Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 388/2017-T
Data da decisão: 2018-03-08  IRS  
Valor do pedido: € 159.847,61
Tema: IRS – Presunção de distribuição de lucros aos sócios – Artigo 6º nº 4 do CIRS
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Decisão Arbitral

 

I – RELATÓRIO

  1. pedido  

A…, S.A., pessoa coletiva n.º…, com sede na …,  …, …-… …, doravante designada por Impugnante, apresentou, em 23-06-2017, ao abrigo do disposto na al. a) do n.º 1 do art.º 2º e no art.º 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprova o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), um pedido de pronúncia arbitral, em que é Demandada a AT - Autoridade Tributária e Aduaneira, com vista a:

  1. A anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa nº …, proferida através de despacho de 23-03-2017 pelo Chefe de Divisão da da Direção de Finanças;
  2. A anulação das liquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) números 2016… (2012) e 2016… (2013) sobre as quais incidiu a reclamação graciosa nº … acima referida;
  3. A condenação da Demandada ao pagamento de juros indemnizatórios.

 

  1. Fundamento do pedido

Para sustentar o seu pedido, a Impugnante alega, em síntese:

  • A sociedade vendeu a dois dos seus acionistas quotas representativas do capital da B…, Lda., sociedade civil sob a forma de sociedade por quotas.
  • Os acionistas adquirentes das ditas quotas não procederam de imediato ao seu pagamento, ficando devedores à sociedade do respectivo preço.
  • Está em causa a aplicação ao caso concreto da presunção contida no nº 4 do artigo 6º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS) que diz que “os lançamentos a seu favor, em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento de lucros”.
  • O art. 73º da Lei Geral Tributária (doravante LGT) determina que as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário.
  • É jurisprudência assente que cabe à AT – Autoridade Tributária e Aduaneira a prova do “facto base” sobre o qual a lei aciona uma presunção.
  • No caso, os factos-base são (ii) a existência de fluxos financeiros, (ii) registados em conta corrente de sócios, (iii) que não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais.
  • No que respeita ao valor em dívida do preço das cessões de quotas, não restam dúvidas de que não se trata de mútuos, nem resultam da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais porquanto se trata de um preço de uma alienação de um ativo.
  • A AT nunca provou que houve fluxos financeiros entre a sociedade e os sócios em causa, pelo que a situação nunca poderia ser objeto de prova de um contrato de mútuo.
  • A AT também não provou que a dívida resultante do não pagamento dos ativos alienados estivesse registada numa conta corrente de sócios.
  • A contabilização [da operação] numa conta de outros devedores (conta 27) está conforme com a substância e revela que a sociedade tratou corretamente a operação de venda de um ativo ao sócio como trataria uma venda a um terceiro, ou seja, é uma operação que não diz respeito à relação societária de onde se possa presumir uma distribuição de lucros.
  • No que respeita à alegada injustificação do preço de cessão das quotas e à suspeita de que o valor da transmissão das quotas é superior ao de mercado, não entendemos qualquer relevância para a correção de IRS.
  • Com efeito, se a AT entende que o preço acordado é superior ao de mercado, teria de ter feito prova disso e, em consequência, corrigido para menos o IRS (valor convertido em dividendos) e as mais-valias reconhecidas pela A… . O que não fez.
  • Não se entende a pertinência da questão, levantada pela AT, sobre quem suportou os encargos com a compra ou construção das frações propriedade da B… e consequentemente dos seus sócios.
  • O imóvel, em propriedade total, é da titularidade da sociedade B…, Lda., sendo a sua aquisição/construção muito anterior à data da aquisição de quotas pela A… .
  • Não tendo a AT provado que tenham existido fluxos financeiros que estivessem escriturados em conta corrente de sócios, ficou provado tratar-se de uma dívida comercial da venda de um ativo, cujo preço se encontra justificado com um registo contabilístico em contas adequadas.
  • Ficou demonstrado pela Impugnante que não houve fluxos financeiros no que respeita à dívida do preço de ativos e que, por último, a Impugnante nunca registou lucros, razão por que não havia à data resultados distribuíveis.
  • Como se frustraram as tentativas de obtenção de financiamento bancário que lhes permitisse pagar o que deviam à sociedade, os acionistas adquirentes das quotas exoneraram-se das suas dívidas dando em pagamento à sociedade ações representativas do seu próprio capital social.
  • A dívida registada em “administradores” está na conta 27 811016 (administradores), que não é uma conta corrente de sócios, e respeita a adiantamentos para despesas da sociedade, aguardando-se os respectivos comprovativos, para se poder contabilizar esses custos na sociedade.

 

  1. Resposta

Regularmente notificada, e decorrido o prazo para revogação voluntária dos atos impugnados, a Autoridade Tributária respondeu à impugnação, defendendo a manutenção dos atos de liquidação, e alegando, em síntese, o seguinte:

  • Os balancetes reportados a 2012.12.31 e a 2013.12.31 apresentam os seguintes saldos:

 

 

2012

2013

27811016

Membros da Administração

53 350,83

91 428,76

27811017

C…

150 000,00

150 000,00

27811018

Dra. D…

3 900,00

3 900,00

27811020

E…

0

300 000,00

 

SOMA

207 250,83

545 328,76

             

 

  • Os saldos de E… e de C… referem-se a valores não pagos pelos acionistas relativos a aquisição de quotas, a conta Membros da administração pagamentos de contas pessoais com o cartão de crédito da empresa, e a conta Dra. D… a transferências efetuadas a seu favor, de acordo com os respetivos extratos.
  • Dispõe o nº 4 do artº 6º do Código do IRS:

“4 - Os lançamentos em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros.”

