Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 736/2019-T
Data da decisão: 2021-02-05  IRS  
Valor do pedido: € 111.154,49
Tema: IRS – Declaração de alteração de actividade apresentada fora de prazo; opção pelo regime da contabilidade organizada.
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SUMÁRIO:

I – A declaração de alteração de actividade, em IRS, tem efeitos meramente declarativos, e não efeitos constitutivos;

II – À luz do princípio da capacidade contributiva, a aplicação do regime simplificado de tributação pressupõe a verificação do seu pressuposto material relativo ao exercício de uma actividade cujo volume de negócios, previsivelmente, se contenha nos montantes fixados na lei para o efeito, não sendo de aceitar a sua aplicação quando, à partida, é notório que a actividade iniciada irá gerar um volume de negócios notoriamente superior àqueles limites;

III – À luz do princípio da justiça e da boa-fé, e na ausência de quaisquer indícios de fraude ou evasão fiscal, não é aceitável que a AT faça retroagir os efeitos de uma declaração de alteração de actividades em IRS, à data do efectivo início da actividade, no que diz respeito à tributação dos rendimentos por aquela gerados, bem como à alteração do regime de tributação em IVA (de isenção para sujeição), e não o faça quanto à opção, exercida na mesma declaração, de tributação pela contabilidade organizada.

 

DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

 

I – RELATÓRIO

 

1.            No dia 31 de Outubro de 2019, A..., contribuinte n.º..., residente na Rua ..., n.º..., ..., ...-... Porto, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade do acto de liquidação de IRS n.º 2018... e n.º 2018... e da demonstração de acerto de contas n.º 2018..., referentes ao ano de 2017, no valor global de €111.154,49, assim como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2018... e da decisão de indeferimento tácito do recurso hierárquico, que tiveram os referidos actos de liquidação como objecto.

 

2.            Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, o seguinte:

i.             vício de falta de fundamentação;

ii.            vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de facto e de direito;

iii.           violação dos princípios da igualdade tributária, da tributação pelo rendimento real, da liberdade de iniciativa económica e do princípio da capacidade contributiva, bem como da legalidade, da boa-fé e da justiça.

 

3.            No dia 04-11-2019, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

4.            A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

5.            Em 23-12-2019, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

6.            Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 22-01-2020.

 

7.            No dia 26-02-2020, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.

 

8.            No dia 09-10-2020, realizou-se a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, onde foram inquiridas as testemunhas, no acto, apresentadas pela Requerente.

 

9.            Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.

 

10.          Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT, com as prorrogações determinadas nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.

 

11.          O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir:

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1-            A Requerente é, e era no ano de 2017, gerente da sociedade comercial B..., Lda., tendo auferido rendimentos do trabalho dependente, pelo trabalho junto dessa entidade.

2-            A Requerente entregou, em 02-02-1990, uma declaração de início de actividade, na qual declarou exercer como trabalhadora independente, a actividade com o código 051 - Economistas, com data de início a 01-06-1989, e enquadramento em IVA, no regime de isenção.

3-            A Requerente não aufere rendimentos da actividade de economista há vários anos.

4-            A Requerente nunca cessou a actividade enquanto economista.

5-            Em 09-03-2017, foi adjudicado à Requerente, em sede de partilha, o estabelecimento comercial de farmácia, denominado “Farmácia ...”, que fazia parte do património da herança indivisa com o NIF..., com os valores do activo e do passivo que o integram, com os móveis, utensílios, alvarás, equipamentos, mercadorias e créditos sobre terceiros e demais elementos da escrituração, bem como os contratos de trabalho com os funcionários.

6-            A Requerente diligenciou no sentido de iniciar a sua actividade como empresária em nome individual, com o enquadramento da actividade de exploração do estabelecimento comercial de farmácia no regime da contabilidade organizada.

