Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 447/2017-T
Data da decisão: 2017-12-20  IRS  
Valor do pedido: € 11.850,00
Tema: IRS – Dupla tributação internacional - Rendimentos de membro de órgão estatutário - Art. 16.º ADT Portugal / Espanha.
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DECISÃO ARBITRAL

 

 

 

1.      RELATÓRIO

 

1.1.  A…, contribuinte n.º …, residente na Avenida…, n.º…, Lisboa (adiante designado “Requerente”), apresentou em 26/07/2017, pedido de pronúncia arbitral tendo em vista a apreciação e declaração de ilegalidade do acto de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) n.º 2016 …, relativo ao ano de 2015, da qual resultou um valor a pagar de € 116.775,32.

 

1.2.  O Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou, em 13/09/2017, como árbitro singular o Dr. Augusto Vieira.

 

1.3.  Em 28/09/2017, o Requerente veio requerer a recusa de árbitro.

 

1.4.  Em 28/09/2017, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) comunicou que o Dr. Augusto Vieira, na qualidade de árbitro do tribunal singular a constituir no processo em apreço, renunciou às funções de árbitro, ficando, assim, prejudicado o pedido de renúncia apresentado pelo Requerente. Determinou, ainda, a sua substituição, nessas mesmas funções, pelo árbitro signatário desta decisão.

 

1.5.  No dia 19/10/2017 ficou constituído o tribunal arbitral.

 

1.6.  Cumprindo-se o disposto no n.º 1 do artigo 17.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT) foi a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) notificada, em 20/10/2017, para, querendo, apresentar resposta e solicitar a produção de prova adicional.

 

1.7.  Em 22/11/2017 a AT apresentou a resposta, juntando, ainda, aos autos o processo administrativo.

 

1.8.  Em 24/11/2017 o tribunal arbitral decidiu dispensar a realização da reunião a que n.º 1 do artigo 18.º do RJAT se refere, com fundamento no princípio da autonomia do tribunal arbitral na condução do processo, convidando ambas as partes para, querendo, apresentarem alegações escritas facultativas e agendou a data para prolação da decisão final.

 

1.9.  Nem o Requerente nem a AT apresentaram alegações escritas facultativas.

 

 

2.      SANEAMENTO

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente.

 

As partes têm personalidade e capacidade judiciária e são legítimas, não ocorrendo vícios de patrocínio.

 

O processo não enferma de vícios que afectem a sua validade.

 

Verificam-se, consequentemente, as condições para ser proferida a decisão final.

 

 

 

3.      POSIÇÕES DAS PARTES

 

Como fundamento do pedido, o Requerente alega, em síntese, que em 2015 auferiu rendimentos na qualidade de membro de órgão estatutário de uma sociedade sedeada em Espanha. O Estado espanhol exerceu a respectiva competência tributária ao abrigo do disposto no artigo 16.º do ADT, tendo sido pago imposto no montante de € 11.850,00. A AT negou ao Requerente o direito à dedução por conta do imposto pago no estrangeiro, com fundamento no facto de o ter considerado como trabalhador fronteiriço. Propugna, ainda, que – pese embora um evidente lapso no preenchimento da declaração de rendimentos – o Requerente não é um trabalhador fronteiriço, como o enquadramento enquanto tal seria absolutamente irrelevante na medida em que os rendimentos auferidos em Espanha são enquadráveis no artigo 16.º do ADT e não no artigo 15.º do ADT, pelo que o Requerente tem direito à dedução à colecta por conta do imposto pago em Espanha, indevidamente desconsiderada pela AT na liquidação em apreço.

 

Doutro modo, a AT pronuncia-se pela improcedência do pedido e, consequentemente, pela manutenção do referido acto de liquidação, com fundamento no facto de que, considerando a indicação na declaração de rendimentos do Requerente, na qual mencionou a sua qualidade de trabalhador fronteiriço, à luz do disposto no ADT, outra não poderia ser a consequência que não a não dedução à colecta do rendimento auferido em Espanha.

 

Com efeito, perante o declarado pelo Requerente competia-lhe provar que de facto não seria trabalhador fronteiriço, o que segundo a AT, não logrou fazer, quer em sede de procedimento quer em sede do pedido de pronúncia arbitral em apreço.

