Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 728/2019-T
Data da decisão: 2020-04-17  IRS  
Valor do pedido: € 791.893,77
Tema: IRS - Actividades de elevado valor acrescentado; Princípio da impugnação unitária; Caso decidido.
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DECISÃO ARBITRAL

                 Acordam em tribunal arbitral

 

                I – Relatório

 

                1. A... e B..., contribuintes fiscais n.os ... e ..., residentes na ... ..., Espanha, vêm requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade das liquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) n.º 2018..., relativa ao ano de 2014, no montante de € 183.126,41, n.º 2018..., relativa ao ano de 2015, no montante de € 359.601,15, e n.º 2018..., relativa ao ano de 2016, no montante de € 207.480,90, e correspondentes liquidações de juros compensatórios, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa deduzida contra esses actos tributários, requerendo ainda a condenação da Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios.

 

Fundamenta o pedido nos seguintes termos.

 

O primeiro Requerente celebrou, em de Maio de 2014, um contrato de trabalho desportivo de treinador profissional de futebol com a C..., S.A.D., com início a 1 de Julho de 2014, e, por procuração outorgada em setembro de 2014, foram-lhe conferidos os poderes necessários para, juntamente com um administrador, celebrar contratos de trabalho desportivo e contratos de formação desportiva, com jogadores de futebol. 

 

Neste contexto, o primeiro Requerente solicitou junto da Direcção de Serviços de Registo de Contribuintes a sua inscrição no regime dos residentes não habituais para o ano de 2014, tendo adicionalmente solicitado a referida inscrição com o código 802 aplicável aos «quadros superiores de empresas».

 

O primeiro Requerente teve conhecimento do deferimento do seu pedido de inscrição como residente não habitual, mas sem qualquer menção ao código aplicável à actividade por si desenvolvida, e, por ofício de 3 de Novembro de 2015, veio a ser notificado do despacho da Sub-Directora Geral da Área dos Impostos sobre o Rendimento e Relações Internacionais, no qual se decidiu não poder ser inscrito com o código 802 aplicável aos «quadros superiores de empresas» por se ter entendido que não ocupa nenhum cargo de direcção naquela sociedade.

 

Entretanto, o primeiro Requerente apresentou oportunamente as declarações de IRS dos anos de 2014, 2015 e 2016, com base no regime dos residentes não habituais, com o código de actividade de elevado valor acrescentado, e, na sequência, a Autoridade Tributária elaborou um projecto de correcção das suas liquidações de IRS relativamente a esses anos, assente no entendimento de que a actividade profissional desenvolvida pelo primeiro Requerente não se enquadrava na categoria de «quadro superior de empresa. Na ausência do exercício do direito de audição, o projecto de correcção foi convertido em definitivo, dando origem às liquidações de IRS ora impugnadas.

 

Em 11 de Abril de 2019, os Requerentes apresentaram reclamação graciosa contra os actos tributários, que foi objecto de despacho de indeferimento, notificado a 3 de Setembro de 2019.

 

Os Requerentes entendem que os actos tributários em causa são ilegais, por violação do artigo 72.º, n.º 6, do CIRS, na redacção em vigor à data dos factos, em virtude da comprovação do exercício de uma actividade de elevado valor acrescentado pelo primeiro Requerente no contexto do seu estatuto de residente não habitual.

 

Com efeito, os Requerentes preenchiam os pressupostos legais para se qualificarem como residentes não habituais, uma vez que foram residentes fiscais em Portugal em 2014 e não se qualificaram nem foram tributados como residentes fiscais em Portugal, nos cinco anos anteriores ao ano em que se tornaram fiscalmente residentes, ou seja, nos cinco anos anteriores a 2014.

 

 Uma vez que os Requerentes se inscreveram como residentes não habituais e a actividade do primeiro Requerente é qualificável como actividade de elevado valor acrescentado, beneficiavam do regime de tributação especial em sede de IRS, previsto no artigo 72.º, n.º 6, do CIRS e na Portaria n.º 12/2010, de 7 de Janeiro.

