Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 320/2019-T
Data da decisão: 2019-12-12  IMI  
Valor do pedido: € 45.541,69
Tema: IMI – Caso Julgado.
*Decisão arbitral anulada parcialmente por acórdão do STA de 4 de novembro de 2020, recurso n.º 18/20.7BALSB, que decide em substituição.
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DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

               

O árbitro Dr. André Festas da Silva, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 11 de julho de 2019, decide o seguinte.

 

I. RELATÓRIO

I.1

1.            Em 02 de maio de 2019 a contribuinte A..., sociedade de direito inglês, registada sob o número ..., com sede em ..., ..., ..., ..., no Reino Unido, com o número de identificação fiscal português ..., requereu, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e no artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, a constituição de Tribunal Arbitral com designação de árbitro singular pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º do referido diploma.

2.            O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD no dia 03.05.2019 e foi notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (de ora em diante designada por AT ou “Requerida”) no dia 07.05.2019.

3.            A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b) e artigo 6.º, n.º1, do RJAT, o signatário foi designado pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente Tribunal Arbitral singular, tendo aceitado nos termos legalmente previstos. 

4.            Por despacho datado de 11.07.019, a requerida foi notificada para, querendo, apresentar a sua resposta.

5.            No dia 25.09.2019 a requerida requereu a prorrogação por 15 dias do prazo para apresentar a sua resposta, tendo sido deferido por despacho de 27.09.2019.

6.            A AT apresentou a sua resposta em 15.10.2019.

7.            Por despacho de 16.10.2019, foi dispensada a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e foi decidido que o processo prosseguisse com alegações escritas.

8.            Em 05 de novembro de 2019 a Requerente apresentou as suas alegações de direito.

9.            A Requerida não apresentou as suas alegações de direito.

10.          Pretende a Requerente que o Tribunal Arbitral declare ilegalidade do ato tributário de liquidação de IMI n.º 2014..., de 14.12.2018, respeitante ao ano de 2014, na parte em que incidiu sobre a propriedade dos prédios urbanos sitos no concelho de Almada, freguesia de ... e ..., inscritos na matriz predial sob os números ... e ..., anteriores inscritos sob os números ... e ..., respetivamente, e que compreende um montante de imposto a pagar pela Requerente de € 45.541,69 e condenada a AT ao pagamento de uma indemnização pela garantia indevidamente prestada.

 

I.A. A Requerente sustenta o seu pedido, em síntese, nos seguintes termos:

 

1.            Com entrada em vigor da Lei n.º 60-A/2011, de 30 de novembro, o n.º 1 do artigo 15.º-N do Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de novembro, dispõe que “No caso de prédio ou parte de prédio urbano abrangido pela avaliação geral que esteja arrendado por contrato de arrendamento para habitação celebrado antes da entrada em vigor do Regime de Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro, ou por contrato de arrendamento para fins não habitacionais celebrado antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de setembro, o valor patrimonial tributário, para efeitos exclusivamente de IMI, não pode exceder o valor que resultar da capitalização da renda anual pela aplicação do fator 15.”.

2.            Exige este preceito para aplicação do regime especial das rendas que estejamos perante (i) um prédio urbano, ou parte do mesmo, (ii) abrangido pela avaliação geral e (iii) arrendado por contrato de arrendamento para fins não habitacionais celebrado antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de setembro.

3.            No que concerne ao requisito (i), i.e. estarmos perante prédios urbanos, resulta evidente que os prédios em juízo o são, o que decorre da própria liquidação de IMI.

4.            Relativamente ao requisito (ii) que se prende com os prédios urbanos estarem abrangidos pela avaliação geral, o mesmo resulta cumprido porquanto a mesma foi iniciada, com a entrada em vigor da Lei n.º 60-A/2011, de 30 de novembro.

5.            De facto, a entrada em vigor deste diploma decorria desde logo de uma exigência do n.º 4 do artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de novembro, que dispunha na sua redação inicial, que “Será promovida uma avaliação geral dos prédios urbanos, no prazo máximo de 10 anos após a entrada em vigor do CIMI.”.

6.            Acresce que, esta avaliação foi promovida pela administração tributária, à luz do n.º 1 do artigo 15.º-C do Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de novembro, segundo o qual “A iniciativa da avaliação de um prédio urbano no âmbito da avaliação geral, cabe aos serviços centrais da Direção-Geral dos Impostos.”