7-            Em 12-02-2018, a Requerente submeteu uma declaração de alterações de actividade, tendo iniciado a sua actividade com os CAE’s 47730 (comércio a retalho de produtos farmacêuticos em estabelecimentos especializados) e 47750 (comércio a retalho de produtos cosméticos e de higiene em estabelecimentos especializados).

8-            A Requerente declarou no campo 9 da Declaração de Alterações que o volume de negócios expectável seria de €1.180.000,00.

9-            A Requerente requereu o enquadramento no regime da contabilidade organizada a vigorar a partir de 01-03-2017.

10-         A AT não aceitou que a declaração de alterações de actividade tivesse efeitos a partir de 01-03-2017, pelo que foi alterado o seu conteúdo em 07-03-2018, passando a estar sujeita ao regime de contabilidade organizada por opção, apenas a partir de 01-01-2018.

11-         Aquando da entrega da Declaração Modelo 3 de IRS, referente ao ano de 2017, em 25-05-2018, a plataforma informática do Portal das Finanças não permitiu que a Requerente preenchesse e entregasse o anexo C (contabilidade organizada), atenta a sua vinculação ao regime simplificado de tributação.

12-         Até 09-03-2017, a actividade do estabelecimento comercial de farmácia foi tributada na Herança de C..., com o NIF... .

13-         Entre 10-03-2017 e 31-12-2017, a actividade do estabelecimento comercial de farmácia foi tributada como actividade empresarial desenvolvida pela Requerente.

14-         Na sequência de divergências detectadas, relacionadas, respectivamente, com “incoerência entre inscrição de herança indivisa para o exercício de actividade no cadastro e respectiva declaração de rendimentos modelo 3” e pelo facto de “os rendimentos empresariais e profissionais declarados serem inferiores aos das declarações de IVA”, em 31-05-2018, foi submetida uma declaração de substituição.

15-         A Requerente foi notificada das liquidações de IRS n.º 2018... e n.º 2018... e da demonstração de acerto de contas n.º 2018... .

16-         Em 28-12-2018, a Requerente apresentou Reclamação graciosa tendo por objecto os referidos actos de liquidação.

17-         Em 22-03-2019, a Requerente foi notificada do projecto de indeferimento da reclamação graciosa e, para querendo, exercer direito de audição.

18-         A Requerente exerceu direito de audição prévia.

19-         Em 10-05-2019, a Requerente foi notificada da decisão de indeferimento da reclamação graciosa.

20-         Da decisão de indeferimento da reclamação graciosa consta, além do mais, o seguinte:

21-         Em 05-06-2019, a Requerente apresentou recurso hierárquico da decisão de indeferimento da reclamação graciosa.

22-         Decorridos 60 dias da data da apresentação do recurso hierárquico sem que a Requerente tenha sido notificada de qualquer decisão, presumiu o seu indeferimento tácito.

23-         Foram instaurados os processos de execução fiscal n.º ...2018... e ...2018... para cobrança coerciva das liquidações de IRS n.º 2018 ... e n.º 2018 ..., relativas ao ano de 2017.

24-         De modo a obter a suspensão dos processos de execução fiscal, a Requerente prestou garantia, através da constituição de hipoteca voluntária sobre dois imóveis e garantia bancária.

 

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, bem como a prova testemunhal produzida, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

B. DO DIREITO

Imputa a Requerente às liquidações impugnadas vários vícios, designadamente, vício de falta de fundamentação, vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto e de direito e violação dos princípios da igualdade, da tributação pelo rendimento real, da liberdade de iniciativa económica e da capacidade contributiva, bem como da legalidade, da boa-fé e da justiça.

Dispõe o art.º 124.º do CPPT que:

“1 - Na sentença, o tribunal apreciará prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do acto impugnado e, depois, os vícios arguidos que conduzam à sua anulação.

