Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 192/2017-T
Data da decisão: 2018-01-31  IRC  
Valor do pedido: € 372.965,68
Tema: IRC – Tributações Autónomas - Dedução de pagamento especial por conta e benefício fiscal (SIFIDE).
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DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), João Taborda da Gama e Manuel Pires, designados no Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral:

 

 

I – RELATÓRIO

 

  1. No dia 22 de Março de 2017, A…, S.A., NIPC…, com sede no …, …, … … - … …, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, visando a declaração de ilegalidade do acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente que teve como objecto o acto de autoliquidação de IRC do Grupo Fiscal B… relativo ao exercício de 2011, na medida correspondente à não dedução à parte da colecta do IRC produzida pelas taxas de tributação autónoma de créditos apurados no âmbito do Sistema de Incentivos Fiscais à Investigação & Desenvolvimento Empresarial (SIFIDE) e do pagamento especial por conta efectuado em sede de IRC, e da decisão de indeferimento parcial do pedido de revisão oficiosa que teve aquele por objecto, no total de € 372.965,68.

 

  1. Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que o pagamento especial por conta e os benefícios fiscais do SIFIDE devem ser deduzidos à colecta de tributações autónomas porque: (i) podem ser deduzidas à colecta de IRC apurada nos termos do artigo 90.º do CIRC; (ii) a colecta das tributações autónomas é considerada como colecta do IRC, sendo aquelas parte integrante deste imposto; (iii) as regras de liquidação previstas no artigo 90.º do CIRC são aplicáveis às tributações autónomas e (iv) o entendimento da Requerente vai na linha da jurisprudência do CAAD que já se pronunciou sobre este tema.

Subsidiariamente, e para o caso de se entender que a liquidação das tributações autónomas não é efectuada ao abrigo do artigo 90.º/1 do CIRC aplicável, vem a Requerente pedir seja declarada a ilegalidade da liquidação das tributações autónomas (e seja consequentemente anulada) por ausência de base legal para a sua efectivação, com o consequente reembolso do montante de €654.474,79, e o pagamento de juros indemnizatórios contados desde 31 de Maio de 2012 quanto a €83.479,32 e desde 1 de Setembro de 2012 quanto aos remanescentes €595.058,00.

 

  1. No dia 23-03-2017, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

  1. A Requerente procedeu à nomeação de árbitro, tendo indicado o Exm.º Sr. Dr. João Taborda da Gama, nos termos do artigo 11.º/2 do RJAT. Nos termos do n.º 3 do mesmo artigo, a Requerida indicou como árbitro o Exm.º Sr. Professor Doutor Manuel Pires.

 

  1. Os árbitros indicados pelas partes foram nomeados e aceitaram os respectivos encargos. Nos termos do artigo 6.º, n.º 2, alínea b) do RJAT e do artigo 5.º do Regulamento de Seleção e de Designação de Árbitros em Matéria Tributária, foi nomeado para presidir a este Tribunal Arbitral o ora Relator, que, no prazo aplicável, também aceitou o encargo.

 

  1. Em 17-04-2017, as partes foram notificadas desta última designação, não tendo manifestado vontade de a recusar.

 

  1. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 16-06-2016.

 

  1. No dia 05-09-2017, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se quer por excepção quer por impugnação.

 

  1. À Requerente foi facultada a possibilidade de exercer o contraditório relativamente à matéria de excepção, o que fez por escrito.

 

  1. Atendendo a que no processo arbitral vigoram os princípios processuais gerais da economia processual e da proibição da prática de actos inúteis, ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º do RJAT, dispensou-se a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.

 

  1. Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.

 

  1. Foi fixado o prazo de 45 dias para a prolação de decisão final, após a apresentação de alegações da AT, prazo esse que foi prorrogado por mais 30 dias.

 

  1. Nos termos e para os efeitos do artigo 21.º/2 do RJAT, foi prorrogado o prazo a que alude o artigo 21.º do mesmo artigo, e dado cumprimento ao disposto no n.º 3 do artigo 11.º do Código Deontológico, na redação em vigor desde 02-10-2017.

 

  1. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 1, do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

  1. A Requerente era, em 2011, a sociedade dominante e responsável pela autoliquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“IRC”) do grupo fiscal (Grupo Fiscal B…) ao qual, no período de tributação de 2011, foi aplicável o Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (“RETGS”), e que era composto, no aludido período de tributação, por si e pelas sociedades:
    1. • C…, S.A. (actualmente designada, D…, S.A.);
    2. • E…, Lda;
    3. • F…, S.A.;
    4. • G…, S.A. (actualmente designada, H…, S.A.);
    5. • I…, S.A. (actualmente designada, K…, S.A.); e,
    6. • J…, S.A. (J…).
  2. Em 31 de Maio de 2012, a ora Requerente procedeu à apresentação da declaração de IRC Modelo 22 do seu Grupo Fiscal referente ao exercício de 2011, conforme Doc. n.º 1 que aqui se junta, de acordo com a qual foi apurada uma colecta de € 94.011,52, à qual foi deduzido, até à sua concorrência, o montante de crédito apurado no âmbito do Sistema de Incentivos Fiscais à Investigação & Desenvolvimento Empresarial (“SIFIDE”), e apurado um montante de imposto a pagar de € 83.479,32, tendo apurado um montante de tributações autónomas em IRC de € 678.537,32.
  3. Ao imposto resultante da aplicação das taxas de tributação autónoma em IRC o sistema informático da AT assinalou de divergências (“erros”) que impediram que a Requerente inscrevesse o valor relativo às referidas taxas de tributação autónoma em IRC, deduzido, dentro do montante resultante da aplicação destas taxas, (i) quer dos montantes de benefício fiscal reconhecido às empresas do grupo fiscal ao abrigo do SIFIDE3, (ii) quer dos montantes relativos ao pagamento especial por conta efectuado no exercício.
  4.  Daí resultou num excesso de imposto pago por referência ao exercício fiscal aqui em causa, bem como no não reembolso de um montante a que a requerente entendia ter direito.
  5. O montante de SIFIDE, atribuído/obtido, disponível para utilização no final do exercício de 2011 ascendia a € 397.781,32.
  6. Desse montante atribuído pela Comissão Certificadora do SIFIDE para o exercício de 2011, a parcela de € 94.011,52 foi deduzida até ao limite da colecta do período, aquando da autoliquidação relativa ao exercício de 2011, e a parcela de € 8.754,92, foi aceite como dedutível até ao limite do imposto apurado a título de derrama estadual nesse mesmo exercício, em resultado do deferimento parcial do pedido de revisão oficiosa.
  7. Em sede de pagamentos especiais por conta (PEC), subsistiu um montante acumulado por deduzir à colecta do IRC, no exercício de 2011, que ascende a € 77.950,00.
  8. A Requerente entendia, portanto, dispor de créditos para abate à colecta de IRC, e bem assim de PEC’s, no valor total de € 372.965,68, o qual é inferior à colecta da tributação autónoma em IRC do exercício de 2011, que ascendeu a € 678.537,32, sendo que esse abate à colecta das tributações autónomas em IRC não foi permitido pelo sistema informático da AT.
  9. A Requerente, oportunamente, apresentou um pedido de revisão oficiosa do acto tributário de autoliquidação de IRC do seu Grupo Fiscal referente ao exercício de 2011.
  10. Na sequência de apresentação do referido pedido de revisão oficiosa, a requerente foi notificada do seu deferimento parcial em 23-12-2016 nos termos do qual a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”) concordou com a dedução do SIFIDE até ao limite do valor apurado a título de derrama estadual, mas não com a dedução daquele benefício fiscal à colecta de tributações autónomas, nem com a dedução dos pagamentos especiais por conta à colecta de tributações autónomas.
  11. Na sua decisão, veio a AT aceitar que a colecta de derrama estadual, ao abrigo da informação n.º 929/2013 da DSIRC, deverá ser considerada como IRC “no cálculo das deduções a considerar na declaração de rendimentos, relativas aos benefícios fiscais”, pelo que seria de aceitar a dedução do SIFIDE até ao limite dessa colecta (€ 8.754,92).
  12. No que se refere à dedução da parcela remanescente de SIFIDE e bem assim do montante apurado e não deduzido a título de pagamentos especiais por conta efectuados nesse exercício, à colecta de tributação autónoma, veio a AT indeferir o pedido da requerente, considerando que “seria contrário ao espírito do sistema, permitir que, por força das deduções a que se refere o n.º 2 do artigo 90.º do CIRC, fosse retirado às tributações autónomas esse carácter anti-abuso que presidiu à sua implementação no sistema do IRC”.
  13. A AT não apurou o lucro tributável do Grupo Fiscal B… e respectivas sociedades por métodos indirectos.
  14. Nem a requerente, nem as empresas integrantes do grupo na origem do SIFIDE eram, no momento relevante, entidades devedoras ao Estado e à segurança social de quaisquer impostos ou contribuições.

 

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º,  n.º 7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

 

B. DO DIREITO

 

a. da matéria de excepção.

 

Previamente à discussão do mérito da causa, suscita a AT a questão da incompetência material do tribunal arbitral decorrente da circunstância do pedido de pronúncia arbitral ter sido formulado na sequência de indeferimento de pedido de revisão oficiosa.

Argumenta a Requerida, então, que o pedido de pronúncia arbitral sub judice vem formulado na sequência de indeferimento de pedido de revisão oficiosa de acto de autoliquidação de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC) relativo ao ano de 2010, em circunstâncias de tempo em que se mostrava já decorrido o prazo de reclamação graciosa a que alude o artigo 131º do CPPT, pelo que, atento o disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 4.º, n.º 1, ambos do RJAT, e nos artigos 1.º e 2.º, alínea a), ambos da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, verificar-se-á a incompetência material do presente Tribunal Arbitral para apreciar e decidir o pedido.

Fundamenta a AT o seu entendimento essencialmente no disposto no artigo 2.º/a) da Portaria 112.º-A/2011, de 22 de Março, que exclui dos litígios cognoscíveis pelos tribunais arbitrais em funcionamento no CAAD, as “pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário”.

            Entende a Requerida, face a este normativo, que o mesmo deve ser entendido na literalidade com que o lê, proscrevendo do âmbito da jurisdição arbitral tributária as pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação que não tenham sido precedidas de reclamação nos termos das referidas normas do CPPT.

            Toda a argumentação da Requerida na matéria, contudo, acaba por se reconduzir a sustentar que foi intenção do legislador restringir a competência da jurisdição arbitral tributária, no que ao conhecimento de ilegalidades de actos de autoliquidação diz respeito, unicamente às situações em que exista uma reclamação apresentada nos termos dos artigos 131.º a 133.º do CPPT, porquanto é isso que, na sua leitura, diz no texto da norma interpretada.

            Sempre ressalvado o respeito devido, não se descortina, de entre as razões oferecidas pela Requerida, uma razão substancial que explique a razoabilidade do entendimento que sustenta. Efectivamente, não se vislumbra qualquer razão substancial – e a Requerida nada apresenta nesse sentido – para que, atentos os condicionalismos e especificidades próprios de cada um dos meios graciosos em causa, nos mesmos termos em que os tribunais tributários estão vinculados, não seja cognoscível em sede arbitral a legalidade dos actos de autoliquidação objecto de pedido de revisão oficiosa, apresentado para lá do prazo de reclamação graciosa.

            Por outro lado, mesmo uma leitura literalística da norma em questão, desde que devidamente contextualizada, não conduz inexoravelmente ao resultado defendido pela Requerida nos autos.

