Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 358/2017-T
Data da decisão: 2017-11-10  IUC  
Valor do pedido: € 503,70
Tema: IUC
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Decisão Arbitral

            I – Relatório

 

            1.1. A…, NIF…, residente na …, n.º … -…, …-… …, Braga (doravante designada por «requerente»), tendo sido notificada de despacho de indeferimento de reclamação graciosa relativa a liquidação de IUC do ano de 2016 da viatura com matrícula …, apresentou, em 5/6/2017, um pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral, nos termos do disposto no art. 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/1 (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante somente designado por «RJAT»), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), tendo em vista que seja “dado sem efeito a referida liquidação de IUC à recorrente por manifestamente a mesma já não ser proprietária do veículo em causa nos autos, sendo ilegal a liquidação de tal imposto.”

 

            1.2. A 18/8/2017 foi constituído o presente Tribunal Arbitral Singular.

 

            1.3. Nos termos do art. 17.º, n.º 1, do RJAT, foi a AT citada, enquanto parte requerida, para apresentar resposta, nos termos do referido artigo. A AT apresentou a sua resposta em 29/9/2017, tendo argumentado no sentido da total improcedência do pedido da Requerente.

 

            1.4. Por despacho de 2/11/2017, o Tribunal considerou, nos termos do art. 16.º, al. c), do RJAT, ser dispensável a reunião do art. 18.º do RJAT e que o processo estava pronto para decisão. Foi, ainda, fixada a data de 10/11/2017 para a prolação da decisão arbitral.

           

            1.5. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, é materialmente competente, o processo não enferma de vícios que o invalidem e as Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, configurando-se legítimas.

 

            II – Alegações das Partes

 

            2.1. Alega a ora Requerente, na sua petição inicial, que: a) “contrariamente à posição assumida pela Autoridade Tributária, e pelo Sr. Chefe de Finanças Braga …, o registo definitivo mais não constitui do que a presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos exactos termos do registo, mas presunção ilidível, admitindo, por isso, contraprova, como decorre da lei e a jurisprudência vem assinalando [...]. A recorrente vendeu a viatura à firma B… Lda. em 2006. Aliás, em auto de penhora junto ao PEF … T consta precisamente a penhora do referida veículo à dita firma, o que confirma de todo que o referido veículo foi vendido à mesma. [...]. A referida firma entretanto foi declarada insolvente nos autos que com o n.º …/06… TBBRG correram termos pelo 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Braga”; b) “Desde a venda [...] a recorrente nunca mais teve na sua mão os referidos documentos. Acresce que tendo penhoras registadas sobre o veiculo, o IMTT não procede ao cancelamento da matrícula, estando a recorrente impedida de dar baixa da matrícula do referido veículo”; c) “à data da venda da viatura, em 2006, as regras do então Imposto de Circulação, não são as actualmente aplicáveis, sendo então responsável pelo pagamento do imposto quem detinha a posse da viatura”; d) “a ratio legis do imposto aponta no sentido de serem tributados os efectivos proprietários utilizadores dos veículos, pelo que a expressão «considerando-se» está usada no normativo em apreço num sentido semelhante a «presumindo-se», razão pela qual dúvidas não há que está consagrada uma presunção legal”; e) “ora, estabelece o art. 73.º da LGT que «As presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário, pelo que são ilidíveis»”; f) “assim sendo, consagrando o art. 3.º, n.º 1, do CIUC uma presunção juris tantum, portanto, ilidível, a pessoa que está inscrita no registo como proprietária do veículo e que, por essa razão foi considerada pela Autoridade Tributária como sujeito passivo do imposto, pode apresentar elementos de prova visando demonstrar que o titular da propriedade é outra pessoa, para quem a propriedade foi transferida”; g) “dos elementos carreados para o processo pela recorrente extrai-se a conclusão que este não era proprietário do veículo a que respeita a liquidação em apreço, por, entretanto, já ter transferido a propriedade dos mesmos, nos termos da lei civil”; h) “transmissão de propriedade que é oponível à ATA, porquanto, embora os factos sujeitos a registo só produzam efeitos contra terceiros quando registados, face ao disposto no art. 5.º, n.º 1, do Código do Registo Predial, a Autoridade Tributária não é terceiro para efeitos de registo”.