 

De facto, a Portaria n.º 12/2010, de 7 de Janeiro, aprovou a tabela de actividades de elevado valor acrescentado, com carácter científico, artístico ou técnico relevantes para efeitos do regime fiscal dos residentes não habituais, entre as quais incluiu os «quadros superiores de empresas», com o código 802. E, neste contexto, a Circular n.º 2/2010, de 6 de Maio, da Direcção de Serviços do IRS, procurando concretizar esse conceito, indicou que o mesmo abrange «as pessoas com cargo de direcção e poderes de vinculação da pessoa colectiva».

 

É de sublinhar, por outro lado, que o conceito de «quadro superior de empresa» não se confunde com qualquer cargo de administração ou gerência, os quais corresponderão ao código 801 (e não ao código 802). E tendo o primeiro Requerente «poderes específicos para, juntamente com um administrador, celebrar contratos de trabalho desportivo, e contratos de formação desportiva, com jogadores de futebol» resulta evidente que aquele exercia um cargo de direcção, tomando decisões estratégicas em nome da C..., S.A.D. e que a vinculavam.

 

Os Requerentes invocam ainda a ilegalidade originária das liquidações dos juros compensatórios considerando que agiram sem culpa, limitando-se a adoptar de boa-fé uma interpretação das normas em causa que é legítima e plausível.

 

Autoridade Tributária, na sua resposta, invoca a caducidade do direito de acção por considerar que os Requerentes, através da impugnação dos actos de liquidação de IRS, pretendem discutir a legalidade do despacho de 3 de Novembro de 2015, da Sub-directora Geral da Área dos Impostos sobre o Rendimento e das Relações Internacionais, que indeferiu o enquadramento da actividade exercida pelo primeiro Requerente no código 802 – Quadro Superior de Empresa, previsto na Portaria n.º 12/2010, de 7 de Janeiro.

 

Através dessa decisão, a Administração recusou o enquadramento da actividade como de elevado valor acrescentado e negou assim a possibilidade de os Requerentes beneficiarem do regime de tributação especial de 20%. Sendo que essa decisão não se apresenta como meramente preparatória dos actos de liquidação em sede de IRS, mas antes como um acto que lhe é pressuposto e produz efeitos próprios, que carecia de ser imediatamente impugnado sob pena de se consolidar na ordem jurídica.

 

E, nesses termos, à data da apresentação do pedido de constituição de tribunal arbitral, em 28 de Outubro de 2019, há muito tinha decorrido o prazo legalmente previsto para reagir contra despacho de indeferimento do acto pressuposto das liquidações, de onde resulta a caducidade do direito de acção dos Requerentes contra os actos de liquidação.

 

Em sede de impugnação, a Autoridade Tributária alega, em síntese, que o primeiro Requerente não prova que tenha desempenhado um cargo de direção no D... entre os anos de 2014 a 2016, e que tivesse a seu cargo a direção da política de contratação e formação desportiva da SAD, em termos de poder ser enquadrada pela Administração Tributária como tendo elevado valor acrescentado, na acepção da Portaria n.º 12/2010, de 7 de janeiro, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 72.º, n.º 6, e 81.º, n.º 4, do CIRS.

 

2. Notificados por despacho arbitral de 25 de Fevereiro de 2019 para se pronunciaram quanto à matéria de excepção, os Requerentes alegaram, em resumo, que independentemente da classificação concretamente atribuída pela Administração Tributária em sede cadastral à actividade profissional desenvolvida pelo primeiro Requerente, a não impugnação do acto que definiu esse enquadramento não pode obstar à tributação de acordo com o regime dos residentes não habituais e à luz da actividade profissional concretamente desenvolvida por este, sendo concomitantemente ilegais as liquidações de IRS que não reflictam essa mesma tributação.

Com o princípio da impugnação unitária constante do artigo 54.º do Código de Procedimento e Processo Tributário pretende-se no fundo evitar a multiplicação processual de litígios entre os contribuintes e a Administração Tributária, desonerando-se aqueles de reagir contra actos administrativos apenas mediatamente lesivos e concentrando-se no processo de impugnação dos actos tributários a invocação de quaisquer ilegalidades subjacentes a estes, remetendo eventuais desvios a este princípio da impugnação unitária para situações verdadeiramente excepcionais – em que a impugnação contenciosa autónoma esteja expressamente prevista na lei ou quando o acto determine uma lesão imediata dos direitos dos contribuintes –, o que manifestamente não é o caso de uma incorrecta classificação cadastral em sede de IRS.