            Com efeito, a expressão empregue pela norma da alínea a) do artigo 2.º da Portaria 112.º-A/2011, de 22 de Março é paralela à própria norma do artigo 131.º/1 do CPPT, o que deverá ser compreendido como uma concretização da assumida, e pacificamente reconhecida, intenção legislativa de que o processo arbitral tributário constitua um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial.

            A norma em causa deverá também ser entendida como explicando-se pela circunstância de, na sua ausência – e face ao teor do artigo 2.º do RJAT – se perfilar como possível a impugnação directa de actos de autoliquidação, sem precedência de pronúncia administrativa prévia.       

Ou seja, tendo em conta que face ao RJAT não se configurava como necessária qualquer intervenção administrativa prévia à impugnação arbitral de uma autoliquidação, o teor da Portaria deve ser interpretado como equiparando – nesta matéria – o processo arbitral tributário ao processo de impugnação judicial e não, como decorreria da posição sustentada pela Requerida, passar do 80 para o 8, pegando numa impugnabilidade mais ampla do que a possível nos Tribunais Tributários, e transmutando-a numa mais restrita.

            Assim, razão alguma se vê – e, uma vez mais, nenhum subsídio a Requerida dá nesse sentido – para que se interprete de forma diferente uma e outra norma, tanto mais que a letra da norma da Portaria 112.º-A/2011, de 22 de Março, acaba por ser menos restritiva que a do CPPT, na medida em que não integra a expressão “obrigatoriamente”, nem se refere a “reclamação graciosa” mas a “via administrativa”. Daí que seja possível uma leitura da própria letra da lei que se contenha no sentido de que apenas está afastado do âmbito da jurisdição arbitral tributária o conhecimento de pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa em termos compatíveis com os artigos 131.º a 133.º do CPPT, sendo certo que toda a jurisprudência dos Tribunais Tributários tem sido no sentido de que é compatível com as normas referidas a impugnação dos actos de autoliquidação em causa desde que precedidos de pedido de revisão oficiosa do acto tributário.

E é esta a leitura que se subscreve, na sequência do Acórdão proferido no processo 48/2012T do CAAD, e jurisprudência arbitral subsequente, bem como da doutrina que se tem formado[1], não se deslindando, na medida em que interpretação efectuada se contém na letra da lei, que daí possa decorrer a violação de qualquer preceito constitucional, maxime, dos indicados artigos 2.º, 3.º, n.º 2, 111.º e 266.º, n.º 2, todos da Constituição da República Portuguesa (CRP).

No mesmo sentido, veio a concluir o Ac. do TCA-Sul de 27-04-2017, proferido no processo 08599/15, citado pela Requerente, onde se lê, para além do mais, que “O artigo 2.º alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011 viabiliza a apresentação de pedidos de pronúncia arbitral relativamente a actos de autoliquidação que tenham sido precedidos de pedido de revisão oficiosa.”.

            Assim, e face a todo o exposto, não assistindo razão à Requerida nesta matéria, deve a excepção incompetência do Tribunal Arbitral ser julgada improcedente.

 

*

b. do fundo da causa.

            A questão principal decidenda nos presentes autos, sendo, sem dúvida, de alguma complexidade na sua resolução, é, todavia, simples na sua formulação, e prende-se como explicitamente formula a Requerente, em saber se tem ou não o Grupo Fiscal da Requerente o direito de proceder à dedução, também à colecta de IRC produzida pela aplicação das taxas de tributação autónoma, dos referidos créditos relativos a SIFIDE e pagamentos especiais por conta disponíveis.

            Subscreve-se, desde logo, integralmente a perspectiva de abordagem do problema colocado, formulada pela Requerente, quando refere que “Como ponto de partida, atendendo à função de sistema (de busca de equilíbrio), de ordenação, do direito” se deve tomar em conta na interpretação “sobre um ponto do sistema (...) o que foi decidido noutro ponto do sistema”, com a ressalva, igualmente formulada pela Requerente, de “que pode haver particularidades só relevantes a propósito do ponto do sistema em [questão], que imponham decisão diversa, justamente porque só desse modo a função de sistema ordenador (que cria ordem) do direito se realizará: tratar o diferente diferentemente.”.

            Divergindo da Requerente, julga-se, todavia, que o que está em causa decidir não é se “para efeitos de deduções à colecta de benefícios fiscais (as realidades em causa neste processo), a tributação autónoma não é IRC”, mas se o regime do IRC, encarado sob o ponto de vista sistemático de que se parte, e supra sumariado, aponta no sentido da dedutibilidade dos benefícios fiscais à colecta de IRC gerada pelas tributações autónomas.

            Daí que se conclua que “Se existir essa particularidade, nenhuma incoerência haverá do ponto de vista do sistema em decidir” pela não dedutibilidade dos benefícios fiscais à colecta de IRC gerada pelas tributações autónomas.

            A problemática subjacente às tributações autónomas, tem sido, nesta como noutras matérias, objecto de acirrado contencioso entre os contribuintes e a Autoridade Tributária, situação a que não será, de todo, estranha, a natureza própria, anti-sistémica até, de que aquelas se revestem, no quadro dos impostos sobre o rendimento, onde germinaram.

            Efectivamente, a discussão que deflagrou com as novas taxas de tributação autónoma introduzidas pela Lei n.º 64/2008, de 5 de Dezembro, e incidiu inicialmente sobre a natureza do facto tributário subjacente àquele tipo de tributação, abriu um percurso exploratório profundo sobre a natureza das tributações autónomas e da sua relação com os impostos sobre o rendimento, em especial o IRC, que passou pelas problemáticas da dedutibilidade do valor das tributações autónomas à colecta de IRC, e pela natureza, presuntiva, ou não, das tributações autónomas sobre despesas dedutíveis, sem que até à data tenha havido uma intervenção legislativa definitiva, doutrinalmente sustentada e coerente, no sentido de clarificar o devido enquadramento das tributações em causa, no edifício do imposto sobre rendimento de onde emergem, sucedendo-se, antes, intervenções legislativas desconexas e conjunturais, que em nada contribuem, pelo contrário, para a clarificação da natureza e função de tais tributações.

            Neste quadro, decisões jurisprudenciais casuísticas, sucedem-se a intervenções legislativas igualmente casuísticas, gerando um quadro de incerteza e instabilidade onde, contribuintes e Autoridade Tributária não têm outra via de procurar o Direito aplicável, que não a litigiosidade perpetuada, resvalando para o intérprete judicativo a ingrata tarefa de, no emaranhado normativo gerado, servir a Justiça possível.

Vejamos, então.

 

*

Quando se fala em tributações autónomas, como é o caso, é conveniente desde logo ter presente que está em causa um conjunto de situações díspares, que abrangerão, pelo menos, três tipos distintos, a saber:

  • Tributação autónoma de determinados rendimentos (ex.: artigo 72.º do actual CIRS, e, crê-se, a prevista no actual n.º 11 do artigo 88.º do CIRC);
  • Tributação autónoma de determinados encargos dedutíveis (ex.: n.º 7 do artigo 88.º do actual CIRC);
  • Tributação autónoma de outros encargos independentemente da respectiva dedutibilidade (ex.: números 1 e 2 do artigo 88.º do actual CIRC).

Sob um ponto de vista da funcionalidade/finalidade/fundamento das tributações autónomas sobre gastos (excluindo, portanto a tributação autónoma de rendimentos), têm, também sido surpreendidos vários tipos, como sejam:

  • o desincentivar de determinados comportamentos do contribuinte tendentes a estar associados a situações de fraude ou evasão fiscal, como acontece, por exemplo, com as tributações autónomas incidentes sobre despesas não documentadas, ou pagamentos a entidades sujeitas a regimes fiscais privilegiados;
  • o combate à erosão da base tributável, como acontece, em geral, com as tributações autónomas incidentes sobre despesas dedutíveis;
  • o desincentivar de determinados gastos de causação presumidamente não empresarial, como acontece com as tributações autónomas incidentes sobre gastos com viaturas, ajudas de custo, ou despesas de representação;
  • a tributação de distribuição encapotada de rendimentos a terceiros, não tributados na esfera destes (fringe benenfits), como acontece com as tributações autónomas incidentes sobre gastos com viaturas, ajudas de custo, ou despesas de representação;
  • a penalização pela realização de determinadas despesas, que não afectam a base tributável, nem tem subjacente qualquer distribuição não tributada de rendimentos a terceiros, ou potencial fraudulento ou evasivo, mas que o legislador, porventura, terá considerado luxuosas ou sumptuárias, como acontece com as tributações autónomas sobre determinados pagamentos a gestores, administradores ou gerentes (actual artigo 88.º/13 do CIRC), bem como a tributação autónoma sobre encargos com viaturas na medida em que exceda a taxa normal IRC.

Estes dados tornam-se importantes porque por si mesmos evidenciam a disparidade e heterogeneidade das situações sujeitas a tributações autónomas, e a inutilidade de, em sede jurisprudencial, sintetizar e procurar uma natureza jurídica própria e unitária, comum a todas as situações.

Deste modo, dever-se-á centrar a discussão na concreta questão colocada pela Requerente e procurar uma resposta, devidamente fundada, para os termos restritos daquilo que está em causa nos autos, que será então saber se é, ou não, possível a dedução à parte da colecta do IRC produzida pelas taxas de tributação autónoma, de pagamentos por conta e  benefícios fiscais, em sede de IRC, disponíveis.

Devidamente equacionada, nestes termos, a questão a solucionar nos autos, cumprirá ainda ter presente que o referente fundamental da resposta a dar àquela, será o formulado no artigo 9.º do Código Civil, segundo o qual deverá ser reconstituído, a partir dos textos, o pensamento legislativo, que tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

Neste quadro, o desiderato da presente decisão será, não o de teorizar sobre a natureza jurídica das tributações autónomas em geral, ou de qualquer dos seus vários tipos, mas antes o de apurar se o pensamento legislativo, com um mínimo de correspondência verbal na letra da lei, ainda que imperfeitamente expresso, era ou não, à data do facto tributário em questão nos autos, no sentido de ser possível  utilizar a dedução à parte da colecta do IRC produzida pelas taxas de tributação autónoma, de pagamentos por conta e incentivos fiscais, em sede de IRC, disponíveis.

Inútil será, julga-se, procurar uma base conceptualista, assente numa definição dogmática de conceitos monolíticos de IRC e de Tributações Autónomas, retirados de normação estranha à matéria decidenda, professando um “ontologismo escolástico” que procure “deduzir de forma puramente lógica, a partir de conceitos abstractos superiores, outros, cada vez mais concretos e plenos de conteúdo[2], metodologicamente ultrapassado.

Almejar-se-á, deste modo, apenas averiguar qual a solução que, face ao direito constituído, devidamente interpretado, se afigura caber ao caso concreto, não se tomando a resposta dada à questão decidenda como uma evidência acabada, exacta e com um grau extremo de rigor e exactidão, mas, meramente, como aquela que, reflexivamente, se apresentou aos seus subscritores como a, juridicamente, melhor[3].

 

*

            A base da pretensão da Requerente é literalmente simples e linear e resulta da constatação de que, fazendo-se a liquidação das tributações autónomas nos termos do artigo 90.º, n.º 1 do CIRC, a tal liquidação aplicar-se-ão as deduções previstas no seu n.º 2.

