Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 408/2017-T
Data da decisão: 2018-01-17  IUC  
Valor do pedido: € 62.097,37
Tema: IUC – Incidência Subjetiva - Exigibilidade do Imposto.
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Os Árbitros José Poças Falcão (Presidente), Álvaro Caneira e Marisa Almeida Araújo, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o Tribunal Arbitral, acordam na seguinte:

 

DECISÃO ARBITRAL

 

  1. Relatório

 

  1. A… S.A., (doravante designada por “Requerente”) com sede na Rua do…, …-… …, titular do número único de pessoa colectiva e registo na Conservatória do Registo Comercial de … n.º …, apresentou um pedido de pronúncia arbitral e de constituição de tribunal arbitral, no dia 4 de julho de 2017, ao abrigo do disposto no artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º do Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante designado por “RJAT”), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada por “Requerida” ou “AT”).
  2. A Requerente pretende, no referido pedido de pronúncia arbitral, que o Tribunal Arbitral declare anulados,
  1. O despacho de indeferimento da reclamação graciosa apresentada e,
  2. Os 332 actos de liquidação de IUC subjacentes impugnados, devendo em consequência ser restituído à Requerente o valor total que indevidamente pagou a esse título, acrescido de juros indemnizatórios, com todas as consequências legais.

 

  1. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Requerida, em 5 de julho de 2017.
  2. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT, os signatários foram designados como árbitros pelo Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, tendo as nomeações sido aceites, nos termos e prazos legalmente previstos.
  3. A 12 de setembro de 2017 foi constituído o tribunal arbitral.
  4. Notificada para o efeito a 13 de setembro de 2017, a Requerida apresentou, em 13 de outubro, a sua Resposta e remeteu cópia do processo administrativo.
  5. Em 7 de novembro de 2017, foi dispensada a reunião arbitral prevista no artigo 18.º do RJAT, tendo-se convidado a Requerente e Requerida a alegar, por escrito.
  6. No mesmo despacho foi fixado o prazo limite para publicação da decisão final a 16 de fevereiro de 2018.
  7. A 28 e 29 de novembro de 2017, Requerente e Requerida apresentaram, respetivamente, as suas alegações escritas reafirmando, no essencial, as posições já assumidas na petição inicial e contestação.

 