7.            Na presente data estão pendentes os pedidos de segunda avaliação dos imóveis em apreço, uma vez que a Requerente não se conformou com os VPT’s determinados.

8.            Não obsta à aplicação do aludido regime a circunstância de tal procedimento de avaliação ainda se encontrar em curso.

9.            Deste modo, verifica-se que os prédios urbanos em análise se encontram abrangidos pela avaliação geral, cumprindo assim o requisito (ii) imposto pelo n.º 1 do artigo 15.º-N Decreto- Lei n.º 287/2003, de 12 de novembro.

10.          Por outro lado, no que tange ao pressuposto (iii), que se prende com o facto de os prédios estarem arrendados por contrato de arrendamento para fins não habitacionais celebrado antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de setembro, temos que o mesmo também se encontra cumprido in casu.

11.          Desde logo, quanto à finalidade do contrato, temos que o contrato de arrendamento celebrado pela Requerente, tem por objeto instalações petrolíferas pelo que se destina a fins não habitacionais.

12.          Por outro lado, o referido contrato foi celebrado em 01.10.1953, pelo que é manifestamente anterior à data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de setembro.

13.          Atento o exposto, não pode a Requerente conformar-se com o facto de a administração tributária ter adotado para efeitos de apuramento da coleta de IMI os VPT’s dos prédios urbanos em apreço, ao invés do coeficiente que resultaria da aplicação do regime consagrado no artigo 15.º-N do Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de novembro, porquanto estão verificados os pressupostos de que depende a aplicação deste regime.

14.          Tendo em conta que a Requerente procedeu à participação das rendas através de transmissão eletrónica de dados em 12.12.2014, cumprindo com o disposto no artigo 2.º e no n.º 1 do artigo 3.º da Portaria n.º 358-A/2013, de 12 de dezembro, e que, bem assim, apresentou em 15.12.2014 no Serviço de Finanças Lisboa ..., cópias dos recibos das rendas referentes ao 4.º trimestre de 2014, não se perceciona como pode a administração tributária desconsiderar tais elementos aquando do apuramento do VPT para cálculo do IMI.

15.          Atento o exposto, entende a Requerente que o ato tributário sub judice deverá ser anulado porquanto é o mesmo ilegal, uma vez que a administração tributária desconsiderou o regime especial previsto no artigo 15.º-N do Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de novembro, não obstante todos os elementos facultados pela Requerente.

16.          Por fim, cumpre referir que a relação material controvertida já foi dirimida no âmbito do processo arbitral n.º 149/2017-T, tendo o Tribunal Arbitral reconhecido, com referência aos anos de 2013 e 2014, que o valor a relevar para efeitos de apuramento da coleta de IMI relativa à propriedade dos prédios urbanos em apreço é a que resulta do regime especial previsto no artigo 15.º-N do Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de novembro.

17.          Deste modo, verifica-se que a administração tributária ao emitir um novo ato de liquidação referente aos mesmos prédios urbanos e ao mesmo período de tributação põe em causa a extensão do caso julgado material daquela decisão o que, desde logo, não pode deixar de determinar a anulação do ato tributário sub judice.

18.          Pelo que, também com este fundamento não pode o presente pedido deixar de ser julgado procedente.

19.          A Requerente procedeu à apresentação de garantia com vista à suspensão do processo de execução fiscal instaurado pelo não pagamento do imposto liquidado pela administração tributária

20.          O ato tributário em apreço resulta de manifesto erro de direito da administração tributária, pelo que se impõe a indemnização prevista no citado artigo 53.º da LGT.

 

I.B Na sua Resposta a AT, invocou, o seguinte:

 

1.            Os actos de liquidação de IMI do ano de 2014, visados no processo 149/2018-T apenas respeitam aos artigos ...º e ...º da matriz predial urbana da extinta freguesia da ..., uma vez que os mesmos foram desactivados com efeitos a 30.09.2013 no âmbito da reorganização territorial administrativa efectuada em 2013, tendo dado origem respectivamente aos artigos  ...º e ...º da actual União das Freguesias de ... e ..., tendo voltado a ser reactivados em 12.02.2016, com vista à conclusão das avaliações.

2.            Não ocorre assim qualquer violação de caso julgado pois a liquidação anulada pelo processo 149/2018-T respeita aos artigos ...º e ...º da matriz predial urbana da freguesia da ... e no caso dos autos estão em causa os artigos ...º e ...º da matriz predial urbana da União das Freguesias de ... e ..., independentemente de respeitarem aos mesmos prédios.