            Efectivamente é o seguinte, o teor dos normativos em causa:

“1 - A liquidação do IRC processa-se nos seguintes termos:

a) Quando a liquidação deva ser feita pelo sujeito passivo nas declarações a que se referem os artigos 120.º e 122.º, tem por base a matéria colectável que delas conste;

b) Na falta de apresentação da declaração a que se refere o artigo 120.º, a liquidação é efectuada até 30 de novembro do ano seguinte àquele a que respeita ou, no caso previsto no n.º 2 do referido artigo, até ao fim do 6.º mês seguinte ao do termo do prazo para apresentação da declaração aí mencionada e tem por base o valor anual da retribuição mínima mensal ou, quando superior, a totalidade da matéria colectável do exercício mais próximo que se encontre determinada;

c) Na falta de liquidação nos termos das alíneas anteriores, a mesma tem por base os elementos de que a administração fiscal disponha.

2 - Ao montante apurado nos termos do número anterior são efetuadas as seguintes deduções, pela ordem indicada:

a) A correspondente à dupla tributação internacional;

b) A relativa a benefícios fiscais;

c) A relativa ao pagamento especial por conta a que se refere o artigo 106.º;

d) A relativa a retenções na fonte não suscetíveis de compensação ou reembolso nos termos da legislação aplicável.”.

Convoca a Requerente em seu abono, assentando, no essencial, a sua argumentação no quanto ali se expende, em decisões proferidas em processos arbitrais do CAAD, por si elencadas[4] no ponto 16 das suas alegações, nomeadamente os processos n.º 769/2014-T, 219/2015-T, 369/2015-T, 370/2015-T, no sentido da procedência do pedido, e n.º 697/2014-T e 113/2015-T, no sentido da improcedência (decisões todas proferidas antes da LOE 2016) e processos n.º 637/2015-T, 673/2015-T, 740/2015-T, 749/2015-T, 784/2015-T, 5/2016-T, 31/2016-T, 360/2016-T, 530/2016-T, 630/2016-T, 576/2016-T, no sentido da procedência do pedido, e n.º 722/2015-T, 727/2015-T, 785/2015-T, 302/2016-T, 587/2016-T (decisões estas proferidas após a LOE 2016).

Sob um ponto de vista semântico-literal, aceite o pressuposto – que ora se aceita – de que a liquidação das tributações autónomas se faz nos termos do n.º 1 do artigo 90.º transcrito, nenhuma outro sentido é possível retirar da letra da lei, que não a apresentada pela Requerente, e por toda a jurisprudência arbitral em que se abona, sendo, nessa restrita perspectiva, irrefutável a conclusão condensada no seu pedido arbitral principal.

            Daí que a Requerente e as posições convergentes com a sustentada pela mesma, de um ponto de vista geral, não encetem qualquer esforço relevante no sentido de sistemático-axiologicamente validarem o seu entendimento (sendo que, quando tal ocorre, verifica-se sob um ponto de vista casuístico, ancorando-se, sobretudo, no tipo concreto de dedução à tributação autónoma que se pretende validar, ou em determinados tipos de daquela).

            Antes, tais posições dedicam-se, essencialmente, a refutar a argumentação que vai sendo apresentada em sentido oposto, fechando-se no linear entendimento, sintetizado pela Requerente (cfr. ponto 64 das alegações), no que ao caso diz respeito, no seguinte silogismo:

  1. O PEC é IRC, é adiantamento por conta do IRC e está previsto o seu abate à colecta do IRC;
  2. A tributação autónoma é IRC;
  3. Então o PEC pode ser abatido à colecta do IRC gerada pelas tributações autónomas.

            Sucede que a leitura jurídica, por impositivo legal (e também lógico-racional) não se cinge, nem deve cingir, ao texto das normas enquanto realidade semântico-gramatical, devendo antes colocar-se num plano axiológico-racional, ancorado em todos os elementos da interpretação jurídica.

            Daí que, em ordem a obter aquilo que seja a leitura correcta do texto, seja necessário realizar determinados testes a nível do edifício sistemático onde a norma interpretanda se enquadra, de modo a validar, face ao mesmo, e à luz dos critérios de racionalidade, congruência e razoabilidade que necessariamente norteiam aquela estrutura normativa, a interpretação literalmente sugerida.

            Assim, e desde logo, como muito bem aponta a entidade Requerida, “a liquidação das tributações autónomas é efectuada com base nos artigos 89.º e 90.º n.º 1 do Código do IRC mas, aplicando regras diferentes para o cálculo do imposto:

(1) num caso a liquidação opera, mediante a aplicação das taxas do artigo 87.º à matéria colectável apurada de acordo com as regras do capítulo III do Código e

(2) no outro caso, são apuradas diversas colectas consoante a diversidade dos factos que originam a tributação autónoma.”.

            Ou seja, a montante, não se pode descurar um primeiro dado relevante, que é o de que nos artigos 89.º e 90.º, n.º 1 do CIRC, converge a liquidação de duas formas de imposição, relativas ao mesmo imposto mas radicalmente distintas, a saber, o IRC tradicional, ou stricto sensu, e as tributações autónomas.

            E não se diga, como faz a Requerente, que “Aqui não está em causa saber que regras se aplicam ao processo a montante de apuramento da colecta primária, (...) que é a resultante da aplicação de uma dada taxa a uma dada matéria colectável em obediência a determinadas regras (distintas para o IRC de base, derrama estadual e tributações autónomas)”.

            Com efeito, dentro da perspectiva hermenêutica acolhida pela própria Requerente, “pode haver particularidades só relevantes a propósito do ponto do sistema em [questão], que imponham decisão diversa, justamente porque só desse modo a função de sistema ordenador (que cria ordem) do direito se realizará: tratar o diferente diferentemente.”.

            E é precisamente isto que está em causa: encarar o sistema no seu todo, de modo a realizar “a função de sistema ordenador (que cria ordem)”, o que só é possível, precisamente, considerando as particularidades próprias daquele quer a montante, quer a jusante.

            E tais particularidades, externalizadas nas “regras se aplicam ao processo a montante de apuramento da colecta primária”, tem, naturalmente, uma justificação e um fundamento que importa conhecer e valorar, em ordem a perceber os respectivos sentidos e função no sistema global em que se integram e assegurar, na medida do possível, a sua cabal realização.

            Ora a natureza das tributações autónomas, que justifica e decorre, justamente, dessas “regras se aplicam ao processo a montante de apuramento da colecta primária”, tem sido objecto de ampla discussão na doutrina e jurisprudência recentes.

            Uma corrente tem olhado para as mesmas como um imposto sobre a despesa, que tributaria determinados tipos de gastos, de uma forma totalmente desligada do rendimento, em termos de haver mesmo quem sustente que as mesmas constituem um tributo próprio, que apenas casualmente estaria integrado nos códigos do IRS e IRC.

            Não obstante, tem obtido acolhimento recorrente na jurisprudência do CAAD[5], o entendimento de que as tributações autónomas sobre encargos dedutíveis, integram, ainda, o regime dos impostos regulados pelos códigos onde se integram, visando, ainda que de uma forma enrevesada, o rendimento tributado por aqueles.

            Com efeito, e como se teve oportunidade de escrever noutra sede[6], “a complexidade gerada pelas sucessivas alterações na arquitetura do CIRC conduziram (...) a um edifício normativo atípico, no qual se poderá discernir um core correspondente ao que se poderá chamar IRC tout court (ou em sentido estrito), que a Requerente pretende que esgote tudo o que seja designado por IRC, e uma periferia que integra regulamentações “marginais”, subtraídas, em grande parte, à lógica, natureza e princípios do IRC tout court, mas que, não obstante, ainda se situam no “campo gravitacional” daquele.

            E é no processo de concretização desta zona de difícil definição que todas as decisões analisadas (...) operam, não podendo as mesmas ser devidamente compreendidas sem que se compreenda também que, de facto, o que todas as decisões em questão estão a fazer é apurar quais as consequências que a “gravitação” em torno do core do IRC aportam para as matérias em cada uma delas abordadas.”.

Nesse sentido, “dentro do quadro hermenêutico acima desenhado, (...) por força da evolução histórica do respetivo regime legal, se constituiu um tipo de IRC que integra um núcleo duro (...) e um grupo de normações adjacente, que comunga de parte da lógica e do regime daquele, mas que em muitos aspectos diverge dos mesmos.”. E, mais adiante, “da consideração do texto legislativo, estaticamente e na sua evolução histórica, resulta que o legislador entendia, e continua a entender, que as tributações autónomas integram o IRC, senão enquanto imposto stricto sensu, pelo menos em termos de fazerem parte do mesmo regime fiscal unitário”.

Isto porque “o regime legal das tributações autónomas em questão nos autos apenas faz sentido no contexto da tributação em sede de IRC. Ou seja, desligado do regime legal deste imposto, carecerão aquelas do seu principal referente de sentido. A sua existência, o seu propósito, a sua explicação, no fundo, a sua juridicidade, apenas é devidamente compreensível e aceitável no quadro do regime legal do IRC.”.

Daí que não “se entenda que “a definição de IRC constante dos artigos 1.º e 3.º do CIRC” esteja “realmente ultrapassada por uma nova definição de aplicação transversal/geral”, sendo essa uma postura epistemológica própria de um conceptualismo que, liminarmente, se repudiou.

Pelo contrário: trata-se do reconhecimento daquilo que, face ao quadro legal vigente, se impõe como o mais razoável: o abandono definitivo de qualquer definição de aplicação transversal/geral de IRC, e o reconhecimento do regime deste como uma realidade complexa e multifacetada, irredutível a uma definição daquela índole, que apenas um conceptualismo fundamentalisticamente abstracionista poderá pressupor.”.

            Por isso, “Tudo aquilo que se tem vindo a dizer evidencia que a evolução do regime legal do IRC transmutou-o numa realidade complexa e multifacetada, aos mais diversos níveis, que se reflete, na matéria que nos ocupa nestes autos, na tal “natureza dual” de que falava o Prof. Saldanha Sanches na passagem citada no Acórdão 617/2012 do TC.

O reconhecimento desta dualidade de natureza não prejudica, contudo, como se entende estar subjacente quer à citação em causa quer à jurisprudência que a cita, que se considere que o sistema, apesar de dual, seja o mesmo[7]. Dito de outro modo, apenas faz sentido falar-se de um sistema dual, se o sistema em questão, globalmente considerado, for, ainda, o mesmo. Caso contrário falar-se-ia não de um sistema de natureza dual, mas de dois sistemas distintos, o que, por tudo o que se vem dizendo, não será o que ocorre. E, in casu, o sistema será o regime do IRC, que operando ora pelo lucro, ora pelos gastos, visa e prossegue as finalidades próprias daquele imposto, incluindo, evidentemente, a arrecadação de receita para o Estado.”.

            Por fim, “Em jeito de conclusão, face a tudo o que se vem de expor, e em favor de um rigor conceptual, dir-se-á ainda que se pende para o entendimento de que as tributações autónomas, tal como existem actualmente, se poderão configurar como um imposto “híbrido”[8], incidindo sobre o rendimento das pessoas singulares e das pessoas colectivas, e não sobre o consumo ou a despesa, pois não apresentarão as principais características desta forma de tributação”.

            O quanto vem de se dizer, ecoa, de alguma forma, na jurisprudência que vem sendo produzida pelo Tribunal Constitucional (TC), como acontece com o Acórdão 197/2016, de 13-04-2016[9].