  • Ora, não sendo tais valores recebidos a título de salários ou de gratificações, estamos perante um rendimento de Capitais, designadamente um adiantamento por conta de lucros, que, por força da entrada em vigor do Decreto-Lei 192/2005, de 7 de Novembro, e ainda nos termos da alínea c) do nº 3 do artigo 71º do CIRS, passou a estar sujeito a retenção na fonte à taxa liberatória de 26,5%, ficando as sociedades devedoras deste montante, com a obrigação de o entregar ao Estado, com opção pelo englobamento, nos termos do artigo 40º-A do CIRS, por parte do beneficiário.
  • Assim, o sujeito passivo não procedeu à retenção e entrega de IRS sobre adiantamentos sobre lucros, conforme determinam o nº 2 do artº 101º e a alínea c) do nº 3 do artº 71º do Código do IRS, nas importâncias de:

 

2012

2013

 

Soma 

207 250,83

545 328,76

 

Saldo a tributar 

207 250,83

338 077,93

 

Taxa de retenção 

26,50%

26,50%

 

Retenção de IRS  

54 921,47

89 590,65

144 512,12

 

 

  • Atendendo a que o sujeito passivo que auferiu do rendimento não procedeu ao englobamento nos termos do artº 40º-A do Código do IRS, o imposto que deveria ter sido retido não tem a natureza de pagamento por conta do imposto devido a final nos termos do nº 7 do artº 71º do CIRS, pelo que deve tal valor ser exigido à empresa.
  • Conforme exposto pela Requerente no artigo 16º do pedido de pronúncia arbitral (o “PPA”), está em causa a aplicação do artigo 6.º, n.ºs 4 e 5, do CIRS, a saber:

“4 - (1) Os lançamentos a seu favor, (2) em quaisquer contas correntes dos sócios, (3) escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, (4) quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, (5) presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros.

5 - As presunções estabelecidas no presente artigo podem ser ilididas com base em decisão judicial, ato administrativo, declaração do Banco de Portugal ou reconhecimento pela Autoridade Tributária e Aduaneira.” (numeração intercalar, sublinhado e negrito nosso)

  • A Requerente parece retirar do n.º 4, do artigo 6.º, do CIRS, conforme artigo 19º do PPA, a necessidade de existência de “fluxos financeiros”, por referência à expressão “lançamentos”.
  • Para melhor entendimento do significado de “lançamento” a nível contabilístico, uma vez que a noção não se encontra definida em qualquer código, normativo legal ou no próprio SNC, expomos o seguinte excerto da sebenta de Contabilidade Financeira, conforme lecionada no ISCTE:

“Lançamento, corresponde ao registo dos factos patrimoniais nas contas, utilizando o método Digráfico. Podemos classificar os lançamentos atendendo ao número de contas movimentadas:

- Lançamentos Simples, 1 Débito corresponde a 1 Crédito;

- Lançamentos Compostos, 1 Débito implica vários Créditos, vários Débitos implicam 1 Crédito ou vários Débitos implicam vários Créditos.

Podemos classificar os lançamentos atendendo à sua natureza:

- Lançamento de Abertura, são os primeiros lançamentos a serem registados na conta, correspondem ao registo na conta;

- Lançamentos Correntes, corresponde aos lançamentos que caracterizam o negócio da empresa, sendo efetuados ao longo do exercício económico;

- Lançamentos de Regularização, são os lançamentos que ocorrem no final do exercício económico com o intuito de retificar as contas do balanço e as demonstrações de resultados, inserem-se nos trabalhos de fim de exercício;

- Lançamentos de Apuramento de Resultados, corresponde à transferência dos diversos resultados mediante a transferência dos respetivos proveitos e custos;

- Lançamentos de Estorno, corresponde à correção contabilística de um lançamento anterior;

- Lançamentos de Encerramento das Contas, corresponde aos lançamentos de fecho das contas, ocorrem no final do exercício, após elaboração do balanço;

- Lançamentos de Reabertura, corresponde à abertura dos saldos iniciais que correspondem aos saldos transitados do período anterior.”