3.            Como se extrai do teor das notas de cobrança juntas pela Requerente, sendo embora iguais os valores patrimoniais tributários dos artigos ...º e ...º da actual União das Freguesias de ... e ..., a liquidação anulada refere-se aos prédios desactivados e não aos artigos vigentes.

4.            Não tem, assim sustentação o alegado vício de violação de caso julgado.

5.            Constitui assim pressuposto da aplicação daquele regime que os prédios se encontrem avaliados nos termos do CIMI, porquanto o VPT fixado - exclusivamente para efeitos de IMI – pela capitalização da renda anual, só será aplicado no caso de o resultado da avaliação ser superior.

6.            No caso dos autos, os prédios não se encontrados avaliados nos termos do CIMI.

7.            Assim sendo, uma vez que não foi ainda fixado o resultado de tal avaliação, por aliás a Requerente ter pedido 2ª avaliação, não é possível estabelecer qualquer comparação com o VPT resultante da aplicação do regime especial do art. 15º-N do DL 287/2003.

8.            os valores patrimoniais dos prédios que serviram de base às liquidações impugnadas são valores resultantes de actualizações definidas na lei e não da avaliação geral ou de qualquer outro procedimento de avaliação nos termos do CIMI.

9.            As liquidações adicionais aqui impugnadas, foram emitidas com base nos VPTs apurados de acordo com o Novo Regime Transitório para os Prédios Urbanos Arrendados estabelecido nos nºs 4 e 5 do art. 17º do DL 287/2003, de 12 de Novembro, na redacção introduzida pela Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro, isto é, de acordo com os critérios do art. 16º do mesmo Dec-Lei;

10.          não tiveram por base o valor patrimonial tributário calculado nos termos do art. 15º-N do DL 287/2003, de 12 de Novembro, uma vez que à data da sua emissão, não estavam concluídos os procedimentos de avaliação nem validadas as participações das rendas.

 

II. SANEAMENTO

 

O Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º1, alínea a), 5.º e 6.º, todos do RJAT.

O processo é o próprio.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias.

As partes são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

Inexistem outras questões prévias que cumpra apreciar nem vícios que invalidem o processo.

 

III. – MATÉRIA DE FACTO   

III.1. Factos provados

 

Antes de entrar na apreciação da questão, cumpre apresentar a matéria factual relevante para a respetiva compreensão e decisão, a qual, examinada a prova documental, o processo administrativo tributário junto e tendo em conta os factos alegados, se fixa como segue:

 

1.            Em 01.10.1953, a Requerente – anteriormente denominada B...–celebrou um contrato de arrendamento de instalações petrolíferas com C...,S.A. – anteriormente denominada D..., S.A..

2.            Este contrato ainda se encontra em vigor relativamente aos seguintes prédios:

3.            A renumeração dos prédios foi efetuada em 2013, mantendo-se o respetivo valor patrimonial de cada um dos prédios respetivamente.

4.            A Requerente apresentou a participação de rendas com referência ao ano de 2014 através da transmissão eletrónica de dados.

5.            Em 15.12.2014, a Requerente apresentou no Serviço de Finanças Lisboa ..., cópias dos recibos das rendas referentes ao 4.º trimestre de 2014.

6.            A Requerente foi notificada da liquidação de IMI n.º 2015 ..., de 26.02.2016, referente aos anos de 2013 e 2014, referente à propriedade dos prédios urbanos em apreço, na qual se apurou um total de imposto a pagar de € 83.892,58.

7.            Não se conformando com a liquidação de IMI supra, a Requerente apresentou pedido de pronúncia arbitral contra a liquidação de IMI n.º 2015... .

8.            O pedido de pronúncia arbitral foi julgado procedente (processo n.º 149/2017-T).

9.            O Tribunal Arbitral considerou que a AT não pode “(…) ignorar o art. 15ºN do citado DL 387/2013 quando tenha e não possa ignorar – como é o caso dos autos – todos os pressupostos para a sua aplicação, designadamente com base no facto de não ter sido tratada a informação fornecida pelo contribuinte.”

10.          O Tribunal arbitral julgou “(…) totalmente procedente o pedido de declaração de ilegalidade da liquidação de IMI nº 2015 ... de 26-2-2016, relativa aos anos de 2013 e 2014, na importância global de €129.434,27, com a consequente anulação (…).”