            Com efeito, reconhecendo o TC que a matéria das tributações autónomas é “regulada normativamente em sede de imposto sobre o rendimento”, confirma o mesmo Tribunal que a mesma “é materialmente distinta da tributação em IRC”, e que “estamos (...) perante factos tributários distintos e que são objeto de um tratamento fiscal diferenciado”, indo mesmo ao ponto de afirmar que “o IRC e a tributação autónoma são impostos distintos” e que aquela tributação “nada tem a ver com a tributação do rendimento e os lucros”, afirmações que terão de ser lidas, julga-se, cum grano salis, enquadrando-as nas limitações que as contextualizam, reportando-as à existência de uma “base de incidência” consistente em “certas despesas que constituem factos tributários autónomos”, e na “sujeição a taxas específicas”, compreendendo-se assim que a tributação autónoma “nada tem a ver com a tributação do rendimento e os lucros imputáveis ao exercício económico da empresa” (o que não quer dizer que seja alheia ao rendimento e lucros em geral), e que a distinção entre a tributação autónoma e o IRC, sendo profunda e vincada, se deve cingir ao necessário para salvaguardar a especificidade daquela ao nível da respectiva teleologia, base de incidência e taxas específicas, sem prejudicar a integração no mesmo edifício normativo.

            Efectivamente, crê-se, não estará o TC a defender que a tributação autónoma constitui um imposto sobre a despesa stricto sensu, completamente alheio e distinto do IRC, sob pena de, não só ser desmentido pela sistemática da lei fiscal[10] e, expressamente, pelo próprio legislador[11], como também de condenar irremediavelmente as tributações autónomas a uma inconstitucionalidade formal, por violação do disposto na al. i) do artigo 165.º, n.º 1 da CRP[12], na medida em que as leis autorizativas da criação daquelas não licenciaram a criação de um novo imposto sobre a despesa[13].

            Como, com mestria, sintetiza a Requerente, terá presente o TC que a tributação autónoma será, pelo menos, uma tributação compensatória de IRC que, por o ser, é IRC (sem sentido amplo) também

            Não obstante, e sem prejuízo do que vem de se expor, não se poderá, na apreciação da matéria em causa, desprezar a (enfaticamente afirmada pelo TC) profunda distinção formal e teleológica entre a tributação autónoma em IRC e a tributação geral neste imposto (IRC stricto sensu).

            Em suma: já anteriormente se detectou, por um lado, a futilidade de procurar um conceito unitário de IRC que acomode, coerentemente, o regime das tributações autónomas, e que, por outro, a via metodologicamente mais profícua de gerar soluções juridicamente adequadas para a problemática em causa passa por compreender o regime do IRC actual como produto de uma evolução historicamente explicada que conduziu à edificação de uma estrutura de natureza dual ou híbrida, compreendendo um núcleo principal correspondente ao IRC tradicional, e uma parte adjacente, conexionada com aquele e fazendo parte da mesma realidade normativa global, com especificidades próprias das quais resulta um afastamento, em vários e substanciais aspectos, do regime principal, em termos de os princípios e soluções gerais, não obstante, por vezes, se aplicarem, por outras vezes, serem contraditórios, e como tal, inaplicáveis, com a natureza própria dessa tal “normação adjacente” que se consubstancia nas designadas tributações autónomas.

            Sendo que, como é já consabido, essa natureza própria, ou específica, assente numa lógica estranha ao edifício principal do IRC tradicional, se caracterizará, essencialmente, pelas notas sobejamente reconhecidas como próprias às tributações autónomas, designadamente, quer quanto à sua forma de imposição (o carácter instantâneo do respectivo facto tributário e a circunstância de este consistir num gasto), quer quanto à sua ratio anti-sistemática (o facto de algumas das tributações autónomas terem uma vertente dirigida directamente para o rendimento de pessoas singulares e/ou uma vertente sancionatória, bem como uma finalidade antiabuso).

            Aqui se chega, crê-se, à percepção da falácia semântica que se encerra no silogismo atrás exposto, em que assenta a posição pugnada pela Requerente e aquelas que a sustentam.

            Com efeito, é verdade que:

  1. O PEC é IRC, é adiantamento por conta do IRC e está previsto o seu abate à colecta do IRC;
  2. A tributação autónoma é IRC;
  3. Então o PEC pode ser abatido à colecta do IRC gerada pelas tributações autónomas.

Contudo, como se vem de expor, considera-se[14] que a integração das tributações autónomas no IRC apenas é viável num contexto que reconheça naquele um sistema com uma natureza dual, que se poderá por comodidade designar por IRC em sentido amplo, integrando um sistema base correspondente ao IRC tradicional, ou stricto sensu, e um sistema periférico, autónomo, que fazendo ainda parte do mesmo sistema global, tem especificidades e funcionais e axiológicas próprias, das quais decorre o afastamento da aplicação das normas próprias daquele sistema base, sempre que tal se justifique à luz da coerência do próprio sistema (das razões que justificam a sua autonomia).

Ora, o silogismo formulado, à luz do entendimento que se expôs, tem a sua coerência lógica minada pela desconsideração do que vem de se apontar já que o conceito de IRC, utilizado nas respectivas premissas, não é o mesmo.

Dito de outro modo, sim, o PEC é IRC, é adiantamento por conta do IRC e está previsto o seu abate à colecta do IRC, mas é (integra, faz parte do) IRC stricto sensu, do sistema de tributação do rendimento das pessoas colectivas pensado, desenhado e executado à margem da teleologia e natureza própria das tributações autónomas.

E sim, a tributação autónoma é IRC, mas apenas em sentido lato, constituindo um sistema periférico da tributação do rendimento das pessoas colectivas, com teleologia e uma mecânica própria, que justificam, em determinadas situações, a sua autonomia, em relação ao referido sistema de IRC stricto sensu.

Daí que não sendo – repete-se, à luz do entendimento que se expôs – o conceito de IRC o mesmo em ambas as premissas (a primeira premissa valida-se no sistema de IRC stricto sensu, e a segundo no sistema de IRC em sentido lato) fica comprometida a validade lógica do silogismo apresentado, não decorrendo daí, obviamente, a falsidade da conclusão mas, unicamente, a aptidão das premissas em causa para sustentar a sua validade.

            Assim, e concluindo aqui, não se poderá, crê-se, na senda da solução a obter para a questão decidenda, obliterar que, não obstante convergirem, efectivamente, na forma de liquidação regulada nos artigos 89.º e 90.º, n.º 1 do CIRC aplicável, as tributações autónomas e o IRC stricto sensu (ou tradicional), provêm as mesmas, a montante, de geografias profundamente distintas, facto que não poderá deixar de ser devidamente ponderado e tido em conta, nas soluções a encontrar a jusante, designadamente, e para o que ao caso interessa, no que diz respeito à leitura a fazer da norma do artigo 90.º, n.º 2 do referido Código.

 

*

            Prosseguindo a senda interpretativa em curso para jusante, passar-se-á a aferir das decorrências da limitação daquele processo hermenêutico à camada literal do objecto interpretativo em análise.

            Como acertadamente aponta a entidade Requerida na sua resposta, o entendimento, proposto pela Requerente, segundo o qual da falta de distinção, ao nível do texto do n.º 1 do artigo 90.º do CIRC aplicável decorre que, a nível de tal norma, não se deverá fazer qualquer distinção tendo em conta as diferenças, a montante, do imposto que naqueles termos, é liquidado, implicaria que na base de cálculo dos pagamentos por conta devidos em IRC, se incluíssem, também, os valores relativos às tributações autónomas, e não apenas os relativos ao IRC stricto sensu.

            Com efeito, dispõe o n.º 1 do art.º 105.º do Código do IRC, que: “Os pagamentos por conta são calculados com base no imposto liquidado nos termos do n.º 1 do art.º 90.º (…)”.

            Ora, entendendo-se que o teor normativo do artigo 90.º, n.º 1 do CIRC em questão veda qualquer distinção, para efeitos de outras normas que para o mesmo remetam, entre o imposto liquidado a título de tributação autónoma e o imposto liquidado a título de IRC stricto sensu, ter-se-ia, coerentemente e nos mesmos termos, de concluir que os pagamentos por conta seriam devidos em função da soma de ambos os valores, sendo que tal solução não poderá – crê-se – ter-se por conforme ao espírito de um legislador razoável.

            Efectivamente – e não sendo os pagamentos por conta thema decidendum do presente processo – sem que se justifique grande profundidade nesta análise, sempre se dirá que aquele tipo de pagamentos, conforme é doutrinal e jurisprudencialmente reconhecido, têm por base uma intenção de adiantamento da tributação que será devida a final, atendendo ao lucro tributável do ano anterior.

            Neste sentido, por exemplo, escreveu-se no Ac. do STA de 07-03-2007, proferido no processo 0877/06[15], que (sublinhado nosso):

“Da definição legal de “pagamento por conta” retira-se uma imbricação inevitável, necessária e essencial entre “pagamento por conta” e “imposto devido a final”.

Por modo tal que o “título” (palavra da lei) do “pagamento por conta” é o “imposto devido a final”.

O que significa que o “pagamento por conta” é, nos próprios termos da lei, uma entrega pecuniária antecipada, feita, por conta do imposto devido a final, no período de formação do facto tributário.

O que significa, ainda, que o “pagamento por conta” tem de ser aferido com referência à situação contabilística da empresa no fim do período a que se refere o pagamento por conta.

O que decididamente quer dizer que, se nenhuma quantia pecuniária houver de ser (antecipadamente) entregue por conta do imposto devido a final, no concernente período de formação do facto tributário (a que se refere o “pagamento por conta”) – mormente por inexistência de lucro tributável revelado pela contabilidade, a esse tempo –, aquele “pagamento por conta” não tem fundamento substantivo.(...)

E, assim, se não houver lucro tributável, não há imposto devido.”.

            Ora, (pelo menos algumas) das tributações autónomas, conforme também noutra sede se indicou já[16], não incidem directamente sobre o rendimento, fazendo-o de uma forma meramente mediata, sendo essa a justificação para, não obstante as mesmas integrarem o regime do IRC lato sensu, operarem pela via da despesa e, consequentemente, serem devidas ainda que o sujeito passivo não apresente lucro tributável.

            Assim sendo, como se crê que é, será destituído de sentido que aos contribuintes que não apresentem lucro tributável, se exija pagamento por conta com base em imposto liquidado sobre despesas que realizou e que foram objecto de tributação autónoma.

Isto mesmo é corroborado pela natureza distinta do facto tributário subjacente ao IRC stricto sensu e às tributações autónomas. Com efeito, sendo o primeiro um facto tributário de natureza continuada e o segundo um facto tributário de natureza instantânea, apenas relativamente ao primeiro poderá fazer sentido divisar um adiantamento de imposto (pagamento por conta), e já não quanto ao segundo cuja prática gera, imediatamente, uma obrigação de imposto[17].

Todavia, e voltando agora ao caso concreto, a mesma leitura literal em que assenta, essencialmente, a pretensão da Requerente, conduziria, crê-se, inelutavelmente, a que, por identidade de razão, se houvesse de considerar que, para efeitos do n.º 1 do art.º 105.º do Código do IRC, a colecta da IRC a considerar incluísse a colecta das tributações autónomas, já que aquela norma dispõe (tão lapidarmente como o artigo 90.º/2 do CIRC) que: “Os pagamentos por conta são calculados com base no imposto liquidado nos termos do n.º 1 do art.º 90.º (…)”.

            Ora, não estando tal em causa no caso sub iudice, pode-se especular que, seguramente, se, em coerência, a Requerente tivesse considerado que para efeitos do referido artigo 105.º/1 do CIRC aplicável se incluía a colecta das tributações autónomas, não deixaria de chamar a atenção para o facto de o ter feito[18], ou seja, de ter calculado pagamentos por conta que suportou (cfr. p. 2 e ss. do doc. 5 junto com o Requerimento inicial) com base, também, naquela colecta, salientando a consequente injustiça que seria ter estado a suportar tais pagamentos, considerando que o artigo 105.º/1 do CIRC abrangia a colecta de tributações autónomas, e não se interpretasse, paralelamente, o artigo 90.º/2 do mesmo diploma, da mesma forma, sendo que relativamente a esta matéria, a Requerente limita-se a considerar que será “irrelevante o que tem sido ou deixado de ser a prática comandada pela AT”, não negando (nem confirmando, é certo, que tem seguido tal prática).