2 – Nos referidos grupos a apreciação dos vícios é feita pela ordem seguinte:

a) No primeiro grupo, o dos vícios cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos;

 b) No segundo grupo, a indicada pelo impugnante, sempre que este estabeleça entre eles uma relação de subsidiariedade e não sejam arguidos outros vícios pelo Ministério Público ou, nos demais casos, a fixada na alínea anterior.”

 Deste modo, e não tendo sido expressamente estabelecida pela Requerente qualquer relação de subsidiariedade entre os vícios arguidos, passar-se-á à apreciação do vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, e violação dos princípios da tributação pelo rendimento real, da capacidade contributiva, da boa-fé e da justiça, por ser aquele cuja procedência determina a mais estável e eficaz tutela dos interesses ofendidos.

 

*

A questão fundamental em causa no presente processo arbitral prende-se com a aferição da legalidade dos actos tributários que constituem o seu objecto, à luz dos fundamentos que lhe servem de suporte.

Concretizando, em causa está apurar se a tributação dos rendimentos empresariais obtidos pela Requerente, no ano de 2017, provenientes da exploração do estabelecimento comercial de farmácia, deveria ser determinada de acordo com o regime simplificado ou de acordo com o regime da contabilidade organizada.

Sustenta a Requerente que diligenciou no sentido de iniciar a sua actividade como empresária em nome individual, com o enquadramento da actividade de comércio a retalho de produtos farmacêuticos em estabelecimentos especializados e comércio a retalho de produtos cosméticos e de higiene em estabelecimentos especializados, no regime da contabilidade organizada. Porém, viu-se impedida de o fazer pelo facto de existir uma actividade aberta como economista, só lhe sendo possível, em 12-02-2018, submeter declaração de alterações de actividade, tendo requerido o enquadramento no regime da contabilidade organizada com efeitos a partir de 01-03-2017, enquadramento esse que lhe foi negado.

Entende a Requerente que a sua situação se trata, materialmente, de um início de actividade, motivo pelo qual deveria a AT ter possibilitado o enquadramento no regime da contabilidade organizada.

Sustenta, por sua vez, a AT que não tendo a Requerente entregue a declaração de alterações no prazo definido no artigo 112.º, n.º 2 do CIRS - 15 dias a contar da alteração – e dentro do prazo estabelecido na alínea b), do n.º 4 do artigo 28.º do CIRS, não pode ser enquadrada no regime da contabilidade organizada, no exercício de 2017.

O artigo 28.º do CIRS estipula a forma de determinação dos rendimentos empresariais e profissionais. Dispunha o referido artigo, com a redacção em vigor à data dos factos, o seguinte:

“1 - A determinação dos rendimentos empresariais e profissionais, salvo no caso da imputação prevista no artigo 20.º, faz-se:

a) Com base na aplicação das regras decorrentes do regime simplificado;

b) Com base na contabilidade.

2 - Ficam abrangidos pelo regime simplificado os sujeitos passivos que, no exercício da sua atividade, não tenham ultrapassado no período de tributação imediatamente anterior um montante anual ilíquido de rendimentos desta categoria de (euro) 200 000. 3 - Os sujeitos passivos abrangidos pelo regime simplificado podem optar pela determinação dos rendimentos com base na contabilidade.

4 - A opção a que se refere o número anterior deve ser formulada pelos sujeitos passivos:

a) Na declaração de início de atividade;

b) Até ao fim do mês de março do ano em que pretendem alterar a forma de determinação do rendimento, mediante a apresentação de declaração de alterações.

5 - A opção referida no n.º 3 mantém-se válida até que o sujeito passivo proceda à entrega de declaração de alterações, a qual produz efeitos a partir do próprio ano em que é entregue, desde que seja efetuada até ao final do mês de março.

6 - A aplicação do regime simplificado cessa apenas quando o montante a que se refere o n.º 2 seja ultrapassado em dois períodos de tributação consecutivos ou, quando o seja num único exercício, em montante superior a 25 %, caso em que a tributação pelo regime de contabilidade organizada se faz a partir do período de tributação seguinte ao da verificação de qualquer desses factos.