 

            2.2. Em síntese, solicita a ora Requerente que “deve ser dado sem efeito a referida liquidação de IUC à recorrente por manifestamente a mesma já não ser proprietária do veiculo em causa nos autos, sendo ilegal a liquidação de tal imposto.”  

           

            2.3. Por seu lado, a AT vem alegar, na sua contestação: a) “que as alegações da Requerente não podem de todo proceder, porquanto faz uma interpretação e aplicação das normas legais subsumíveis ao caso sub judice notoriamente errada”; b) que “o entendimento propugnado pela Requerente incorre não só de uma enviesada leitura da letra da lei, como da adopção de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal e decorre ainda de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o CIUC”; c) que há “enviesada leitura da letra da lei”, uma vez que, no art. 3.º, n.º 1, do CIUC, “o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais [como proprietários ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas] as pessoas em nome das quais os mesmos [os veículos] se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal. Entender que o legislador consagrou aqui uma presunção seria inequivocamente efectuar uma interpretação contra legem. [...]. Em suma, o artigo 3.º do CIUC não comporta qualquer presunção legal”; d) que “também o elemento sistemático de interpretação da lei demonstra que a solução propugnada pela Requerente é intolerável, não encontrando, o entendimento por esta sufragado, qualquer apoio na lei, porquanto tal resulta não apenas do aludido n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, mas também de outras normas consagradas no referido Código”; e) que, “mesmo admitindo que, do ponto de vista das regras do direito civil e do registo predial, a ausência de registo não afecta a aquisição da qualidade de proprietário e que o registo não é condição de validade dos contratos com eficácia real), nos termos estabelecidos no CIUC (que no caso em apreço constitui lei especial, a qual, nos termos gerais de direito derroga a norma geral), o legislador tributário quis, intencional e expressamente, que fossem considerados como proprietários, locatários, adquirentes com reserva de propriedade ou titulares do direito de opção de compra no aluguer de longa duração, as pessoas em nome das quais [os veículos] se encontrem registados”; f) “que, à luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado em todo o Código do IUC, a interpretação propugnada pela Requerente no sentido de que o sujeito passivo do imposto é o proprietário efectivo, independentemente de não figurar no registo automóvel o registo dessa qualidade, é manifestamente errada”; g) que “o acto tributário em crise não enferma de qualquer vício de violação de lei, na medida em que, à luz do disposto no artigo 3.º, n.os 1 e 2, do CIUC e do artigo 6.º do mesmo código, era a Requerente, na qualidade de proprietária, o sujeito passivo do IUC”; h) que, “[mesmo] aceitando-se ser admissível a ilisão da presunção à luz da jurisprudência já entretanto firmada neste centro de arbitragem, importará referir que a ora requerente não instruiu o seu pedido de pronúncia arbitral com qualquer documento com valor probatório com vista a tal ilisão”; i) “a Requerente não juntou prova documental do contrato de compra e venda, quando podia e devia tê-lo feito, ou seja, no requerimento do pedido de pronúncia arbitral, encontrando-se agora precludida a possibilidade de o fazerem em momento ulterior [...]. Em suma, a Requerente não logrou provar a pretensa transmissão do veículo aqui em causa”; j) “o que a Requerente apresenta é muito pouco, para não dizer nada, para se assim o pretendesse, ilidir uma presunção legal decorrente do registo da viatura em seu nome na data de exigibilidade do imposto”; l) que “a interpretação veiculada pela Requerente [...] mostra-se contrária à Constituição [dado que] traduz-se na violação do princípio da confiança, do princípio da segurança jurídica, do princípio da eficiência do sistema tributário e do princípio da proporcionalidade”; m) que, “ainda que por hipótese académica e sem conceder o Tribunal Arbitral venha a concluir pela procedência do pedido de pronúncia arbitral deduzido pela Requerente, importa salientar [...] [que] o IUC é liquidado de acordo com a informação registral oportunamente transmitida pelo Instituto dos Registos e Notariado [pelo que] o IUC não é liquidado de acordo com informação gerada pela própria Requerida. [...] a Requerida [limitou-se] a dar cumprimento às obrigações legais a que está adstrita e, paralelamente, a seguir a informação registral que lhe foi fornecida por quem de direito”; n) que “não ocorreu, in casu, qualquer erro imputável aos serviços”.