            Sendo – evidentemente – este um argumento inultrapassavelmente especulativo, e, como tal insusceptível de servir de base, de per si, a soluções juridicamente fundadas, tal não obsta a que seja um factor de ponderação, evidenciador, por um lado, da instabilidade estrutural da inserção das tributações autónomas em IRC, tal como foi operada, e, por outro, da interligação normativa e da abrangência de perspectiva sistemática imprescindível à valoração das soluções propostas para o problema jurídico a decidir.

            Está, assim, aqui em causa, não a ponderação de uma “prática comandada pela AT”, mas, uma vez mais, dentro da perspectiva hermenêutica acolhida pela própria Requerente, verificar se existem “particularidades só relevantes a propósito do ponto do sistema em [questão], que imponham decisão diversa, justamente porque só desse modo a função de sistema ordenador (que cria ordem) do direito se realizará: tratar o diferente diferentemente.”, ou seja, realizar “a função de sistema ordenador (que cria ordem)”, considerando as particularidades próprias daquele, quer a montante, quer, agora e no caso, a jusante.

            Com efeito, entende-se que sob uma perspectiva sistemática, a posição que se adopte relativamente à matéria decidenda, pelo menos se no sentido pugnado pela Requerente, e adoptado pela jurisprudência que sustenta aquela, não pode deixar de ter reflexo na posição que se adopte relativamente à interpretação do referido artigo 105.º/1 do CIRC, já que, como atrás se apontou, a literalidade dos regimes é, precisamente, a mesma.

            Assim, deste ponto de vista haverá que ponderar, independentemente do que tenha sido a prática quer da AT quer da Requerente, não só se faz sentido que a norma do artigo 105.º/1 do CIRC imponha que a colecta das tributações autónomas entre no cômputo do cálculo dos pagamentos por conta, como a circunstância, atrás apontada, de o STA se ter já pronunciado no sentido de que perante a “inexistência de lucro tributável (...[o]...) “pagamento por conta” não tem fundamento substantivo”.

 

*

            No percurso hermenêutico em curso, haverá igualmente que considerar a norma do n.º 5 do artigo 90.º do CIRC aplicável em questão, que dispõe que:

“As deduções referidas no n.º 2 respeitantes a entidades a que seja aplicável o regime de transparência fiscal estabelecido no artigo 6.º são imputadas aos respectivos sócios ou membros nos termos estabelecidos no n.º 3 desse artigo e deduzidas ao montante apurado com base na matéria colectável que tenha tido em consideração a imputação prevista no mesmo artigo”.

            Esta norma remete directamente para o artigo 6.º do mesmo Código, que prescreve, no que para o caso releva, que:

“1 - É imputada aos sócios, integrando-se, nos termos da legislação que for aplicável, no seu rendimento tributável para efeitos de IRS ou IRC, consoante o caso, a matéria colectável, determinada nos termos deste Código, das sociedades a seguir indicadas, com sede ou direcção efectiva em território português, ainda que não tenha havido distribuição de lucros:

a) Sociedades civis não constituídas sob forma comercial;

b) Sociedades de profissionais;

c) Sociedades de simples administração de bens, cuja maioria do capital social pertença, directa ou indirectamente, durante mais de 183 dias do exercício social, a um grupo familiar, ou cujo capital social pertença, em qualquer dia do exercício social, a um número de sócios não superior a cinco e nenhum deles seja pessoa colectiva de direito público.(...)

3 - A imputação a que se referem os números anteriores é feita aos sócios ou membros nos termos que resultarem do acto constitutivo das entidades aí mencionadas ou, na falta de elementos, em partes iguais.”

            Fundamental no enquadramento desta questão é ainda o teor do artigo 12.º do mesmo Código, que refere que:

“As sociedades e outras entidades a que, nos termos do artigo 6.º, seja aplicável o regime de transparência fiscal não são tributadas em IRC, salvo quanto às tributações autónomas.”.

            Não sendo, também, o tema das entidades sujeitas a regime de transparência fiscal objecto da presente causa, sinteticamente sempre se dirá, desde logo, que da leitura literal em que assenta a pretensão da Requerente, ou seja, de que as tributações autónomas integram, sem limitações e para todos os efeitos, a colecta de IRC, sempre resultaria uma de duas situações, igualmente inaceitáveis, a saber:

  • que as entidades a que se refere o art.º 6.º, n.º 1 do CIRC, se vissem obrigadas a suportar duplamente os encargos com tributações autónomas: (i) uma vez na esfera da sociedade, nos termos do artigo 12.º do CIRC, que expressamente o prevê, e (ii) outra vez nos termos conjugados dos n.ºs 1 e 3 do artigo 6.º do CIRC, que impõe que a “a matéria coletável, determinada nos termos deste Código” relativamente a tais entidades é imputada aos sócios;
  • ou que, assim, não sendo, ou seja, se por via de algum tipo de interpretação se restringisse a expressão “matéria coletável, determinada nos termos deste Código”, dela expurgando as tributações autónomas, da conjugação das supra transcritas normas do n.º 5 do artigo 90.º, do artigo 6.º e do artigo 12.º, com a interpretação sustentada pela Requerente para o n.º 1 do artigo 90.º, resultaria que os sujeitos passivos de IRC sujeitos ao regime de transparência fiscal estariam impedidos, por via do referido artigo 90.º, n.º 5, de deduzir aos montantes liquidados a título de tributação autónoma, as deduções previstas no n.º 2 do mesmo artigo, uma vez que estes últimos montantes seriam suportados pela sociedade, enquanto as deduções seriam apenas facultadas aos sócios, discriminando-se assim injustificadamente os sujeitos passivos de IRC sujeitos ao regime de transparência fiscal, dos restantes, que, na tese da Requerente, teriam a faculdade de fazer operar as deduções previstas no n.º 2 do artigo 90.º, aos montantes liquidados, nos termos do n.º 1 do mesmo artigo, a título de tributação autónoma.

Sendo certo que, como afirma a Requerente, “as sociedades fiscalmente transparentes são uma situação atípica em sede de IRC, são sociedades justamente não sujeitas a IRC sobre o lucro/rendimento, mas sujeitas a IRC em sede de tributações autónomas.”, não se pode deixar de notar não só que, por um lado, as tributações autónomas são, elas próprias também, uma situação atípica em sede de impostos sobre o rendimento (incluindo o IRC), como que, por outro, acaba a Requerente por evidenciar a supra-referida e desenvolvida dualidade do IRC (“são sociedades justamente não sujeitas a IRC sobre o lucro/rendimento [IRC stricto sensu], mas sujeitas a IRC em sede de tributações autónomas [IRC lato sensu]”).

Uma vez mais, estamos aqui numa perspectiva de ponderação das implicações (das “ondas de choque”) no edifício normativo do IRC, das interpretações propostas para a(s) norma(s) aplicáveis à situação sub iudice, não se tratando, evidentemente, de um argumento estruturante, mas antes acessório, da solução que se venha a desenhar.

 

*

            Aqui chegados, cumpre explorar um pouco mais os limites da literalidade das normas no epicentro do presente litígio – o artigo 90.º, n.º 1 e 2 do CIRC aplicável – e das repercussões da mesma no quadro mais amplo da relação entre o IRC tradicional, e as tributações autónomas nesse imposto.

            Conforme acima se expôs já, no conjunto das tributações autónomas, ainda que restrito às que integram o regime do IRC em sentido amplo, convergem várias situações de origem e teleologia díspares.

            Assim, sinteticamente e a título de exemplo, encontram-se tributações autónomas que visam, isolada ou concomitantemente, desincentivar determinados comportamentos economicamente desvaliosos (ex.: remunerações excessivas a gestores), tributar os chamados fringe benefits (ajudas de custo; despesas com viaturas), mitigar a repercussão fiscal de despesas de empresarialidade integral duvidosa (idem), desincentivar comportamentos com elevado potencial de fraude (pagamentos a entidades sujeitas a regime fiscal claramente mais favorável) ou penalizar comportamentos que fomentam a chamada economia paralela (tributação das despesas confidenciais), ou que são tidos pelo legislador como sumptuários.

            A literalidade da interpretação proposta pela Requerente miscigena, nas estreitas vistas da letra da lei, todas aquelas situações – porquanto todas elas se liquidarão nos termos do artigo 90.º, n.º 1 do CIRC aplicável, daí decorrendo, necessariamente, que à colecta de todas elas, se aplicará a solução propugnada pela Requerente, ou seja, a todas elas – sem excepção perceptível nem, muito menos justificada ou, sequer, tanto quanto se concebe, justificável – seriam aplicáveis todas as deduções previstas no n.º 2 do artigo 90.º do CIRC em questão.

            Ora, já atrás, e em outras ocasiões, se apontou a vã glória de fechar, num conceito substantivo unitário, todas as tributações autónomas, mesmo as que apenas ocorrem no âmbito do IRC, atenta a sua disparidade teleológica e funcional. E, aqui, emerge uma das principais fragilidades do edifício argumentativo onde reside a posição da Requerente, subjacente também à jurisprudência arbitral por si citada: a de assentar num postulado de unicidade de IRC e de tributações autónomas, tomando o todo pela parte que, concretamente, integra a matéria decidenda, por um lado, e numa valoração exclusiva do tipo de dedução prevista no n.º 2 do artigo 90.º do CIRC aplicável, que concretamente está em causa no caso sub iudice.

            Ou seja: a posição sustentada pela Requerente, bem como aquelas que a corroboram, não cuidam em momento algum de enquadrar as valorações por si efectuadas e de validar a aplicação da interpretação por si proposta à integralidade das tributações autónomas e das deduções previstas no n.º 2 do artigo 90.º aplicável, bem como de valorar as implicações da aplicação da tese em questão, a todas as deduções possíveis a todas as colectas de todas as tributações autónomas abstractamente abrangidas por tal tese, para além de como se apontou já, se absterem de apreciar, numa perspectiva mais ampla, as consequências sistemáticas do acolhimento da leitura essencialmente literal que propõem para a conjugação das normas do n.º 1 e 2 do artigo 90.º do CIRC.

            A fenda no edifício fundamentador da posição da Requerente, bem como daquelas que a sustentam, abre-se assim, face a esta constatação, em duas direcções distintas: (i) por um lado, a leitura proposta pela Requerente para a norma do artigo 90.º, n.º 2 do CIRC aplicável, não distingue, nem permite distinguir, entre tributações autónomas relativas a encargos dedutíveis[19] e outros tipos de tributação autónoma; (ii) por outro lado, da matéria de facto provada não resulta que as tributações autónomas em causa nos presentes autos não respeitem a tipos distintos de tributações autónomas, como por exemplo, tributações autónomas relativas a despesas não documentadas, a bónus e outras remunerações variáveis de gestores, administradores ou gerentes, ou a pagamentos a entidades sujeitas a um regime fiscal claramente mais favorável.

            Sintetizando com palavras da Requerente, a corrente em que esta se insere, sustenta que a tributação autónoma “comunga do objectivo, finalidade, espírito do IRC de assegurar a tributação do rendimento real”, afirmação que não é, manifestamente, válida para todos os tipos de tributação autónoma.