  • Ou seja, um “lançamento” mais não é do que um registo de um facto patrimonial numa conta.
  • Sendo que “registo” em contabilidade significa escrituração das operações realizadas pela empresa.
  •  “Conta”, por sua vez significa agrupamento de elementos patrimoniais ou elementos de gestão com características comuns (homogéneas).
  • E sublinhamos facto patrimonial, porque o mesmo não corresponde à aceção que retiramos da noção de “fluxos financeiros”, a qual, na aceção da Requerente, parece corresponder a “entrega de dinheiro” (cfr. artigo 22º do PPA) da sociedade aos sócios.
  • Ora, se o conceito de “património” corresponde “ao conjunto de bens, direitos e obrigações redutíveis a um valor pecuniário, afetos a determinada pessoa, singular ou coletiva”.
  • Sendo que, consideram-se elementos do “património”:
    • Bens: dinheiro, viaturas, edifícios, ações, etc.
    • Direitos: dívidas de terceiros: dívidas de clientes para com a empresa, adiantamento do salário ou empréstimos a empregados.
    • Obrigações: dívidas a terceiros: Estado, banca, fornecedores.
  • Temos assim que o conjunto de bens materiais, direitos e obrigações, que pertencem a um indivíduo ou a uma empresa, chama-se património.
  • Donde retiramos que "facto patrimonial" mais não é do que todas as alterações que impliquem alterações no património, ou melhor dizendo, variações patrimoniais, sejam de bens direitos ou obrigações.
  • Pelo que, reduzir o conceito de "lançamento", o qual, como vimos pode integrar registos de alterações de factos patrimoniais (bens materiais, direitos e obrigações), conforme vem defendendo a ora Requerente, desde a audição prévia em sede de RIT, à “entrega de dinheiro” é claramente redutor duma noção que apenas residualmente integra essa alteração patrimonial, e não tem qualquer correspondência nem com a letra nem com o espirito da lei.
  • Para além disso, no artigo 6.º, n.º 4, do CIRS, o legislador menciona “contas correntes dos sócios”, conceito que também não se encontra definido por lei nem no próprio SNC.
  • Quanto a este ponto, aparentemente a Requerente perceciona o conceito de “contas correntes dos sócios” como uma referência às contas do Código de Contas do SNC, o que nos parece novamente redutor.
  • Entendemos que este conceito de “conta corrente do sócio” deve ser entendido como o registo de fluxo de factos patrimoniais, na aceção supra mencionada, ocorridos entre a Requerente e os sócios, e não no sentido de “contas de sócios” conforme previsto no Código de Contas do SNC.
  • Quanto ao pugnado pela Requerente de que “ficou demonstrado pela impugnante que não houve fluxos financeiros no que respeita à dívida do preço de venda de ativos e que, por último, a A… não regista resultados distribuíveis, entendemos que de facto ficou demonstrado que não ocorreram fluxos financeiros no que respeita à dívida do preço de venda de activos, nomeadamente o pagamento do valor acordado relativamente aos imóveis “cedidos” a C… e E… .
  • Ocorreu sim a transmissão da propriedade dos imóveis supra descritos em sede de RIT, a favor dos sócios mencionados, apenas mediante o pagamento das quotas nos montantes de € 526,15 e € 1.052,85, tendo os mesmos sido avaliados em € 150.000,00 e € 300.000,00, conforme ficou posteriormente assente como valor de aquisição dos mesmos.
  • Quanto ao alegado pela Requerente que a A… não regista resultados distribuíveis, referimos apenas que a norma do artigo 6.º, n.º 4, do IRS, não exige tal resultado para aplicação da presunção de destruição de lucros aos sócios.
  • Relativamente ao artigo 35º do PPA, entendemos que o documento 6 (Balanço) não faz prova dos factos alegados.
  • Em rigor, a contabilidade visa espelhar a realidade através de registos escriturais, contudo esses mesmos registos não fazem prova da realidade per se.
  • Pugnamos assim pela falta de prova do alegado, uma vez que o Balanço visa sim prestar informação acerca da posição financeira duma entidade (cfr. 19 da Estrutura Conceptual do SNC), e não fazer prova dos factos alegados.
  • Para além disso, “balanço deve representar fidedignamente as transações e outros acontecimentos de que resultem ativos, passivos e capital próprio da entidade na data do relato que satisfaçam os critérios de reconhecimento” (cfr. 33 da Estrutura Conceptual do SNC).
  • Ora, o SNC não diz que o Balanço faz prova das transações, apenas refere que deve representar fidedignamente essas transações.
  • Mais certeiro em relação ao caso sub judice parece ser de facto o parágrafo 35 da Estrutura Conceptual do SNC – Substância sobre a forma:

“Se a informação deve representar fidedignamente as transações e outros acontecimentos que tenha por fim representar, é necessário que eles sejam contabilizados e apresentados de acordo com a sua substância e realidade económica e não meramente com a sua forma legal. A substância das transações ou de outros acontecimentos nem sempre é consistente com a que é mostrada pela sua forma legal ou idealizada. Por exemplo, uma entidade pode alienar um activo a uma terceira entidade de tal maneira que a documentação tenha por fim passar a propriedade legal a essa entidade; contudo, podem existir acordos que assegurem que a entidade continua a fruir os benefícios económicos incorporados no activo. Em tais circunstâncias, o relato de uma venda não representaria fidedignamente a transação celebrada (se na verdade houve uma transação).