 

2.4. Em síntese, a AT sustenta que “deve ser julgado improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se na ordem jurídica o ato tributário de liquidação impugnado e absolvendo-se, em conformidade, a Requerida do pedido.”

 

            III – Factualidade Provada, Não Provada e Respectiva Fundamentação

 

3.1. Consideram-se provados os seguintes factos:

 

            i) A Requerente alienou o veículo em causa – pesado de mercadorias da marca Scania, de matrícula …– à B… Lda., em 2006.

 

            ii) Conforme alega a ora Requerente (facto este que não é contestado pela Requerida), o referido veículo foi penhorado a 18/5/2007 à ordem do PEF … T. Os autos de penhora juntos ao referido PEF comprovam, por eles mesmos, que o veículo ora em causa foi transferido para terceiros em data anterior à liquidação do IUC. Tal é prova suficiente de que a Requerente não era, à data do imposto, a proprietária do veículo em causa (ainda que este continuasse registado em seu nome).

 

iii) Tendo em vista proceder à venda do referido veículo, o SF de Braga … efectuou várias diligências para o encontrar e a 8/2/2010 encontrou veículo similar mas sem matrícula. Será sobre esse veículo – sem matrícula – que será lavrado, a 16/10/2010, o auto de apreensão de veículo assinado pela Requerente como fiel depositária “sem qualquer informação [de] que o veículo aí depositado não seria o veículo penhorado” (vd. fl. 24 do PA) – mas também sem qualquer informação segura de que esse veículo depositado era o veículo penhorado.

 

            iv) A liquidação aqui em causa (n.º…) diz respeito a IUC do ano de 2016, para o veículo com a matrícula …, no montante global de €503,70 (= €499,00 de IUC + €4,70 de juros compensatórios), com data limite de pagamento a 20/10/2016. A liquidação foi efectuada a 24/9/2016 (vd. PA apenso aos autos).  

 

            v) Inconformada, a Requerente apresentou reclamação graciosa em 26/1/2017, a qual foi expressamente indeferida a 2/3/2017 (vd. fl. 27 do PA apenso aos autos).

 

vi) Em 5/6/2017, a ora Requerente deduziu o presente pedido de pronúncia arbitral.

 

            3.2. Não há factos não provados relevantes para a decisão da causa.

 

            3.3. Os factos considerados pertinentes e provados (v. 3.1) fundamentam-se na análise das posições expostas pelas partes e da prova documental junta aos presentes autos.

 

            IV – Do Direito

 

            No presente caso, são três as questões de direito controvertidas: 1) saber se o art. 3.º do CIUC contém uma presunção e se a ilisão da mesma foi feita; 2) saber se, como alega a AT, a interpretação da ora Requerente não atende aos elementos sistemático e teleológico de interpretação da lei; 3) saber se houve, como também alega a AT, “a interpretação veiculada pela Requerente [...] mostra-se contrária à Constituição”. Uma nota final analisará a questão, levantada pela Requerida, relativa à responsabilidade pelo pagamento das custas arbitrais. 

 

            Vejamos, então.

 

            1) e 2) As duas primeiras questões de direito confluem na direcção da interpretação do art. 3.º do CIUC, pelo que se mostra necessário: a) saber se a norma de incidência subjectiva, constante do referido art. 3.º, estabelece ou não uma presunção; b) saber se, ao considerar-se que essa norma estabelece uma presunção, tal viola a “unidade do regime”, ou desconsidera o elemento sistemático e o elemento teleológico; c) saber - admitindo que a presunção existe (e que a mesma é iuris tantum) - se foi feita a ilisão da mesma.  

 

            a) O art. 3.º, n.os 1 e 2, do CIUC, tem a seguinte redacção, que aqui se reproduz:

 

            “Artigo 3.º – Incidência Subjectiva

           

1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.