11.          A sentença proferida em 09.02.2018 transitou em julgado.

12.          Posteriormente, a Requerente foi notificada da liquidação de IMI n.º 2014 ..., o qual incidiu sobre a propriedade dos prédios urbanos sitos no concelho de Almada, freguesia de ... e ..., inscritos na matriz predial sob os números ... e ..., anteriormente inscritos sob os números ... e ..., respetivamente.

13.          Para suspensão do processo de execução fiscal n.º ...52019... foi prestada uma fiança.

 

III.2. Factos dados como não provados

 

Não existem factos dados como não provados, uma vez que todos os factos relevantes para a apreciação do pedido foram dados como provados. 

 

III.3. Motivação da matéria de facto

 

Os factos dados como provados integram matéria não contestada e documentalmente demonstrada nos autos.

Os factos que constam dos números 1 a 13 são dados como assentes por acordo das partes, pela análise do processo administrativo e pelos documentos juntos pela Requerente (docs. 1 a 6 do pedido de constituição do Tribunal Arbitral).

 

IV. Aplicação do direito aos factos

 

IV.1Caso Julgado

 

É invocada uma exceção de caso julgado, que cumpre apreciar previamente.

Alega a Requerente que a relação material controvertida já foi dirimida no âmbito do processo arbitral n.º 149/2017-T. Conclui a Requerente que este vício deve conduzir à anulação do ato impugnado.

 

Quid Juris?

 

Nos termos do art. 13º, n.º1 e 3 do RJAT, terminado o prazo de 30 dias a contar do conhecimento do pedido de constituição do tribunal arbitral, a administração tributária fica impossibilitada de praticar novo ato tributário relativamente ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação, a não ser com fundamento em factos novos.

Concluído o processo arbitral, ao abrigo do art. 24º, n.º1 do RJAT as decisões arbitrais, transitadas em julgado, que analisem o mérito das pretensões vinculam a AT, não podendo esta contrariá-las.

A propósito dos efeitos das decisões arbitrais cumpre referir que há caso julgado material sempre que a sentença aprecie a relação material controvertida. O caso julgado material tem força obrigatória dentro e fora do processo, impedindo que o mesmo tribunal, ou outro tribunal, possa decidir de modo diferente sobre a mesma pretensão (art. 619º, n.º1 do CPC ex vi art. 29º, n.º1, al. e) do CPC).  O caso julgado é uma exceção que obsta a que Tribunal conheça do mérito da causa (art. 576, n.º2 do CPC ex vi art. 29º, n.º1, al. e) do CPC).

A exceção de caso julgado pressupõe a repetição de uma causa, depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário.

O caso julgado tem por fim evitar que o Tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.

O art. 581º do CPC aplicável ex vi ex vi art. 29º, n.º1, al. e) do CPC enuncia os requisitos do caso julgado:

 

1 - Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

 2 - Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.

3 - Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.

4 - Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas ações constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.

 

O art. 24º, n.º4 do RJAT dispõe o seguinte:

4 - A decisão arbitral preclude o direito de a administração tributária praticar novo acto tributário relativamente ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário e período de tributação, salvo nos casos em que este se fundamente em factos novos diferentes dos que motivaram a decisão arbitral.

 

No caso em apreço, o sujeito passivo dos autos e do processo arbitral n.º 149/2017 é o mesmo – A... .

O pedido é o mesmo (anulação da liquidação de IMI de 2014). Nem se assevere que são liquidações com números diferentes. Por força do nº 4 do artigo 268º da CRP, que consagrou um modelo de contencioso administrativo de natureza subjetiva, o objeto do processo estendeu-se para além dos limites definidos pelo ato impugnado. Como refere o Prof. Vasco Pereira da Silva, «num sistema de tipo subjectivo, o objecto do processo é o direito substantivo afirmado pelo particular como lesado por um acto administrativo» e assim o pedido de anulação (o pedido imediato) é «visto como um meio de tutela de um direito subjectivo lesado do indivíduo (pedido mediato)» (Cfr. Para um Contencioso Administrativo dos Particulares, Almedina, pág. 271

Na verdade, embora a Requerente pretenda, em primeira linha a anulação do ato ilegal, fá-lo reagindo e contestando o poder e a posição administrativa consubstanciada no ato impugnado, de modo a que seja repristinada ou reconstituída a situação que detinha antes da prática do ato impugnado. Subjacente à pretensão anulatória existe pois uma relação material constituída, por um lado, pela definição introduzida pelo ato na ordem jurídica, e por outro, pela lesão que ele causa aos direitos e interesses legalmente protegidos do impugnante (Cfr. art. 95º da LGT e art. 96º do CPPT).