  • Aplicando a norma ao caso em análise, verificamos que para além do Balanço, não logrou a Requerente apresentar comprovativo das transferências realizadas para pagamento do valor dos imóveis conforme acordado com os sócios C… e E… .
  • Não tendo sido feita essa prova de pagamento, os referidos sócios adquiriram os imóveis por um valor não correspondente ao valor patrimonial acordado,
  • o que por sua vez permitiu à AT acionar o mecanismo previsto no artigo 6.º, n.º 4 do CIRS, consubstanciado numa presunção.
  • Sendo que, tal mecanismo, nos termos do n.º 5 do artigo 6.º do CIRS, permite à Requerente ilidir a referida presunção de distribuição de dividendos aos sócios, mediante apresentação de prova em contrário, o que aquela não logrou fazer.
  • Conforme mencionado pela AT em sede de reclamação graciosa, acrescentamos que «Tal como já foi anteriormente referido, entendemos que o “facto base” consiste na existência de lançamentos feitos em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob a forma comercial.

 

  1. Reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e alegações

Tendo sido requerida pela Impugnante a produção de prova testemunhal, realizou-se no dia 07-12-2017 a reunião do Tribunal Arbitral prevista no art. 18º do TJAT em que se procedeu inquirição das testemunhas. 

Na mesma reunião foi fixado prazo para as partes apresentarem alegações finais escritas.

  1. Alegações da Impugnante

Nas suas alegações, a Impugnante alegou, de relevante, o seguinte:

  • Face ao contexto familiar da estrutura acionista da Impugnante e ao facto de esta ter sido alvo de inspeção tributária de onde resultou a não dedutibilidade na Impugnante dos custos relativos aos imóveis a que as quotas na sociedade B… Lda. se associam, foi detetada urgência na alienação dessas mesmas quotas, tendo sido esse o motivo dos contratos de cessão de quotas;
  • O preço por que foram alienadas as quotas teve em conta o valor das frações habitacionais a que as mesmas estão associadas, tendo estas sido avaliadas por peritos independentes, conforme prova junta no processo administrativo;
  • Tendo havido inicialmente, por parte dos acionistas adquirentes das quotas alienadas, a intenção de as pagar em dinheiro após recurso a crédito bancário, tal veio a revelar-se impossível por as alienações não terem como objeto as frações de imóvel mas sim quotas da sociedade proprietária do imóvel;
  • Foi neste contexto que acionistas/adquirentes das quotas acabaram por entregar à Impugnante ações próprias em pagamento das quotas adquiridas;
  • O valor atribuído às ações próprias teve em conta os valores dos capitais próprios da sociedade constantes do balanço da Impugnante de 2016;
  • A Impugnante não registou quaisquer resultados para distribuir, razão por que não podia ter distribuído quaisquer resultados;
  • As duas quotas alienadas (pela Impugnante) na sociedade B…, Lda. representavam 21,05% do capital da mesma, tendo sido adquiridas pela Impugnante por realização em espécie do seu capital social;
  • A avaliação das quotas efetuada ao tempo da aquisição não foi feita pelo valor de mercado;
  • A sociedade B…, Lda. tem outros sócios, para além da Impugnante, que nada têm nem nunca tiveram qualquer relação familiar com os acionistas da Impugnante, de onde se conclui que a sociedade B…, Lda. não foi um veículo especialmente utilizado pela Impugnante ou seus acionistas;

 

  1. Alegações da Demandada

Nas suas alegações, a Demandada, para além de reiterar toda a argumentação anteriormente expendida na resposta e de sintetizar os depoimentos testemunhais, não acrescentou com relevância para a decisão da causa nada que deva ser especialmente reproduzido.

 

II - SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral coletivo foi regularmente constituído em 20-09-2017, tendo sido os árbitros designados pelo Conselho Deontológico do CAAD, cumpridas as respetivas formalidades legais e regulamentares (artigos 11º, n-º 1, als. a) e b) do RJAT e 6º e 7º do Código Deontológico do CAAD), e é competente em razão da matéria, em conformidade com o artigo 2.º do RJAT.

As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias e encontram-se regularmente representadas.

Não foram identificadas nulidades no processo.

 

III – QUESTÕES A DECIDIR

As questões a apreciar e decidir são, no fundo, as seguintes:

  1. A de saber se, tendo a Impugnante vendido a dois dos seus acionistas duas quotas que possuía numa sociedade civil de habitação, e tendo os adquirentes acionistas ficado a dever o preço estipulado para as ditas aquisições, tal operação se presume ser uma distribuição de lucros ou antecipação de lucros, nos termos e para os efeitos do art. 6º, nº 4 do CIRS; e
  2. A de dilucidar se os saldos a favor da Impugnante registados na conta 27811016 “membros da administração” e na conta 27811018 “Dra. D…” podem igualmente presumir-se como distribuições de lucros ou antecipação de lucros, nos termos e para os efeitos do art. 6º, nº 4 do CIRS.