Com efeito, apenas os actos de liquidação de IRS emitidos na sequência dessa incorrecta classificação cadastral por parte da Administração Tributária consubstanciam actos lesivos e, portanto, susceptíveis de impugnação contenciosa, carecendo o mero acto de enquadramento cadastral da actividade profissional desenvolvida pelo primeiro Requerente de qualquer efeito substantivo directo na esfera jurídica tributária do contribuinte.

Assim concluindo que a não impugnação do despacho que rejeita o enquadramento cadastral do primeiro Requerente em actividade de elevado valor acrescentado não impede a ulterior impugnação das liquidações de IRS emitidas, com fundamento na ilegalidade da não aplicação do regime dos residentes fiscais não habituais aos rendimentos gerados pelo primeiro Requerente, sob pena de violação dos princípios da tutela judicial efectiva e da justiça consagrados nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da Constituição da República.

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 1primeiro do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 1primeiro, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 17 de Janeiro de 2020.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e primeiro da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades e foi invocada a excepção da caducidade do direito de acção.

 

Cabe apreciar e decidir.

 

II - Fundamentação

 

Matéria de facto

 

4. Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes.

 

A)           Em 5 de Maio de 2014, o primeiro Requerente celebrou contrato de trabalho desportivo de Treinador Profissional de Futebol com a C..., S.A.D., com início a 1 de Julho de 2014 (documento n.º 5 junto ao pedido arbitral);

B)           Por efeito do contrato, o primeiro Requerente obrigou-se a «planificar, ministrar e/ou supervisionar a preparação física e técnica que julgar adequada dos atletas do plantel, dirigindo e programando todas as sessões de treino e coordenar a equipa técnica, definindo expressamente as respectivas competências e tarefas» e tinha também «as funções e os necessários poderes para a selecção e contratação de atletas, para as equipas de futebol de formação da Primeira Outorgante, podendo para esse efeito outorgar os respectivos contratos, nas mesmas condições dos membros do Conselho de Administração» do C..., S.A.D. (documento n.º 5 junto ao pedido arbitral);

C)           Em Setembro de 2014, por procuração outorgada pela C..., S.A.D., o primeiro Requerente foi constituído seu procurador, tendo-lhe sido conferidos os poderes necessários para, juntamente com um administrador, celebrar contratos de trabalho desportivo e contratos de formação desportiva, com jogadores de futebol (documento n.º 4 junto ao pedido de inscrição no regime de RNH – cfr. artigo 10.º do PPA e cfr. n.º 3 do doc. 6 junto com o PPA);

D)           O primeiro Requerente solicitou junto da Direcção de Serviços de Registo de Contribuintes a sua inscrição no regime dos residentes não habituais para o ano de 2014, tendo adicionalmente solicitado a referida inscrição com o código 802 aplicável aos «quadros superiores de empresas»;

E)            Por despacho da Sub-Directora Geral da Área dos Impostos sobre o Rendimento e Relações Internacionais, notificado pelo ofício n.º..., de 3 de Novembro de 2015, o pedido de inscrição do primeiro Requerente com o código 802 aplicável aos «quadros superiores de empresas» foi indeferido por se ter entendido o seguinte:

“1 – As actividades de elevado valor acrescentado consideradas para efeitos do disposto no n.º 6 do art. 72.º e n.º 3 do art. 81.º do CIRS, constam da Portaria n.º 12/2010, de 7 de janeiro, que atribui o código 802 aos quadros superiores de empresas. A circular n.º 2/2010, da DSIRS, veio divulgar o entendimento sancionado por despacho do Sr. Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, no qual esclarece no ponto 7 quais as atividades consideradas no código 8 (801 e 802), definido que para efeitos daquelas tabelas ao qualificados como quadros superiores de empresas as pessoas com cargo de direcção e poderes vinculativos da pessoa coletiva.