  1. A Requerente sustenta o seu pedido, em síntese, da seguinte forma:
  1.        Foram dirigidos directamente à aqui Requerente os actos de liquidação de IUC – juntos aos autos – num total de 332.
  2. A Requerente é uma sociedade comercial que se dedica ao comércio de veículos automóveis, representando diversas marcas, nomeadamente B…, C…, D…, E…, F… e B… Veículos Comerciais.
  3. Os veículos objecto das liquidações contestadas inserem-se na actividade habitual da Requerente de venda de veículos novos, nuns casos às suas redes de concessionários para satisfação dos respectivos clientes finais, noutros a empresas de rent-a-car.
  4. Com efeito, a comercialização dos 332 veículos em causa não é excepção à actividade normal da Requerente, que actuou como intermediário entre os fabricantes das marcas que representa, e as suas redes de concessionários no âmbito de contratos de concessão por um lado, ou, por outro, entre a Requerente e empresas de rent-a-car no âmbito de acordos de fornecimento.
  5.        A Requerente apenas procede à matrícula dos veículos que encomenda, em execução dos referidos contratos e acordos de fornecimento, quando já se encontram concretizadas as vendas e concluídos os negócios, tudo de acordo com o plano de entregas estipulado e nas condições de entrega requeridas pelas empresas de rent-a-car a fim de proceder à entrega dos veículos já matriculados.
  6. Nenhum dos veículos aqui em causa foi adquirido pela Requerente para si própria ou com intuito de deter a propriedade ou o uso do veículo após obtenção da matrícula em Portugal.
  7. Em todos os 332 casos a Requerente procedeu à emissão da factura de venda até à data de atribuição da matrícula ao veículo em Portugal.
  8. No caso das vendas da Requerente a concessionários, a emissão da factura ocorre anteriormente à data da matrícula (sendo neste caso os veículos identificados na factura pelo número de ‘chassis’, e objecto de posterior nota de débito do ISV, já com matrícula); e no caso das empresas de rent-a-car, a data da factura coincide com a data da matrícula.
  9. Após a atribuição da matrícula em Portugal, a Requerente procede ao registo de propriedade dos veículos junto da Conservatória do Registo Automóvel, sendo esse registo inicial efectuado em nome da Requerente, uma vez que tem por base a Declaração Aduaneira de Veículo (DAV) – tal como sucedeu com a totalidade dos veículos aqui em causa.
  10.        O facto de a Requerente proceder ao registo em seu nome resulta de o registo inicial ter por base a liquidação do Imposto Sobre Veículos (ISV) como decorre do Regulamento do Registo de Automóveis.
  11. E a liquidação do ISV é necessariamente feita em nome da Requerente, por exigência da própria AT (anterior DGAIEC) com base na respectiva Declaração Aduaneira de Veículo (DAV) de apresentação do veículo.
  12. Assim, o registo inicial é efectuado com base na DAV de liquidação do ISV em nome da Requerente, apesar de na realidade a Requerente já não ser proprietária do veículo desde momento anterior à data da respectiva matrícula.
  13. Por conseguinte, o registo inicial de propriedade a favor da Requerente foi sempre efectuado num momento em que, em rigor, a Requerente já não detinha a propriedade dos veículos (visto que a transmitiu ao concessionário ou empresa de rent-a-car), o que sucedeu com a totalidade dos veículos aqui em causa.
  14. Uma vez emitida a factura ao cliente final, pelo concessionário – e a pedido deste – a Requerente procede ao registo da propriedade a favor do cliente final.
  15. As facturas emitidas pela Requerente pela venda dos veículos em causa identificam-nos pela respectiva matrícula, sendo que, no caso dos concessionários, para além da factura inicial com identificação do veículo pelo n.º do ‘chassis’, se acrescenta a posterior nota de débito da liquidação do ISV, já com indicação da matrícula correspondente ao n.º do ‘chassis’ respectivo.
  16. Não obstante o referido registo inicial ser necessariamente efectuado em nome da Requerente, todos os veículos aqui em causa foram, anteriormente à data da matrícula em Portugal, da propriedade de concessionários ou de empresas de rent-a-car (apesar de tal ser omisso no registo de propriedade).
  17. E no caso dos concessionários, os veículos permaneceram na propriedade destes até ao momento da venda ao cliente final, em que os concessionários solicitam à Requerente que proceda ao registo a favor do cliente final.
  18. Quanto às empresas de rent-a-car, são também estas que preenchem e assinam o modelo de transferência de propriedade (pois são os verdadeiros proprietários) que remetem à Requerente para que proceda ao registo, salvo nos casos de financiamento em que o registo é solicitado a favor da entidade financiadora, que assina o pedido juntamente com o rent-a-car, e de cancelamento de matrícula - como sucede no caso presente.
  19. No caso dos concessionários, apesar de existirem duas transferências sucessivas da propriedade do veículo (a primeira anterior à matrícula, da Requerente para o concessionário, e a segunda posterior à matrícula, do concessionário para o cliente final) o registo não reflecte essa realidade material.
  20. Por esta razão (acrescida da existência de registo de propriedade a favor do verdadeiro proprietário) a Requerente não liquidou, nem pagou o imposto – nos anos de matrícula em causa, tal como sucedeu com os anos anteriores, nem tal liquidação alguma vez lhe foi disponibilizada nos termos legais.
  21. A AT não justificou a sua actuação na medida em que ignorou todas as explicações fornecidas em sede de audição, nem tomou em consideração os documentos juntos – partindo sempre de presunções, não dando resposta, em desrespeito do princípio da colaboração a que estava adstrita na perspectiva da Requerente.
  22. No caso em apreço a AT nunca esclareceu, segundo a Requerente, minimamente em que pressuposto se baseou para fundamentar a alegada propriedade da Requerente à data da matrícula (nem a relevância deste facto): se na DAV, ou no pedido de matrícula, ou no registo, o que constitui vício de fundamentação em ofensa do disposto nos artigos 268.º da CRP e 77.º da LGT.
  23. Em qualquer caso, ambos esses pressupostos na base da actuação da AT estariam errados, segundo a Requerente, no caso concreto.
  24. Qualquer que tenha sido o critério – diferente dos critérios legais segundo a Requerente – em que se baseou a AT, a Requerente alega que nunca foi proprietária de qualquer dos veículos em causa, senão anteriormente à data da matrícula (numa altura em que ainda inexistia facto tributário gerador do imposto), pelo que a propriedade, como condição de incidência subjectiva, inexistiu na esfera da Reclamante em qualquer dos casos aqui em análise.
  25. Concluindo a Requerente, desta forma, que padecem os actos de liquidação de vício de violação de lei – designadamente do artigo 3.º do Código do IUC invocado pela AT – sendo razão suficiente para que as liquidações contestadas não possam subsistir na ordem jurídica, devendo em consequência ser integralmente anuladas.
  26. Em segundo lugar, ainda que a AT tivesse baseado a sua actuação na lei, e atendesse ao registo inicial a favor da Requerente (o que a AT nunca explicou segundo a Requerente) também nunca poderia considerar a Requerente como proprietária, posto que o registo inicial a favor da Requerente não corresponde à realidade material.
  27. Em suma, a Requerente sustenta que há um erro de facto e de direito na interpretação e aplicação das normas de incidência subjetiva do IUC, pelo que deve ser determinada a anulação dos 332 atos de liquidação relativos ao IUC, referentes a 332 veículos identificados pelo número de matrícula, sendo tais montantes devidos à Requerente, para além de juros indemnizatórios.

 