7 - Os valores de base necessários para o apuramento do rendimento tributável são passíveis de correção pela Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos do artigo 39.º, aplicando-se o disposto no número anterior quando se verifiquem os pressupostos ali referidos.

8 - Se os rendimentos auferidos resultarem de serviços prestados a uma única entidade, exceto tratando-se de prestações de serviços efetuadas por um sócio a uma sociedade abrangida pelo regime de transparência fiscal, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 6.º do Código do IRC, o sujeito passivo pode, em cada ano, optar pela tributação de acordo com as regras estabelecidas para a categoria A.

9 - (Revogado.)

10 - No exercício de início de atividade, o enquadramento no regime simplificado faz-se, verificados os demais pressupostos, em conformidade com o valor anual de rendimentos estimado, constante da declaração de início de atividade, caso não seja exercida a opção a que se refere o n.º 3.

11 - (Revogado.)

12 - (Revogado.)

13 - (Revogado.)

14 - Os titulares de rendimentos da exploração de estabelecimentos de alojamento local na modalidade de moradia ou apartamento podem, a cada ano, optar pela tributação de acordo com as regras estabelecidas para a categoria F.”

Nos termos deste artigo, a determinação dos rendimentos empresariais e profissionais – como é o caso dos rendimentos provenientes da exploração do estabelecimento comercial de farmácia, obtidos pela Requerente - faz-se com base na aplicação das regras do regime simplificado ou com base nas regras do regime da contabilidade organizada, ficando abrangidos pelo regime simplificado em cada ano os sujeitos passivos que não tenham ultrapassado, no período de tributação imediatamente anterior, um montante anual ilíquido de rendimentos desta categoria de €200.000,00 e não tenham optado pela determinação dos rendimentos com base na contabilidade.

Na situação sub judice, conforme resulta do ponto 2 dos factos provados, a Requerente estava enquadrada, desde 01-06-1989 para o exercício da actividade de economista (código 051) no regime simplificado, actividade essa que não exercia há vários anos.

No exercício de 2017, a Requerente auferiu rendimentos provenientes da exploração do estabelecimento comercial de farmácia tendo, apenas, conforme resulta do ponto 9 dos factos provados, em 12-02-2018, entregue a declaração de alterações de actividade, na qual indicou como actividade o CAE 47730 – Comércio a Retalho de Produtos Farmacêuticos em Estabelecimento Especializado e 47750 – Comércio a Retalho de Produtos Cosméticos, estimando um volume de negócios de €1.180.000,00.

De acordo com o regime previsto no artigo 28.º do CIRS, estando a Requerente enquadrada no regime simplificado de tributação, a passagem para o regime da contabilidade organizada ocorreria quando verificada uma das três seguintes situações:

i.             a Requerente tivesse ultrapassado no período de tributação imediatamente anterior um montante anual ilíquido de rendimentos desta categoria de €200.000,00 (n.º 2 do artigo 28.º do CIRS);

ii.            a Requerente até ao fim do mês de março do ano em que pretende alterar a forma de determinação do rendimento – no caso 2017 -, tivesse optado pela determinação dos rendimentos com base na contabilidade, mediante a apresentação de declaração de alterações (artigo 28.º, n.º 3 e n.º 4, alínea b) do CIRS);

iii.           a Requerente tivesse ultrapassado um montante anual líquido de €200.00,00 em dois períodos de tributação consecutivos ou, quando o tivesse ultrapassado num único exercício, em montante superior a 25 % (artigo 28.º, n.º 6 do CIRS).

Conforme se referiu supra, a Requerente estava, nos anos anteriores, enquadrada para o exercício da actividade de economista, porém, não auferia, há vários anos, rendimentos dessa actividade, pelo que desde logo não estava abrangida pelas hipóteses previstas em i) e em iii).