             

            A interpretação do texto legal citado é, naturalmente, imprescindível para a resolução do caso em análise. Nessa medida, afigura-se necessário recorrer ao art. 11.º, n.º 1, da LGT, e, por remissão deste, ao art. 9.º do Código Civil (CC).

 

            Ora, nos termos do referido art. 9.º do CC, a interpretação parte da letra da lei e visa, através dela, reconstituir o “pensamento legislativo”. O mesmo é dizer (independentemente da querela objectivismo-subjectivismo) que a análise literal é a base da tarefa interpretativa e os elementos sistemático, histórico ou teleológico são guias de orientação da referida tarefa.

 

            A apreensão literal do texto legal em causa não gera - ainda que seja muito discutível a separação desta relativamente ao apuramento, mesmo que mínimo, do respectivo sentido - a noção de que a expressão “considerando-se como tais” significa algo diverso de “presumindo-se como tais”. De facto, muito dificilmente encontraríamos autores que, numa tarefa de pré-compreensão do referido texto legal, repelissem, “instintivamente”, a identidade entre as duas expressões.

 

            Confirmando a indistinção (tanto literal como de sentido) das palavras “considerando” e “presumindo” (presunção), vejam-se, por ex., os seguintes artigos do Código Civil: 314.º, 369.º, n.º 2, 374.º, n.º 1, 376.º, n.º 2, e 1629.º. E, com especial interesse, o caso da expressão “considera-se”, constante do art. 21.º, n.º 2, do CIRC. Como assinalam Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, a respeito desse artigo do CIRC: “para além de esta norma evidenciar que o que está em causa em sede de tributação de mais valias é apurar o valor real (o de mercado), a limitação ao apuramento do valor real derivada das regras de determinação do valor tributável previstas no CIS não poder deixar de ser considerada como uma presunção em matéria de incidência, cuja ilisão é permitida pelo artigo 73.º da LGT” (Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4.ª ed., 2012, pp. 651-2).

 

            b) Estes são apenas alguns exemplos que permitem concluir que é precisamente por razões relacionadas com a “unidade do sistema jurídico” (o elemento sistemático) que não se poderá afirmar que só quando se usa o verbo “presumir” é que se está perante uma presunção, dado que o uso de outros termos ou expressões (literalmente similares) também podem servir de base a presunções. E, de entre estas, as expressões “considera-se como” ou “considerando-se como” assumem, como se viu, destaque.

 

            Se a análise literal é apenas a base da tarefa, afigura-se, naturalmente, imprescindível a avaliação do texto à luz dos demais elementos (ou subelementos do denominado elemento lógico). Com efeito, a AT alega, também, que a interpretação da requerente “não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal”, e “que à luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado em todo o Código do IUC, a interpretação propugnada pela Requerente [...] é manifestamente errada”.

 

            Justifica-se, portanto, averiguar se a interpretação que considere a existência de uma presunção no art. 3.º do CIUC colide com o elemento teleológico, i.e., com as finalidades (ou com a relevância sociológica) do que se pretendia com a regra em causa. Ora, tais finalidades estão claramente identificadas no início do CIUC: “O imposto único de circulação obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária” (vd. art. 1.º do CIUC).

 

            O que se pode inferir deste artigo 1.º? Pode inferir-se que a estreita ligação do IUC ao princípio da equivalência (ou princípio do benefício) não permite a associação exclusiva dos “contribuintes” aí referidos à figura dos proprietários mas antes à figura dos utilizadores (ou dos proprietários económicos). Como bem se assinalou na Decisão Arbitral [DA] do processo n.º 73/2013-T: “na verdade, a ratio legis do imposto [IUC] antes aponta no sentido de serem tributados os utilizadores dos veículos, o «proprietário económico» no dizer de Diogo Leite de Campos, os efectivos proprietários ou os locatários financeiros, pois são estes que têm o potencial poluidor causador dos custos ambientais à comunidade.”