  1. A Requerida respondeu sustentando a improcedência do pedido de pronúncia arbitral e alegando, em síntese, que:
  1. A Requerida considerou que os referidos atos de liquidação deviam ser mantidos não havendo qualquer erro na interpretação do art. 3.º do CIUC.
  2. Entende a Requerida que a interpretação da Requerente, da conjugação nos normativos legais, mormente do disposto nos artigos 3.º, 6.º, e 17.º todos do Código do IUC, quer ainda dos procedimentos encetados no âmbito da importação e posterior venda aos concessionários, não é responsável pelo IUC não sendo sujeito passivo de imposto, defendendo que o procedimento da Requerida, seja atendendo ao pedido de matrícula seja ao registo inicial, viola o artigo 3.º, n.º 1 do CIUC.
  3. A Requerida considera que o pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado, por isso, improcedente, mantendo-se assim, os actos de liquidação impugnados.
  4. No âmbito do artigo 17.º do CIUC, a introdução no consumo e liquidação de imposto sobre os veículos que não possuam matrícula nacional é titulada pela emissão de uma Declaração Aduaneira de Veículos (“DAV”).
  5. Tal emissão constitui o facto gerador do imposto nos termos e para os efeitos no disposto no artigo 5.º do Código do Imposto Sobre Veículos (“ISV”).
  6. Nos termos do artigo 117.º, n.º 44 do Código da Estrada, a matrícula é pedida ao IMTT pela entidade que proceder à admissão ou introdução no consumo do veículo.
  7.  Por outro lado, determina o artigo 24.º, n.º 1 do Regulamento de Registo de Automóveis (Decreto-Lei 55/75 de 12 de fevereiro – doravante “RRA”) que «O registo inicial de propriedade de veículos importados, admitidos, montados, construídos ou reconstruídos em Portugal tem por base o requerimento respectivo e a prova do cumprimento das obrigações fiscais relativas ao veículo.».
  8. Fundamenta, a Requerida que “o legislador tributário, nos artigos 3.º e 6.º do CIUC, estabeleceu claramente as premissas quanto ao facto gerador do imposto, bem como da sua exigibilidade, consignando inequivocamente que tal facto é constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional”.
  9.   Entende a Requerida que da articulação entre o âmbito da incidência subjetivado IUC e o facto constitutivo da correspondente obrigação de imposto, decorrem inequivocamente do artigo 6.º do CIUC as situações jurídicas que geram o nascimento da obrigação de imposto, ou seja, a matrícula ou o registo em território nacional.
  10.   Ou seja, o momento a partir do qual se constitui a obrigação de imposto apresenta uma relação direta com a emissão do certificado de matrícula, no qual devem constar os factos sujeitos a registo (cfr. o disposto no artigo 4.º/2 e no artigo 6.º/3, ambos do CIUC, no artigo 10.º/1 do Decreto-Lei 54/75, de 12 de Fevereiro, e no artigo 24.º do RRA).
  11.   Por força da conjugação das normas expressas e em especial atenção ao disposto no artigo 24.º do RRA, subjaz que o registo inicial de propriedade, de veículos admitidos (como é o caso dos autos), tem por base o requerimento respetivo e a prova do cumprimento das obrigações fiscais relativas ao veículo.
  12. Ou seja, a emissão de certificado de matrícula implica a apresentação de uma DAV por parte da Requerente e o pagamento do correspondente imposto ISV, e origina automaticamente o registo da propriedade do veículo, ao abrigo do artigo 24.º do RRA em nome da entidade que procedeu à sua importação do veículo e pedido de matrícula, ou seja, a Requerente.
  13. Logo, o primeiro registo de cada veículo automóvel é concretizado em nome da entidade importadora, neste caso da Requerente.
  14. Tal facto encontra-se bem patente nos procedimentos encetados pela Requerida e que se encontram subjacentes aos atos de liquidação de IUC, nos quais é peremptório que a Requerente figura como proprietária dos veículos automóveis aqui em causa.
  15. Nos termos do artigo 24.º do RRA, o importador figura no registo como primeiro proprietário do veículo e nesse sentido é, de acordo com o estatuído nos artigos 3.º e 6.º do CIUC, sujeito passivo de imposto.
  16. Sendo, portanto, irrelevante que a Requerente tenha transmitido, com a venda, a propriedade dos veículos automóveis, a “terceiros”.
  17. Uma vez que, a atribuição à Requerente de um certificado de matrícula consubstancia, nos termos do disposto do artigo 6.º do CIUC, o facto gerador do imposto pelo que, tendo a Requerente solicitado a emissão de certificado de matrícula encontrando-se o mesmo registado em nome desta, encontram-se reunidos os pressupostos do facto gerador do IUC, bem como da sua exigibilidade, sendo a Requerente sujeito passivo do imposto.
  18. Logo, segundo a Requerida, tendo a Requerente solicitado preenchido a DAV, pago o ISV e pedido o certificado de matrícula, ela preenche inelutavelmente o facto gerador do imposto (incidência objetiva/subjetiva), sendo-lhe exigível o seu pagamento nos termos do artigo 3.º do CIUC.
  19. É a Requerente, segundo a Requerida que, enquanto importadora dos veículos – a qual preenche a DAV, paga o ISV e solicita o pedido de matrícula –, preenche o facto gerador do IUC e, concomitantemente, a incidência subjetiva do imposto.
  20. Concluindo que o entendimento propugnado pela Requerente é inteiramente desfasado das normas legais, não encontrando a mínima correspondência com a letra da lei.
  21. Uma vez que o legislador tributário quis intencional e expressamente que fosse considerado facto gerador do imposto, tal como atestado pela matrícula e registo.
  22. Sendo que, desta forma, o ideário argumentativo seguido pela Requerente não encontre o mínimo de correspondência com a ratio legis constante no artigo 6.º do CIUC, nem com a mens legislatori.
  23. O argumento sob o qual a Requerente assenta a sua pretensão escora-se no pressuposto de que, com alienação dos veículos aos seus clientes, afasta a tributação em sede de IUC à luz do artigo 3.º do CIUC, invocando que, depois daquelas vendas, os mesmos são registados na conservatória do registo automóvel em nome dos ditos clientes, sendo certo que no que respeita aos dois veículos aqui em causa a sua alienação foi levada a registo dentro do referido prazo legal de 60 dias.
  24. Mas, segundo a Requerida, seguir-se o entendimento propugnado pela Requerente, a incidência do imposto não ocorreria com a matrícula ou registo, mas em nome do cliente, descurando por completo o facto gerador consignado com a atribuição da matrícula e registo estabelecido no artigo 6.º do CIUC.
  25. A aceitar-se a posição defendida pela Requerente (de que o artigo 3.º do CIUC nunca poderá ser interpretado no sentido de pretender tributar apenas quem conste do registo como proprietário, porquanto o registo é uma mera aparência da realidade), a Requerida teria de proceder à liquidação de IUC relativamente a esse outrem identificado pela pessoa constante do registo automóvel a quem havia primeiramente liquidado o IUC (ou não, uma vez que a este último lhe bastaria afastar a sua qualidade de sujeito passivo à data do facto tributário).
  26. E, por sua vez, após liquidar o IUC relativamente a esse outrem, este também poderia alegar e provar que entretanto já celebrou contrato de compra e venda, locação financeira, aluguer de longa duração, ou outro com um outro terceiro, mas que este não também não registou.
  27. A Requerida teria então que voltar a liquidar o IUC contra esse outro (presumível) sujeito passivo e assim sucessivamente e indefinidamente.
  28.  O que, segundo a Requerida, colocaria em causa não só o prazo de caducidade do imposto mas também, inequivocamente, a segurança e a certeza jurídicas (na medida em que o instituto do registo automóvel deixaria de proporcionar a segurança e a certeza que constituem as suas finalidades principais), assim como o poder-dever de a Requerida liquidar impostos.
  29. Acrescenta ainda que a interpretação da Requerente é errada na medida em que é a própria ratio do regime consagrado no CIUC que constitui prova clara de que aquilo que o legislador fiscal pretendeu foi criar um imposto assente na tributação do proprietário do veículo tal como consta do registo automóvel.
  30. Para além disso, as faturas subministradas pela Requerente não demonstram, expressa e inequivocamente por si só, a suposta transferência da propriedade automóvel.
  31. Para além de nenhum dos documentos juntos à p.i. demonstra o pagamento integral dos valores das faturas e a data em que tal facto ocorreu.
  32. Pelo que faltou à Requerente, segundo a Requerida, prova desse facto.
  33. Para além disso, a Requerida considerando a decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa para se perceber que a Requerida não deixou de se pronunciar sobre o teor do direito de audição prévia exercido pela Requerente.
  34. A informação subjacente à decisão é peremptória ao afirmar que o direito de audição não acrescentou novos elementos susceptíveis de colocar em causa as conclusões preliminares, conclusões essas assentes no elemento fundamental: os registos de propriedade decorrentes da informação transmitida pelo Instituto dos Registos e do Notariado.
  35. Quanto à questão da pretensa falta de fundamentação (por ausência de disposições relevantes do CIUC) é uma questão que, segundo a Requerida, fica afastada considerando que a Requerente não deixou de compreender o quadro legal em que assentaram as liquidações de IUC sub judice.
  36. Conclui a Requerida que o entendimento propugnado pela Requerente com vista a afastar a incidência subectiva e tributação do IUC não tem acolhimento legal e viola os princípios constitucionais da legalidade e justiça tributária, da capacidade contributiva, da igualdade, da certeza e da segurança jurídicas.
  37. Não estando reunidos os pressupostos legais que conferem o direito aos juros indemnizatórios e, mesmo que assim não se entendesse é inegável que a Requerida se limitou a dar cumprimento ao artigo 3.º/1 do CIUC, que imputa tal qualidade às pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, pelo que também por aqui necessariamente terá de falecer o reconhecimento do direito ao pagamento de juros indemnizatórios.

