Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 193/2017-T
Data da decisão: 2017-12-15  IRC  
Valor do pedido: € 507.058,70
Tema: IRC - Tributações Autónomas – SIFIDE.
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Acordam os árbitros José Baeta de Queiroz, Manuel Pires e João Taborda da Gama:

 

I.RELATÓRIO

A…, S.A., doravante designada por “A…” ou “requerente”, pessoa colectiva n.º…, com sede no…, …, … … - … Sintra, com o capital social de € 86.962.868,00, estando abrangida pelos serviços periféricos locais do Serviço de Finanças de Sintra …, veio, em 22-03-2017,  na qualidade de sociedade dominante e responsável pela autoliquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“IRC”) do grupo fiscal (Grupo Fiscal B…) ao qual, no período de tributação de 2012, foi aplicável o Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (“RETGS”), e que era composto, no aludido período de tributação, por si e pelas sociedades: C…, S.A. (actualmente designada, D…, S.A.); E…, Lda.; F…, S.A.; G…, S.A. (actualmente designada, H…, S.A.); I…, S.A. (actualmente designada, J…, S.A.); K…, S.A.;L… , S.A.; M…, Lda.; e N…, S.A., invocando os artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1 e 2, do decreto-lei n.º 10/2011 de 20/01 (RJAT), e 1.º e 2.º da portaria n.º 112-A/2011 de 22/03, requerer a constituição de tribunal arbitral, formulando o seguinte pedido:

 

“Pretende a ora requerente que seja declarada, quer a ilegalidade do indeferimento (parcial) do pedido de revisão oficiosa, quer a ilegalidade parcial do acto de autoliquidação supra identificado (cfr. Docs. n.ºs 1 e 3) – e que seja consequentemente anulado –, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, mais concretamente no que concerne à parte do referido acto de autoliquidação que reflecte a não dedução à parte da colecta do IRC produzida pelas taxas de tributação autónoma do SIFIDE, que originou um montante de imposto indevidamente liquidado no exercício de 2012 no valor de € 507.058,70, ou subsidiariamente, na medida em que reflecte tributação autónoma indevida no mesmo valor de € 507.058,70”.

 

No exercício da opção de designação de árbitro prevista na alínea b) do n.º 2 do 6º do RJAT e em cumprimento do disposto na alínea g) do n.º 2 do artigo 10.º e no n.º 2 do artigo 11.º, igualmente do RJAT, o Requerente designou João Taborda da Gama como Árbitro.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 30-03-2017.

Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 6.º e do n.º 3 do artigo 11.º do RJAT, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, e dentro do prazo previsto no n.º 1 do artigo 13.º do RJAT, o dirigente máximo do serviço da Administração Tributária designou Manuel Pires como Árbitro.

De acordo com o disposto nos n.ºs 5 e 6 do artigo 11.º do RJAT, o Presidente do CAAD notificou a Requerente da designação do Árbitro pelo dirigente máximo do serviço da Administração Tributária e notificou os árbitros designados pelas partes para designarem o terceiro árbitro que assume a qualidade de árbitro presidente.

Em 31-05-2017, e em conformidade com o disposto na al. b) do n.º 2 do artigo 6.º do RJAT, os Árbitros designados pelas partes requereram ao Conselho Deontológico a designação do terceiro árbitro, que assumiria as funções de Presidente.

O Conselho Deontológico designou como árbitro presidente, em 31-05-2017, José Baeta de Queiroz, que aceitou a designação no prazo legal aplicável.

Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 7 artigo 11.º do RJAT, o Presidente do CAAD informou as partes dessa designação em 31-05-2017.

Assim, em conformidade com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66- B/2012, de 31 de dezembro, decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 13.º do RJAT, o tribunal arbitral coletivo fica constituído em 16-06-2017.

 

Notificada para o efeito, a AT respondeu, defendendo-se por exceção e por impugnação, e juntou o pertinente processo administrativo.

 

Foi dispensada a reunião referida no artigo 18º do RJAT, por não se entender útil, e as partes convidadas a produzir alegações escritas, o que fizeram.

 

O tribunal designou o dia 16-11-2017 para prolação da decisão, que foi posteriormente adiada para o dia 15-12-2017.

 

II SANEAMENTO

 

Há que começar por decidir se o tribunal é o competente, competência essa que a Requerida contesta, por o pedido da Requerente ter sido formulado na sequência de um pedido de revisão oficiosa.

A Requerente contraria esta posição dizendo, em súmula, que, nos casos de autoliquidação, a lei se satisfaz com a submissão da questão à AT, tando valendo que o seja pela via da reclamação graciosa, como do pedido de revisão oficiosa.

 

Sobre este tema há já muita jurisprudência do CAAD, embora nem toda no mesmo sentido.

Temo-nos inserido na orientação defendida pela Requerente, com os fundamentos que, por transcrição, se retiram do acórdão proferido em 20/10/2016 no processo 134/2017-T:

«A Requerida sustenta, na sua resposta, que a vinculação da Administração Tributária ao Tribunal Arbitral depende, nos casos de autoliquidação – como é o dos autos – de prévio de recurso à via administrativa pelos meios previstos nos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

A Requerente, não colocando em causa esta norma nem tendo negado que não apresentou qualquer reclamação prévia, defende-se pela via da alegada equiparação do pedido de revisão oficiosa do acto tributário, por ter sido este o meio que escolheu para atacar pela via administrativa os actos aqui impugnados.

É esta, pois, e é simples, a nosso ver, a vexata quaestio: a enumeração prevista no RJAT, ao referir-se aos meios contenciosos administrativos prévios como sendo os previstos nos artigos 131.º a 133.º do CPPT, é taxativa, ou esta norma admite que a impugnação tenha sido precedida de outros meios de ataque gracioso, que não estes?

Vejamos:

Por força da remissão do n.º 1 do artigo 4.º do RJAT, a vinculação da AT à jurisdição dos Tribunais Arbitrais constituídos nos termos desse diploma fica na dependência do disposto na Portaria n.º 112- A/2011, designadamente quanto ao tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos.

Dispõe-se no artigo 2.º, alínea a) da Portaria 112-A/2011 que a vinculação da AT à jurisdição referida tem por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhe esteja cometida, referidas no n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, “com excepção das pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário”.

Porém, não se descortina, de entre as razões avançadas pela Requerida, uma razão substancial para que, atentos os condicionalismos e especificidades próprios de cada um dos meios graciosos em causa, não seja cognoscível em sede arbitral a legalidade dos atos de autoliquidação, nos mesmos termos em que os tribunais tributários estão vinculados. Aliás, mesmo uma interpretação estritamente literal, desde que devidamente contextualizada, não conduziria ao resultado propugnado pela Requerida.

Com efeito, a expressão empregue pela norma em questão é paralela à própria norma do artigo 131.º/1 do CPPT, o que deverá ser compreendido como uma concretização da pacificamente reconhecida intenção legislativa de que o processo arbitral tributário constitua um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial.

A norma da alínea a) do artigo 2.º da Portaria 112.º-A/2011, de 22 de março, deverá também ser entendida como explicando-se pela circunstância de, na sua ausência – e face ao teor do artigo 2.º do RJAT – se perfilar como possível a impugnação direta de actos de autoliquidação sem precedência de pronúncia administrativa prévia.

Ou seja, tendo em conta que face ao RJAT não se configurava como necessária qualquer intervenção administrativa prévia à impugnação arbitral de uma autoliquidação, o teor da Portaria deve ser interpretado como equiparando – nesta matéria – o processo arbitral tributário ao processo de impugnação judicial e não, como decorreria da posição sustentada pela Requerida, passar do 80 para o 8, pegando numa impugnabilidade mais ampla do que a possível nos Tribunais Tributários, e transmutando-a numa mais restrita.

Assim, razão alguma se vê para que se interprete de forma diferente uma e outra norma, tanto mais que a letra da norma da Portaria 112.º-A/2011, de 22 de Março, acaba por ser menos restritiva que a do CPPT, na medida em que não integra a expressão “obrigatoriamente”, nem se refere a “reclamação graciosa”, mas a “via administrativa”.

Daí que seja possível uma leitura da própria letra da lei que se contenha no sentido de que apenas está afastado do âmbito da jurisdição arbitral tributária o conhecimento de pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa em termos compatíveis com os artigos 131.º a 133.º do CPPT.

E é esta a leitura que se subscreve, na sequência do Acórdão proferido no processo 48/2012-T do CAAD e jurisprudência arbitral subsequente, designadamente, nos processos 670/2015 e 122/2016, não se concebendo, na medida em que a interpretação efectuada se contém na letra da lei, que daí possa decorrer a violação de qualquer preceito constitucional, maxime, dos indicados artigos 2.º, 3.º, n.º 2, 111.º e 266.º, n.º 2, todos da Constituição da República Portuguesa (CRP)».

 

Assim, e face a todo o exposto, que se acompanha, não assistindo razão à Requerida nesta matéria, julga-se improcedente a exceção da incompetência do Tribunal Arbitral.

 

O Tribunal foi regularmente constituído, as partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas.