 

IV – FACTOS PROVADOS E NÃO PROVADOS

São os seguintes os factos provados considerados relevantes para a decisão da causa:

  1. A Requerente foi notificada das liquidações de Imposto de Rendimento a liquidar na fonte números 2016 … e 2016 …, referentes, respetivamente, aos anos 2012 e 2013.
  2. Dessas liquidações interpôs reclamação graciosa em 30-11-2016, tendo dado origem ao processo nº …
  3. A reclamação graciosa referida em 2) foi indeferida em 24-03-2017 pela Direção de Finanças de … .
  4. Em 28-12-2012, a Impugnante outorgou um contrato de cessão de quota, pelo qual cedeu à acionista C… uma quota na sociedade B…, Lda., com o valor nominal de 526,15 euros, pelo preço de 150.000,00 euros.
  5. Através do contrato de cessão de quota, estipulou-se a transferência, para a cessionária, do direito de uso e habitação da fração habitacional R/C esquerdo do prédio urbano sito em Lisboa, na Rua … nº…, associada à quota.
  6. No referido contrato de cessão de quota ficou estipulado que, do preço convencionado, a quantia de 15.000,00 seria paga na data do contrato, uma segunda quantia de 45.000,00 seria paga no prazo de seis meses a contar da data do contrato, e o valor restante (90.000,00 euros) seria pago no prazo de um ano a contar da data do contrato.
  7. Em 31-12-2013, a Impugnante outorgou um segundo contrato de cessão de quota, pelo qual cedeu ao acionista E… uma quota na sociedade B…, Lda., esta com o valor nominal de 1.052,85 euros, pelo preço de 300.000,00 euros.
  8. Através do contrato de cessão de quota, estipulou-se a transferência, para o cessionário, do direito de uso e habitação da fração habitacional … andar esquerdo do prédio urbano sito em Lisboa, na Rua … nº…, associada à quota.
  9. Neste segundo contrato de cessão de quota ficou estipulado que, do preço convencionado, a quantia de 30.000,00 seria paga na data do contrato, uma segunda quantia de 90.000,00 seria paga no prazo de seis meses a contar da data do contrato, e o valor restante (180.000,00 euros) seria pago no prazo de um ano a contar da data do contrato.
  10. A fração R/C esquerdo do prédio urbano sito na Rua … nº…, Lisboa, cujo direito de uso e habitação se encontra associado à quota cedida pela Impugnante à acionista C… foi avaliada, em 30 de dezembro de 2010, pela sociedade F… SA, em cerca de 150.000,00 euros.
  11. A fração … andar esquerdo do prédio urbano sito na Rua … nº…, Lisboa, cujo direito de uso e habitação se encontra associado à quota cedida pela Impugnante ao acionista E… foi avaliada, em 30 de dezembro de 2010, pela sociedade F… SA, em cerca de 300.000,00 euros.
  12. A acionista D… habita há vários anos a fração R/C esquerdo do prédio urbano sito na Rua … nº…, Lisboa.
  13. O acionista E… habita há vários anos a fração … andar esquerdo do prédio urbano sito na Rua … nº…, Lisboa.
  14. Os balancetes da Requerente reportados a 2012.12.31 e a 2013.12.31 apresentam os seguintes saldos:

 

 

2012

2013

27811016

Membros da Administração

53 350,83

91 428,76

27811017

C…

150 000,00

150 000,00

27811018

Dra. D…

3 900,00

3 900,00

27811020

E…

0

300 000,00

 

SOMA

207 250,83

545 328,76

             

 

  1. Em 2012, foi reconhecido na contabilidade da Impugnante, na conta 27811017, um crédito no valor de 150.000,00, sobre a acionista C… .
  2. Em 2013, foi reconhecido na contabilidade da Impugnante, na conta 27811020, um crédito no valor de 300.000,00, sobre o acionista E… .
  3. Os créditos reconhecidos em 2012 e 2013, na contabilidade da Impugnante, dizem respeito ao preço das cessões de quotas.
  4. No ano de 2012, foi reconhecido na contabilidade da Impugnante, na conta 27811016 um crédito sobre “Administradores” no valor de 53.350,00 euros.
  5. No ano de 2013, foi reconhecido na contabilidade da Impugnante, na conta 27811016, um crédito sobre “Administradores” no valor de 91.428,76 euros.
  6. Os “membros da administração” que são identificados nesta conta nesta data eram, à data, acionistas da Impugnante.
  7. No ano de 2012, foi reconhecido na contabilidade da Impugnante, na conta 27811018 um crédito sobre “Dra. D…" no valor de 3.900,00 euros, que se mantinha em 2013.
  8. A “Dra. D…” identificada nesta conta era, à data, administradora e acionista da Impugnante;
  9. A Requerente, na sua Assembleia Geral de 17/09/2016, aprovou a aquisição de acções próprias detidas pelos seus acionistas E… e C…, por dação em pagamento das dívidas que estes tinham perante a sociedade, correspondentes aos contratos de cessão de quotas referidos em 4) e 7).

 

Não se provou:

  1. Que a Impugnante tenha procedido ao pagamento do imposto liquidado.
  2. Que o saldo credor no valor de 91.428,76 euros da conta 27811016 corresponda a adiantamentos efetuados pela Impugnante aos administradores para pagamento de obrigações da Impugnante.
  3. Que o saldo credor no valor de 3.900,00 euros da conta 27811018 corresponda a custos da Impugnante.
  4. Que os acionistas C… e E… tenham efetuado uma dação e pagamento, à Impugnante, tendo por objeto ações da Impugnante, para pagar as dívidas resultantes dos contratos de cessão de quotas.

Os factos considerados provados foram-no com base nos documentos juntos ao processo e na prova testemunhal produzida, tendo ainda alguns deles sido considerados provados com base na convicção do Tribunal formada a partir das alegações das Partes e da sua não contestação.