 

Tão-pouco não logrou o Requerente provar que, em face dos rendimentos auferidos em Espanha, caso tenha sido sujeito a tributação nesse Estado, se da suposta liquidação resultou, ou não, imposto a pagar.

 

O que necessariamente ditaria a necessidade de junção aos autos do respectivo comprovativo de pagamento do imposto naquele Estado, ou, declaração emitida pelas autoridades fiscais a certificar os rendimentos auferidos e o respectivo imposto pago a final, o que, segundo a AT, não sucedeu.

 

 

 

4.      MATÉRIA DE FACTO

 

4.1.  FACTOS QUE SE CONSIDERAM PROVADOS

 

 

Em face dos documentos carreados para o processo, dá-se como provado que:

 

4.1.1.      O Requerente sempre residiu e exerceu a sua actividade profissional em Portugal.

 

4.1.2.      O Requerente vinha exercendo, desde há vários anos, funções como Director Geral do B…, S.A. (NIPC…), auferindo rendimentos da categoria A (rendimentos do trabalho dependente).

 

4.1.3.      O Requerente exercia, igualmente, o cargo de Presidente do Conselho de Administração da C…, S.A. (NIPC …).

 

4.1.4.      O Requerente foi, ainda, nomeado para os órgãos sociais da D… (NIPC…), auferindo, igualmente, auferindo rendimentos da categoria A (rendimentos do trabalho dependente).

 

4.1.5.      Em 2015, para além dos rendimentos do trabalho dependente mencionados, o Requerente auferiu rendimentos de fonte espanhola, no montante de € 60.000,00, na qualidade de administrador não executivo da E…, S.A., sociedade de direito espanhol com sede em Oviedo, sobre os quais incidiu retenção na fonte de imposto em Espanha, no montante de € 11.850,00.

 

4.1.6.      Em 30/04/2016, o Requerente apresentou a declaração de rendimentos Modelo 3 do IRS, referente ao ano de 2015, tendo declarado os rendimentos do trabalho dependente auferidos na qualidade de Director Geral do B…, S.A. e de membro dos órgãos sociais da D… e, bem assim, o rendimento auferido em Espanha e a respectiva retenção na fonte, situação deu origem à liquidação n.º 2016… .

 

4.1.7.      Em 19/09/2016, o Requerente procedeu ao pagamento da liquidação n.º 2016 …, no montante de € 116.775,32.

 

4.1.8.      Em 30/09/2016, o Requerente apresentou a declaração de rendimentos Modelo 3 do IRS de substituição, referente ao ano de 2015, situação deu origem à liquidação n.º 2016…, da qual resultou um montante a pagar de € 116.779,01.

 

4.1.9.      Na referida declaração de rendimentos Modelo 3 do IRS de substituição, o Requerente adicionou o Anexo G, por forma a incluir uma mais-valia imobiliária, no montante de € 85,85.

 

4.1.10.  Em ambas as declarações, o Requerente preencheu, por lapso, no quadro 4-C do Anexo J, o campo 451 relativo à situação de trabalhador fronteiriço.

 

4.1.11.  Com efeito, da liquidação em causa resulta que os rendimentos auferidos em Espanha concorreram para a formação do rendimento colectável do Requerente, mas o imposto pago em Espanha não foi tido em conta.

 

4.1.12.  Discordando da liquidação, o Requerente apresentou, em 30/11/2016, junto da AT, reclamação graciosa (processo n.º …2016…), do referido acto de liquidação, solicitando a sua anulação com fundamento em ilegalidade, a qual foi indeferida, em 21/04/2017.

 

4.1.13.  O Requerente apresentou, em 26/07/2017, o pedido de pronúncia arbitral em apreço.

 

 

4.2.  FACTOS QUE NÃO SE CONSIDERAM PROVADOS

 

Não existem factos com relevo para a decisão que não tenham sido dados como provados.

 

 

5.      O DIREITO

 

A questão central em apreço versa sobre a situação tribuária do Requerente respeitante ao rendimento obtido em Espanha, no ano de 2015, e a dedução, ou não, do imposto pago nesse país, sobre os mesmos rendimentos, a titulo de dedução à colecta por dupla tributação internacional.

 

Senão vejamos,

 

 

Da aplicação do artigo 16.º do ADT

 

Conforme decorre da factualidade subjacente, o Requerente exerce há vários anos funções de administrador não executivo da E…, S.A., sociedade de direito espanhol com sede em Oviedo, tendo sido reeleito em 09/04/2015.