 

            Com efeito, se a referida ratio legis fosse outra, como compreender, p. ex., a obrigação (por parte das entidades que procedam à locação de veículos) - e para efeitos do disposto no art. 3.º do CIUC e no art. 3.º, n.º 1, da Lei n.º 22-A/2007, de 29/6 - de fornecimento à DGI dos dados respeitantes à identificação fiscal dos utilizadores dos referidos veículos (vd. art. 19.º)? Será que onde se lê “utilizadores”, devia antes ler-se, desconsiderando o elemento sistemático, “proprietários com registo em seu nome”...?

 

            c) Do exposto retira-se a conclusão de que limitar os sujeitos passivos deste imposto apenas aos proprietários dos veículos em nome dos quais os mesmos se encontrem registados - ignorando as situações em que estes já não coincidam com os reais proprietários ou os reais utilizadores dos mesmos -, constitui restrição que, à luz dos fins do IUC, não encontra base de sustentação. E, ainda que a AT alegue a “intenção [do legislador] foi a de que, para efeitos de IUC, sejam considerados proprietários aqueles que, como tal, constem do registo automóvel”, é necessário ter presente que tal registo, em face do que foi dito anteriormente, gera apenas uma presunção ilidível, i.e., uma presunção que pode ser afastada pela apresentação de prova em contrário. Neste sentido, ver, por ex., o Acórdão do TCASul de 19/3/2015, proc. 8300/14: “O [...] art. 3.º, n.º 1, do CIUC, consagra uma presunção legal de que o titular do registo automóvel é o seu proprietário, sendo que tal presunção é ilidível”.

 

            Seria, aliás, injustificada a imposição de uma espécie de presunção inilidível, uma vez que, sem uma razão aparente, estar-se-ia a impor uma (reconhecidamente discutível) verdade formal em detrimento do que realmente podia e teria ficado provado; e, por outro lado, a afastar o dever da AT de cumprimento do princípio do inquisitório estabelecido no art. 58.º da LGT, i.e., o dever de realização das diligências necessárias para uma correcta determinação da realidade factual sobre a qual deve assentar a sua decisão (o que significa, no presente caso, a determinação do proprietário actual e efectivo do veículo).

 

            Acresce que, se não se permitisse ao vendedor a ilisão da presunção constante do art. 3.º do CIUC, estar-se-ia a beneficiar, sem uma razão plausível, os adquirentes que, na posse de formulários de contratos de aquisição correctamente preenchidos e assinados, e usufruindo das vantagens associadas à sua condição de proprietários, se tentassem eximir, por via de um “formalismo registral”, ao pagamento de portagens ou coimas.

 

            A este propósito, convém notar, também, que o registo de veículos não tem eficácia constitutiva, funcionando, como antes se disse, como uma presunção ilidível de que o detentor do registo é, efectivamente, o proprietário do veículo. Neste sentido, vd., v.g., o Ac. do STJ de 19/2/2004, proc. 03B4639: “O registo não surte eficácia constitutiva, pois que se destina a dar publicidade ao acto registado, funcionando (apenas) como mera presunção, ilidível, (presunção «juris tantum») da existência do direito (art.s 1.º, n.º 1 e 7.º, do CRP84 e 350.º, n.º 2, do C.Civil) bem como da respectiva titularidade, tudo nos termos dele constantes.”

 

            No mesmo sentido, referiu, a este respeito, a DA proferida no processo n.º 14/2013-T, em termos que se acompanham: “a função essencial do registo automóvel é dar publicidade à situação jurídica dos veículos não surtindo o registo eficácia constitutiva, funcionando (apenas) como mera presunção ilidível da existência do direito, bem como da respectiva titularidade, tudo nos termos dele constante. A presunção de que o direito registado pertence à pessoa em cujo nome está inscrito pode ser ilidida por prova em contrário. Não preenchendo a AT os requisitos da noção de terceiro para efeitos de registo [circunstância que poderia impedir a eficácia plena dos contratos de compra e venda celebrados], não pode prevalecer-se da ausência de actualização do registo do direito de propriedade para pôr em causa a eficácia plena do contrato de compra e venda e para exigir ao vendedor (anterior proprietário) o pagamento do IUC devido pelo comprador (novo proprietário) desde que a presunção da respectiva titularidade seja ilidida através de prova bastante da venda.”