2 – Entende-se por poderes de vinculação da pessoa colectiva a prática dos actos das pessoas com cargo de direcção que vinculem a sociedade perante terceiros, quando integrem poderes conferidos por contrato social, deliberação dos sócios ou através de mandato, tal como definido no Código das Sociedades Comerciais, representando a sociedade em juízo ou fora dele, praticando actos jurídicos por conta da sociedade, ou compreendendo os actos que a sociedade entendeu necessários para a vinculação da mesma, normalmente atribuídos em documento legal específico para o efeito, designadamente […] celebrar contratos de trabalho e de prestação de serviços e outros contratos necessários ao exercício da actividade da sociedade mandante.

3 - O contribuinte para comprovação do exercício de uma actividade abrangida pelo código 802 apresenta uma procuração que lhe confere poderes específicos para, juntamente com um administrador, celebrar contratos de trabalho desportivo, e contratos de formação desportiva, com jogadores de futebol. Deste modo, considerando que é sempre necessária a intervenção de um administrador da sociedade C..., SAD, a celebração destes actos está dependente da decisão conjunta de um administrador.

4 - Não obstante subsistirem dúvidas quanto aos poderes de vinculação, aceitando que os mesmos lhe foram atribuídos, não está qualificado como quadro superior de empresa porquanto não ocupa nenhum cargo de direcção naquela sociedade, não reunindo os requisitos necessários para em sede de IRS ser abrangido pelo regime de tributação dos residentes não habituais previsto no n.º 6 do art. 72.º

5 – Assim, ainda que considerando que dispõe de poderes vinculativos conferidos pela respectiva procuração, não exerce um cargo de direcção pelo que não pode a actividade em causa ter enquadramento no código 802 – Quadro Superior de Empresa, previsto na Portaria n.º 12/2010, de 7 de Janeiro” (documento n.º 6 junto ao pedido arbitral);

F)            Os Requerentes apresentaram as declarações de IRS relativas aos anos de 2014, 2015 e 2016, com base no regime dos residentes não habituais com o código de actividade de elevado valor acrescentado;

G)           A Administração Tributária procedeu a correcções aritméticas do cálculo do imposto, tendo emitido as liquidações de IRS n.os 2018..., de 30 de Outubro de 2018, relativa ao ano de 2014, no montante de € 183.126,41, 2018..., de 2 de Novembro de 2018, relativa ao ano de 2015, no montante de € 359.601,15, e 2018..., de 2 de Novembro de 2018, relativa ao ano de 2016, no montante de € 207.480,90, bem como as respectivas liquidações de juros compensatórios (documentos n.os 2 a 4 juntos ao pedido arbitral);

H)           As correcções tiveram por base o entendimento de que a actividade profissional desenvolvida pelo primeiro Requerente não se enquadrava na categoria de «quadro superior de empresa», nos termos que seguem:

“Em 2014, no âmbito do pedido de enquadramento como residente não habitual, o SP A [primeiro Requerente] solicitou à AT inscrição no código de actividade EVA “802 – Quadros Superiores de Empresas” suportado numa procuração datada de 2014-09-09 emitida pela entidade patronal em que lhe confere poderes para juntamente com um administrador celebrar contratos de trabalho desportivo e contratos de formação desportiva, com jogadores de futebol.

 Nessa sequência foi proferido, através de despacho da Sra. Subdirectora Geral da área dos Impostos sobre o Rendimento e das Relações Internacionais, datado de 2015-04-16, o entendimento sobre o pedido de enquadramento da actividade em causa.

 No referido despacho resultou o entendimento de não reconhecimento ao SP A o exercício de um cargo de direcção e consequentemente o não enquadramento no código 802, previsto na Portaria n.º 12/2010, de 7/01.

Tendo relevado para esse entendimento o seguinte:

- que para efeitos das actividades 801 e 802 da tabela está definido que as actividades qualificadas como quadros superiores de empresas as pessoas com cargos de direcção e poderes vinculativos.