 

 

  1. Saneador

 

  1. O Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, todos do RJAT.
  2. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
  3. O pedido é tempestivo.
  4. É admissível a cumulação de pedidos, que foi requerido nos termos do art. 3.º, n.º 1 do RJAT e do art. 104.º do CPPT considerando que os actos de liquidação sub judice dizem respeito ao mesmo imposto, é o mesmo o órgão competente para a decisão e há coincidência entre os fundamentos de facto e de direito em apreço.
  5. Não se verificam nulidades nem questões prévias que atinjam todo o processo, pelo que se impõe, agora, conhecer do mérito do pedido.

 

 

3. Objeto da pronúncia arbitral

 

Vêm colocadas ao Tribunal as seguintes questões, nos termos atrás descritos:

  1. Deve ser revogada a decisão de indeferimento da reclamação graciosa e anulados os 332 atos de liquidação referentes ao Imposto Único de Circulação por erro nos pressupostos de facto e consequente violação do art. 3.º do CIUC?
  2. Houve violação do direito de audição e participação?
  3. Verifica-se ausência de fundamentação dos actos de liquidação?
  4. Tem a Requerente direito a juros indemnizatórios?

 

 

  1. Matéria de facto (Factos provados)

 

  1. Consideram-se como provados os seguintes factos, com relevância para a decisão, com base na prova documental junta aos autos:

 

  1. A Requerente foi notificada dos 332 actos de liquidação de IUC referente ao ano de 2012 em apreço nos autos – conforme notificações juntas como Docs. N.os 2 juntos com a petição inicial.
  2. A Requerente apresentou reclamação graciosa contra a liquidação de IUC das 332 liquidações em apreço, no valor global de € 62.097, 37, respeitante a 332 veículos, todos novos, tendo sido indeferida a 3 de abril de 2017 – Docs. N.os 10 e 1 juntos com a petição inicial.
  3.  A Requerente procedeu ao pagamento do IUC de cada um dos veículos em apreço – conforme Doc. N.º 11 junto com a petição.
  4. A Requerente é uma sociedade comercial que se dedica ao comércio de veículos automóveis, representando diversas marcas, nomeadamente B…, C…, D…, E…, F… e B… Veículos Comerciais sendo que os 332 veículos em causa foram todos comercializados pela Requerente no âmbito da sua actividade normal de venda de automóveis novos e em cumprimento dos referidos contratos de concessão ou acordos de fornecimento – conforme Docs. N.os 3 e 4 juntos com a petição.
  5. A Requerente apenas procedeu à matrícula dos veículos que encomenda, em execução dos referidos contratos e acordos de fornecimento, quando já se encontram concretizadas as vendas e concluídos os negócios de acordo com o plano de entregas estipulado, nas condições de entrega requeridas pelas empresas de rent-a-car a fim de proceder à entrega dos veículos já matriculados.
  6. Nenhum dos veículos aqui em causa, cuja liquidação do IUC do ano da matrícula se contesta, foi adquirido pela Requerente para si própria ou com intuito de deter a propriedade ou o uso do veículo após obtenção da matrícula em Portugal.
  7.  Em todos os 332 casos a Requerente procedeu à emissão da factura de venda até à data de atribuição da matrícula ao veículo em Portugal, conforme facturas juntas como anexo ao Doc. N.º 10 da petição.
  8. No caso das vendas da Requerente a concessionários, a emissão da factura ocorre anteriormente à data da matrícula (sendo neste caso os veículos identificados na factura pelo número de ‘chassis’, e objecto de posterior nota de débito do ISV, já com matrícula); e no caso das empresas de rent-a-car, a data da factura coincide com a data da matrícula – Docs. N.os 10 juntos com a petição.
  1. O registo inicial de propriedade foi feito a favor da Requerente.