 

VI – DECISÃO

  1. DIREITO APLICÁVEL E AS REGRAS DE INTERPRETAÇÃO 

Estão as Partes de acordo que a solução a dar a este litígio passa pela correta interpretação do disposto nos n,ºs 4 e 5 do art.º 6.º do CIRS. Essas normas estabelecem o seguinte:

 

Artigo 6.º

Presunções relativas a rendimentos da categoria E

(…)

4 - Os lançamentos a seu favor, em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros.

5 - As presunções estabelecidas no presente artigo podem ser ilididas com base em decisão judicial, ato administrativo, declaração do Banco de Portugal ou reconhecimento pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

O art. 11.º da Lei Geral Tributária estabelece os princípios por que se deve reger o exercício hermenêutico das normas tributárias, dispondo o seguinte:

 

Artigo 11.º
Interpretação

 

1 - Na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis.

2 - Sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei. 

3 - Persistindo a dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar, deve atender-se à substância económica dos factos tributários. 

4 - As lacunas resultantes de normas tributárias abrangidas na reserva de lei da Assembleia da República não são susceptíveis de integração analógica.

 

Manda o n.º 1 do art.º 11.º da Lei Geral Tributária que na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam se observem as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis. Remete-se, portanto, para o art.º 9.º do Código Civil:

 

Artigo 9.º
(Interpretação da lei)

 

1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. 
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. 
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

 

Ora, o n.º 1 do art.º 9.º do Código Civil refere expressamente que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei. Deve o intérprete procurar, a partir da fonte, surpreender a norma, ou seja, a manifestação de um pretendido dever ser. Já se vê que a expressão literal releva. Contudo, pode bem o intérprete sentir a necessidade de colher outros elementos hermenêuticos para identificar a norma. Por isso, o legislador abre a porta à possibilidade de se reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. Esta abertura legal não autoriza uma interpretação que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal mas visa, claro está, libertar o intérprete-aplicador de uma leitura manifestamente desajustada e, por isso, injusta, até porque, como esclarece o n.º 3 do art.º 9.º do Código Civil, o “intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas”.   

 

  1. A PRESUNÇÃO DO N.º 4 DO ART.º 6.º DO CIRS RELATIVA A RENDIMENTOS DA CATEGORIA E

 

  1. Geral

Não há qualquer dúvida de que o n.º 4 do art.º 6.º do CIRS estabelece uma presunção de rendimentos da categoria E. Recordemos a disposição

4. Os lançamentos a seu favor, em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros.

Uma presunção é uma ilação que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido[1]. No caso vertente, tira-se de um facto conhecido – o lançamento a favor da sociedade, em quaisquer contas correntes dos sócios, quando esse lançamento não resulte de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais – um outro facto cuja existência se desconhece – a distribuição de lucros ou adiantamento por conta de lucros.

Como não pode deixar de ser, o art.º 73.º da Lei Geral Tributária muito claramente determina que “as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário”. O Tribunal Constitucional tem admitido a não inconstitucionalidade da utilização de presunções para determinar a matéria colectável desde que seja permitida a sua ilisão[2], em obediência ao princípio da igualdade, que exige que a imposição de obrigações de impostos seja feita segundo a capacidade contributiva de cada um[3].

Forçoso para o juízo de admissibilidade deste tipo de presunções é que se permita ao contribuinte a sua ilisão, ou seja, a demonstração de que, mau grado a verificação do facto conhecido, o facto desconhecido não ocorreu. Quem tem a seu favor uma presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz[4], sendo porém, no caso das presunções ilidíveis, dada a oportunidade de demonstração do contrário a quem por ela é prejudicado[5].

Em matéria de incidência tributária, como se viu, as presunções são necessariamente ilidíveis e a sua ilisão pode fazer-se, por regra, nos termos do disposto no art.º 64.º n.º 1 do CPPT: “O interessado que pretender ilidir qualquer presunção prevista nas normas de incidência tributária deverá para o efeito, caso não queira utilizar as vias da reclamação graciosa ou impugnação judicial de acto tributário que nela se basear, solicitar a abertura de procedimento contraditório próprio”. Todavia não pode desta norma inferir-se, em termos necessários, que a ilisão da presunção pode ser feita por qualquer meio quando a lei, em certos casos, explicita quais os meios de prova que poderão ser usados para afastá-la. É que o n.º 5 do art.º 6.º do CIRS expressamente refere que as presunções estabelecidas nesse artigo podem ser ilididas com base em decisão judicial, ato administrativo, declaração do Banco de Portugal ou reconhecimento pela Autoridade Tributária e Aduaneira. Se, nestes casos, qualquer meio de prova fosse possível, não teria qualquer efeito útil aquela disposição. Se o legislador elaborou uma norma específica para o efeito tal tem de ser interpretado no sentido de não se pretender que a ilisão possa fazer-se por qualquer meio de prova[6].

Contudo, este juízo apertado no que à ilisão da presunção respeita, não dispensa uma exigência prévia. A base da presunção deve imperativamente ser provada com os correspondentes factos dela integradores sob pena de a causa ser decidida em sentido desfavorável à parte onerada com esse ónus, ou seja à AT, e, perante tal falta, o resultado que com a presunção judicial se visava obter não pode dar-se por alcançado, ou seja e no caso, que o tal lançamento em conta corrente do sócio, corresponde a distribuição de lucros ou adiantamento por conta de lucros[7]. O mesmo é dizer que para se dar como provado o facto desconhecido é imperioso que demonstre o facto conhecido. Só assim se autoriza a pretendida ilação. 