Com efeito, como se poderá afirmar, por exemplo, que a tributação autónoma em 70%, constante do n.º 2 do artigo 88.º, e mesmo a de 50% prevista no n.º 1, visa “assegurar a tributação do rendimento real”? O mesmo se diga, de forma igual, senão mais, evidente, relativamente à tributação autónoma de 35% (que poderá ascender aos 45% nos termos do n.º 14), previstas no n.º 13 do mesmo artigo 88.º.

            Daqui resulta, então, que toda a argumentação apresentada pela Requerente, e pelo essencial da jurisprudência arbitral que a sustenta, relativamente à natureza das tributações autónomas, enquanto tributadoras ainda de rendimento das entidades sujeitas àquela, é insuficiente para a decisão da matéria sub iudice, porquanto, não se demonstra sequer que estejam exclusivamente em causa tributações autónomas onde se reconheçam as características em que aquela argumentação assenta.

            O edifício argumentativo apresentado pela Requerente em abono da sua pretensão, abriga em si, assim, o potencial de acoitar pretensões, em que se vise proceder a deduções nos termos do n.º 2 do artigo 90.º do CIRC aplicável, a tributações autónomas relativamente às quais não é válida a consideração da natureza das tributações autónomas, enquanto tributadoras ainda de rendimento das entidades sujeitas àquela, como as referidas, relativas a despesas confidenciais, pagamentos a entidades sujeitas a regimes fiscais privilegiados ou relativas a compensações por gestão.

            Ora, este tipo de resultado, não se poderá ter como querido por um legislador razoável, face a toda a sistemática do IRC em sentido amplo, incluindo as tributações autónomas. Efectivamente, não será sustentável que, tendo indo onde, juridicamente, o legislador do CIRC foi, tendo em vista, por exemplo, ao combate à economia paralela ou as transacções com os chamados (incorrectamente[20]) “paraísos fiscais”, fosse sua intenção que a respectiva carga de tributação autónoma, pudesse ser aligeirada por meio das deduções previstas no n.º 2 do artigo 90.º do CIRC.

 

*

            Não se quedará por aqui, contudo, a entropia sistemática gerada pela posição que a Requerente pretende fazer valer nos autos.

            Efectivamente, e mesmo restringindo a questão às tributações autónomas sobre encargos dedutíveis em IRC, tal posição redundaria numa directa violação do princípio da igualdade.

            Com efeito,  como toda a jurisprudência abundantemente citada pelas partes denota, as tributações autónomas relativas a encargos dedutíveis tem subjacente uma presunção de “empresarialidade parcial” ou não integral. Ou seja, tais despesas conterão, presumivelmente, uma finalidade empresarial, que consente a sua dedução, mas com tal finalidade concorrerão outras, que, se fossem exclusivas, arredariam a sua dedutibilidade[21].

            Tal carácter presuntivo, justificará que quando o contribuinte logre ilidir a referida presunção, as despesas mantenham o seu carácter dedutível, sem sujeição a tributação autónoma[22].

            Ora, neste campo restrito das tributações autónomas sobre despesas dedutíveis, a posição sustentada pela Requerente redundaria numa desigualdade qualificada (na medida em que mais que tratar como igual o desigual, ou o desigual como igual, trataria o desigual como desigual, na medida inversa da desigualdade), já que numa situação em que um contribuinte declarasse encargos dedutíveis que normalmente seriam sujeitos a tributação autónoma, mas que, em concreto, não o fossem por não se verificarem os pressupostos materiais desta (ou seja, por elisão da presunção subjacente), como foi o caso, por exemplo, da situação em causa no processo arbitral 628/2014-T[23], e em que esse mesmo contribuinte apresentasse prejuízo fiscal, não poderia proceder a qualquer dedução, nos termos do artigo 90.º, n.º 2 do CIRC, ao passo  que um outro contribuinte, na mesma situação (prejuízo fiscal), mas que assumisse (implícita ou explicitamente), o carácter parcialmente empresarial do mesmo tipo de encargos, ficando, por isso, onerado com a correspondente tributação autónoma, poderia, na tese subjacente à posição da Requerente, lançar mão das deduções previstas naquele mesmo artigo.

            Ou seja, e em suma: entre dois contribuintes em situação distinta perante o sistema fiscal de IRC, um que incorresse em gastos de índole integralmente empresarial, e outro que incorresse nos mesmos gastos mas para fins (real ou presumidamente) parcialmente estranhos à empresarialidade, o segundo obteria do sistema fiscal, na matéria que nos ocupa, um tratamento mais benévolo, por via de um comportamento menos conforme à teleologia daquele.

Sendo verdade que o princípio da igualdade jurídica e fiscal não é um princípio absoluto, pois admite situações de discrímen, também é verdade que estas situações devem corresponder a discriminações fundadas em valores institucionalizados, genericamente aceites e acolhidos na ordem de valores instituída.

Ora, no caso, em que duas empresas na situação supra descrita se encontram objectivamente em situação diferenciada e que deviam, por isso, merecer um tratamento fiscal diferenciado, no sentido da diferença, ocorre, face à tese subjacente à posição da Requerente, justamente o contrário.

 

*

            Dentro dos tópicos decisórios a considerar, caberá também fazer uma menção à entrada em vigor da nova redacção do n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, introduzido pela Lei que aprovou o Orçamento do Estado para 2016 (Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março), que veio dizer que:

A liquidação das tributações autónomas em IRC é efectuada nos termos previstos do artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado.

            Esta norma, é objecto do artigo 135.º da referida Lei que aprovou o OE de 2016, que refere que:

A redação dada pela presente lei ao n.º 6 do artigo 51.º, ao n.º 15 do artigo 83.º, ao n.º 1 do artigo 84.º, aos n.ºs 20 e 21 do artigo 88.º e ao n.º 8 do artigo 117.º do Código do IRC tem natureza interpretativa.”.

            Como é consabido, colocou-se a questão sobre se o n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, introduzido pelo OE 2016, tem (como a própria lei o diz), ou não, natureza interpretativa., bem como da constitucionalidade de tal natureza, sendo que tais questões ficaram ultrapassadas pelo Acórdão do Tribunal Constitucional que julgou inconstitucional o referido artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março.

            Não obstante, a alteração legislativa em questão, continua a ter interesse para a matéria ora em causa, já que como refere a Requerente, “o legislador em sede de LOE 2016 optou por afastar a aplicação de parte do disposto no artigo 90.º do Código do IRC para a colecta do IRC, à colecta da tributação autónoma em IRC”, confirmando que não existe qualquer obstáculo conceptual ou de princípio a que, por via interpretativa, se chegue a esse mesmo resultado.

            De resto, do próprio Código do IRC, na redacção vigente à data dos factos tributários, resultava já que o regime desse imposto pressupunha tal diferenciação ao nível do referido artigo 90.º, no sentido de que à colecta de tributações autónomas não era admissível, por princípio, qualquer dedução, resultando tal do disposto do n.º 12 do artigo 88.º, introduzido pelo Decreto-Lei n.º 192/2005, de 7/11, que dispõe que:

“Ao montante do imposto determinado, de acordo com o disposto no número anterior, é deduzido o imposto que eventualmente tenha sido retido na fonte, não podendo nesse caso o imposto retido ser deduzido ao abrigo do n.º 2 do artigo 90.º.”.

            A referida norma, ao dispor que ao montante de imposto resultante da tributação autónoma, nas situações previstas no n.º 11, de 25% sobre os lucros distribuídos por entidades sujeitas a IRC a sujeitos passivos que beneficiam de isenção, pode ser deduzido o imposto que eventualmente tenha sido retido na fonte, terá, salvo melhor entendimento, implícito o entendimento que, por regra, à colecta de tributações autónomas, não eram admissíveis deduções, designadamente as previstas no artigo 90.º/2 do CIRC, que previa já a possibilidade da dedução das retenções na fonte à colecta de IRC a que se referia o n.º 1 da mesma norma.

            Ou seja: se, como defende a Requerente e a jurisprudência em que se sustenta, já resultasse da conjugação dos n.ºs 1 e 2 do artigo 90.º do CIRC que as retenções na fonte eram dedutíveis à colecta de tributações autónomas, incluindo a prevista no referido n.º 11, a norma do referido n.º 12 do artigo 88.º, na parte em que permitia justamente tal dedução, era uma norma inútil, nada mais fazendo do que reafirmar, sem qualquer sentido, a regra geral.

            Mais: a norma em questão, do n.º 12 do artigo 88, introduzido pelo Decreto-Lei n.º 192/2005, de 7/11, faz questão de afirmar que, caso seja operada a dedução das retenções na fonte ali em causa à tributação autónoma, não poderá “o imposto retido ser deduzido ao abrigo do n.º 2 do artigo 90.º.”, evidenciando, crê-se, de forma suficientemente perceptível, que as deduções possíveis ao abrigo daquele referido artigo 90.º/2 não eram já aplicáveis à colecta resultante das tributações autónomas.

            Efectivamente, a 2.ª parte da norma do n.º 12.º do artigo 88.º em análise visa evitar uma duplicação de dedução das retenções na fonte por ela abrangidas, o que só faz sentido se se perspectivar, como se verá infra, que da aplicação da norma do artigo 90.º/1 do CIRC não resulta – ao contrário do que sustenta a Requerente – uma colecta monolítica de IRC, mas que a referida cisão entre a colecta das tributações autónomas em IRC e a colecta geral do IRC se mantinha naquela norma, e que o artigo 90.º/2 apenas se aplicava a esta última, e não àquela.

            A não ser assim, também esta segunda parte do artigo 88.º/12 do CIRC careceria por completo de sentido, já que se, no âmbito do artigo 90.º/1 do CIRC, a colecta das tributações autónomas em IRC se fundisse numa só colecta de IRC, como pretende a Requerente e defende a jurisprudência em que se louva, seria evidente que nunca poderia haver dupla dedução de retenções na fonte a uma mesma, e única, colecta.

            Ou seja, e em suma, a opção do legislador, apontada pela Requerente, de “em sede de LOE 2016 (...) afastar a aplicação de parte do disposto no artigo 90.º do Código do IRC para a colecta do IRC, à colecta da tributação autónoma em IRC”, estava já implícita no Código de tal imposto, ao nível do artigo 88.º/12, do qual resultava já, nos termos expostos que:

  • por norma, a colecta das tributações autónomas não admitia deduções; e
  • o artigo 90.º/2 do CIRC não era aplicável à colecta das tributações autónomas.

 

*

            Sumariando o quanto atrás se veio dizendo, verifica-se, desde logo, que a interpretação sustentada pela Requerente assenta, essencialmente, no teor literal das normas dos n.ºs 1 e 2 do artigo 90.º do CIRC aplicável, não se descortinando nenhum fundamento substancial que justifique a solução em causa, tanto mais que os argumentos em que assenta tal posição restringem-se, essencialmente, às tributações autónomas de encargos dedutíveis e às deduções concretamente em causa (benefício SIFIDE e pagamento especial por conta) sendo que, por um lado, nada se prova a respeito de, no caso concreto, estarem em causa apenas tributações autónomas daquele tipo (e não de outros), e, por outro, da interpretação proposta sempre decorreria que todas as deduções previstas no artigo 90.º, n.º 2 do CIRC em causa se fariam a todos os tipos de tributação autónomas, incluindo, por exemplo, as relativas a pagamentos a entidades sujeitas a regimes de tributação claramente mais favoráveis, as relativas a despesas confidenciais ou as compensações a gerentes, e nenhum dos argumentos substanciais em que assenta a posição da Requerente permite justificar que tal aconteça.