 

Os factos dados por provados resultam da convicção do tribunal fundada no exame dos documentos juntos ao processo e na ausência de controvérsia sobre eles.

 

  1. Não há factos não provados com interesse para a decisão da causa, considerando as possíveis soluções de direito.

 

  1. Do Direito

 

  1. Da apreciação da legalidade dos actos de liquidação contestados

 

A questão subjacente ao presente pedido de pronúncia arbitral tem em consideração as liquidações de IUC que a Requerente pagou, referentes ao ano de 2012, conforme liquidações juntas aos autos, num total de 332.

Para este efeito, será necessário determinar a incidência subjectiva do Imposto Único de Circulação.

 

 

  1. Quanto à interpretação e aplicação da norma de incidência subjectiva do IUC e data em que o imposto é exigível

 

Preceitua o artigo 3.º, n.º 1 do CIUC que:

São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontram registados”.

As leis fiscais, nos termos do art. 11.º da Lei Geral Tributária, são interpretadas de acordo com os princípios gerais ressalvando apenas as excepções e particularidades ditadas pela norma objecto de interpretação.

O objecto de interpretação do art. 3.º, n.º 1 do CIUC está na expressão “considerando-se” sendo imperativo determinar se o legislador, com esta expressão, quis manter, ou não, a natureza de presunção. I.e., se à formulação usada pelo legislador pode ser atribuído um sentido presuntivo.

Na senda do referido nas decisões 43/2014-T e 207/2017-T “verifica-se, a título de exemplo, que nos artigos 243.º, n.º 3, do Código Civil e 45.º, n.º 6, e 89-A, n.º 4, da Lei Geral Tributária, também é utilizada a expressão “considera-se”, e no entanto, estamos perante presunções legais pelo que, de acordo com as normas gerais de interpretação prevista no artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil, considera-se que está assegurado o mínimo de correspondência verbal, para efeitos da determinação do pensamento legislativo que se encontra objetivado na norma em apreço – elemento literal”.

Ensina ainda Jorge Lopes de Sousa (in CPPT, Anotado e Comentado, Vol. I, 6.ª Edição, Área Editora, p. 589) que em matéria de incidência tributária, as presunções podem ser reveladas pela  expressão “presume-se” ou por expressão semelhante, aí se mencionando diversos exemplos  dessas presunções, referindo-se a constante no artigo 40º, nº 1 do CIRS, em que se usa a expressão “ presume-se” e a constante no artigo 46º nº 2, do mesmo Código, em que se faz uso da  expressão “considera-se”, enquanto expressão com um efeito semelhante àquela e, consubstanciando, igualmente, uma presunção; Na formulação legal exarada no n.º 1 do artigo 3º. do CIUC, em que se consagrou uma presunção, revelada pela expressão “considerando-se”, de significado semelhante e de valor equivalente à expressão “presumindo-se”, em uso desde a criação do imposto em questão.

Ou seja, ambas as expressões têm sido usadas pelo legislador sem que com isso se possa concluir que este não quis estabelecer, de facto, uma presunção legal, não podendo retirar que a alteração da expressão pudesse levar a um sentido interpretativo distinto.

Por outro lado, como se extrai da aludida decisão 43/2014-T cuja posição se sufraga “ainda no âmbito dos elementos da interpretação de acordo com o artigo 9.º do Código Civil, importa atender ao elemento histórico. Assim, recordando o Decreto-Lei n.º 599/72, de 30 de dezembro e o Decreto-Lei n.º 116/94, de 3 de maio, no que diz respeito à incidência subjectiva foi prevista a presunção de que os sujeitos passivos de IUC são as pessoas em nome das quais os veículos se encontravam matriculados à data da liquidação”.

Assim, quanto a este elemento de interpretação parece não assistir razão à Requerida.

Por outro lado, considerando o elemento racional e teleológico, o IUC tem como pressuposto o custo ambiental e viário da utilização efetiva do automóvel, não tendo, portanto, como destinatários os importadores dos veículos, já que a atividade destes não dá causa a qualquer custo ambiental.

O IUC tem, portanto, subjacente o princípio da equivalência previsto no artigo 1.º do CIUC, com vista a “onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”.

Dando assim cumprimento ao comando constitucional, previsto no artigo 66.º, em que o desenvolvimento sustentável importa que o Estado assegure “que a política fiscal compatibilize desenvolvimento com a protecção do ambiente e qualidade de vida” (al. h) do n.º 2).

Promovendo um princípio de “poluidor-pagador”, cumprindo pressuposto de igualdade material entre todos os cidadãos que dão causa ao custo ambiental, corporizando, desta forma o IUC as preocupações ambientes que à política fiscal se impõem.