 

Ora, de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 15.º do ADT, “Com ressalva do disposto nos artigos 16.º, 18.º, 19.º, 20.º e 21.º, os salários, ordenados e remunerações similares obtidas de um emprego por um residente de um Estado Contratante só podem ser tributados nesse Estado, a não ser que o emprego seja exercido no outro Estado Contratante. Se o emprego for aí exercido, as remunerações correspondentes podem ser tributadas nesse outro Estado.”.

 

Já de acordo com o artigo 16.º do ADT, “As percentagens, senhas de presença e remunerações similares obtidas por um residente de um Estado Contratante [Portugal] na qualidade de membro do conselho de administração ou do conselho fiscal de uma sociedade residente do outro Estado Contratante [Espanha] podem ser tributadas nesse outro Estado [Espanha], desde que tais remunerações sejam determinadas e pagas pela sociedade em virtude da sua participação nas actividades do conselho de administração ou fiscal. Caso contrário, são aplicáveis as disposições do artigo 15.º”.

 

Assim, quando estejam em causa remunerações auferidas por membros do conselho de administração de sociedades tem aplicação o artigo 16.º e não o artigo 15.º, em virtude do carácter de especialidade do primeiro em relação ao segundo.

 

Com efeito, a prevalência do artigo 16.º sobre o artigo 15.º do ADT decorre do mais elementar princípio da teoria geral do direito, nos termos do qual a norma especial prevalece sobre a norma geral.

 

Ou seja, existindo uma norma especial, esta aplicar-se-á ao seu campo particular de aplicação aplicando-se, aos casos abrangidos pela sua previsão, em detrimento da lei geral.

 

Este princípio encontra-se, ainda, concretizado nos comentários ao artigo 15.º do Modelo de Convenção Fiscal sobre o Rendimento e o Património, nos termos do qual, “(…) as remunerações dos membros do conselho de administração ou do conselho fiscal das sociedades são objecto do artigo 16.º (…)”. [1]

 

Nesta medida, resulta claro que, contrariamente ao preconizado pela AT no despacho de indeferimento da reclamação graciosa, o artigo 15.º do ADT não tem aplicação ao caso em apreço.

 

Com efeito, o Requerente era, à data dos factos, administrador da E…, S.A. – entidade pagadora –, pelo que não restam dúvidas que a competência para tributar os rendimentos por si auferidos é determinada pelo artigo 16.º do ADT.

 

Assim, os rendimentos auferidos pelo Requerente em Espanha podem aí ser tributados, de acordo com o disposto no artigo 16.º do ADT.

 

Cabe, pois, a Portugal, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 23.º do ADT, eliminar a dupla tributação, situação que se materializa através da dedução à colecta prevista no n.º 1 do artigo 81.º do Código do IRS.

 

 

 

Da qualificação do Requerente como trabalhador fronteiriço

 

De acordo com o disposto no n.º 4 do artigo 15.º do ADT, um trabalhador fronteiriço é aquele que exerce a sua actividade profissional num Estado Contratante embora “(…) tenha a sua residência habitual no outro Estado Contratante ao qual regressa normalmente todos os dias (…)”.

 

Com efeito, o conceito de trabalhador fronteiriço visa precisamente acautelar os casos em que o titular dos rendimentos do trabalho reside junto à fronteira e exerce a sua actividade profissional num Estado Contratante e reside no outro ao qual regressa diariamente. 

 

O titular de rendimentos do trabalho dependente auferidos neste contexto passaria, assim, mais de 183 dias nos dois Estados Contratantes, fazendo com que ambos os Estados tivesses competência tributária, onerando excessivamente o trabalhador fronteiriço.

 

Foi, efectivamente, por essa razão que foi inserido no ADT o conceito de trabalhador fronteiriço.

 

Conforme refere Ana Cláudia Afonso de Oliveira, Pelo facto de Portugal e Espanha possuírem uma fronteira comum, o n.º 4 contempla o tratamento específico dos trabalhadores transfronteiriços. Assim, as remunerações obtidas através de um emprego exercido num Estado Contratante por um trabalhador transfronteiriço, isto é, que tenha a sua residência habitual no outro Estado Contratante ao qual regressa normalmente todos os dias, só podem ser tributadas nesse outro Estado. Ou seja, concede-se o direito exclusivo de tributar as remunerações auferidas pelos trabalhadores transfronteiriços ao Estado em que estes têm a sua residência habitual.”. [2]

 

Ora, este não é de todo o caso do Requerente.