 

Não há mais exceções a decidir, nem nulidades ou questões que constituam obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

III. MATÉRIA DE FACTO

 

  1. Em 30 de Maio de 2013 a Requerente apresentou a declaração de IRC Modelo 22 do Grupo, referente ao exercício de 2012, tendo apurado tributações autónomas em IRC desse mesmo ano de 2012, no montante de € 507.058,70 (doc. n.º 1 do Pedido).
  2. O montante de SIFIDE disponível no exercício de 2012 ascendia a um total de € 671.472,15 (doc. n.º 4 do Pedido)
  3. Ao tempo, o sistema informático da AT não permitia que a Requerente deduzisse, para efeitos do apuramento do IRC por si devido, ao IRC resultante das tributações autónomas apuradas, o SIFIDE.
  4. A Requerente apresentou em 23.12.2016 pedido de revisão oficiosa, solicitando aquela dedução.
  5. A Requerente foi notificada do deferimento parcial do pedido de revisão em 23.12.2016 (doc. n.º 2 do Pedido), tendo a AT concordado com a dedução do SIFIDE ao valor do IRC apurado a título de derrama estadual, mas não com a dedução daquele benefício fiscal à colecta de tributações autónomas.

 

Fundamentação dos factos provados

O tribunal formou a sua convicção a partir do exame dos documentos juntos ao processo, cuja autenticidade e veracidade não foi posta em causa.

Factos não provados

Com relevo para a decisão da causa, nenhum facto ficou por provar.

 

IV. FUNDAMENTOS DO PEDIDO

 

Alega a Requerente que apresentou a declaração de IRC Modelo 22 do seu Grupo Fiscal referente ao exercício de 2012, tendo nesse momento procedido à autoliquidação de tributações autónomas em IRC, no montante € 507.058,70.

Deduziu pedido de revisão oficiosa, que foi indeferido na parte respeitante à dedução do SIFIDE à coleta de IRC produzida pelas taxas de tributação autónoma.

Impugna esse indeferimento e o apontado acto de autoliquidação de IRC do Grupo, na medida em que não admitiu a não dedução à parte da colecta do IRC produzida pelas taxas de tributação autónoma do benefício ao abrigo do SIFIDE, o que originou imposto indevidamente liquidado no exercício de 2012 no referido valor, ou, subsidiariamente, na medida em que é indevida a liquidação de tributação autónoma.

Ora, a colecta de IRC prevista no (em vigor até 2013) artigo 45.º, n.º 1, alínea a), do CIRC, compreende as tributações autónomas em IRC, e a colecta prevista no artigo 90.º, n.º 1, e n.º 2, alíneas b) e c), do CIRC, na redacção em vigor em 2012. Donde que a negação da dedução do SIFIDE à colecta em IRC das tributações autónomas viole as alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 90.º do CIRC (anteriormente a 2010 artigo 83.º).

Entendendo-se que naquele artigo 90.º do CIRC não está incluída a colecta de IRC resultante das tributações autónomas (apurada nos termos do artigo 88.º), mas apenas a colecta de IRC resultante do lucro tributável (apurada nos termos do artigo 87.º), teria que se concluir que a liquidação da própria tributação autónoma é, em si mesma, ilegal, por força quer do artigo 8.º, n.º 2, alínea a), da Lei Geral Tributária, quer do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.

Entendendo-se não ser possível deduzir os benefícios fiscais para utilização aos montantes devidos a título de tributações autónomas, a sua liquidação não tem enquadramento na norma de liquidação do IRC consagrada no artigo 90.º do Código do IRC, então solicita, a título subsidiário, que seja anulada a autoliquidação do período de tributação de 2012, na parcela correspondente às tributações autónomas, pelo facto de as mesmas terem sido liquidadas e cobradas sem base legal para o efeito.

A Lei do Orçamento do Estado para 2016 (Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março reiterou que o artigo 89.º do CIRC se aplicava também à liquidação das tributações autónomas (parte 1 do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC). Inexplicavelmente, não reiterou expressamente que o artigo 90.º do CIRC também se aplica à liquidação das tributações autónomas, o que, atendendo desde logo ao teor do seu n.º 1, que concretiza o que tinha sido anunciado no precedente artigo 89.º, a Requerente não entende.

O legislador em sede de LOE 2016 optou por afastar a aplicação de parte do disposto no artigo 90.º do CIRC para a colecta do IRC, à colecta da tributação autónoma em IRC (parte 2 do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC).

Em contradição com o que é sugerido pelo texto do artigo 135.º da LOE 2016, no que ao n.º 21 do artigo 88.º do CIRC respeita, a LOE 2016 não se limitou a alterar uma pré-existente redacção. O n.º 21 é por inteiro um novo preceito.

Defende que o legislador, quando atribuiu carácter interpretativo “à redacção dada pela presente lei ao n.º 21 do artigo 88.º do CIRC”, o artigo 135.º da LOE 2016 quer referir-se à parte 1, e não à parte 2 do referido n.º 21.

O regime de aplicação de leis no tempo previsto no Código Civil (onde se inclui o seu artigo 13.º), não se aplica no que respeita a matérias que disponham de um regime privativo para o efeito, em obediência a princípios distintos, como é o caso (actualmente) dos impostos: cfr. artigo 12.º da LGT e artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.

Donde a conclusão de que a atribuição de natureza interpretativa a uma norma fiscal não desencadeia por si só a aplicação do regime de aplicação de leis no tempo previsto no Código Civil.

Quer o artigo 89.º, quer o artigo 90.º, n.ºs 1 e 2, do CIRC, referem-se ao IRC, a todo o IRC. Ambas as partes, 1 e 2, do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, não podem ser simultaneamente interpretativas do que dispõem os artigos 89.º e 90.º do CIRC, em sentidos opostos - no sentido de que o IRC do artigo 89.º inclui também as tributações autónomas (parte 1 do n.º 21 do artigo 88.º), e no sentido oposto de que o IRC do artigo 90.º, pelo menos o do seu n.º 2, não inclui as tributações autónomas. Só a parte 1 tem natureza interpretativa. A parte 2 do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC tem carácter inovatório.

Caso se entenda (i) que o artigo 135.º da LOE 2016 (Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março) atribuiu natureza interpretativa também à parte 2 do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, isto é, também ao segmento normativo “não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global [de tributação autónoma em IRC] apurado”, introduzido pela mesma LOE 2016 (pelo seu artigo 133.º), (ii) e que daí resultaria a aplicação do artigo 13.º do Código Civil enquanto prescreve a aplicação retroactiva das leis interpretativas, se esteja então perante uma inconstitucionalidade material do referido artigo 135.º da LOE 2016, por violação da proibição de retroactividade em matéria de impostos prevista no artigo 103.º, n.º 3 da Constituição, quer se tenha concluído, quer não (e entende que não), estar-se perante uma lei materialmente interpretativa, e por violação, também, do princípio da separação de poderes e do princípio da independência do poder judicial.

Violação, também, dos artigos 2.º (Estado de direito democrático, e separação e interdependência de poderes, sendo que quanto a este último aspecto no caso está em causa a perspectiva da interdependência – e por conseguinte negação de excessos e de ocupação de espaço que não lhe pertence – do poder político-legislativo face ao poder judicial), 111.º, n.º 1 (separação e interdependência dos órgãos de soberania, que é ainda um limite material de revisão – artigo 288.º, alínea j), da Constituição), e 203.º (independência dos tribunais, outro limite material de revisão – artigo 288.º, alínea m)), todos da Constituição.

Por fim entende a Requerente que, tendo sido pago imposto em montante superior ao legalmente devido, declarada que seja a ilegalidade da (auto)liquidação na parte peticionada, tem direito não só ao respectivo reembolso, mas, também, ao abrigo do artigo 43.º da Lei Geral Tributária (“LGT”), a juros indemnizatórios, calculados sobre € 507.058,70, contados desde 1 de Setembro de 2013. Invoca que o erro de que padece a (auto)liquidação resulta de erro dos Serviços sobre os pressupostos de direito que condicionou informaticamente o preenchimento das declarações (Modelo 22) de autoliquidação, agravado ainda pelo indeferimento do pedido de revisão oficiosa.

 

FUNDAMENTOS DA AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA

 

A AT contradiz os fundamentos alegados pela Requerente, reafirmando a posição assumida aquando da decisão do pedido de revisão oficiosa.

Para além do desenvolvimento dos argumentos expendidos na resposta, os fundamentos da posição da AT são, natural e necessariamente, os que constam do despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, transcritos na matéria de facto.

A AT assinala que «Não pode o sistema informático permitir ou consagrar o que a lei não dispõe, i.e., o sistema e as aplicações informáticas da AT deverão ser um mero reflexo dos preceitos legais em vigor em cada momento».

Acrescenta, por último, que os juros indemnizatórios nunca seriam devidos a partir da data indicada pela Requerente, mas tão só a partir do indeferimento do pedido de revisão oficiosa.

 

V. O DIREITO

 

1.1. Tributações autónomas e coleta de IRC

 

A questão submetida à apreciação do Tribunal Arbitral é a de aferir se a Requerente tem o direito de proceder à dedução, também à coleta de IRC produzida pela aplicação das taxas de tributação autónoma, do crédito fiscal do SIFIDE sendo, em caso afirmativo, ilegal a autoliquidação de IRC do exercício de 2012.

Submetida ao Tribunal está ainda, a título subsidiário, caso dê resposta negativa à primeira questão, a questão da eventual ilegalidade e consequente anulação da liquidação das tributações autónomas, por ausência de base legal para a sua liquidação.

O Tribunal é ainda chamado a pronunciar-se sobre o direito a juros indemnizatórios sobre as quantias pagas em consequência da autoliquidação em crise. 