Ora, considerar que o legislador fiscal quis outra coisa que não fosse admitir uma presunção ilidível no artigo 3.º, n.º 1, do Código do Imposto Único de Circulação seria violar o princípio da equivalência, fazendo recair sobre o proprietário constante do registo e não sobre o real proprietário o pagamento do imposto, ainda que não fosse aquele (como não seria) a dar causa ao custo ambiental e viário que a carga fiscal quis onerar.

Assim sendo, também de acordo com este elemento o artigo 3.º, n.º 1, do Código do IUC deve ser interpretado no sentido de estar em causa uma verdadeira presunção.

Do elemento literal do artigo 3.º, n.º 1 o legislador, ao contrário do que fez anteriormente, usou a expressão “considerando-se” e não “presumindo-se”, podia questionar-se se a natureza de presunção está ou não em causa na presente norma em análise mas, a verdade é que de uma análise completa da legislação e da inexistência de qualquer preceito que confira ao registo qualquer outro efeito para além daquele infra referido, somos levamos a concluir que o legislador quis, de facto, usar ambas as expressões com sentido idêntico.

Assim, na senda da decisão proferida no processo n.º 634/2016-T do CAAD “a relevância e o interesse da presunção, em causa, que historicamente foi revelado por intermédio da expressão “presumindo-se” e que agora, se serve da expressão “considerando-se”, reside na verdade e na justiça que, por essa via, se confere às relações fiscais e, que corporizam valores fiscais fundamentais, permitindo tributar o real e efetivo proprietário e não aquele que, por circunstâncias de diversa natureza, não passa, por vezes, de um aparente e falso proprietário. Se o caso, assim não fosse considerado, não se admitindo e relevando a apresentação de elementos probatórios destinados à demonstração de que o efetivo proprietário é, afinal, pessoa diferente da que consta do registo e, que inicialmente, e em princípio, se supunha ser o verdadeiro proprietário, aqueles valores seriam objetivamente postergados”.

Concluindo-se, assim, que o artigo 3.º, n.º 1, do Código do Imposto Único de Circulação consagra uma presunção, sendo esta ilidível nos termos do artigo 73.º, da Lei Geral Tributária - “as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário, pelo que são ilidíveis”.

Dando isto como assente importa verificar, agora, se a Requerente cumpre o ónus de ilidir a presunção que “contra” si recai, por ser a que consta do registo automóvel como proprietária do veículo, de ser considerada o sujeito passivo do IUC.

Por força desta presunção, a Requerente teria que demonstrar que não é, por um lado, a efetiva proprietária e, por outro, desde quando o não é, nos termos do art. 346.º do Código Civil.

Assim, no caso dos autos, o que a Requerente tem que provar, a fim de ilidir a presunção que decorre quer do artigo 3.º do CIUC quer do próprio Registo Automóvel, é que ela Requerente não era proprietária dos veículos em causa no período a que dizem respeito as liquidações impugnadas. Propõe provar, segundo resulta dos autos, é que a propriedade dos veículos, não lhe pertenciam nos períodos a que as liquidações dizem respeito. Apresentando, assim, as faturas de venda, de 332 veículos constantes dos documentos, anexos à Reclamação Graciosa e junta aos autos como documento n.os 10 que se dão por integralmente reproduzidas, para todos os efeitos legais.

Era à Requerente, de facto, que se impunha afastar a presunção, não ser sujeito passivo do imposto, aquando da ocorrência dos factos tributários, oferecendo para o efeito contratos de concessão e de fornecimento e as facturas de venda.

Face às faturas juntas, das quais a AT tinha já conhecimento em sede de audição, considerando a praxis que resulta do tipo de atividade comercial da Requerente e dos concessionários e empresas rent-a-car, bem como a relevância fiscal das faturas, todas do conhecimento da Requerida, entendemos que as faturas de venda apresentadas gozam de presunção de veracidade e, neste sentido, de idoneidade e força bastante para ilidir a presunção que resulta das liquidações, de acordo com o disposto no artigo 75.º da Lei Geral Tributária.

Neste sentido, as faturas juntas são idóneas a afastar a presunção de que a Requerente era, à data da liquidação dos IUC, a proprietária dos veículos automóveis.

Decorrendo daqui, que à data em que o IUC era exigível quem detinha a propriedade dos veículos automóvel eram os legítimos proprietários e não a Requerente.

Em todas as situações em que, como é o caso em apreço, o sujeito passivo do Imposto sobre Veículos demonstra que transmitiu os veículos em causa a terceiros antes do termo do prazo para registo, deverá concluir-se que logrou ilidir a presunção estabelecida no artigo 3.º, n.º 1, do Código do Imposto Único de Circulação.

Por tudo isto, no caso concreto a Requerente, enquanto Operador Registado, embora tenha, no exercício da sua atividade comercial, importado os veículos em apreço, procedido à sua introdução no consumo, através da emissão da Declaração Aduaneira de Veículo, pago o Imposto sobre Veículos e solicitado, junto do IMTT, a atribuição de matrícula, não é sujeito passivo do Imposto Único de Circulação uma vez que logrou demonstrar, através da junção dos meios de prova identificados, que no prazo de 60 dias para registo transmitiu os veículos a terceiros.

Desta forma tendo a Requerente demonstrado que os veículos em apreço foram transmitidos dentro do prazo de 60 dias para registo e, consequentemente, antes do imposto se tornar exigível, só pode concluir-se que não está verificada a incidência subjectiva do art. 3.º, n.º 1 do CIUC não sendo a Requerente a devedora do imposto.