A construção alargada do objeto do processo de anulação de atos administrativos não pode deixar de se projetar na extensão da autoridade do caso julgado das sentenças de mérito proferidas nesse tipo de processos. A eficácia objetiva do caso julgado já não se delimita, sem mais, pela questão da validade ou invalidade de um ato, determinando, de forma imodificável, o seu afastamento da ordem jurídica ou a sua confirmação.

O juízo que o tribunal faz sobre os pressupostos de que depende o exercício do poder consubstanciado no ato ou sobre a ocorrência de factos impeditivos ou extintivos que obstem a esse exercício, também estão ao alcance do caso julgado, atenta a configuração do objeto do processo. Cfr. Ac. do STA de 27.06.2018, proc. n.º 27/06/2018

Se o assunto que se discute no processo é a regularidade formal e material do poder administrativo exercido com a prática do ato impugnado, então haverá identidade de objeto se já existir uma sentença transitada em julgado que apreciou os concretos fundamentos de facto e de direito em que se baseia a pretensão anulatória do ato impugnado. Cfr. Ac. do STA de 07/12/2011, proc. n.º 041911

Se a Requerente já contestou a legitimidade do poder consubstanciado no ato, defendendo a posição subjetiva de fundo que foi lesada por esse ato, e se nessa ação foi emitida uma pronúncia judicial/arbitral que confirma ou nega esse poder, então já há uma definição do poder manifestado com o ato impugnado que não pode ser repetido, sob pena de ofensa ao caso julgado.

A Requerente move a presente ação contra o a liquidação de IMI de 2014, n.º 2014... . A pretensão anulatória tem por fim a eliminação do ato de liquidação de IMI de 2014, precisamente a mesma contra o qual a Requerente já havia reagido em processo anterior (processo arbitral n.º 149/2017).

Não foram apresentados fundamentos de facto e de direito diferentes dos invocados no processo arbitral n.º 149/2017.

A relação material subjacente a ambos aos atos é a mesma: sujeição, ou não, a IMI e aplicação do regime de salvaguarda previsto no art. 15ºN do D.L. n.º287/2013.

O presente processo, nos termos em que a Requerente o apresentou, visa o mesmo efeito jurídico que o pedido de pronuncia arbitral já decidido. Houve uma sentença de procedência que teve o alcance de declarar com força imperativa que a pretensão formulada tem fundamento, ou seja, que a liquidação de IMI de 2014 padece da ilegalidade que a Requerente lhe apontou. A específica ilegalidade ali invocada, aplicação da cláusula de salvaguarda (art. 15º N do D.L. n.º287/2013), e a correspondente pretensão anulatória do ato de liquidação, é totalmente idêntica à invocada e formulada no presente processo. Se o processo prosseguisse, o árbitro teria necessariamente de contradizer ou de confirmar a decisão anterior proferida quanto à aplicação em 2014 à Requerente do regime de salvaguarda previsto no art. 15ºN do D.L. n.º287/2013, pois, apesar do ato impugnado ser diferente, a ilegalidade invocada e a pretensão anulatória não deixam de ser as mesmas.

Nos dois processos está em discussão o mesmo assunto, sendo certo que na primeira já se decidiu que há lugar à aplicação do regime do regime de salvaguarda previsto no art. 15ºN do D.L. n.º287/2013.          

A causa de pedir, de acordo com a teoria da substanciação consagrada no nº 4 do art. 581º do CPC aplicável ex vi art. 29º, al. e) do RJAT, corresponde ao facto concreto ou à nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido, ou seja, às específicas causas de invalidade invocadas. A causa de pedir é mesma, ou seja, o vicio invocado é o mesmo – aplicação do disposto no art. 15ºN do D.L. n.º287/2013.