Cumpre, pois, decidir quanto ao mérito do pedido de decisão arbitral da liquidação de IRC sub judice e do eventual direito da Requerente a juros indemnizatórios.

Seguiremos nesta decisão muito de perto o que foi decidido nos processos n.º 749/2015-T, de 15 de Julho de 2016, e n.º 360/2016-T, de 16 de Fevereiro de 2017, a que presidiu o mesmo árbitro que também aqui age nessa qualidade.

 

Vejamos:

 

O regime das tributações autónomas em vigor no exercício de 2012 é o resultado de numerosas alterações legislativas. 

A sujeição de determinadas despesas a tributação autónoma surgiu com o Decreto-Lei n.º 192/90, de 2 de Junho, num contexto de penalização da tributação das despesas confidenciais ou não documentadas incorridas pelas empresas. 

Posteriormente, as tributações autónomas foram incluídas no Código do IRC, através da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, que veio integrar a previsão das tributações autónomas no diploma que regula o IRC.

Desde então, o regime das tributações autónomas tem vindo a passar por um processo de expansão progressiva, em parte ditado pela aparente intenção contínua de aumentar a receita fiscal por via deste mecanismo.

Tendo em conta o artigo 88.º do Código do IRC, a tributação autónoma incide, grosso modo, sobre as seguintes realidades: despesas não documentadas; encargos com viaturas; despesas de representação; ajudas de custo; importâncias pagas a não residentes; lucros distribuídos por entidades sujeitas a IRC a sujeitos passivos que beneficiam de isenção; gastos ou encargos relativos a indemnizações ou quaisquer compensações devidas não relacionadas com a relação contratual; e ainda os gastos ou encargos relativos a bónus e outras remunerações variáveis pagas a gestores, administradores ou gerentes.

A Lei do Orçamento do Estado para 2014 introduziu algumas alterações na previsão das tributações autónomas que, no entanto, não só não foram especialmente relevantes como não oferecem contributo para a presente discussão. 

O artigo 23.º-A, n.º 1, alínea a), do Código do IRC, na redação da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, não deixa margem para qualquer dúvida razoável. Na verdade, a redação da referida norma introduzida pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, prevê que “o IRC, incluindo as tributações autónomas, e quaisquer outros impostos que direta ou indirectamente incidam sobre os lucros” não são fiscalmente dedutíveis. O posicionamento das duas vírgulas na letra da lei, uma antes e a outra depois da expressão “incluindo as tributações autónomas”, constante da atual redação do citado artigo 23. °- A, n.º 1, alínea a), do CIRC, afasta a possibilidade de defender que as tributações autónomas não sejam (parte do) IRC. 

Ou seja, na actual redacção do artigo 23.º-A, n.º 1, alínea a) do Código do IRC, o legislador não só esclarece que as tributações autónomas integram o IRC, senão enquanto imposto stricto sensu, pelo menos em termos de fazerem parte do mesmo regime fiscal unitário, como também que as mesmas devem ter o mesmo tratamento para efeitos do cômputo do lucro tributável.

Aliás, este entendimento corrobora o que, à data dos factos, resultava do teor literal do artigo 12.º do Código do IRC, segundo o qual “as sociedades e outras entidades a que, nos termos do artigo 6.º, seja aplicável o regime de transparência fiscal, não são tributadas em IRC, salvo quanto às tributações autónomas”, do qual se conclui também que as tributações autónomas são IRC (são uma parte de IRC).

Ou seja, e em suma, o legislador entendia, e continua a entender, que as tributações autónomas integram o IRC, senão enquanto imposto stricto sensu, pelo menos em termos de fazerem parte do mesmo regime fiscal unitário.

Deve-se, para além de tudo o mais, ter em conta, que a norma do artigo 45.º do CIRC, na redacção em vigor à data dos factos (e cujo regime hoje consta do artigo 23.º-A) situa-se num contexto de ampla discricionariedade legislativa. Ou seja, na definição do que sejam encargos dedutíveis ou não dedutíveis para efeitos fiscais, o legislador fiscal goza de uma ampla liberdade concretizadora. Daí que, não se possa dizer que esteja vedado ao legislador, pela “natureza” das tributações autónomas, excluí-la dos encargos dedutíveis para efeitos fiscais.

Entende-se, deste modo, que será legítimo ao legislador incluir ou excluir as tributações autónomas daquela categoria dos encargos dedutíveis para efeitos fiscais, independentemente da “natureza” que a doutrina ou a jurisprudência lhes surpreenda.

A questão, devidamente situada, será então a de determinar qual a intenção do legislador, expressa no texto legislativo, compreendido no seu todo. 

E sob este prisma, a conjugação do teor do artigo 12.º do CIRC com o artigo 45.º, n.º 1, alínea a) do mesmo, não deixará grandes dúvidas, quanto ao entendimento legislativo de que as tributações autónomas, se não constituem IRC stricto sensu, integrarão seguramente o regime daquele imposto, e serão devidas a esse título.

De resto, nem o resultado, aparentemente tão contraintuitivo e impressionante, de poder ser devido o pagamento de imposto por via das tributações autónomas que ora nos ocupam, mesmo em caso de inexistência de um rendimento (positivo) no final do período de tributação, é coisa rara no regime do IRC. Na verdade, em alguns casos de retenção na fonte a título definitivo, pode ocorrer o caso de o titular dos rendimentos sujeitos àquela retenção ter tido despesas que excedam os rendimentos. Também no caso da operacionalidade de algumas das cláusulas antiabuso específicas (artigos 63.º a 67.º do CIRC), por força da consideração de custos, pode ocorrer que os sujeitos passivos sejam tributados por um lucro tributável ficto, na medida em que possa estar em causa a desconsideração de custos, efetivamente suportados, mas desconsiderados por abusivos. Poder-se-á dar o caso, assim, de um sujeito passivo ter de pagar IRC, não obstante ter tido, na realidade, prejuízos. Exemplos que podem levantar a questão da sua compatibilização com o princípio da tributação de acordo com o lucro real que não pode deixar de ser feita casuisticamente.

 

Reconhecem-se aqui, evidentemente, aquelas caraterísticas que há já alguns anos a doutrina vem apontando às tributações autónomas em causa, como sejam: 

a)                      a tributação autónoma só faz sentido porque os custos/gastos relevam, na maioria das situações, como componentes negativas do lucro tributável do IRC e é isso que motiva os sujeitos passivos do IRC a relevar um valor tão elevado quanto possível desses gastos para diminuir a matéria tributável do IRC, a colecta e, consequentemente, o imposto a pagar;

b)                      se trata de tratar desfavoravelmente esses gastos que, pela sua natureza, são facilmente desviados do consumo privado para o empresarial;

c)                      pretende-se desincentivar esse tipo de gastos em sujeitos passivos que apresentam resultados negativos, mas que continuam a evidenciar estruturas de consumo difíceis de compaginar com a saúde financeira das suas empresas;

d)                      modelar o sistema fiscal de modo que este revele um certo equilíbrio, tendo em vista uma melhor repartição da carga tributária efectiva entre contribuintes e tipos de rendimento;

e)                      materializar o reconhecimento de que não é fácil determinar a medida exata da componente de alguns desses gastos que corresponde a consumo privado.

As tributações autónomas têm como fundamento a presunção da existência de rendimento que poderá não estar a ser tributado, não só em sede de IRC como de IRS. Como se explica na decisão do Tribunal Arbitral proferida no âmbito do Processo n.º 209/2013-T, que decidiu negativamente quanto à questão da dedutibilidade das tributações autónomas como custo fiscal em sede de IRC, “trata-se de (…) uma forma de, indiretamente e através da despesa, tributar o rendimento”.  

A parte da colecta de IRC que provém das tributações autónomas é calculada a partir dos elementos do imposto definidos no artigo 88.º do CIRC inserido no ‘Capítulo IV – Taxas’. Este artigo delimita a matéria colectável das tributações autónomas, por um lado, e, por outro lado, enuncia as taxas das tributações autónomas, que são várias, consoante a natureza da matéria colectável a que se apliquem; por dependerem do tipo de sujeito passivo (v.g., entidade sem fins lucrativos, entidades isentas, entidade que desenvolva a título principal uma atividade comercial, industrial ou agrícola), e ainda são dependentes do próprio desempenho económico do sujeito passivo de IRC, ao assumirem percentagens diferentes quando se apurar lucro ou prejuízo fiscal. A colecta que provém de tributações autónomas é função do resultado tributável, calculando-se a partir de duas expressões que são o produto da matéria colectável por uma taxa dependente do resultado tributável: uma taxa mais elevada quando se apurar um prejuízo fiscal e outra, inferior, quando o resultado tributável for positivo. 

Assim, a colecta proveniente de tributações autónomas não poderá ser determinada de modo instantâneo e imediatamente a seguir a ter-se incorrido na despesa, pois depende do próprio resultado que é - ao contrário do que a AT pretende e com apoio na decisão proferida no Processo Arbitral n.º 113/2015-T - de formação sucessiva. 

Também alguns gastos que não coincidem com as despesas que extinguem e que são sujeitas a tributação autónoma, nomeadamente as depreciações, são de formação contínua.

 

Posto isto, a questão essencial que interessa resolver, é se a liquidação das tributações autónomas é “apurado nos termos do artigo 90.º do CIRC”, pois, se o for, terá de se concluir que as deduções previstas no n.º 2 do artigo 90.º do Código do IRC também poderão ser efetuadas à colecta proveniente das tributações autónomas.