Tudo o que a Requerente demonstrou à AT logo em sede de audição mas que, não obstante, acabou por indeferir a reclamação graciosa ainda que se encontrasse a Requerida devidamente esclarecida independentemente de qualquer menção registal.

Matéria de registo esta que analisamos de seguida.

 

  1. O valor do registo

 

Nos termos do artigo 7.º do Código do Registo Predial, aplicável ex vi artigo 29.º, do Decreto-lei n.º 54/75 (Registo automóvel), que “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito nos precisos termos em que o registo define”.

Com vista à apreciação cumpre analisar os efeitos do registo do veículo.

O registo do direito de propriedade do veículo tem um efeito meramente declarativo e não constitutivo do direito, pelo que se configura como uma presunção da existência do direito, nos termos em que se encontra registado, que pode ser ilidida, ou seja, admite a prova em contrário.

O registo definitivo não constitui mais do que uma presunção ilidível, admitindo, por isso, contraprova, como decorre da lei e a jurisprudência vem assinalando, podendo ver-se, entre outros os Acórdãos do STJ n.º 03B4369 de 19-02-2004 e n.º 07B4528, de 29-01-2008, disponíveis em: www.dgsi.pt;

Ao nível do Código do IUC não existe qualquer disposição legal que atribua ao registo do veículo qualquer efeito jurídico, incluindo condição de validade ou eficácia do negócio causal, i.e., do contrato de compra e venda do qual o veículo é seu objeto mediato.

Se assim é, ou seja, inexistindo qualquer efeito distinto a atribuir ao acto de registo e considerando que a propriedade é assim transmitida mediante a celebração de contrato de compra e venda, sem que para este haja qualquer forma legalmente imposta vigorando o princípio da liberdade de forma, nos termos do artigo 879.º, alínea a), do Código Civil, um dos efeitos deste contrato é exatamente o efeito real da transmissão da titularidade do direito.

Os adquirentes dos veículos tornam-se proprietários desses mesmos veículos por via da celebração dos correspondentes contratos de compra e venda, com registo ou sem ele.

Pelo que, independentemente da menção que consta do registo automóvel certo é que, como supra referido, a Requerente demonstrou que não era a proprietária de qualquer um dos veículos em apreço nestes autos.

Face ao exposto, torna-se claro que o pensamento legislativo aponta no sentido de que o disposto no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, consagra uma presunção “juris tantum”, consequentemente ilidível, permitindo, assim, que a pessoa que no registo está inscrita como proprietária do veículo, possa apresentar elementos de prova destinados a demonstrar que tal propriedade está inserida na esfera jurídica de outra pessoa, para quem a propriedade foi transferida, como foi o caso.

Por tudo isto, e na senda da decisão proferida no âmbito do já aludido processo 624/2016-T “atentos os factos supra descritos, importa salientar que os já referidos elementos de interpretação, sejam os relacionados com a interpretação literal, apoiada nas palavras legalmente utilizadas, sejam as respeitantes aos elementos lógicos de interpretação, de natureza histórica ou de ordem racional, apontam, todos eles, no sentido de que a expressão “considerando-se” tem um sentido equivalente à expressão “presumindo-se”, devendo, assim entender-se que o disposto no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC consagra uma presunção legal que, face ao artigo 73.º da LGT, onde se estabelece que “As presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário”, será necessariamente ilidível, o que significa que os sujeitos passivos são, em princípio, as pessoas em nome de quem tais veículos estejam registados. Serão, pois, essas pessoas, identificadas nessas condições a quem a AT se deve, necessariamente, dirigir;”

 Por isto, atendendo a que a proprietária dos veículos, à data do facto tributário, não era a Requerente considerando as vendas realizadas no âmbito dos contratos de concessão e rent-a-car e respectivas facturas, i.e., não era a Requerente o sujeito passivo do imposto, não estão verificados os requisitos do artigo 3.º, n.º 1 do CIUC, o que determina a anulação dos correspondentes atos de liquidação.

 

Relativamente à existência de outras questões atinentes à legalidade dos atos de liquidação, tendo em conta que está ínsito no estabelecimento de uma ordem de conhecimentos dos vícios, tal como o previsto no artigo 124.º do CPPT, que procedendo o pedido de pronúncia arbitral baseado em vícios que impedem a renovação das liquidações impugnadas, fica prejudicado, porque inútil, o conhecimento de outros vícios, não se afigura necessário conhecer das demais questões suscitadas.

 

  1. Reembolso do montante total pago

 

Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º do RJAT e, em conformidade com o aí estabelecido, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação, vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos de procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários ”Restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”.

Trata-se de comandos legais que se encontram em total sintonia com o disposto no artigo 100.º da LGT, aplicável ao caso, ex vi, do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, no qual se estabelece que “ A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, correspondendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei”;

O caso constante nos presentes autos suscita a manifesta aplicação das mencionadas normas, posto que na sequência da ilegalidade dos atos de liquidação, referenciados, neste processo, terá, por força dessas normas, de haver lugar ao reembolso dos montantes pagos, neste caso unicamente a título do imposto pago já que não houve lugar a juros compensatórios, como forma de alcançar a reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade.

 

 

  1. Do direito a juros indemnizatórios:

Os actos tributários questionados têm a sua génese na presunção, derivada do registo, constante do artigo 3.º, n.º1 do CIUC.

No momento em que foram praticados, a AT não incorreu em qualquer erro de facto ou de direito. Poderia, no entanto, o sujeito passivo ilidir a presunção, designadamente através de reclamação graciosa (Vd. CPPT, art.64.º). E, no caso em análise, fê-lo por este meio.