- Entendendo-se por poderes de vinculação da pessoa colectiva a prática dos actos das pessoas com cargo de direcção que vinculem a sociedade perante terceiros, quando integrem poderes conferidos por contrato social, deliberação dos sócios ou através de mandato, tal como definido no Código das Sociedades Comerciais, representando a sociedade em juízo ou fora dele, praticando actos jurídicos por conta da sociedade, ou compreendendo os actos que a sociedade entendeu necessários para a vinculação da mesma, normalmente atribuídos em documento legal específico para o efeito, designadamente […] celebrar contratos de trabalho e de prestação de serviços e outros contratos necessários ao exercício da actividade da sociedade mandante.

- que o contribuinte para a comprovação do exercício de uma actividade abrangida pelo código 802 apresentou uma procuração que lhe confere poderes específicos, para juntamente com um administrador, celebrar contratos de trabalho desportivo, contratos de formação desportiva com jogadores de futebol. Desse modo, a celebração desses actos está dependente da decisão conjunta de um administrador. […].

Por consequência do referido o SP A não está qualificado como quadro superior de empresa porquanto não ocupa nenhum cargo de direcção da sociedade C..., SAD e por conseguinte, apesar de estar abrangido pelo regime de tributação dos residentes não habituais, não lhe foi legalmente reconhecida pela AT o exercício de uma actividade EVA.

[…]

Deste modo, conclui-se que o SP A não reúne as condições para beneficiar do regime especial do n.º 6 do art.º 72.º do CIRS, pelo que em sede de IRS devem ser corrigidas as liquidações das declarações Modelo 3/IRS dos anos 2014 a 2016 entretanto efectuadas, porquanto os rendimentos da categoria A obtidos pelo mesmo devem ser englobados e tributados pela aplicação das taxas previstas no art. 68.º do CIRS” (documento  n.º 7 junto ao pedido arbitral);

I)             Em 11 de Abril de 2019, os Requerentes apresentaram reclamação graciosa contra os actos de liquidação (documento n.º 11 junto ao pedido arbitral));

J)            A reclamação graciosa foi indeferida por despacho de 30 de Agosto de 2019, do director adjunto da Direcção de Finanças de Lisboa, praticado por delegação de competências, notificado através do ofício n.º 20746 de 2 de Setembro seguinte (documento n.º 1 junto ao pedido arbitral);

K)           O despacho de indeferimento assenta no entendimento de que a actividade profissional desenvolvida pelo primeiro Requerente não se enquadra na categoria de «quadro superior de empresa» por não estar comprovado o exercício de um cargo de direcção, e teve por base uma informação dos serviços em que se afirma, além do mais, o seguinte:

“[…]

4.5. Assim, ainda que considerando que dispõe de poderes vinculativos conferidos pela respectiva procuração, não exerce um cargo de direcção pelo que não pode a actividade em causa ter enquadramento no código 802 – Quadro Superior de Empresa, previsto na Portaria n.º 12/2010, de 7 de Janeiro.

5. Nesta sede da reclamação graciosa vem o sujeito passivo, ora Requerente, apresentar fotocópia do contrato de trabalho desportivo de treinador profissional de futebol, celebrado em 2014-05-05, com a entidade C... SAD, o qual refere na cláusula quarta que o Requerente terá as funções e os necessários poderes para selecção e contratação de atletas para as Equipas de Futebol de Formação do próprio, podendo para esse efeito outorgar os respectivos contratos, nas mesma condições dos membros do Conselho de Administração da referida entidade.

6. Cumpre informar que o disposto na referida cláusula do referido contrato continua a referir-se ao poder de vinculação, os quais não já não estavam em causa, mas sim o facto de não estar qualificado como quadro superior de empresa porquanto não ocupa nenhum cargo de direcção naquela sociedade, pelo que não pode a actividade em causa ter enquadramento no código 802 – Quadro Superior de Empresa, previsto na Portaria n.º 12/2010, de 7 de Janeiro, não reunindo os requisitos necessários para em sede de IRS ser abrangido pelo regime de tributação dos residentes não habituais previsto no n.º 6 do art.º 72º do CIRS.

7. Concluindo-se que as liquidações adicionais n.º 2018..., n.º 2018 ... e n.º 2018 ... se encontram correctas, pelo que não enfermam de qualquer ilegalidade” (documento n.º 12 junto ao pedido arbitral);

L)            Os Requerentes procederam ao pagamento do imposto e juros compensatórios devidos, no montante total de € 791.839,77 (documento n.º 10 junto ao pedido arbitral);

M)          O pedido arbitral foi apresentado em 28 de Outubro de 2019.