Acresce que, como também já se teve oportunidade de referir, a Requerente apenas entregou a declaração de alterações em 12-02-2018, entrega essa que não ocorreu, relativamente ao período de tributação de 2017, no prazo estipulado na alínea b) do n.º 4 do artigo 28.º do CIRS, pelo que, à partida, como sustenta a Requerida, lhe estaria vedada a tributação, no ano de 2017, de acordo com aquele regime.

Não obstante, como por regra ocorre, a interpretação da lei fiscal não pode, nem deve, ficar-se pelo teor literal dos normativos imediatamente aplicáveis, devendo, antes, e mais não seja pela imposição da realização dos princípios da tributação da capacidade contribuitiva e da justiça material, decorrentes dos artigos 4.º, n.º 1, e 5.º, n.º 2, da LGT, identificar-se a finalidade material do regime a aplicar, através da compreensão da natureza das normas convocáveis, das finalidades por si visadas, e do contexto sistemático das mesmas.

Sob esta perspectiva, norma da alínea b) do n.º 4 do artigo 28.º do CIRS, que disciplina a data limite até à qual os sujeitos passivos abrangidos pelo regime simplificado podem optar pela tributação de acordo com o regime da contabilidade organizada – 31 de Março do ano em que pretendem alterar a forma de determinação do rendimento -, deverá entender-se como uma norma essencialmente procedimental, de organização do sistema operacional de tributação, que visa assegurar sua efectividade e o seu normal funcionamento, através da manifestação, pelo contribuinte, à AT, da alteração do seu método de contabilização, sendo, especialmente e desde logo de notar que a norma em causa, não tem subjacentes quaisquer finalidades de evitar a fraude ou a evasão fiscal.

Perspectivando-se a natureza da norma em causa, e a sua função no sistema de tributação, a solução para o problema que se coloca nos presentes autos passará então por considerar o sistema fiscal no seu todo e os princípios que o enformam, não devendo a solução a obter bastar-se com uma interpretação literal da alínea b) do n.º 4 do artigo 28.º do CIRS, sem que se considerem os princípios subjacentes ao sistema fiscal português.

 

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O princípio da tributação pelo rendimento real, ínsito no n.º 2 do artigo 104.º da CRP, e espelhado no artigo 4.º, n.º 1, da LGT, determina que a tributação incide sobre o rendimento efectivamente obtido pelos contribuintes, apurado com base na contabilidade, caso em que a matéria colectável de imposto corresponderá então ao resultado contabilístico dessa actividade depois de “corrigido” segundo as prescrições da lei fiscal, nos termos prescritos no art.º 17.º, n.º 1 do CIRC.

Assim, o regime simplificado, enquanto método de avaliação indireta (artigo 87.º, n.º 1, alínea a) da LGT) constitui um regime excepcional, não vinculativo, válido somente para quem não tenha optado pelo regime de contabilidade organizada. O regime simplificado tem, como é pacífico, por pressuposto uma opção do contribuinte que renuncia ao seu direito subjectivo de ser tributado com base na contabilidade, sendo uma das situações em que a lei atribui relevância à sua vontade e em que ele pode optar pelo regime que considera mais favorável.

Com efeito, o regime geral de tributação é o da contabilidade organizada e o regime da tributação pelo regime simplificado sempre será supletivo, desde que não haja opção ou condições obrigatórias de enquadramento no regime da contabilidade .

Por sua vez, o princípio da capacidade contributiva exprime e concretiza o princípio da igualdade fiscal ou tributária, isto porque se o princípio da igualdade tributária pressupõe o tratamento igual de situações iguais e o tratamento desigual de situações desiguais, a capacidade contributiva é o critério que há de servir de base à comparação. Neste sentido, o princípio da capacidade contributiva opera como pressuposto ou condição visto que impede que a tributação atinja uma riqueza ou um rendimento que não existe e vale como critério ou parâmetro porque determina que a exação do património dos contribuintes se faça de acordo com a sua "capacidade de gastar". Ou seja, contribuintes com a mesma capacidade de gastar devem pagar os mesmos impostos (igualdade horizontal), e contribuintes com diferente capacidade de gastar devem pagar impostos diferentes (igualdade vertical).