O que significa que com o indeferimento da reclamação incorreu a AT em erro, sendo, pois, a partir do momento em que proferiu essa decisão que serão devidos os juros.

Acompanhamos o sentido da decisão do processo 53/2017-T, no trecho que a seguir se transcreve:

“A par da anulação das liquidações, e consequente reembolso das importâncias indevidamente pagas, a requerente solicita ainda que lhe seja reconhecido o direito as juros indemnizatórios, ao abrigo do art. 43.º da LGT.

Com efeito, nos termos da norma do n.º 1 do referido artigo, são devidos juros indemnizatórios "quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido." Para além dos meios referidos na norma que se transcreve, entendemos que, conforme decorre do n.º 5 do art. 24.º do RJAT, o direito aos mencionados juros pode ser reconhecido no processo arbitral e, assim, se conhece do pedido.

O direito a juros indemnizatórios a que alude a norma da LGT supra referida pressupõe que haja sido pago imposto por montante superior ao devido e que tal derive de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da AT.

No presente caso, ainda que se reconheça não ser devido (…) o imposto pago pela requerente, por não ser o sujeito passivo da obrigação tributária, determinando-se, em consequência, o respectivo reembolso, não se lobriga que, na sua origem, se encontre o erro imputável aos serviços, que determina tal direito a favor do contribuinte.

 Com efeito, ao promover a liquidação oficiosa do IUC considerando a requerente como sujeito passivo deste imposto, a AT limitou-se a dar cumprimento à norma do n.º 1 do art. 3.º do CIUC, que, como acima abundantemente se referiu, imputa tal qualidade às pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados.

 Por outro lado, também como já se concluiu, a referida norma tem a natureza de presunção legal, de que decorre, para a AT, o direito de liquidar o imposto e exigi-lo a essas pessoas, sem necessidade de provar os factos que a ela conduz, conforme expressamente prevê o n.º 1 do art. 350.º do C. Civil.

Todavia, relativamente às liquidações que constituem objecto do presente pedido de pronúncia arbitral, importa saber se o acto de indeferimento da pretensão da ora Requerente, formulada na reclamação graciosa oportunamente interposta, configura, ou não, erro imputável à Administração Tributária para efeitos da exigibilidade de juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º, n.º 1, da LGT.

Nesta matéria tem-se em atenção a orientação decorrente da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, que vai no sentido de reconhecer que uma decisão da Administração Tributária que indefere um pedido de anulação de liquidação reconhecidamente ilegal e consequente restituição de tributo indevidamente cobrado, constitui erro imputável aos serviços.

Segundo a mencionada jurisprudência – vertida em douto acórdão de 28 de Outubro de 2009, no Proc. 601/09 – são devidos juros indemnizatórios a partir da data do indeferimento da reclamação até à data do processamento da respectiva nota de crédito, nos termos do artigo 61.º d CPPT”.

Por tudo isto, concluímos que a AT não incorreu em qualquer erro de facto ou de direito quando os actos tributários foram práticos mas, com a elisão da presunção manteve, não obstante, os atos contestados e, consequentemente, a exigência do imposto quando, se tivesse reconhecido a ilegalidade, deveria ter determinado a devolução da quantia paga pela Requerente.

Não o tendo feito, incorreu, desta vez sim, em erro, e tal erro determinou que a Requerente continuasse privada do montante que indevidamente satisfizera.

Por isso, não obstante o prejuízo para a Requerente resultante do pagamento indevido a que foi obrigada não resulte, in limine, de erro imputável aos serviços e não confira direito a indemnização, já o não reconhecimento pela AT, ao decidir o pedido de revisão oficiosa, da ilegalidade em que incorrera, foi fonte de prejuízos para a Requerente, traduzidos na indisponibilidade da quantia que pagara.

Acolhendo-se a orientação referida, reconhece-se o direito a Requerente a juros indemnizatórios com referência às liquidações a que se referem os autos e que, pela presente decisão, constituem objecto de anulação, mas apenas a partir de 03 de abril de 2017, data em que foi decidido o pedido de reclamação graciosa.

 

 

  1. Da responsabilidade pelo pagamento de custas arbitrais:

 

Nos termos do artigo 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, ex vi 29.º, n.º 1, e) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, estabelece que será condenada em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.

Todavia, o n.º 2 do referido artigo concretiza a expressão “houver dado causa” entendendo que se trata da parte vencida, pelo que neste sentido e sendo a lei clara e evidente no que respeita à responsabilidade por custas arbitrais, entendemos que deve a Requerida ser condenada nas custas arbitrais.

 

 

  1. Decisão

 

Nestes termos, e com os fundamentos expostos, o presente Tribunal Arbitral decide:

 

  1. Julgar procedente o pedido de revogação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa e da declaração de ilegalidade das 332 liquidações de IUC, relativamente a todos os veículos cujas matrículas estão identificadas nos autos, anulando assim os correspondentes actos de liquidação, e a consequente restituição no valor de € 62.097,37.
  2. Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios a partir da data do indeferimento da reclamação graciosa, a 3 de abril de 2017, até à data do processamento da respectiva nota de crédito, nos termos do artigo 61.º do CPPT.
  3. Condenar a Requerida nas custas do presente processo.

 

 

  1. Valor do processo

 

Em conformidade com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2 do CPC e 97.º - A, n.º 1 do CPPT e 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 62.097,37.

 

 

  1. Taxa de Arbitragem

 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 2.448,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária.

 

 

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 17 de janeiro de 2018

 

Os Árbitros

 


 

(José Poças Falcão)

 

 

 

(Álvaro Caneira)

 

 

 

(Marisa Almeida Araújo)