A norma em crise é a do artigo 90.º do CIRC, sendo a alínea a) a que se aplica à liquidação feita pelo sujeito passivo (autoliquidação). Era esta a redacção do artigo em 31-12-2012: 

 “Artigo 90.º

Procedimento e forma de liquidação

1 — A liquidação do IRC processa-se nos seguintes termos:

 a) Quando a liquidação deva ser feita pelo sujeito passivo nas declarações a que se referem os artigos 120.º e 122.º, tem por base a matéria colectável que delas conste;

(…)

 2 — Ao montante apurado nos termos do número anterior são efectuadas as seguintes deduções, pela ordem indicada:

 a) A correspondente à dupla tributação jurídica internacional;

b) A relativa a benefícios fiscais;

c) A relativa ao pagamento especial por conta a que se refere o artigo 106.º;

d) A relativa a retenções na fonte não susceptíveis de compensação ou reembolso nos termos da legislação aplicável.

 3 — (Revogado).

4 — Ao montante apurado nos termos do n.º 1, relativamente às entidades mencionadas no n.º 4 do artigo 120.º, apenas é de efectuar a dedução relativa às retenções na fonte quando estas tenham a natureza de imposto por conta do IRC.

5 — As deduções referidas no n.º 2 respeitantes a entidades a que seja aplicável o regime de transparência fiscal estabelecido no artigo 6.º são imputadas aos respectivos sócios ou membros nos termos estabelecidos no n.º 3 desse artigo e deduzidas ao montante apurado com base na matéria colectável que tenha tido em consideração a imputação prevista no mesmo artigo.

6 — Quando seja aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades, as deduções referidas no n.º 2 relativas a cada uma das sociedades são efectuadas no montante apurado relativamente ao grupo, nos termos do n.º 1.

7 — Das deduções efectuadas nos termos das alíneas a), b) e c) do n.º 2 não pode resultar valor negativo.

8— Ao montante apurado nos termos das alíneas b) e c) do n.º 1 apenas são feitas as deduções de que a administração fiscal tenha conhecimento e que possam ser efectuadas nos termos dos n.ºs 2 a 4.

9— Nos casos em que seja aplicável o disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 79.º, são efectuadas anualmente liquidações com base na matéria colectável determinada com carácter provisório, devendo, face à liquidação correspondente à matéria colectável respeitante a todo o período de liquidação, cobrar-se ou anular-se a diferença apurada.

10 — A liquidação prevista no n.º 1 pode ser corrigida, se for caso disso, dentro do prazo a que se refere o artigo 101.º, cobrando-se ou anulando-se então as diferenças apuradas”.

 

Assim, o artigo 90.º do CIRC refere-se às formas de liquidação do IRC, pelo sujeito passivo ou pela Administração Tributária, e visa apurar o imposto devido em todas as situações previstas no Código, incluindo a liquidação adicional. 

O Código do IRC refere-se, na sua versão actual, de modo expresso, às tributações autónomas apenas em cinco artigos, nomeadamente no artigo 12.º (ao excluir as tributações autónomas da isenção de IRC aplicável às sociedades abrangidas pelo regime de transparência fiscal), no artigo 23.º-A, n.º 1 (ao explicitar que as tributações autónomas não são dedutíveis para efeitos de determinação do lucro tributável), no artigo 88.º (ao estabelecer as taxas e ao delimitar a matéria colectável das tributações autónomas), no artigo 117.º, n.º 6 (a propósito da obrigação declarativa de entidades isentas de IRC ao abrigo do artigo 9.º, quando houver lugar a tributações autónomas) e no artigo 120.º, n.º 9 (quanto à declaração periódica de rendimentos). Não existe no CIRC qualquer outra referência explícita às tributações autónomas. 

Aliás, difere a redacção actual daquela que esteve em vigor até 31-12-2012 apenas na novidade do artigo 23.º-A, o qual vem estabelecer que não são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável os encargos associados à tributação autónoma, mesmo quando contabilizados como gastos do período de tributação determinados encargos, sendo que a redação da alínea a) é esclarecedora: “o IRC, incluindo as tributações autónomas, e quaisquer outros impostos que direta ou indiretamente incidam sobre os lucros”. Ou seja, não só o legislador expressa que o IRC inclui as tributações autónomas, como não existem no CIRC, designadamente, nos capítulos que tratam da incidência (Capítulo I), liquidação (Capítulo V) e pagamento (Capítulo VI) quaisquer outras referências expressas às tributações autónomas, do que é forçoso concluir que estão sujeitas, de modo genérico, aos demais artigos previstos no CIRC.

Não existia no CIRC outro artigo, para além do artigo 90.º, em que se distinga o processo de liquidação das tributações autónomas do restante IRC. E, nestes termos, a liquidação de ambos - tributações autónomas e restante IRC - é única e tem o mesmo suporte legal.

As tributações autónomas não resultavam de um processo distinto de liquidação do imposto.

Entendido que é serem as tributações autónomas (parte do) IRC, compreende-se que seja única a liquidação de IRC, incluindo a parte que provém das tributações autónomas.  Há uma liquidação de IRC única que comporta duas partes: a liquidação das tributações autónomas e a do restante IRC, cada uma com matéria colectável determinada de modo próprio e com taxas de tributação próprias, mas ambas liquidadas nos termos do artigo 90.º do CIRC. Havendo uma liquidação única, conclui-se que a parte da colecta que provém das tributações autónomas é parte integrante da colecta de IRC.

Ao contrário, não se encontrava em qualquer outro artigo do CIRC a referência à liquidação das tributações autónomas como processo distinto. Aceitar que não se inclui a colecta das tributações autónomas no artigo 90.º do CIRC, seria aceitar que existe uma lacuna na lei e, sendo esta uma lei fiscal, não permite a integração.

Neste sentido, vai o Acórdão n.º 775/2015-T, de 28 de junho de 2016, ao referir que “aceitar que a liquidação das tributações autónomas está fora do artigo 90.º n.º 1 do CIRC e, portanto, afastar da sua coleta a dedutibilidade do PEC prevista na alínea c) do n.º 2 e do SIFIDE prevista na alínea b) do n.º 2, seria obrigar o contribuinte a pagar um imposto cuja liquidação se não faz nos termos da lei, contrariando o n.º 3 do artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa e o princípio da legalidade tributária que a Lei Geral Tributária, no seu artigo 8º, n.º 2, alínea a), estabelece. Se a Autoridade Tributária e Aduaneira assumiu que a coleta das tributações autónomas se calculou fora do artigo 90.º do CIRC, deveria indicar com base em que norma de liquidação o fez. Não havendo norma sobre liquidação das tributações autónomas separada, parece ter de aceitar-se que a coleta de IRC a engloba, incluindo-se no artigo 90º, n.º 1 do CIRC, sendo, portanto, dedutível o pagamento especial por conta referido na alínea c) do n.º 2 e o SIFIDE referido na alínea b) do n.º 2.

Note-se, aliás, que nos números seguintes daquele artigo 90.º do Código do IRC o legislador se preocupou em enunciar várias excepções e limites à regras da dedutibilidade do n.º 2. No n.º 4, quando prevê que “apenas é de efetuar a dedução relativa às retenções na fonte quando estas tenham a natureza de imposto por conta do IRC”, o que é revelador: compreende-se que assim seja, porque é na colecta de IRC que se pretende deduzi-las, ou, no n.º 7, quando prescreve que das deduções à colecta a), b) e c) do n.º 2 não pode resultar, de uma forma geral e sem distinguir a colecta resultante da aplicação das taxas de tributação autónoma, valor negativo.

Em nenhuma delas e em nenhuma outra norma se referia a qualquer limitação à dedutibilidade do SIFIDE à parte da colecta de IRC que resulta das tributações autónomas, sendo, portanto, forçoso concluir que não quis fazê-lo.  

Aponte-se, ainda, que, embora alterado o artigo 90.º com a Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, que republicou o CIRC, o que aqui se disse não só perdura como, de um ponto de vista interpretativo, sai até reforçado, porquanto o legislador aditou algumas limitações e excepções às deduções à colecta previstas no número 2 e voltou a não se referir à parte da colecta que resulta da aplicação das taxas de tributação autónoma.

Por isso, o artigo 90.º do Código do IRC aplica-se também à liquidação do montante das tributações autónomas, que é apurado pelo sujeito passivo ou pela Administração Tributária, não havendo qualquer outra disposição que preveja termos diferentes para a sua liquidação. A autonomia das tributações autónomas restringe-se às taxas aplicáveis e à respetiva matéria tributável, mas o apuramento do seu montante é efectuado nos termos do artigo 90.º do Código do IRC.

As diferenças entre a determinação do montante resultante de tributações autónomas e a colecta resultante do lucro tributável, assentam na determinação da matéria tributável e nas taxas, previstas nos Capítulos III e IV do CIRC, mas não nas formas de liquidação, que se preveem no Capitulo V do mesmo Código e são de aplicação comum às tributações autónomas e à restante colecta de IRC.

Por isso, encontrando-se o artigo 90.º inserido neste Capítulo V, não se vê suporte legal para efetuar uma distinção entre a colecta proveniente das tributações autónomas e a restante colecta de IRC, pelo facto de serem distintas as taxas e as formas da determinação da matéria tributável.