Dito de outro modo, o método regra de determinação do lucro tributável, eleito pelo legislador fiscal para a tributação dos rendimentos empresariais, por ser aquele que melhor permite uma maior aproximação à realidade, é o da contabilidade organizada, corrigida de acordo com as imposições especiais da lei tributária.

 

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Já o regime simplificado de tributação, trata-se de um regime excepcional, ao ponto de, em IRC, ter sido criado em 2001, revogado em 2010, e reintroduzido em 2014.

As principais preocupações legislativas ao nível da consagração e regulação dos regimes simplificados são , consabidamente, a equidade, a eficiência, a simplicidade, a satisfação das necessidades financeiras do Estado, e a relação entre o quadro legal do sistema e sua aplicação pelas autoridades.

Tendo efectiva e reconhecidamente uma raíz optativa – ou seja, a opção do contribuinte é pressuposto e condição da aplicação do regime simplificado – menos verdade não será que a essa opção não poderá nem deverá ser atribuído um caracter absoluto e irredutível, no sentido de que, verificados os pressupostos formais da sua operatividade, se hajam de impôr, inelutavelmente, os seus efeitos.

                Efectivamente, e desde logo, a própria lei, para o início de actividade, exige – em IRS, que é o que para o caso interessa – uma estimativa de volume de negócios inferior a determinado montante, para que sejam reconhecidos efeitos à vontade do contribuinte de se sujeitar ao regime simplificado.

                Situação análoga ocorre, por exemplo, em sede de IVA, em que poderá o sujeito passivo usufruir de um regime de isenção, caso o seu volume de negócios seja inferior a determinado montante, sendo que no caso de início de actividade, aquele volume é determinado estimativamente (cfr. art.º 53.º, n.º 3, do CIVA).

                A exigência legal de indicação de uma estimativa pelo sujeito passivo não deverá, nem poderá, ela própria, ser entendida como um requisito absolutamente formal, meramente volitivo, mas antes como expressão do fundamento material dos regimes em questão, relacionado com a sua vocação para a respectiva aplicabilidade a actividades de reduzida expressão económica, justificadora das preocupações de simplificação que lhes estão subjacentes, em termos de, sempre que tal estimativa se demonstrar como, à partida, notoriamente irrealista, a opção do contribuinte pelo regime simplificado de tributação (seja ele qual for), poder e dever ser desconsiderada, por não verificação dos pressupostos materiais de tal regime.

 

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                Uma outra dimensão do regime jurídico-fiscal convocável no enquadramento do caso sub iudice, e a ter ainda em conta, relaciona-se com a análise e compreensão de algumas notas próprias do dever de comunicação de alterações de actividade pelos contribuintes.

                Nos termos do art.º 112.º, n.º 2 do CIRS, “Sempre que se verifiquem alterações de qualquer dos elementos constantes da declaração de início de atividade, deve o sujeito passivo entregar em qualquer serviço de finanças, no prazo de 15 dias a contar da alteração, se outro prazo não for previsto neste Código, a respetiva declaração de alterações, em impresso de modelo oficial.”.

                Idêntica obrigação se verifica ao nível do IVA (art.º 32.º do CIVA) e do IRC (art.ºs 118.º e 119.º do CIRC).

                O incumprimento do dever de comunicação das alterações de actividade é punido com coima (art.º 117.º, n.º 2, do RGIT), e é susceptível de ser suprido por inspecção da AT, nos termos, para o que ao caso interessa, dos artigos 132.º e ss. do CIRS, e 63.º da LGT.

                Do exposto resulta – em suma – que a entrega da declaração de alteração de actividade não é uma faculdade, mas um dever, do sujeito passivo, e que a mesma não tem efeito constitutivo mas, meramente, declarativo, tudo o que, como adiante se verá, será de relevar na solução jurídica a formular no caso concreto.