Ora, no dizer da Requerente, os factos integradores da presunção, no caso vertente, são estes:

  1. A existência de fluxos financeiros;
  2. O registo em conta corrente de sócios; e
  3. Que o dito registo não resulte de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais.  

A Requerida, por seu turno, contesta a necessidade de haver fluxos financeiros. O n.º 4 do art.º 6.º do CIRS, na verdade, não parece exigir a presença de fluxos financeiros, já que usa uma palavra que não pode ser tomada como sinónimo: lançamento. Como bem esclarece a Requerida, lançamento corresponde ao registo dos factos patrimoniais nas contas. Deste conceito não resulta sequer a sugestão de estarmos perante fluxos financeiros.

 

  1. Os lançamentos respeitantes à compra e venda das quotas da Sociedade B…, Lda.

Que os registos contabilísticos nas contas da Requerente respeitantes aos accionistas E… e C… não resultam de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício é por ambas as Partes aceite. Portanto, para que a Requerida possa beneficiar da presunção da distribuição de lucros ou do adiantamento por conta dos lucros tem de demonstrar que existe o competente registo em conta corrente do sócio.

Tanto a Requerente como a Requerida aceitam a existência dos registos contabilísticos que constam dos livros da sociedade. Não há, pois, qualquer litígio quanto ao registo existente. O litígio reside na interpretação que desse registo e da lei pode fazer-se. É esse o ponto que cumpre a este tribunal arbitral dilucidar.

Como foi já dito, temos de interpretar a norma do n.º 4 do art.º 6.º do CIRS nos termos gerais de direito. O CIRS não pode ser interpretado como se fosse aquilo que não. E manifestamente o CIRS não é um tratado de contabilidade. O pensamento legislativo que ditou a formulação normativa parece ser este: os lançamentos a favor da sociedade, em quaisquer contas correntes dos sócios (sublinhado nosso) ficam debaixo da alçada da presunção. Este problema só aparentemente é contabilístico. É sobretudo um problema jurídico.

Se o legislador, abrangentemente, refere quaisquer contas correntes, não deixa de aludir a contas correntes (sublinhados nossos). Temos de surpreender o significado do conceito de contas correntes, porque na verdade, resulta da lei que não estarão em causa todas as contas… mas apenas as contas correntes… Uma conta corrente de sócio será aquela em que se registam, correntemente, os débitos e créditos frequentes, habituais, com determinadas pessoas, sejam eles fornecedores, clientes, ou, no caso que nos importa, na sua qualidade de sócios.

O que a lei, com a presunção em análise, quis resolver foi a qualificação dos registos lançados em contas correntes de sócios, quando as quantias escrituradas não tenham "causa" jurídica expressamente declarada[8]. Ora, a contabilidade não condiciona a nossa percepção jurídica, é certo, mas a inversa não é verdadeira. Ou seja, sempre teremos de analisar a situação substancial, a concreta transacção, para percebermos se o registo contabilístico se mostra adequadamente feito, se reflecte, com inteireza e verdade, a operação que se pretende registar.

No caso vertente, os lançamentos contabilísticos referentes aos accionistas E… e C… não foram feitos numa conta corrente de sócios. Este facto, todavia, não assume em si mesmo qualquer relevância, porquanto a verificação do facto tributário não poderá ficar na disponibilidade do contribuinte, o que sempre aconteceria, a nosso ver, caso a tributação ficasse dependente de ser lançado o registo que contabilística e juridicamente se impõe. Portanto, não nos bastamos com a mera constatação de não ter sido feito nenhum registo numa conta corrente de sócios. O problema é muito mais substancial do que isso. Do que se cuida é de saber se teria de ser feito esse lançamento numa conta corrente de sócios. No que respeita aos accionistas E… e C… o saldo credor a favor da sociedade não resulta, em sentido próprio, de uma conta corrente de sócio. Resulta antes da venda de um activo. No caso temos escrituras públicas de cessão de quotas. Queria-se com estas transacções permitir que os accionistas que já viviam naqueles apartamentos ficassem, eles mesmos, com o direito de habitá-los, passando eles a suportar os custos que com eles a sociedade ia suportando, sem que os pudesse relevar como custos fiscais. Acresce que a Requerida é uma sociedade com vários accionistas, todos familiares, não tendo resultado dos autos que semelhantes transacções tivessem tido lugar com outros accionistas. O normal é que os lucros (quando existem, e aqui, na verdade, não há) tendem a ser distribuídos pelos sócios em função do capital por cada um detido. Não e vislumbra qualquer razoabilidade, qualquer racionalidade económica, num comportamento que visa remunerar o capital de apenas uns accionistas.