E, como se disse, não há suporte legal para afirmar que, na eventualidade de terem de ser efetuados numa declaração vários cálculos para determinar o IRC, seja efetuada mais que uma autoliquidação.  

Por isso, a expressão “quando a liquidação deva ser feita pelo sujeito passivo nas declarações a que se referem os artigos 120.º e 122.º, tem por base a matéria coletável que delas conste”, que consta da alínea a) do n.º 1 do artigo 90.º do CIRC, abrange no seu teor literal, a liquidação das tributações autónomas, cuja matéria colectável tem de ser indicada nas referidas declarações, como resulta, inclusivamente, da própria declaração Modelo 22.

A colecta obtém-se aplicando a taxa à respetiva matéria colectável, pelo que, no caso do IRC, havendo várias taxas aplicáveis a diversas matérias colectáveis, a colecta de IRC global será constituída pela soma de todos os resultados dessas aplicações.

Acresce que, independentemente dos cálculos a efectuar, é unitária a autoliquidação que o sujeito passivo ou a AT devem efectuar nos termos dos artigos 89.º, alínea a), 90.º, n.º 1, alíneas a), b) e c) e 120.º ou 122.º, e com base nela que é calculado o IRC global, sejam quais forem as matérias colectáveis relativas a cada um dos tipos de tributação que lhe esteja subjacente.

Para além disso, não pode ver-se, na eventual natureza de normas antiabuso que assumem algumas tributações autónomas, uma explicação para o seu afastamento da respetiva colecta, pois não há qualquer suporte legal para afastar a dedutibilidade à colecta proporcionada por correcções baseadas em normas de natureza indiscutivelmente antiabuso.

A finalidade das tributações autónomas é dual. Visam tributar o rendimento real, corrigindo-se por isso o rendimento tributável para o aproximar daquele rendimento e, ao mesmo tempo, procuram penalizar os sujeitos passivos que através da realização de certas despesas acabam por reduzir o rendimento tributável.

Como pode ler-se no Acórdão n.º 617/12 do Tribunal Constitucional, mostra a sua natureza dual, com uma taxa agravada de tributação autónoma para certas situações especiais que se procuram desencorajar, cria uma espécie de presunção de que estes custos não têm uma causa empresarial e, por isso, são sujeitos a uma tributação autónoma. “Em resumo”, diz o Tribunal Constitucional, “o custo é dedutível, mas a tributação autónoma reduz a sua vantagem fiscal, uma vez que, aqui, a base de incidência não é um rendimento líquido, mas, sim, um custo transformado – excecionalmente – em objeto de tributação.".

Sendo que o regime legal das tributações autónomas em questão apenas faz sentido no contexto da tributação em sede de IRC. Ou seja, desligado do regime legal deste imposto, carecerão aquelas, por completo, de sentido. A sua existência, o seu propósito, a sua explicação, no fundo, a sua juridicidade, apenas é compreensível e aceitável no quadro do regime legal do IRC. É que, mesmo que se aceitasse que o facto tributário impositivo é cada uma das singulares despesas legalmente tipificadas, o certo é que não são estas, qua tale, o objecto final da tributação, a realidade que se pretende agravar com o imposto. 

 Se assim fosse, teriam de ser taxadas todas as despesas previstas, realizadas por todos os sujeitos e não apenas por alguns deles.

Ou seja, as tributações autónomas são indissociáveis dos sujeitos do imposto sobre o rendimento respectivo, e, mais especificamente, da actividade económica por eles levada a cabo, o que é ainda mais evidente quando se pensa na ligação que, embora tenha variado nas sucessivas alterações legislativas, as tributações autónomas tinham e ainda têm alguma ligação com a dedutibilidade – e a efetiva dedução – das despesas tributadas. São, no fundo, regras especiais de dedutibilidade de certos custos.

Esta circunstância, crê-se, é elucidativa da imbricação existente entre aquelas e o IRC (no caso), e justificativa não só da sua inclusão no CIRC, mas, igualmente, da sua integração, de pleno direito, como parte do regime jurídico do IRC.

As tributações autónomas ora em causa são, como tal, indubitavelmente entendidas pelo legislador como uma forma de obstar a determinadas atuações abusivas, que o normal funcionamento do sistema de tributação era incapaz de impedir ou que seriam mais onerosas ou trabalhosas para a administração tributária ou, até, eventualmente, para o contribuinte. 

Neste prisma, como refere a decisão proferida pelo Tribunal Arbitral no processo n.º 187/2013-T, as tributações autónomas em análise, terão então subjacente uma presunção de empresarialidade parcial das despesas sobre que incidem, em função da supra apontada circunstância de tais despesas se situarem numa linha cinzenta que separa aquilo que é despesa empresarial, produtiva, daquilo que é despesa privada, de consumo, sendo que, notoriamente, em muitos casos, a despesa terá mesmo na realidade uma dupla natureza (parte empresarial, parte particular). 

Confrontado com esta dificuldade, o legislador, em lugar de simplesmente afastar a sua dedutibilidade, ou inverter o ónus da prova da relação das despesas em questão com a atividade empresarial, optou por consagrar o regime atualmente vigente.

Esta presunção de empresarialidade parcial, deverá, em coerência, considerar-se como abrangida pela possibilidade de elisão decorrente do artigo 73.º da LGT, quer pelo contribuinte, quer pela Administração Tributária, o que se afigura conforme a uma adequada distribuição do ónus probatório, na medida em que incidindo as tributações autónomas em causa sobre despesas cuja relação com a atividade prosseguida poderá não ser, à partida, evidente, será o contribuinte quem estará melhor posicionado para demonstrar que tal requisito se verifica em concreto. Por seu lado, a própria Administração Tributária, caso o entenda e considere que o caso justifica o inerente dispêndio de meios, poderá sempre demonstrar que, relativamente às despesas em questão, e ainda que sobre elas tenha incidido tributação autónoma, não se verifica o requisito geral do artigo 23.º, n.º 1 do CIRC, designadamente a sua indispensabilidade para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora.

Face a tudo o que se vem de expor, consideramos que as tributações autónomas em crise integram o regime do IRC e que a respetiva liquidação é efetuada nos termos do artigo 90.º do respetivo Código. 

1.2. Quanto à dedutibilidade do crédito fiscal do SIFIDE à quantia devida a título de tributação autónoma

 

Tendo em conta o enquadramento realizado no ponto anterior, a primeira questão concreta que se coloca neste âmbito é a de saber se os créditos fiscais reconhecidos à requerente no ano de 2012, em sede de SIFIDE, também podem ser deduzidos à colecta produzida pelas tributações autónomas que a oneram nesse exercício fiscal, na parte em que não podem ser deduzidos à restante colecta. 

Para responder a esta questão é importante referir que, na redacção à data dos factos, o artigo 4.º do Sistema de Incentivos Fiscais em Investigação e Desenvolvimento Empresarial II (SIFIDE II), aprovado pelo artigo 133.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2011), referia que:

“1 - Os sujeitos passivos de IRC residentes em território português que exerçam, a título principal ou não, uma actividade de natureza agrícola, industrial, comercial e de serviços e os não residentes com estabelecimento estável nesse território podem deduzir ao montante apurado nos termos do artigo 90.º do Código do IRC, e até à sua concorrência, o valor correspondente às despesas com investigação e desenvolvimento, na parte que não tenha sido objecto de comparticipação financeira do Estado a fundo perdido, realizadas nos períodos de tributação de 1 de Janeiro de 2011 a 31 de Dezembro de 2015, numa dupla percentagem::.  (…)

2 - Para os sujeitos passivos de IRC que sejam PME de acordo com a definição constante do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de Novembro, que ainda não completaram dois exercícios e que não beneficiaram da taxa incremental fixada na alínea b) do número anterior, aplica-se uma majoração de 10% à taxa base fixada na alínea a) do número anterior..3 - A dedução é feita, nos termos do artigo 90.º do Código do IRC, na liquidação respeitante ao período de tributação mencionado no número anterior. . (…)”

 O artigo 5º acrescentava: 

“Apenas podem beneficiar da dedução a que se refere o artigo 4.º os sujeitos passivos de IRC que preencham cumulativamente as seguintes condições:

a) O seu lucro tributável não seja determinado por métodos indirectos;

b) Não sejam devedores ao Estado e à segurança social de quaisquer impostos ou contribuições, ou tenham o seu pagamento devidamente assegurado.”

 Na verdade, aquele diploma não refere que os créditos dele provenientes são dedutíveis a toda e qualquer colecta de IRC, antes define o âmbito da dedução aludindo, no seu n.º 1 do artigo 4.º “ao montante apurado nos termos do artigo 90.º do Código do IRC, e até à sua concorrência”.

 O n.º 3 do mesmo artigo confirma que é ao montante que for apurado nos termos do artigo 90.º do Código do IRC que releva para concretizar a dedução ao dizer que “a dedução é feita, nos termos do artigo 90.º do Código do IRC, na liquidação respeitante ao período de tributação mencionado no número anterior”.

Assim, por mera interpretação declarativa, conclui-se que a referência que no artigo 4.º, n.º 1 e 3 se faz à “dedução (…) nos termos do artigo 90.º do Código do IRC (…)” como forma de materializar o benefício fiscal, abrange, literalmente também a colecta de IRC resultante das tributações autónomas, que integra a colecta única de IRC.