 

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Conforme resulta dos factos provados, a Requerente entregou em 12-02-2018, a declaração de alterações de actividade na qual estimou um volume de negócios de €1.180.000,00, requerendo o enquadramento no regime da contabilidade organizada desde 09-03-2017. A Requerente estimou, portanto, desde logo, um volume de negócios superior àquele a partir do qual a lei prevê a inclusão obrigatória no regime da contabilidade organizada.

Não se vislumbra compatível com o princípio da capacidade contributiva e com o princípio da justiça, a inclusão da Requerente no regime simplificado pela circunstância de ter uma actividade aberta, que nada tem a ver com a actividade agora exercida – quer pelo tipo de actividade, quer pelo volume de negócios que cada uma delas origina -, e que não exerce há vários anos. Na verdade, materialmente, trata-se de um início de actividade, numa actividade completamente distinta, com um volume de negócios de dimensão diferente e bastante distanciada no tempo do exercício da actividade de economista.

Acresce que, embora a actividade do estabelecimento comercial de farmácia, como actividade empresarial desenvolvida pela Requerente, estivesse enquadrada no regime simplificado, por não ter sido aceite pela AT que a inclusão no regime da contabilidade organizada retroagisse a 09-03-2017, a Requerente manteve a sua contabilidade organizada, não sendo colocada, em crise, pela AT, a bondade dos elementos contabilísticos, pelo que, in casu, não se verifica que o atraso na entrega da declaração de alterações comprometa, por qualquer forma, os poderes deveres da AT, de controlo e fiscalização do lucro tributável.

Assim, atendendo ao princípio da tributação pelo rendimento real, da capacidade contributiva e da justiça, considerando as circunstâncias que se descreveram e que rodeiam o exercício da actividade pela Requerente, sempre se deverá considerar a Requerente enquadrada no regime da contabilidade organizada no ano de 2017.

E, nem se diga, como faz a AT, que não tendo a Requerente respeitado o prazo para a entrega da declaração de alterações, previsto no artigo 112.º do CIRS, não pode ser enquadrada no regime da contabilidade organizada, no exercício de 2017. O atraso na entrega da declaração de alterações, como se viu, constitui uma contraordenação tributária prevista e punida nos termos do artigo 117.º, n.º 2 do RGIT, e não deverá como consequência, sem mais, o não enquadramento no regime da contabilidade organizada.

Isso mesmo concluiu a AT, conforme resulta, desde logo, do ponto 20 da matéria de facto provada, de onde se verifica que, para efeitos de IVA, a AT aceitou que a declaração de alterações retroagisse a 01-03-2017, o que, como se viu, está em consonância com a natureza declarativa (e não constitutiva) da declaração de alterações.

Como também resulta dos pontos 12 e 13 da matéria de facto dada como provada, a AT fez, igualmente, retroagir a 09-03-2017 declaração de alterações apresentada em 12-02-2018, para efeitos da imputação dos rendimentos emergentes da actividade de farmácia, passando-as do NIF ... (Herança) para o NIF ... (Requerente).

Ora, face à prevalência dos princípios da boa-fé e da justiça, não será aceitável que para determinados efeitos (IVA e imputação dos rendimentos) a AT faça retroagir os efeitos de uma declaração de alterações de actividade apresentada fora de prazo, e para outros (determinação do regime tributação), não o faça.

Acresce ainda que, no caso, é notório que o volume de negócios da actividade de farmácia, assumida pela Requerente a partir de 01-03-2017, nunca seria susceptível de ser abrangida pelo regime simplificado, pelo que, ainda que a mesma pretendesse que assim fosse, em caso algum tal deveria ser aceite, como efectivamente não foi para efeitos de IVA, dado ser manifesto que não se verificavam os pressupostos materiais da aplicação daquele regime.