 

            Ora, no caso aqui em análise, verifica-se que a ilisão da presunção (por via dos autos de penhora juntos ao PEF…T) foi realizada. Com efeito, conforme alega a ora Requerente (facto este que não é contestado pela Requerida), o veículo foi penhorado em 18/5/2007 à ordem do referido PEF (vd. ponto ii) da factualidade provada).

 

Assim sendo – e ainda que não tenham sido trazidos aos presentes autos documentos a comprovar a venda do veículo em causa em 2006 (como alegado pela Requerente) –, os autos de penhora juntos ao PEF permitem comprovar que o veículo foi transferido para terceiros em data anterior à liquidação do IUC. E tal é prova suficiente de que a Requerente não era, à data do imposto, a proprietária do veículo em causa (mesmo que este continuasse registado em seu nome) – no mesmo sentido, ver, por exemplo, a DA datada de 25/1/2017, proferida no proc. 333/2016-T: “[o] PEF ...T [...] comprova a transferência da propriedade do respectivo veículo automóvel para terceiros. Desta forma, a propriedade do referido veículo já não lhe pertencia, não podendo, por isso, usufruir da sua utilização, desde data anterior aquela em que o IUC era exigível, corporizando, assim, meio de prova com força bastante e adequada para ilidir a presunção fundada no registo, conforme o preceituado no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, documento, esse, que goza, da presunção da veracidade prevista no n.º 1 do artigo 75.º da LGT. Decorrendo do exposto que, à data em que o IUC era exigível quem detinha a propriedade do veículo automóvel não era a Requerente” (ver, também, a DA de 25/1/2016, proferida no proc. 571/2015-T).

           

            3) Conclui-se, em face do que foi supra exposto [em 1) e 2)], não existir interpretação “contrária à Constituição”, ao contrário do que é alegado pela requerida nos pontos 73.º a 81.º da sua resposta.

 

Responsabilidade pelo Pagamento das Custas Arbitrais

 

Defende a Requerida, no ponto 95.º da sua resposta, que “a Requerente [deverá] ser condenada ao pagamento das custas arbitrais decorrentes do presente pedido de pronúncia arbitral”, dado que “de tudo quanto supra se expôs resulta claro que o ato tributário em crise é válido e legal, porque conforme ao regime legal em vigor à data do facto tributário, pelo que, não ocorreu, in casu, qualquer erro imputável aos serviços.” (vd. ponto 96.º da mencionada resposta).

Ora, a este respeito, é necessário ter presente que, como bem refere, por ex., a Decisão Arbitral proferida no processo n.º 241/2014-T, de 6/10/2014, “a lei é taxativa na imputação da responsabilidade pelo pagamento das custas à parte que for condenada, face ao disposto nos nºs 1 e 2, do art. 527.º do Código do Processo Civil, aplicável por força do art. 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.” (No mesmo sentido, ver, por ex., a DA proferida no proc. n.º 231/2014-T, de 4/11/2014, ou a DA proferida no proc. n.º 171/2014-T, de 17/11/2014.)

 

            No caso destes autos, tendo procedido totalmente o pedido da Requerente [vd., supra, 1) a 3)], conclui-se que a Requerida é a inteira responsável pelo pagamento das custas.     

           

 

***

 

            V – DECISÃO

 

            Em face do supra exposto, decide-se:

 

            – Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, com a consequente anulação, com todos os efeitos legais, do acto de liquidação de IUC impugnado e o reembolso do montante indevidamente pago.

           

 

 

Fixa-se o valor do processo em €503,70 (quinhentos e três euros e setenta cêntimos), nos termos do art. 32.º do CPTA e do art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no art. 29.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT, e do art. 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

Custas a cargo da requerida, no montante de €306,00 (trezentos e seis euros), nos termos da Tabela I do RCPAT, e em cumprimento do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do disposto no art. 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

 

Notifique.

 

Lisboa, 10 de Novembro de 2017.

 

 

O Árbitro

 

 

 

(Miguel Patrício)

 

 

 

***

 

Texto elaborado em computador, nos termos do disposto

no art. 131.º, n.º 5, do CPC, aplicável por remissão do art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.