 

O facto de o artigo 5.º do Regime afastar o benefício quando o lucro tributável seja determinado por métodos indirectos e nas tributações autónomas se incluírem situações em que se visa indirectamente a tributação de lucros (designadamente, não dando relevância ou desmotivando factos susceptíveis de os reduzirem), não tem qualquer relevância para este efeito, pois o conceito de «métodos indiretos» tem um alcance preciso no direito tributário, que é concretizado no artigo 90.º da LGT (para além de normas especiais), reportando-se a meios de determinar o lucro tributável, cuja utilização não se prevê para cálculo da matéria colectável das tributações autónomas previstas no artigo 88.º do CIRC.

Por outro lado, se é a necessidade de fazer uso de métodos indirectos que afasta a possibilidade de usufruir do benefício, não se pode justificar esse afastamento em relação à colecta das tributações autónomas, que é determinada por métodos directos.

Para além disso, não pode ver-se, na eventual natureza de normas antiabuso que assumem algumas tributações autónomas uma explicação para o seu afastamento da respectiva colecta do âmbito da dedutibilidade do benefício do SIFIDE, pois não há qualquer suporte legal para afastar a dedutibilidade à colecta proporcionada por correcções baseadas em normas de natureza indiscutivelmente antiabuso, como, por exemplo, as relativas aos preços de transferência ou subcapitalização. Quando o legislador quer afastar a dedutibilidade tem de o dizer expressamente.

Por outro lado, o facto de a dedutibilidade do benefício fiscal do SIFIDE ser limitada à colecta do artigo 90º do CIRC, até à sua concorrência, não permite concluir que o crédito fiscal só seja dedutível caso haja lucro tributável, pois o que aquele facto exige é que haja colecta de IRC, que pode existir mesmo sem lucro tributável, designadamente por força das tributações autónomas.

Assim, apontando o teor literal do artigo 4.º do SIFIDE no sentido de a dedução se aplicar também à colecta de IRC derivada de tributações autónomas apurada nos termos do artigo 90.º do CIRC, só por via de uma interpretação restritiva se poderá afastar a aplicação daquele benefício fiscal à colecta de IRC proporcionada pelas tributações autónomas. 

A viabilidade de uma interpretação restritiva encontra, desde logo, um obstáculo de ordem geral, que é o de que as normas que criam benefícios fiscais têm a natureza de normas excepcionais, como decorre do teor expresso do artigo 2.º, n.º 1, do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), pelo que, na falta de regra especial, devem ser interpretadas nos seus precisos termos, como é jurisprudência pacífica. No caso dos benefícios fiscais, prevê-se explicitamente a possibilidade de interpretação extensiva (artigo 10.º do EBF), mas não de interpretação restritiva, pelo que, em regra, o benefício fiscal não deve ser interpretado com menor amplitude do que a que, numa interpretação declarativa, resulta do teor da norma que o prevê.

 De qualquer modo, uma interpretação restritiva apenas se justifica quando «o intérprete chega à conclusão de que o legislador adotou um texto que atraiçoa o seu pensamento, na medida em que diz mais do que aquilo que pretendia dizer. Também aqui a ratio legis terá uma palavra decisiva. O intérprete não deve deixar-se arrastar pelo alcance aparente do texto, mas deve restringir este em termos de o tornar compatível com o pensamento legislativo, isto é, com aquela ratio. O argumento em que assenta este tipo de interpretação costuma ser assim expresso: cessante ratione legis cessat eius dispositio (lá onde termina a razão de ser da lei termina o seu alcance)»[1].

Como fundamento para uma interpretação restritiva poderá aventar-se o facto de que algumas tributações autónomas visarem desincentivar certos comportamentos dos contribuintes suscetíveis de afetar o lucro tributável, e, consequentemente, diminuírem a receita fiscal, e a sua força desincentivadora será atenuada com a possibilidade de a respectiva colecta poder ser objeto de deduções. Por isso, há que apreciar se há razões que justifiquem uma conclusão sobre a incompatibilidade do sentido do texto do artigo 90.º do CIRC, com a ratio legis daquele benefício fiscal.  Mas, o desincentivo desses comportamentos é justificado apenas pelas preocupações de protecção da receita fiscal e os benefícios fiscais concedidos, por definição, são «medidas de carácter excecional instituídas para tutela de interesses públicos extrafiscais relevantes que sejam superiores aos da própria tributação que impedem» (artigo 2.º, n.º 1, do EBF).  E, no caso dos benefícios fiscais do SIFIDE, as razões de natureza extrafiscal que justificam a sua sobreposição às receitas fiscais são, na perspectiva legislativa, de enorme importância, como se infere da fundamentação no Relatório do Orçamento do Estado para 2011: “II.2.2.4.4. Sistema de Incentivos Fiscais em Investigação e Desenvolvimento Empresarial II (SIFIDE). Tendo em conta que uma das valias da competitividade em Portugal passa pela aposta na capacidade tecnológica, no emprego científico e nas condições de afirmação no espaço europeu, a Proposta de Orçamento do Estado para 2011 propõe renovar o SIFIDE (Sistema de Incentivos Fiscais em Investigação e Desenvolvimento Empresarial), agora na versão SIFIDE, para vigorar nos períodos de 2011 a 2015, possibilitando a dedução à coleta do IRC para empresas que apostam em I&D (capacidade de investigação e desenvolvimento). Dado o balanço positivo dos incentivos fiscais à I&D empresarial, e considerando também a evolução do sistema de apoio dos outros países, foi decidido rever e reintroduzir por mais cinco períodos de tributação este sistema de apoio. A I&D das empresas é um facto decisivo não só da sua própria afirmação enquanto estruturas competitivas, como da produtividade e do crescimento económico a longo prazo, facto, aliás, expressamente reconhecido no Programa do XVIII Governo, assim como em vários relatórios internacionais recentes. É neste contexto que, no panorama internacional, a OCDE considera desde 2001 Portugal como um dos três países com um avanço mais significativo na I&D empresarial. Sendo o sistema nacional vigente, comparativamente aos demais sistemas que utilizam a dedução à coleta e a distinção entre taxa base e taxa incremental, é um dos mais atrativos e competitivos.”

Sendo a investigação e desenvolvimento das empresas «um facto decisivo não só da sua própria afirmação enquanto estruturas competitivas, como da produtividade e do crescimento económico a longo prazo», compreende-se que se tenha dado preferência ao incentivo da aposta na capacidade tecnológica, no emprego científico e nas condições de afirmação no espaço europeu, que, a prazo se reconduzem à obtenção de maiores receitas fiscais.

A importância que, na perspectiva legislativa, foi reconhecida a este benefício fiscal previsto no SIFIDE, é também decisivamente confirmada pelo facto de ele ser indicado como estando especialmente excluído do limite geral à relevância de benefícios fiscais em IRC, que se indica no artigo 92.º do CIRC, na redacção à data dos factos.  Por isso, é, também por esta via, seguro que se está perante benefícios fiscais cuja justificação é legislativamente considerada mais relevante que a obtenção de receitas fiscais, inferindo-se daquele artigo 92.º que a intenção legislativa de incentivar os investimentos em investigação e desenvolvimento previstos no SIFIDE é tão firme que vai ao ponto de nem sequer se estabelecer qualquer limite à dedutibilidade da colecta de IRC, apesar de este regime fiscal ter sido criado e aplicado num período de notórias dificuldades das finanças públicas.

Assim, não se vê fundamento legal, designadamente à face da intenção legislativa que é possível detectar, para, com fundamento numa interpretação restritiva, afastar a dedutibilidade do benefício fiscal do SIFIDE à colecta das tributações autónomas que resulta diretamente da letra do artigo 4.º, n.º 1, do respectivo diploma, conjugado com o artigo 90.º do CIRC.

Como se disse, ao estabelecer um benefício fiscal por dedução à colecta de IRC, o legislador optou por prescindir da receita fiscal que este imposto poderia proporcionar, na medida da concessão do benefício fiscal. Para esta ponderação relativa dos interesses em causa (receita fiscal versus estímulo forte ao investimento) é indiferente que essa receita provenha de cálculos efetuados com base no artigo 87.º ou no artigo 88.º do CIRC. Na verdade, seja qual for a forma de cálculo dessa receita fiscal, está-se perante dinheiro cuja arrecadação o legislador considerou ser menos importante do que a prossecução da finalidade económica referida. Das duas alternativas que se deparavam ao legislador relativamente ao incentivo aos investimentos previstos no SIFIDE, que eram, por um lado, manter intactas as receitas provenientes de IRC (incluindo as de tributações autónomas) e não ver incentivado o investimento em investigação e desenvolvimento e, por outro lado, concretizar esse incentivo com perda de receitas de IRC, a ponderação que necessariamente está subjacente ao SIFIDE é a da opção pela criação do inventivo com prejuízo das receitas. E, naturalmente, sendo a criação do incentivo ao investimento melhor, na perspetiva legislativa, do que a arrecadação de receitas, não se vislumbra como possa ser relevante que as receitas de IRC que se perdem para concretizar o incentivo provenham da tributação geral de IRC prevista no n.º 1 do artigo 87.º ou das tributações a taxas especiais previstas nos n.ºs 4 a 6 do mesmo artigo, ou das tributações autónomas previstas no artigo 88.º: em todos os casos, a alternativa é a mesma entre criação do incentivo e arrecadação de receitas de IRC e a ponderação relativa que se pode fazer dos interesses conflituantes é idêntica, quaisquer que sejam as formas de determinar o montante de IRC de que se prescinde para criar o incentivo.