               

                Factos não provados

 

Não existem quaisquer factos não provados relevantes para a decisão da causa.

 

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta, e em factos não questionados pelas partes.

 

                III – Saneamento

 

5. A Autoridade Tributária invoca a caducidade do direito de acção por considerar que que os actos de liquidação de IRS impugnados têm como pressuposto o antecedente despacho da Sub-directora Geral da Área dos Impostos sobre o Rendimento e das Relações Internacionais, que indeferiu o enquadramento da actividade exercida pelo primeiro Requerente no código 802 – Quadro Superior de Empresa, acto esse que por produzir efeitos lesivos imediatos carecia de ser impugnado autonomamente.

 

E, desse modo, à data da apresentação do pedido de constituição de tribunal arbitral, em 28 de Outubro de 2019, há muito tinha decorrido o prazo legalmente previsto para reagir contra o aludido despacho de indeferimento de onde resulta a caducidade do direito de acção dos Requerentes contra os actos de liquidação.

 

Os Requerentes contrapõem com as seguintes três ordens de considerações: (a) independentemente da classificação atribuída pela Administração Tributária à actividade profissional desenvolvida pelo primeiro Requerente, a não impugnação do acto que definiu esse enquadramento não pode obstar à tributação de acordo com o regime dos residentes não habituais e à luz da actividade profissional concretamente exercida por este; (b) o princípio da impugnação unitária constante do artigo 54.º do CPPT apenas admite excepções quando a impugnação contenciosa autónoma esteja expressamente prevista na lei ou o acto determine uma lesão imediata dos direitos dos contribuintes, o que não é o caso quando se verifique uma incorrecta classificação cadastral em sede de IRS; (c) a não impugnação do despacho que rejeita o enquadramento do primeiro Requerente em actividade de elevado valor acrescentado não impede a ulterior impugnação das liquidações de IRS emitidas com esse fundamento, sob pena de violação dos princípios da tutela judicial efectiva e da justiça consagrados nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da Constituição da República.

 

Numa primeira aproximação à questão, deve começar por dizer-se que a situação que se configura no caso não é de caducidade do direito de acção relativamente aos actos de liquidação de imposto, mas de eventual caso decidido por não ter sido impugnado um acto administrativo antecedente imediatamente lesivo que influenciou o sentido decisório dos actos tributários de liquidação posteriores.

 

De facto, os Requerentes impugnaram a decisão de indeferimento da reclamação graciosa que lhes foi notificada por ofício de 3 de Setembro de 2019, e, mediatamente, os próprios actos de liquidação contra os quais a reclamação foi deduzida, pelo que o pedido arbitral, tendo sido apresentado em 28 de Outubro de 2019, não infringiu o prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, tendo em conta que o objecto imediato do pedido é um dos actos tributários susceptíveis de impugnação autónoma a que se refere o artigo 102.º, n.º 1, alínea b), do CPPT.

 

O tribunal não está impedido, em todo o caso, de qualificar diferentemente, do ponto de vista jurídico, os factos alegados na resposta que pretendem caracterizar a excepção dilatória, sendo que a Autoridade Tributária não deixou de referir que a Requerente se absteve de impugnar a decisão de indeferimento da classificação da actividade profissional no código 802 e que esse acto se consolidou na ordem jurídica, impedindo a impugnação dos ulteriores actos consequentes.

 

A questão fulcral é, pois, a de saber se se verifica, no caso, uma excepção ao princípio da impugnação unitária a que se refere o artigo 54.º do CPPT, que implique a imediata impugnação contenciosa do acto antecedente que indeferiu o enquadramento das funções exercidas pelo primeiro Requerente como correspondendo a actividade de elevado valor acrescentado.

