora nos ocupa.”

 

No caso sub judice, constata-se que das facturas consta a data da transmissão dos bens, o tipo de bens transmitidos (madeira) e os adquirentes, assim como a menção genérica à venda de lotes/conjuntos de madeira. Mais se considera demonstrado (não tendo sido contestado pela AT) que no mercado de actuação da Requerente existem constrangimentos práticos à quantificação e denominação exacta da madeira adquirida. Neste contexto, conclui-se que a Requerente vendeu naquelas datas lotes/conjuntos de madeira de vários tipos, cujo preço foi, caso a caso, definido em função de várias variáveis, sendo as transacções identificadas como lotes/conjuntos de madeira.

 

Conforme resulta do Código do IVA, da Directiva IVA e da Jurisprudência do TJUE, a AT só poderia não aceitar o direito à dedução da Requerente caso demonstrasse, em concreto, em que termos a insuficiente descrição da quantidade e denominação exacta dos bens adquiridos impede a verificação das bases tributáveis e o pagamento do imposto devido.

 

Sucede que, não ficou demonstrado, em concreto, em que termos ficou a AT impedida de verificar as bases tributáveis ou o pagamento do imposto devido, nada sendo especificamente referido por referência a qualquer factura, transmissão ou mesmo em geral.

 

Também não colocou a AT em causa outros pressupostos para o exercício do direito à dedução, não foi levantada qualquer dúvida relativamente à realização efectiva das transmissões e correspondente pagamento dos bens subjacentes, não foi dado conhecimento do levantamento de qualquer auto de contra-ordenação tributária, nem se alega ou evidencia qualquer comportamento fraudulento por parte da Requerente.

 

Assim, atendendo a que “as disposições que preveem derrogações ao princípio do direito à dedução do IVA, que garante a neutralidade deste imposto são de interpretação restrita”   e considerando a especificidade do mercado da exploração florestal e os detalhes de actuação comercial revelados (e não contestados), a falta de contestação pela AT da veracidade das operações realizadas e a falta de indicação em concreto da impossibilidade de controlar os pagamentos em causa ou de aferir as bases tributáveis, entende-se que a Requerente tem direito à dedução do IVA.

 

De notar, no entanto, que tal entendimento não impede a AT no que respeita à indicação da quantidade e denominação exacta dos bens transmitidos de socorrer-se do Regime Geral das Contra-ordenações Tributárias, que prevê e sanciona a violação de formalidades legalmente impostas.

 

Em face do exposto, considera-se que a AT não pode recusar o direito à dedução de IVA pelo simples facto de entender que as facturas não cumprem os requisitos formais previstos, quando não demonstra que não se encontram verificados os requisitos substantivos relativos ao exercício desse direito, sendo, por isso, procedente o pedido de anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada pela Requerente.

 

IV. DECISÃO

Termos em que este Tribunal Arbitral decide julgar totalmente procedente o pedido de declaração de ilegalidade do indeferimento da reclamação graciosa identificada nos autos e actos tributários subjacentes, no valor de €24.898,39 (vinte e quatro mil, oitocentos e noventa e oito mil Euros e trinta e nove cêntimos).

 

V. VALOR DO PROCESSO

De harmonia com o disposto nos artigos 315.º n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de €24.898,39.

 

VI. CUSTAS

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em €1.530 (mil quinhentos e trinta Euros), conforme a Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

 

Lisboa, 12 de Junho de 2020

 

(Magda Feliciano)

(O texto da presente decisão foi elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, da alínea e) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT) regendo-se a sua redacção pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)