E, no caso do benefício fiscal do SIFIDE, as razões de natureza extrafiscal que justificam o incentivo com perda de receita são fortíssimas, pois considera-se que os investimentos incentivados são um factor decisivo na competitividade futura do país.

Por isso, é seguro que se está perante benefício fiscal cuja justificação é legislativamente considerada mais relevante que a obtenção de receitas fiscais provenientes de IRC, seja qual for a base do seu cálculo, pois o que está em causa é sempre prescindir ou não de determinada quantia em dinheiro para criar um incentivo ao investimento. 

Neste contexto, a natureza das tributações autónomas e as soluções legislativamente adotadas, em geral, em relação a elas, não têm qualquer relevância para a apreciação desta questão, pois esta tem de ser apreciada à face dos específicos interesses que na sua ponderação se entrechocam.

Na verdade, o que está em causa é, exclusivamente, determinar o alcance do SIFIDE, que estabelece um regime de natureza excecional, que visou prosseguir determinados interesses públicos, e não contribuir para a decisão de qualquer questão conceitual sobre a natureza das tributações autónomas, matéria sobre a qual não se vislumbra quer no texto da lei, quer no Relatório do Orçamento para 2011, a menor preocupação legislativa. 

Pelo exposto, convergindo os elementos literal e racional da interpretação do artigo 4.º do Regime do SIFIDE no sentido de que as despesas de investimento nele previstas são dedutíveis à «ao montante apurado nos termos do artigo 90.º do Código do IRC, e até à sua concorrência», é de concluir que elas são dedutíveis à globalidade dessa colecta, que engloba, para além, da derivada da tributação dos lucros em cada período fiscal, a que resulta de outras componentes positivas do imposto, designadamente de tributações autónomas, derrama estadual e IRC de períodos de tributação anteriores. 

Assim, terá de aceitar-se a dedução do SIFIDE à colecta de IRC, nela se incluindo necessariamente a parcela proveniente das tributações autónomas. 

Verifica-se, porém, que o sistema informático não permite a dedução do SIFIDE à parte da colecta de IRC proveniente das tributações autónomas. O facto de as formas da determinação da matéria coletável e de as taxas das tributações autónomas de IRC serem estabelecidas separadamente e serem diferentes das do restante IRC não parece ser razão suficiente, nem ter suporte legal, para a solução informática existente. 

 

1.4 A redacção dada ao artigo 88.º do CIRC pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março

Aqui chegados, há que analisar a questão do n.º 21 do artigo 88º do CIRC, introduzido pela Lei que aprovou o Orçamento de Estado para 2016 (Lei 7-A/2016, de 30 de março). Na verdade, foram aditados por esta Lei vários números ao artigo 88.º do CIRC, que se refere às tributações autónomas, entre eles o número 21, segundo o qual “A liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos no artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado.”  E, no artigo 135.º da Lei 7-A/2016, de 30 de Março, dispõe o legislador que “a redação dada pela presente lei ao n.º 6 do artigo 51.º, ao n.º 15 do artigo 83.º, ao n.º 1 do artigo 84.º, aos números 20 e 21 do artigo 88.º e ao n.º 8 do artigo 117.º do Código do IRC tem natureza interpretativa.”

A Administração Tributária entende que a nova redacção do artigo 88.º impede a dedução, nos termos do artigo 90.º, do SIFIDE à colecta que resulte das tributações autónomas. Atendendo a que estão em causa liquidações de IRC do exercício de 2012, importa assim analisar qual o efeito que aquele número e o carácter interpretativo que é atribuído pelo legislador à sua introdução em 2016 têm sobre os factos em apreço.

Vigora na codificação substantiva nacional o princípio de não retroatividade, que é constitucionalmente consagrado quanto à lei fiscal. Acontece que uma lei interpretativa não é, dita o artigo 13º, n.º 1, do Código Civil, retroactiva.  

Nos termos ali prescritos, para que uma lei nova – como é, no caso em apreço, o número 21 do artigo 88.º do CIRC - possa ser realmente interpretativa são necessários dois requisitos: que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta: e é um facto que a decisão que se impõe a este Tribunal tem carácter controvertido.

Necessário é, porém, também que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei. Pelo que se o julgador ou o intérprete, em face de textos antigos, não podiam sentir-se autorizados a adotar a solução que a lei nova vem consagrar, então esta é decididamente inovadora. 

Não basta, porém, que o legislador expressamente confira à lei nova carácter interpretativo para que ela se aplique à questão controvertida que surgira antes da entrada em vigor da lei nova, putativamente interpretativa, para que o julgador esteja obrigado a aplicá-la ao caso concreto. É necessário que o julgador se sentisse habilitado, em face do texto antigo, a adoptar a solução que a lei agora preconiza.  Norma interpretativa, portanto, é norma que não altera qualquer conteúdo ou elemento da norma interpretada, vem tão só traduzir o seu significado. 

Uma norma que altera o sentido, conteúdo ou o alcance da norma interpretada não estará a interpretar, antes a modificar a regra, criando nova norma, instituindo novos direitos, deveres e obrigações. 

Sendo certo que até a norma interpretativa deve respeitar os direitos adquiridos sob a vigência da norma interpretada, particularmente em questões relativamente às quais a proibição de retroactividade está especialmente consagrada na Constituição, como é o caso na lei fiscal, cuja retroactividade está proibida pelo n.º 3 do artigo 103.º da CRP. 

Neste contexto, a emissão pelo legislador de lei interpretativa, com efeitos retroactivos, só é concebível quando, sem qualquer dúvida, se limite a simplesmente reproduzir (= produzir de novo), ainda que com outro enunciado, o conteúdo normativo interpretado, sem modificar ou limitar o seu sentido ou o seu alcance. Isso, bem se percebe, é hipótese de difícil concepção, quase inconcebível, a não ser no plano teórico, ainda mais quando se considera que o conteúdo de um enunciado normativo reclama, em geral, interpretação sistemática, não podendo ser definido isoladamente[2].

No caso sub judice, por tudo o que se deixou já explicitado supra, entende-se que o texto da lei em vigor à data dos factos em crise não permitia que se concluísse que estava vedada a dedução do SIFIDE à parte da colecta de IRC que resultava das tributações autónomas. 

Isto porque, como dissemos supra, o legislador em lado algum apontava para essa solução e, no artigo 90.º do CIRC, não distinguia, no que respeita às deduções possíveis à coleta de IRC, aquela que resultava das tributações autónomas da restante. E onde a lei não distingue não cabe ao intérprete distinguir. 

Entendemos, pois, que o número 21 do artigo 88.º do CIRC não tem caráter interpretativo no que respeita à questão em discussão, não se aplicando a factos ocorridos antes da sua entrada em vigor, nomeadamente, aos factos e liquidações sub judice.

 A esta conclusão chegou recentemente, com fundamentação detalhada o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 267/2017, de 31 de Maio, no qual de afirma que “aquele que representava um certo entendimento jurisprudencial quanto à admissibilidade de deduções ao montante global da coleta de IRC, incluindo nesta o valor das tributações autónomas – como o sufragado nas decisões do CAAD proferidas no âmbito dos processos n.ºs 769/2014-T, 163/2014-T, 219/2015-T e 370/2015 –, deixou de ser admissível à luz do citado n.º 21. Daí ser inequívoco o caráter substancialmente retroativo desse preceito, entendido como lei interpretativa. Dado o conteúdo gravoso para os contribuintes da nova solução legal – visto que tende a agravar o quantum devido a título de IRC –, a pretensão de a mesma se aplicar a anos fiscais anteriores ao do início da sua vigência mostra-se flagrantemente incompatível com a proibição constitucional de impostos retroativos (cfr. o artigo 103.º, n.º 3, da Constituição)”.

 

Termos em que se conclui que o ato de autoliquidação de IRC relativo ao exercício de 2012, na medida correspondente à não dedução de parte da colecta do IRC, enferma de vício de violação de lei que justifica a sua anulação, o mesmo sucedendo com a decisão da revisão oficiosa, na medida em que não reconheceu essa ilegalidade.

  Fica, pois, prejudicada a análise da questão suscitada pela Requerente quanto à eventual ilegalidade e consequente anulação da liquidação das tributações autónomas por ausência de base legal para a sua liquidação.

 

1.5. Dos juros indemnizatórios 

Finalmente, tratemos o pedido formulado pela Requerente de reembolso das quantias que aqui se julgaram já indevidamente (auto)liquidadas e pagas em consequências da autoliquidação em crise. 

A Requerente pede ainda juros indemnizatórios pelo pagamento indevido do IRC, desde 1 de Setembro de 2013, quanto a € 507.058,70.

De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão, de que não caiba recurso ou impugnação, vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT] que estabelece, que «a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do ato ou situação objeto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão». 

Embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira diretriz, que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária».

Ora, é pacífico que o processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de atos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como resulta do disposto no artigo 43.º, n.º 1, da LGT e do artigo. 61.º, n.º 4 do CPPT. 

Assim, o n.º 5 do artigo. 24.º do RJAT, ao dizer que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral. 

Cumpre, assim, apreciar o pedido de reembolso do montante indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios. 

No caso em apreço, é manifesto que, na sequência da ilegalidade dos atos de liquidação, há lugar a reembolso do imposto pago, por força dos referidos artigos. 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para «restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado». 