 

O preceito dispõe que «[S]alvo quando forem imediatamente lesivos dos direitos do contribuinte ou disposição expressa em sentido diferente, não são susceptíveis de impugnação contenciosa os actos interlocutórios do procedimento, sem prejuízo de poder ser invocada na impugnação da decisão final qualquer ilegalidade anteriormente cometida»

 

                               Em anotação a esta disposição, LOPES DE SOUSA refere o seguinte:

 

«Nos procedimentos tributários que conduzem a um ato de liquidação de um tributo, a esfera jurídica dos interessados apenas é atingida por esse ato e, por isso, em regra, será ele e apenas ele o acto lesivo e contenciosamente impugnável. No entanto, como se referiu, no presente artigo 54.º do CPPT ressalvam-se situações em que haja “disposição expressa em sentido diferente”. E, com efeito, por vezes, a lei prevê a impugnabilidade contenciosa imediata de actos anteriores ao acto final de procedimento, que têm especial relevo para condicionar a decisão final. Estes actos preparatórios da decisão final, que são direta e imediatamente impugnáveis por via contenciosa, assumem a natureza de actos destacáveis. Os actos destacáveis são actos que, embora inseridos no procedimento tributário, e anteriores à decisão final, a condicionam irremediavelmente, justificando-se que sejam impugnados por forma autónoma, principalmente nos casos em que são praticados por entidades distintas da que deve proferir a decisão final. Se os actos destacáveis não forem impugnados, a decisão consolidar-se-á e o que neles se decidiu ficará assente no procedimento tributário em que eles estejam inseridos ou conexionados, não podendo a decisão final do procedimento ser impugnada com fundamentos em vícios do acto destacável. No entanto, a sua impugnação contenciosa autónoma só ocorrerá quando esteja prevista na lei, por forma expressa, como se exige neste artigo, só havendo impugnabilidade imediata de actos procedimentais independentemente de norma expressa quando tais actos procedimentais sejam imediatamente lesivos» (Código de Procedimento e de Processo Tributário, Anotado e Comentado, Vol. I, 6.ª edição, Lisboa, 2011, Áreas Editora, página 468).

 

O princípio da impugnação unitária contempla, no entanto, duas excepções: não apenas quando subsista disposição expressa em sentido diferente, isto é, quando haja disposição que admita a impugnação contenciosa autónoma de actos interlocutórios do procedimento, mas também quando se trate de actos imediatamente lesivos dos direitos do contribuinte. Em qualquer destes casos, estamos perante actos destacáveis que são susceptíveis de impugnação autónoma.

 

                               No caso, está em causa o regime de tributação especial previsto no artigo 72.º, n.º 6, do CIRS, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23 de setembro, então vigente, em que se estabelecia que “[O]s rendimentos líquidos das categorias A e B auferidos em actividades de elevado valor acrescentado, com carácter científico, artístico ou técnico, a definir em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, por residentes não habituais em território português, são tributados à taxa de 20%.”

 

                               A Portaria que, por sua vez, veio dar execução a essa disposição inclui entre as actividades de elevado valor acrescentado para esse efeito os «Quadros superiores de empresas» a que corresponde o código 802.

 

                               No caso, como resulta da matéria de facto dada como assente, os Requerentes apresentaram as declarações de IRS relativas aos anos de 2014, 2015 e 2016, com base no regime de tributação aplicável aos residentes não habituais com o código de actividade de elevado valor acrescentado, mas a inscrição nesse tipo de actividade foi indeferida por despacho da Sub-Directora Geral da Área dos Impostos sobre o Rendimento e Relações Internacionais, e, nessa sequência, a Administração Tributária procedeu a correcções aritméticas do cálculo do imposto por não ser aplicável ao caso o regime de tributação previsto no referido artigo 72.º, n.º 6, do CIRS.

 

                               É patente, neste circunstancialismo, que o acto de indeferimento da classificação da actividade do primeiro Requerente como actividade de elevado valor acrescentado é um acto imediatamente lesivo na medida em que projecta directamente efeitos na esfera jurídica do interessado de tal modo que a questão decidida por esse acto interlocutório não pode ser objecto de impugnação num momento ulterior. E torna-se assim um acto destacável para os efeitos previstos no segmento inicial do artigo 54.º do CPPT.