Os autos demonstram que as transacções ocorridas não são de molde a suscitar o registo da dívida dos accionistas E… e C… numa conta corrente de sócios, entendida esta no quadro dos efeitos do n.º 4 do art.º 6.º do CIRS. O que houve sem margem para dúvidas foi uma compra e venda de activos, as quotas da sociedade B…, que a Sociedade já não queria ter no seu património, sendo perfeitamente razoável dar-se a oportunidade desses activos serem comprados pelos accionistas a quem mais directamente diziam respeito, por serem eles os que habitam, há muitos anos, nos apartamentos associados a cada uma das quotas alienadas. Tal significa que no entender deste tribunal arbitral não pode, relativamente aos registos contabilísticos que vimos de analisar, prevalecer o entendimento de que houve uma distribuição de lucros ou um adiantamento por conta de lucros.

 

  1. Os lançamentos respeitantes aos “membros da Administração” e “Dra. D…”

De acordo com o pedido de esclarecimentos efectuado pela Requerida e respectiva explicação, as contas “membros da administração” e “Dra. D…” referem-se a “movimentos efectuados com cartão de crédito e outros movimentos bancários”. Da análise do extracto anexo ao Relatório Final consta a Requerida que estes lançamento têm por objecto pagamentos de diversas despesas, a favor dos sócios, não existindo qualquer documento comprovativo de que se trate de um mútuo, de prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, e, portanto, enquadráveis na presunção estabelecida na citada norma, pelo que entende a Administração Tributária que estes lançamentos se enquadram na presunção estabelecida no n.º 4 do art.º 6º e sujeitas à taxa de retenção na fonte estabelecida no art.º 71.º do CIRS.

Uma análise mais detida destes movimentos permite perceber que estão em causa despesas realizadas por administradores da Requerente e não, em sentido próprio, os seus accionistas. Quem está em condições de usar o cartão de crédito da sociedade e de realizar despesas em nome dela, na verdade, não são os accionistas, mas apenas os administradores, actuando nessa qualidade. Mesmo que os administradores sejam também accionistas, e bem sabemos que no caso da Requerente, nem todos o são, só os administradores podem ter de suportar despesas alegadamente por estarem a representar a sociedade. Como é evidente, não se mostra fiscalmente irrelevante os administradores não prestarem contas, até ao termo do exercício, das verbas para despesas de deslocação, viagens ou representação[9].

Contudo, nem aqui, em rigor, estamos diante de uma conta corrente de sócio, para os efeitos do disposto no n.º 4 do art.º 6.º do CIRS, já que está em causa o exercício da função de administrador e não a de sócio, pelo que a Requerida não pode valer-se da presunção em que baseia os actos de liquidação ora impugnados.

Na verdade, no âmbito dos poderes de cognição do tribunal arbitral, não releva a possibilidade de serem os factos dos autos subsumíveis a quaisquer outras normas de incidência tributária[10]. O tribunal arbitral só tem de apreciar a legalidade dos actos de liquidação, anulando-os caso entenda que eles não se conformam com a ordem jurídica, o que sempre sucederá quando a fundamentação dos actos inquina a sua validade. Também este é um contencioso de mera ilegalidade, que tem por objecto a declaração de invalidade ou anulação dos actos recorridos.

 

  1. DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, o tribunal arbitral decide:

  1.  Anular a decisão de indeferimento da reclamação graciosa nº…, contida no despacho de 23-03-2017 do Chefe de Divisão da Direcção de Finanças;
  2. Anular as liquidações de IRS números 2016 … (2012) e 2016 … (2013) sobre as quais incidiu a reclamação graciosa nº … com todas as consequências legais.

 

  1. VALOR DA UTILIDADE ECONÓMICA DO PROCESSO

De harmonia com o disposto no n.º 2 do art.º 306.º do CPC, na alínea a) do n.º 1 do art.º 97.º-A do CPPT e ainda do n.º 2 do art.º 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 159.847,61 (cento e cinquenta e nove mil oitocentos e quarenta e sete euros e sessenta e um cêntimos).

 

  1. CUSTAS

Para os efeitos do disposto no n.º 2 do art.º 12 e no n.º 4 do art.º 22.º do RJAT e do n.º 4 do art.º 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 3.672,00 (três mil seiscentos e setenta e dois euros), nos termos da Tabela I anexa ao dito Regulamento, a suportar integralmente pela Requerida.

 

Notifique-se.

 

 

Lisboa, Centro de Arbitragem Administrativa, 08 de Março de 2018

 

 

 

Os Árbitros

 

 

(José Baeta de Queiroz)

 

 

 

 

(Nina Aguiar)

 

 

(Nuno Pombo)

 

 



[1]Art.º 349.º do Código Civil.

[2]Cfr., entre outros, por muito recente, o Ac. 211/17. Com inegável interesse para o caso dos autos, veja-se, por exemplo, o Ac. 452/03.

[3]V. DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA, Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, 4ª ed., 2012, pág. 650.

[4]Art.º 350.º, n.º 1 do Código Civil.

[5]Art.º 350.º, n.º 2 do Código Civil.

[6]Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 18.12.2002, proferido no Processo 01435/02.

[7]Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul de 13.04.2010, proferido no Processo 03461/09

[8]Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul de 11.01.2011, proferido no Processo 04357/10.

[9]Art.º 2.º, n.º 3 al. d) do CIRS.

[10]Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul de 13.04.2010, proferido no Processo 03461/09.