Quanto aos juros, o regime substantivo do direito a juros indemnizatórios é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, que “1 - São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido. 2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efetuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.”   

Ora, no caso em apreço, a ilegalidade das autoliquidações é totalmente imputável à AT, Requerida, face ao que foi supra dado como provado relativamente à estrutura da declaração Modelo 22 do IRC no sistema informático da AT, organização que é, naturalmente, da total responsabilidade desta, e que não permitia à Requerente efectuar a autoliquidação nos termos que aqui se julgaram serem os legais.  

Por outro lado, também a manutenção da situação ilegal, i. e., a decisão da revisão oficiosa, é imputável à Administração Tributária, que a indeferiu por sua iniciativa.

Das autoliquidações em crise, caso fosse considerada a dedução do SIFIDE à coleta do IRC associada às tributações autónomas, a Requerente não teria de ter procedido ao pagamento de imposto nos montantes referidos. Consequentemente, a Requerente tem direito aos juros indemnizatórios peticionados, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1, e 35.º, n.º 10 da LGT, do artigo 24.º, n.º 1, do RJAT, do artigo 61.º, n.ºs 3 e 4, do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril (ou outra ou outras que alterem a taxa legal), desde a data referida até integral pagamento.

 

V. DECISÃO

 

Em face do exposto, decide-se julgar totalmente procedentes os pedidos da Requerente e, em consequência:

a)      Anular, por ilegal, a autoliquidação impugnada, bem como a decisão do pedido de revisão oficiosa;

b)      Determinar o reembolso à Requerente do imposto liquidado, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos atrás apontados.

c)      Condenar a Requerida nas custas do processo.

 

VI. VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se em € 507.058,70 o valor do processo, nos termos do disposto no artigo 97º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

 

 

Notifique-se.

 

 

Lisboa, 15 de Dezembro de 2017.

 

 

Os árbitros

 

 

 

(José Baeta de Queiroz)

 

 

 

(João Taborda da Gama)

 

 

 

(Manuel Pires – vencido, conforme declaração anexa, que integra a presente decisão)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Declaração de voto

Votei vencido por entender verificar-se a incompetência material do tribunal arbitral. O art. 1.º do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, estabeleceu “a arbitragem como meio alternativo de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária”. No entanto, “a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituído nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos” (art. 4º nº1 do citado Decreto-Lei). Daí não corresponder à lei a simples opção entre aderir ou não, genérica e abstractamente, à arbitragem, mas sim aderir a algo com limitações admissíveis. Em conformidade, na Portaria nº 112-A/2013, de 22 de Maio, estabeleceu-se a vinculação da agora AT à jurisdição dos tribunais arbitrais (artigos 1º e 2º proémios) “com excepção das (…) pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamentos por conta, que não tenham sido precedidos de recurso de via administrativa nos termos dos artigos 131º a 133º do Código de Procedimento e de Processo Tributário” [citado artigo 2º alínea a)]. A adesão, pois “a este mecanismo de resolução alternativa de litígios “foi” nos termos e condições aqui [na citada portaria] estabelecidos, atendendo à especificidade e valor das matérias em causa”, não se podendo, assim, invocar, sem mais, a plenitude do carácter alternativo da arbitragem com a impugnação, visto terem sido permitidas e estabelecidas limitações a que se tem necessariamente de atender, até pela sua relevância redobrada, no caso, por, não obstante ser excepção a apreciação de agora em causa, opera-se o retorno à possibilidade da competência, cumprindo-se algo que, sem ele, estaria fora do campo da arbitragem, isto é, está-se perante uma excepção à excepção. A limitação no caso sob julgamento, é a precedência da reclamação graciosa e não “o recurso à via administrativa” em geral referido, mas imediatamente limitado. De outro modo porque se acrescentou algo ao recurso a tal via? Seria uma inutilidade. E é porque existe especificidade e não generalidade que não é aceitável a ideia de que o desejado foi qualquer tipo de apreciação prévia pela Administração de algo, por ela não ainda considerado, a ser submetido a entidade fora do seu âmbito, e não é aceitável porque houve especificidade estabelecida pela norma, houve limitação da via a utilizar. Aliás, a limitação é ainda mais ostensiva quando a lei de autorização da arbitragem refere no âmbito das possibilidades do objecto do processo, os “actos de indeferimento total ou parcial de reclamações graciosas ou de pedidos de revisão de actos tributários, os actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação”, redacção muito mais ampla do que a acolhida finalmente. É certo estarem ultrapassados desde há muito os brocardos in claris non fit interpretativo ou ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemuss, mas a extensão da letra da lei, o que ocorreria no caso, só é admissível por razões claras e determinantes, o que não ocorre, visto nem sequer haver quaisquer razões, atento a reclamação graciosa e a revisão (oficiosa) constituírem procedimentos diversos quer pela iniciativa (artigos 68º do CPPT e 78º da LGT), quer pelos objectivos (idem), quer pelos prazos (artigos 70º do CPPT e 78º da LGT) quer pelo decisor (artigos 75º do CPPT, 78.º da LGT e 6º n.º 4 do Decreto-lei nº 433/99), quer pelos efeitos (artigos 68º do CPPT e 79º da LGT), sendo relevantes, no caso em apreciação, os prazos e o decisor. Portanto não é indiferente o recurso a qualquer das duas vias. Como resultado do que se escreveu, não é admissível, seria mesmo incongruente que a lei incluísse implicitamente a perfeita equiparação, referindo apenas a reclamação, tendo em mente a interpretação do termo conforme a jurisprudência no âmbito da impugnação judicial cuja disposição relevante – artigo 131º do CPPT – não refere a reclamação a seguir a “recurso à via administrativa”, redacção com função explicito-limitativa (daí não se ver onde está o “mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”, incluindo no artigo 9º nº 2 do CC para impor sentido diverso). Portanto, não basta, para sustentar a opinião contrária, a remissão para o artigo 131º do CPPT. Não existe, pois, razão, para se desconhecer a reserva formulada, ferindo com esse desconhecimento, a liberdade e a opção feita, liberdade e opção que legal e claramente conduziram a uma alternativa restringida do processo arbitral face à impugnação, ao seu carácter alternativo, liberdade reconhecida pelo decreto-lei e simplesmente concretizada pela portaria, daí não se poder imputar a esta ilegalidade de qualquer grau. O contrário seria a ampliação da vinculação limitada que claramente foi permitida, vinculação não existente no caso da impugnação, limitação que poderia até ter sido mais ampla, dado o disposto no decreto-lei sob referência, e que, com o carácter acolhido, não impossibilita “a arbitragem como meio alternativo da resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária”, visto ser possível a arbitragem, o que antes não sucedia, não sendo igualmente invocável a extinção do direito do contribuinte, porque não lhe foi concedida a escolha que pode existir noutros domínios mas não neste, pelos motivos aqui amplamente referenciados. Invocar uma não concordância do género de palavra (“precedidos” em vez de “precedidas”, porque referida a pretensões) como algo probatório da falta de rigor na redacção do preceito sob análise, conduzindo a outra deficiência (!) que seria a oposição da reclamação à via administrativa em geral, aposição que, segundo a mesma opinião, seria desnecessária, é algo que, pela comparação feita, não envolve comentário prolongado, atento os dois casos serem qualitativamente bem diversos. A exigência é clara, não existe qualquer imperfeição, não esquecendo que “na fixação do sentido e do alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador considerou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (artigo 9º nº 3 do CC). No sentido sustentado, afigura-se que o Conselheiro Jorge Lopes de Sousa ensinou em 2011: “de harmonia com o disposto no art. 2.º, alínea a), da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de março, relativamente a atos de autoliquidação, a Administração Tributária apenas se vinculou a jurisdição dos tribunais arbitrais se o pedido se o pedido de declaração de ilegalidade tiver sido precedido de recurso à via administrativa, isto é, de reclamação graciosa. Por isso, se o sujeito passivo pretender apresentar um pedido de declaração de ilegalidade perante um tribunal arbitral, a reclamação graciosa será sempre necessária” (Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, 6ª edição, 2011, II volume, pág. 409; cfr. para outros tipos de casos, págs. 430 e 428). E não se diga também, por reflectir pensamento outrora em voga e não o pensamento esclarecido actual, que a solução objecto de dissenso tem uma função garantística, visto a liquidação de impostos ter natureza agressiva ou mesmo fortemente agressiva e para apoio da nossa divergência não é necessário recorrer a Murphy e Nagel com o seu The Myth of Ownership – the taxes and justice. Nestes termos, deveria ser decidida a incompetência material deste tribunal arbitral para apreciar o presente caso, julgando procedente a invocada excepção, não devendo, pois, conhecer o mérito do pedido. E não se diga, utilizando o sentido usual, estar-se perante vox clamantis in deserto. Aliás, acrescente-se que, mesmo sendo o Tribunal competente, a pretensão da Requerente não deveria merecer provimento, conforme o meu voto no processo 216/2017-T, existindo ainda a decisão condenatória de reembolso contrariando o estabelecido quanto a outro aspecto da competência do tribunal (cfr. os acórdãos em processo arbitral nºs 52/2012, 244/2013, 587/2014 e 30/2015).

 

(Manuel Pires)

 



[1]  J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1999, p. 186.

[2]  Cf. Juarez Freitas, A Interpretação Sistemática do Direito, SP, Malheiros, 1995, p. 47.