            Por outro lado, como se viu, se é certo que o artigo 90.º, n.º 1 do CIRC em questão não distingue entre a liquidação de tributações autónomas e a liquidação de IRC tradicional ou stricto sensu (sobre o lucro tributável), a verdade é que, a montante, o procedimento e a natureza dos dois tipos de imposição tributária é substancialmente distinto, como se viu e conforme a jurisprudência constitucional na matéria dá abundante conta, situação à qual não se poderá, julga-se, deixar de atender na matéria sub iudice.

            Acresce que, como também se viu, a ratificação da interpretação que sustenta o petitório da Requerente, seria, a jusante, geradora de assinalável turbulência no edifício normativo do IRC, designadamente no que diz respeito aos regimes do pagamento especial por conta, e das sociedades sujeitas ao regime de transparência fiscal.

            Acresce ainda que, como se analisou também, a atinência à literalidade do preceitos do artigo 90.º, n.º 1 e 2, propugnada pela Requerente, redundaria – crê-se – num atropelo ao princípio da igualdade tributária, para além do mais, constitucionalmente imposto.

            Por fim, e como se acabou atrás de ver, ao nível do artigo 88.º/12 do CIRC aplicável, resultava já, nos termos expostos que:

  • por norma, a colecta das tributações autónomas não admitia deduções; e
  • o artigo 90.º/2 do CIRC não era aplicável à colecta das tributações autónomas.

            Por tudo isto, julga-se que na estrita conjugação do texto das duas normas, o legislador disse mais do que aquilo que queria, situação que, de resto, resultou não de descuido coevo da redacção de tais normas, mas, antes, da evolução histórica do regime normativo do IRC e, concretamente, da paulatina introdução naquele do regime relativo às tributações autónomas, sem que o mesmo se reflectisse, coerentemente, no teor do artigo 90.º, n. 2 do mesmo Código.

            Este desacerto, aliás, é patente na norma do n.º 21.º do artigo 88.º do CIRC, introduzido pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, que dispondo que não “efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado” de tributações autónomas, não ressalva o n.º 12 do mesmo artigo que prevê, precisamente, a possibilidade de deduções à tributação autónoma a que se refere.

            Estamos, assim, perante uma situação descrita pelo Ilustre Mestre Prof. Doutor Baptista Machado, em que: “Por vezes, embora raramente, será preciso ir mais além e sacrificar, em obediência ainda ao pensamento legislativo, parte de uma fórmula normativa, ou até a totalidade da norma. Trata-se de fórmulas legislativas abortadas ou de verdadeiros lapsos. Quando a fórmula normativa é tão mal inspirada que nem sequer alude com clareza mínima às hipóteses que pretende abranger e, tomada à letra, abrange outras que decididamente não estão no espírito da lei, poderá falar-se de interpretação correctiva. O intérprete recorrerá a tal forma de interpretação, é claro, apenas quando só por essa via seja possível alcançar o fim visado pelo legislador.[24].

            Com efeito, a fórmula normativa do artigo 90.º, n.º 2 do CIRC aplicável, tomada à letra, como faz a Requerente, abrange hipóteses, como se viu, que decididamente não estão no espírito da lei nem são conformes às especificidades e natureza próprias das diversas tributações autónomas. No caso, como se referiu já, não por má inspiração da própria norma, mas das sucessivas reformas que historicamente foram introduzindo as tributações autónomas em IRC, sem que as mesmas se reflectissem, correspondentemente, na redacção do artigo 90.º, n.º 2 de tal Código.

            Por outro lado, sistematicamente encarada, tal fórmula, reduzida à sua literalidade, e geradora de graves e inultrapassáveis incoerências, como se viu, para além de, como se viu, o CIRC aplicável ter já, na norma do n.º 12 do artigo 88.º, evidencias literais de que a norma do artigo 90.º/2 do mesmo Código não seria, por regra, aplicável à colecta de tributações autónomas, realizada no n.º 1 do artigo.

            Deste modo, tendo em conta a compreensão racional, histórica e sistemática da norma em questão, torna-se forçoso interpretar correctivamente a norma do artigo 90.º, n.º 2 do CIRC aplicável, de modo a restringir a remissão que faz para o n.º 1 da mesma norma, na referência que faz “Ao montante apurado nos termos do número anterior”, limitando-a ao montante da colecta de IRC calculada mediante a aplicação das taxas do artigo 87.º à matéria colectável apurada de acordo com as regras do capítulo III do Código, e já não aos montantes apurados a título de tributações autónomas, assim se devolvendo à norma o seu sentido original, que era o que correspondia à sua redacção textual antes da introdução das tributações autónomas no CIRC.

            Admite-se, que se possa questionar a bondade da opção legislativa referida, implícita até à introdução do n.º 21.º do artigo 88.º do CIRC pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, e a partir daí explícita, no que diz respeito à inadmissibilidade de outros tipos de dedução, para além da prevista no n.º 12.º do mesmo artigo 88.º, à colecta de outros tipos de tributação autónoma. Não obstante, julga-se que tal opção, agora expressa no referido artigo 88.º/21 do CIRC, se contém ainda dentro do espaço de discricionariedade legislativa, não ofendendo o conteúdo fundamental de qualquer preceito constitucional ao caso convocável.

            Face ao exposto, e julgando-se que, face ao direito aplicável ao facto tributário em questão na presente acção arbitral, não era admissível a dedução nos termos do n.º 2 do artigo 90.º do CIRC à colecta de tributações autónomas efectuada nos termos do n.º 1 do mesmo artigo, deverá o pedido arbitral improceder.

 

*

            Note-se, a terminar, que a fundamentação da presente decisão, e a base da defesa da AT em sede arbitral, não coincidem integralmente com a fundamentação do acto de decisão do pedido de revisão oficiosa apresentada pela Requerente.

            Tal não é, ressalvado o respeito devido a outras opiniões, no caso, motivo para anulação de tal acto.

            Com efeito, e desde logo, tem-se pacificamente entendido, também, que:

Em matéria de direito, o tribunal não está sujeito à alegação das partes, nem sequer no que respeita à qualificação jurídica dos factos por elas efectuada, e goza de liberdade na indagação, interpretação e aplicação do Direito (art. 664.º do CPC).[25].

            Por outro lado, e como também tem sido jurisprudência:

Apesar das implicações que a declaração de fundamentação possa eventualmente ter na substância da decisão, há que distinguir a vertente formal, aquela que interessa no cumprimento do imperativo da fundamentação, da vertente material, que na estrutura do acto respeita sobretudo à existência dos pressupostos reais que suportam a decisão de fundo.

            Ou seja, a fundamentação formal, impressa no cumprimento do imperativo de fundamentação, pode estar certa ou errada, contendendo apenas com a validade do acto se, e na medida, em que cristaliza os pressupostos de facto e de direito daquele e estes sejam desconformes à lei, consubstanciando-se num erro de facto e/ou de direito.

            Acresce que o artigo 2.º do RJAT, toma como referente da competência dos tribunais arbitrais, os actos primários (“actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta”), sendo os actos secundários unicamente relevantes como referentes da tempestividade da pretensão impugnatória, como resulta do artigo 10.º, n.º  1, al. a) daquele Regime, onde se impõe que os pedidos de constituição de tribunal arbitral sejam apresentados no prazo de 90 dias, contado a partir dos factos previstos nos n.º 1 e 2 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

            Daí que, em primeira linha, se esteja no presente processo a sindicar a legalidade do acto de autoliquidação de IRC da Requerente (objecto directo da competência dos tribunais arbitrais), sendo a legalidade do acto secundário de revisão oficiosa – cuja função principal é garantir a tempestividade da Requerente para a impugnação arbitral do acto primário – meramente reflexa ou derivada da legalidade daquele.

Assim, a eventual anulação do acto de decisão do pedido de revisão oficiosa, por fundamentação errada, quando – como é o caso – se conclui pela não verificação das ilegalidades arguidas ao acto primário, sempre redundaria num acto inútil, e como tal proibido, já que, vinculada pelo caso julgado, a Autoridade Tributária não mais faria no novo acto que obrigatoriamente, confirmar o decidido em sede jurisdicional, o que de resto tem reflexo no regime do n.º 6 do artigo 163.º do novo CPA, que se tem por aplicável nesse caso.

 

***

            A Requerente formula ainda o pedido subsidiário para o caso de se entender que a liquidação das tributações autónomas não é efectuada ao abrigo do artigo 90.º/1 do CIRC aplicável, pedindo que seja declarada a ilegalidade da liquidação das tributações autónomas (e seja consequentemente anulada) por ausência de base legal para a sua efectivação, com o consequente reembolso do montante de €654.474,79, e o pagamento de juros indemnizatórios contados desde 31 de Maio de 2012 quanto a €83.479,32 e desde 1 de Setembro de 2012 quanto aos remanescentes €595.058,00.

            Como atrás se viu, julga-se que a liquidação das tributações autónomas foi, como continua a ser, efectuada ao abrigo do artigo 90.º/1 do CIRC aplicável, pelo que deverá igualmente improceder o pedido subsidiário.

 

***

 

C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar improcedentes os pedidos arbitrais formulados e, em consequência, manter os actos tributários objecto da presente acção arbitral e condenar a Requerente nas custas do processo, abaixo fixadas, tendo-se em conta o já pago.

 

D. VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em € 372.965,68, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. CUSTAS

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 24.000,00, nos termos da Tabela II do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente.

 

Notifique-se.

 

Lisboa 31 de Janeiro de 2018

 

 

O Árbitro Presidente

 

 

(José Pedro Carvalho)

 

 

 

 

O Árbitro Vogal

 

 

(João Taborda da Gama –

vencido, quanto à questão de mérito, nos termos e com os fundamentos das decisões anteriormente por mim subscritas, nomeadamente quanto ao mesmo sujeito passivo, nos processos 193/2017-T e 216/2017-T”)

 

 

O Árbitro Vogal

 

 

(Manuel Pires –

vencido quanto à matéria de excepção, conforme declaração de voto)

 

 

 

 

 

 

 