Em processos de tipo impugnatório, como o sub judice, o caso julgado material forma-se, desde logo, sobre a qualificação como vícios, positiva ou negativa, das circunstâncias apreciadas na decisão transitada em julgado, tendo de ser respeitado, em qualquer meio administrativo ou judicial em que se visa executar o julgado, o juízo feito sobre essa matéria. Neste sentido, podem ver-se os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo:

– Acórdão de 27-6-2001, proferido no recurso n.º 38528, publicado em AP DR 8-8-2003, página 5013;

– Acórdão de 26-9-2001, proferido no recurso n.º 35484, publicado em AP DR 18-8-2003, página 5839;

– Acórdão do Pleno de 31-3-2004, proferido no recurso n.º 1342/02, publicado em AP DR 11-11-2004, página 368;

 

A sentença proferida no processo arbitral n.º 149/2017 conheceu do mérito da questão controvertida, julgando a liquidação de IMI ilegal por violar o disposto no art. 15ºN do D.L. n.º 387/2013.

Nos presentes autos está em causa o IMI de 2014, relativamente aos prédios antes identificados com os n.ºs... e ..., tal como no processo n.º149/2017

Alega a Requerida que os prédios agora têm números diferentes ... e ..., o que, na sua opinião, justifica o novo ato, nos termos do art. 24º, n.º4 do RJAT.

A renumeração dos prédios efetuada em 2013 não é superveniente relativamente aos acto tributário impugnado no processo arbitral n.º 149/2017, o que por si só impede a aplicação do disposto no art. 24º, n.4 do RJAT.

Mais, a renumeração dos prédios é uma qualificação dos mesmos não possuindo qualquer substrato fáctico. A simples renumeração dos prédios, efetuada pela Requerida, não altera a realidade fáctica. São os mesmos prédios e o mesmo valor patrimonial tributário, tendo inevitavelmente gerado o mesmo valor de IMI a pagar. É indubitável que estamos perante a mesma factualidade. A própria Requerida reconhece que os prédios são os mesmos!

Não há qualquer facto subjetivamente novo posterior à decisão arbitral n.º 149/2017, que justifique nos termos do art. 24º, n.º3 do RJAT a prática de novo ato tributário relativamente ao mesmo sujeito passivo e período de tributação.

 

Face ao exposto entendemos que se verifica a exceção dilatória de caso julgado (art. 577º, al. i) do CPC ex vi art. 29º, n.º1, al. e) do RJAT), sendo, por isso, o ato impugnado nulo ao abrigo do art. 161º, n.º2, al. i) do CPA ex vi art. 2º, al. c) da LGT.

 

IV.2 Encargos com prestação de garantia

 

O processo arbitral é meio adequado para o reconhecimento do direito a indemnização por garantia indevidamente prestada, pois é aplicável subsidiariamente o artigo 171.º do CPPT, por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT.

O que se estabelece naquele artigo 171.º é que «a indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada será requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda».

O regime do direito a indemnização por garantia indevida consta do art. 53.º da LGT, que estabelece o seguinte:

 

Artigo 53.º

Garantia em caso de prestação indevida

1. O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objecto a dívida garantida.

2. O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.

3. A indemnização referida no número 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.

4. A indemnização por prestação de garantia indevida será paga por abate à receita do tributo do ano em que o pagamento se efectuou.

 

No caso em apreço, o erro que está subjacente à liquidação de IMI é imputável à AT, pois a correção que efetuou foi da sua iniciativa e a Requerente em nada contribuiu para que esse erro fosse praticado.

Assim, a Requerente tem direito a ser indemnizada pelos prejuízos que advieram da prestação de garantia para suspender a execução fiscal n.º...2019..., instaurada para cobrança da quantia liquidada.

Pelo que procede o pedido da Requerente em ser indemnizada pelos encargos que suportou com a prestação de tal fiança, necessariamente a serem determinados em execução de sentença, até ao limite previsto no n.º 3 do art.º 53º da LGT.

 

V) DECISÃO

 

Em face de tudo quanto se deixa consignado, decide-se:

a) Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade da liquidação de liquidação de IMI n.º 2014..., de 14.12.2018, respeitante ao ano de 2014, na parte em que incidiu sobre a propriedade dos prédios urbanos sitos no concelho de Almada, freguesia de ... e ..., inscritos na matriz predial sob os números ... e ... e em consequência anular parcialmente a liquidação;

b) Julgar procedente o pedido de condenação da Requerida no pagamento de uma indemnização pela prestação de uma garantia, em valor a determinar em execução de sentença;

c) Condenar a Requerida nas custas do processo face ao decaimento.

 

Fixa-se o valor do processo em €45.541,69 nos termos do artigo 97º-A, n.º 1, a), do CPPT, aplicável por força da alínea a) do n.º1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €2.142,00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

Lisboa, 12 de dezembro de 2019  

 

O Árbitro

 

(André Festas da Silva)