 

Tanto assim é  que os Requerentes atacam os actos de liquidação com base na ideia de que o primeiro Requerente exercia um cargo de direcção, tomando decisões estratégicas em nome do clube, e, como tal, a sua actividade profissional deve ser reconhecida como uma actividade de elevado valor acrescentado na acepção da Portaria n.º 12/2010, de 7 de Janeiro, e para efeitos do disposto no artigo 72.º, n.º 6, do CIRS. Ou seja, os Requerentes não imputam aos actos de liquidação qualquer vício próprio mas unicamente a ilegalidade resultante do acto pressuposto, ao não caracterizar como actividade de elevado valor acrescentado as funções que eram exercidas no âmbito da relação contratual estabelecida com a entidade empregadora.

 

Certo é que o artigo 54.º, do CPPT ressalva a possibilidade de na impugnação da decisão final do procedimento ser invocada qualquer ilegalidade anteriormente cometida, mas isso é aplicável justamente aos actos interlocutórios que não são susceptíveis de impugnação contenciosa, com base no princípio da impugnação unitária, e não àqueles a que se refere a primeira parte da norma, em que se incluem os actos imediatamente lesivos, visto que quanto a estes as ilegalidades cometidas têm de ser imputadas ao próprio acto interlocutório e no âmbito da impugnação que lhes seja directamente dirigida.

 

Torna-se claro, neste contexto, que o despacho que indeferiu o enquadramento da actividade exercida pelo primeiro Requerente no “código 802 – Quadro Superior de Empresa” se consolidou na ordem jurídica como caso decidido e a ilegalidade que a esse acto pudesse ser imputada não pode ser invocada para obter a anulação dos actos de liquidação consequentes.

 

Os Requerentes alegam ainda que a não impugnação do acto administrativo que rejeitou o enquadramento do primeiro Requerente numa actividade de elevado valor acrescentado para efeitos do regime dos residentes não habituais não impede a impugnação das liquidações de IRS emitidas na sequência dessa rejeição. Mas esse argumento é, desde logo, contrário ao regime que resulta do artigo 54.º do CPPT, que, como vimos, prevê que os actos imediatamente lesivos devam ser autonomamente impugnados.

 

Na resposta à matéria de excepção, alega-se ainda que a interpretação segundo a qual a não impugnação do despacho que rejeita o enquadramento cadastral do primeiro Requerente em actividade de elevado valor acrescentado impede a ulterior impugnação das liquidações de IRS emitidas, com fundamento na ilegalidade cometida nesse despacho, é inconstitucional por violação dos princípios da tutela judicial efectiva e da justiça consagrados nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da Constituição da República.

 

Mas essa questão de constitucionalidade foi já dirimida no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 718/17, que não julgou inconstitucional “a interpretação normativa retirada do artigo 54.º do CPPT, com o sentido de que a não impugnação judicial de atos de indeferimento de pedidos de reconhecimento do estatuto de residente não habitual impede a impugnação judicial das decisões finais de liquidação do imposto com fundamento em vícios daqueles”. Solução que é transponível para a situação do caso em que está em causa a inscrição em actividade de elevado valor acrescentado por residentes não habituais.

 

                Haverá de concluir-se – tal como se consignou, em situação paralela, na decisão arbitral de 4 de janeiro de 2019, no Processo n.º 514/15-T, em execução do julgado proferido no referido acórdão do Tribunal Constitucional - que os Requerentes, ao não impugnarem autonomamente o acto de não classificação das funções do primeiro Requerente em actividade de elevado valor acrescentado, para efeitos do regime fiscal dos residentes não habituais, deixam de poder impugnar as consequentes liquidações do IRS com fundamento em vícios imputáveis a esse acto.

 

IV – Decisão

Termos em que se decide julgar procedente a excepção dilatória invocada pela Requerida e não conhecer do pedido arbitral, com fundamento em caso decidido.

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 791.893,77, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 11.322,00, que ficam a cargo dos Requerentes.

 

Notifique.

 

Lisboa, 17 de Abril de 2020

  

O Presidente do Tribunal Arbitral

Carlos Fernandes Cadilha

 

A Árbitro vogal

Sofia Ricardo Borges

 

O Árbitro vogal

Eduardo Paz Ferreira