 

Com efeito, em 2015, e pese embora as deslocações pontuais a Espanha em cumprimento das suas funções de administrador não executivo da E…, S.A., o Requerente residiu e exerceu a sua actividade profissional em Lisboa. [3]

 

De 01/2015 a 07/2015, exercendo funções como Director Geral do B…, S.A., em acumulação com as funções de Presidente do Conselho de Administração da C…, S.A..

 

Funções essas que não permitiam ao Requerente, como é de elementar inferência, descolar-
-se diariamente a Espanha para exercer funções para a E…, S.A. e regressar diariamente a Portugal.

 

Já de 08/2015 em diante, o Requerente exerceu funções como vogal do Conselho de Administração da D…, função que pressuponha uma dedicação semanal de 30 horas, a qual evidentemente não se coaduna com deslocações diárias a Espanha.

 

Em face do exposto, e sem prejuízo do manifesto lapso no preenchimento da declaração de rendimentos, quer pelas funções exercidas (não executivas), quer pela impossibilidade prática de se deslocar diariamente a Oviedo, o Requerente nunca poderia ser qualificado como trabalhador fronteiriço ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 15.º do ADT.

 

Com efeito, não pode senão conclui-se que o Requerente tem direito à dedução à colecta por conta do imposto pago em Espanha, indevidamente desconsiderada pela AT na liquidação de 2015.

 

Tendo-se concluído que o acto de liquidação de IRS que constitui objecto do presente pedido de pronúncia arbitral enferma de vício de violação de lei que impõe a sua anulação, fica prejudicada, por inutilidade, a apreciação do despacho de indeferimento da reclamação graciosa apresentada, bem como, a apreciação da respectiva inconstitucionalidade por violação do princípio da capacidade contributiva.

 

 

 

Do direito a juros indemnizatórios

 

A par da anulação da liquidação de IRS, e consequente reembolso das importâncias indevidamente pagas, o Requerente solicita ainda que lhe seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º da LGT.

 

Com efeito, nos termos da norma do n.º 1 do referido artigo, são devidos juros indemnizatórios “quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”. Para além dos meios referidos na norma que se transcreve, entendemos que, conforme decorre do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, o direito aos mencionados juros pode ser reconhecido no processo arbitral e, assim, se conhece do pedido.

 

O direito a juros indemnizatórios a que alude a norma da LGT acima referida pressupõe que haja sido pago imposto por montante superior ao devido e que tal derive de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da AT. No presente caso, mostram-se preenchidas ambas as condições, constituindo-se, pois, a obrigação de juros indemnizatórios a favor do sujeito passivo, que assim se declara.

 

 

 

6.      DECISÃO

 

Com os fundamentos expostos, o tribunal arbitral decide:

 

a)      Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, declarar ilegal   a liquidação de IRS, com todas as consequências legais;

b)      Julgar procedente o pedido de reconhecimento do direito do Requerente ao pagamento de juros indemnizatórios;

c)      Condenar a AT a restituir ao Requerente o imposto indevidamente pago;

d)      Condenar a AT em custas.

 

 

 

7.      VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em € 11.850,00 (onze mil, oitocentos e cinquenta euros), nos termos do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

8.      CUSTAS

 

Custas a suportar pela AT, no montante de € 918 (novecentos e dezoito euros), nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, nos termos do n.º 2 do artigo 22.º do RJAT.

 

 

Notifique.

Lisboa, 20 de Dezembro de 2017

 

 

O árbitro,

 

 

(Hélder Filipe Faustino)

 

 

Texto elaborado em computador, nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 131.º, do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT. A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.

 



[1] Cfr. Modelo de Convenção Fiscal sobre o Rendimento e o Património, Versão Condensada, Comité dos Assuntos Fiscais da OCDE, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, pág. 325.

[2] “Breve Comentário à Convenção entre Portugal e Espanha Para Evitar a Dupla Tributação e Prevenir a Evasão Fiscal em Matéria de Impostos sobre o Rendimento”, Faculdade de Direito da Universidade do Porto.

[3] De acordo com o artigo 22.º do Regulamento do Conselho de Administração, as reuniões do Conselho têm uma periodicidade trimestral.