Por fim, não será também de ignorar que no caso, a Requerente esteve inactiva por vários anos (cfr. ponto 3 dos factos dado como provados), sendo que à AT, nos termos do artigo 114.º, n.º 3, do CIRS, assistia o poder dever de oficiosamente declarar a cessação da actividade de economista da Requerente, o que não teria dado azo à situação ora em litígio.

Face ao exposto, atendendo à prevalência da tutela dos princípios da tributação pelo rendimento real, da capacidade contributiva e da justiça e boa-fé, deverão ser anuladas as liquidações de IRS objecto da presente acção arbitral, bem como a decisão da reclamação graciosa que teve aquelas por objecto, procedendo o pedido formulado pela Requerente, e ficando prejudicado o conhecimento das restantes questões formuladas pela Requerente.

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Formula ainda a Requerente, a final, o pedido acessório de indemnização pela prestação indevida de garantia, nos termos do artigo 53.º da LGT e 171.º do CPPT.

Determina o artigo 53.º da LGT o seguinte:

“1 - O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objecto a dívida garantida.

2 - O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.

3 - A indemnização referida no n.º 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.

4 - A indemnização por prestação de garantia indevida será paga por abate à receita do tributo do ano em que o pagamento se efectuou.”

Como se notou no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 21-11-2007, proferido no processo n.º 0633/07, “o fundamento do direito à indemnização reside no facto complexo integrado pelo prejuízo resultante da prestação de garantia e pela ilegal atuação da administração devida a erro seu, ao liquidar indevidamente, forçando o contribuinte a incorrer em despesas com a constituição da garantia que, não fora aquela sua atuação, não teria sido necessário prestar”.

Trata-se, portanto, de um direito indemnizatório muito específico que a lei tributária prevê, e que embora tenha a sua raiz na responsabilidade civil da administração tributária por danos decorrentes de uma actuação ilegal, parte de uma presunção de existência de prejuízos nas situações em que o contribuinte se viu obrigado a prestar uma garantia bancária ou equivalente para suspender a cobrança de uma liquidação ilegal, dispensando-o de provar não só o nexo de imputação à actuação ilegal como, também, de provar a existência de prejuízos.

Deste modo, demonstrando-se erro imputável aos serviços conducente à ilegalidade do acto controvertido e logo à indevida prestação de garantia para suspensão da execução fiscal emergente do não pagamento da prestação tributária ilegalmente liquidada, assiste ao contribuinte o direito a ser ressarcido dos prejuízos incorridos com a prestação e manutenção da garantia.

No caso sub judice, a AT considerou que seria aplicável à Requerente o regime simplificado, quando, como se veio a decidir, a Requerente devia ser tributada no regime da contabilidade organizada atentos os princípios da tributação pelo rendimento real, da capacidade contributiva e da justiça.

Dessa conduta decorreria, em abstracto, a existência de erro imputável aos serviços. No entanto, as liquidações ora anuladas foram efectuadas com base numa interpretação plausível do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 28.º do CIRS, pelo que não se pode formular um juízo de censura à actuação da AT.

Assim, porque não se julga razoável imputar um juízo de censura à actuação da AT na emissão das liquidações, há que considerar como excluída a existência de erro imputável aos serviços e, consequentemente, afastada a sua responsabilidade pelo pagamento de indemnização por prestação indevida de garantia.

 

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C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:

a)            Anular os actos de liquidação de IRS impugnados, bem como a decisão da reclamação graciosa que teve aqueles como objecto;

b)           Condenar a Requerida nas custas do processo, abaixo fixadas.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em €111.154,49, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 3.060,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela AT, uma vez que o pedido foi totalmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 5 de Fevereiro de 2021

 

O Árbitro Presidente

(José Pedro Carvalho)

 

O Árbitro Vogal

(Jorge Bacelar Gouveia)

 

O Árbitro Vogal

(Paulo Ferreira Alves)