Declaração de voto

1.  Votei vencido por entender verificar-se a incompetência material do tribunal arbitral. O art. 1.º do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, estabeleceu “a arbitragem como meio alternativo de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária”. No entanto, “a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituído nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos” (art. 4º nº1 do citado Decreto-Lei). Daí não corresponder à lei a simples opção entre aderir ou não, genérica e abstractamente, à arbitragem, mas sim aderir a algo com limitações admissíveis. Em conformidade, na Portaria nº 112-A/2013, de 22 de Maio, estabeleceu-se a vinculação da agora AT à jurisdição dos tribunais arbitrais (artigos 1º e 2º proémios) “com excepção das (…) pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamentos por conta, que não tenham sido precedidos de recurso de via administrativa nos termos dos artigos 131º a 133º do Código de Procedimento e de Processo Tributário” [citado artigo 2º alínea a)]. A adesão, pois “a este mecanismo de resolução alternativa de litígios “foi” nos termos e condições aqui [na citada portaria] estabelecidos, atendendo à especificidade e valor das matérias em causa”, não se podendo, assim, invocar, sem mais, a plenitude do carácter alternativo da arbitragem com a impugnação, visto terem sido permitidas e estabelecidas limitações a que se tem necessariamente de atender, qualquer que seja a natureza atribuída à portaria, até pela sua relevância redobrada, no caso, por, não obstante ser excepção a apreciação do agora em causa, opera-se o retorno à possibilidade da competência, cumprindo-se algo que, sem ele, estaria fora do campo da arbitragem, isto é, está-se perante uma excepção à excepção. A limitação no caso sob julgamento, é a precedência da reclamação graciosa e não “o recurso à via administrativa” em geral referido, mas imediatamente limitado. De outro modo porque se acrescentou algo ao recurso a tal via? Seria uma inutilidade. E é porque existe especificidade e não generalidade que não é aceitável a ideia de que o desejado foi qualquer tipo de apreciação prévia pela Administração de algo, por ela não ainda considerado, a ser submetido a entidade fora do seu âmbito, e não é aceitável porque houve especificidade estabelecida pela norma, houve limitação da via a utilizar. Aliás, a limitação é ainda mais ostensiva quando a lei de autorização da arbitragem refere no âmbito das possibilidades do objecto do processo, os “actos de indeferimento total ou parcial de reclamações graciosas ou de pedidos de revisão de actos tributários, os actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação”, redacção muito mais ampla do que a acolhida finalmente. É certo estarem ultrapassados desde há muito os brocardos in claris non fit interpretativo ou ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus, mas a extensão da letra da lei, o que ocorreria no caso, só é admissível por razões claras e determinantes, o que não ocorre, visto nem sequer haver quaisquer razões, atento a reclamação graciosa e a revisão (oficiosa) constituírem procedimentos diversos quer pela iniciativa (artigos 68º do CPPT e 78º da LGT), quer pelos objectivos (idem), quer pelos prazos (artigos 70º do CPPT e 78º da LGT) quer pelo decisor (artigos 75º do CPPT, 78.º da LGT e 6º n.º 4 do Decreto-lei nº 433/99), quer pelos efeitos (artigos 68º do CPPT e 79º da LGT), sendo relevantes, no caso em apreciação, os prazos e o decisor, sendo, portanto, totalmente forçada a respetiva equiparação que não pode ser ditada por uma identidade de possibilidade de apreciação prévia por parte da AT. Portanto, não é indiferente o recurso a qualquer das duas vias, não se tratando obviamente de se exigir s correspondente cumulação, visto o legislador ter optado apenas por uma: a reclamação graciosa. Como resultado do que se escreveu, não é admissível, seria mesmo incongruente que a lei incluísse implicitamente a perfeita equiparação, tendo em mente a interpretação conforme a jurisprudência no âmbito da impugnação judicial cuja disposição relevante – artigo 131º do CPPT , aliás, não refere a via a seguir a “recurso à via administrativa”, como na portaria que acolheu redacção com função explicito-limitativa. Portanto, não basta, para sustentar a opinião contrária, a remissão para o artigo 131º do CPPT. Não existe, pois, razão, para se desconhecer a reserva formulada, ferindo com esse desconhecimento, a liberdade e a opção feita, liberdade e opção que legal e claramente conduziram a uma restrição do processo arbitral face à impugnação, ao seu carácter alternativo, liberdade reconhecida pelo decreto-lei e simplesmente concretizada pela portaria, daí não se poder imputar a esta ilegalidade de qualquer grau. O contrário seria a ampliação da vinculação limitada que claramente foi permitida, vinculação não existente no caso da impugnação, limitação que poderia até ter sido mais ampla, dado o disposto no decreto-lei sob referência, e que, com o carácter acolhido, não impossibilita “a arbitragem como meio alternativo da resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária”, visto ser possível a arbitragem, o que antes não sucedia, não sendo igualmente invocável a negação do princípio do acesso ao direito e do direito do contribuinte à tutela jurisdicional efectiva, unicamente porque não lhe foi concedida a escolha que pode existir noutros domínios mas não neste, pelos motivos aqui amplamente referenciados. Também não pode, pois, ser considerado violado o artigo 78.º da LGT, por apenas não se ter admitido, no caso, a via nele estabelecida, tendo, porém, sido admitida outra, não existindo algo que o impeça. Ainda invocar uma não concordância do género de palavra (“precedidos” em vez de “precedidas”, porque referida a pretensões) como algo probatório da falta de rigor na redacção do preceito sob análise, conduzindo a outra “deficiência” que seria a oposição da reclamação à via administrativa em geral, aposição que, segundo a mesma opinião, seria desnecessária, é algo que, pela comparação feita, não envolve comentário prolongado, atento os dois casos serem qualitativamente bem diversos. A exigência é clara, não existe qualquer imperfeição, não esquecendo que “na fixação do sentido e do alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador considerou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (artigo 9º nº 3 do CC). No sentido sustentado, afigura-se que o Conselheiro Jorge Lopes de Sousa ensinou em 2011: “de harmonia com o disposto no art. 2.º, alínea a), da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de março, relativamente a atos de autoliquidação, a Administração Tributária apenas se vinculou a jurisdição dos tribunais arbitrais se o pedido de declaração de ilegalidade tiver sido precedido de recurso à via administrativa, isto é, de reclamação graciosa. Por isso, se o sujeito passivo pretender apresentar um pedido de declaração de ilegalidade perante um tribunal arbitral, a reclamação graciosa será sempre necessária” (Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, 6ª edição, 2011, II volume, pág. 409; cfr. para outros tipos de casos, págs. 430 e 428). E não se diga também, por reflectir pensamento outrora em voga e não o pensamento esclarecido actual, que a solução objecto de dissenso tem uma função garantística, visto a liquidação de impostos ter natureza agressiva ou mesmo fortemente agressiva e para apoio da nossa divergência não é necessário recorrer a Murphy e Nagel com o seu The Myth of Ownershipthe taxes and justice. Nestes termos, deveria ser decidida a incompetência material deste tribunal arbitral para apreciar o presente caso, julgando procedente a invocada excepção, não devendo, pois, conhecer o mérito do pedido. E não se diga, utilizando o sentido usual, estar-se perante vox clamantis in deserto.(cfr.  acórdãos nos Processos n.ºs 51/2012-T, 236/2013T e 603/2014-T.

2. Considerando que o Tribunal Arbitral concluiu, por maioria, pela respectiva competência e atento o carácter imperante da obediência ao princípio da tutela jurisdicional efectiva, na sua dimensão da não denegação de justiça (artigo 20º da Constituição da República Portuguesa) bem conforme às minhas declarações de voto nos Processos 216/2017-T e 193/2017-T, considero apropriada a decisão de mérito que subscrevo.

 

(Manuel Pires)

 

 

 



[1] Cfr., neste sentido, Carla Castelo Trindade, “Regime Jurídico da Arbitragem Tributária - Anotado”, Almeida, 2016, pp. 96 e ss.

[2] Arthur Kaufman, “Filosofia do Direito”, 3.ª Edição, Fundação Calouste Gulbenkian, p. 44.

[3]É precisamente nas argumentações pedantemente exactas, pensadas com um grau extremo de rigor e exactidão, que temos frequentemente a impressão de que algo, de alguma forma, não faz sentido.”; idem, p. 89.

[4] Elenco não exaustivo. Relacionadas com a problemática, poderão, por exemplo, ser ainda citadas as decisões dos processos arbitrais n.º 174/2016-T, 122/2016-T, 34/2016-T, 567/2016-T, 65/2017-T, 99/2017-T.

[5] Cfr., p. ex., decisões dos processos 187/2013-T, 209/2013-T, 246/2013-T, 260/2013-T, 292/2013-T, 37/2014-T, 94/2014-T e 242/2014-T.

[6] Cfr. por todos a decisão arbitral do processo 94/2014-T, disponível em www.caad.org.pt.

[7] Daí a referência a um IRC em sentido estrito/amplo, reflexo da tal dualidade.

[8] Integrando, o tal sistema de natureza dual, já acima aludido.

[10] Cfr., por exemplo, que em sede de IRS a tributação autónoma apenas é devida pelos contribuintes que possuam ou devam possuir contabilidade organizada (artigo 73.º, n.º 2), e já não pelos que optem pelo regime simplificado. Naturalmente que se a tributação autónoma fosse estritamente um imposto sobre a despesa, completamente alheio e distinto do impostos sobre o rendimento onde se insere, nada justificaria que os contribuintes empresariais singulares, sujeitos ao regime simplificado, não vissem as suas despesas tributadas autonomamente.

[11] Cfr. os artigos 12.º, 23.º-A, n.º 1, al. a) e 88.º, n.º 21, todos do CIRC actual, e de onde resulta expressamente que o IRC inclui as tributações autónomas.

[12]É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo:(...) i) Criação de impostos” (sublinhado nosso).

[13] Cfr., por todas, a pioneira Lei 101/89, de 29-12, que, no n.º 3 do seu artigo 25.º, autorizou o Governo a “tributar autonomamente em IRS e IRC”, e não a criar um novo imposto, sobre a despesa.

[14] E, como se viu, tal entendimento estava foi já sustentado ao fundamentar o entendimento que veio a vingar, jurisprudencial (e não apenas ao nível da jurisprudência arbitral: cfr., nesse sentido Acs. do STA de 06-04-2016 e de 27-09-2017, proferidos, respectivamente, nos processos 01613/15 e 0146/16) e legalmente, de que a colecta da tributação autónoma não entra como custo no apuramento do lucro tributável porque é IRC/colecta de IRC.

[15] Disponível em www.dgsi.pt.

[16](...) estar-se-á sempre em última análise a ter em vista um rendimento, presente ou futuro, que o legislador tolera tributar menos (por força da consideração do gasto deduzido), em troca de uma tributação imediata, aquando da realização do gasto, visando então, nesta perspectiva, as tributações autónomas a que nos referimos, ainda que mediatamente, o rendimento do sujeito passivo.

Tais tributações serão, sob este ponto de vista, uma forma (enrevesada, é certo) de, indirectamente e através da despesa, tributar, ainda, o rendimento (efectivo ou potencial/futuro) das pessoas colectivas.” (cfr. p. arbitral  94/2016-T, já citado).

[17] Não se corroborando, assim, que, como afirma a Requerente, que “Do ponto de vista conceptual e de texto legal, nada, sendo a tributação autónoma IRC, se opõe a que também esta grandeza (que constitui parcela cada vez maior do IRC) seja paga faseada e antecipadamente em prestações (pagamento por conta).”. Com efeito, o pagamento por conta de tributação autónoma, apenas seria verdadeiramente pagamento por conta quanto à tributação autónoma que fosse devida por despesas ainda não incorridas. Relativamente a estas, por coincidirem com o facto tributário, não seria um pagamento por conta, mas uma antecipação da liquidação.

[18] Tanto mais que a Requerente, como se verá de seguida, não deixou de se pronunciar expressamente sobre a questão da relevância (ou não) para a decisão da causa, da ponderação do regime do referido artigo 105.º/1 do CIRC.

[19] Efectivamente, toda a jurisprudência citada pela Requerente no Segundo Acto das suas alegações se reporta, estritamente, às tributações autónomas de encargos dedutíveis.

[20] Salvo melhor opinião, a expressão “paraíso fiscal” será uma tradução incorrecta da expressão inglesa “tax haven”, sendo que “haven” significa “abrigo”, e não “paraíso”, que poderá ser uma tradução possível de “heaven”, mas não de “haven”.

[21] Ou seja: por exemplo, o encargo com uma viatura ligeira de passageiros que esteja ao serviço de uma empresa, mas ocasionalmente, de forma efectiva ou presumida, seja objecto de uso particular por um funcionário ou terceiro, será objecto de tributação autónoma.

[22] Cfr. neste sentido, por exemplo, as decisões arbitrais nos processos 628/2014-T e 704/2015-T (esta, à data, ainda não publicada).

[23] Disponível em www.caad.org.pt.

[24] Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 20.ª reimpressão, 2012, p. 186.

[25] Cfr. Ac. do STA de 05-06-2013, proferido no processo 0433/13, disponível em www. dgsi.pt.