Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 627/2017-T
Data da decisão: 2018-05-25  IRS  
Valor do pedido: € 24.062,05
Tema: IRS - Mais-valias na transmissão onerosa de imóveis adquiridos por herança - Doação de quinhão hereditário - Art.º 5.º do DL 442-A/88, de 30 de Novembro.
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DECISÃO ARBITRAL

 

1. Relatório

A..., contribuinte fiscal n.º ..., e B..., contribuinte fiscal n.º  ..., casados entre si e ambos residentes na ..., n.º..., ..., ...-... Lisboa, doravante “Requerentes” ou, quando individualmente referidos, respectivamente “Requerente Marido” e “Requerente Mulher”, vieram, ao abrigo dos art.ºs 2.º, n.º 1 al. a) e 10.º, n.º 1 al. a) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (D.L. n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, doravante “RJAT”) requerer a constituição do Tribunal Arbitral.

 

Peticionam, assim, a declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, mais concretamente de IRS.

 

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).

 

Os Requerentes pretendem que seja declarada a ilegalidade da sua liquidação de IRS relativa ao ano de 2016, na parte referente a tributação de mais-valias, pela qual se perfaz o valor total de € 24.062,05, por sujeição - em seu entender - indevida. As mais-valias em causa existiram efectivamente, tendo decorrido da alienação onerosa, no ano a que a liquidação em crise se reporta, de imóveis que haviam sido adquiridos pela Requerente Mulher por via sucessória. A herança na origem da aquisição, pela Requerente Mulher, dos imóveis em causa foi aberta por óbito de seu pai em 1988, tendo então sido habilitados três herdeiros e tendo posteriormente, em 2014, sido doado um dos três quinhões hereditários - a saber, o da cônjuge do falecido - à Requerente Mulher e seu irmão em partes iguais.

 

Os Requerentes fundamentam a pretendida não sujeição a imposto das mais-valias assim obtidas em 2016 no art.º 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro (doravante “DL n.º 442-A/88”) que aprovou o Código do IRS (doravante “CIRS”). Norma que estabelece um regime transitório (cfr. a própria epígrafe: “Regime transitório da Categoria G”) ao abrigo do qual não ficam sujeitos a tributação de mais-valias (doravante também “MV”) os ganhos que não estavam sujeitos a tal imposto antes da entrada em vigor do CIRS, salvo quando a aquisição dos bens ou direitos que vêm a gerar tais ganhos tenha ocorrido já na vigência do CIRS.

 

No entender dos Requerentes, estando em causa nos autos rendimentos que não estavam sujeitos a MV antes da entrada em vigor do CIRS, e sendo a data do óbito do de cujus a relevante para efeitos de aquisição, pelos herdeiros, dos bens que integram o património da herança, tendo o pai da Requerente Mulher falecido em Dezembro de 1988 e tendo o CIRS entrado em vigor apenas em Janeiro de 1989, não há lugar a sujeição. Em consequência, pedem que sejam determinados:

            (i) a anulação da liquidação em crise;

            (ii) o reembolso do imposto pago em montante superior ao devido; e, bem assim,

            (iii) o pagamento de juros indemnizatórios.

 

Pugnam pelo entendimento que antecede não obstante ter ocorrido, já na vigência do CIRS, em 2014, a referida doação a favor da Requerente Mulher de metade do quinhão hereditário de sua Mãe.

 

Subsidiariamente, para o caso de o Tribunal não decidir como peticionado em primeiro lugar, pedem a anulação da liquidação de MV em sede de IRS por erro de cálculo no montante que foi sujeito a tributação, i. e., por ter este sido erradamente calculado em excesso ao considera-se adquirida pela Requerente Mulher pela doação, em 2014, uma parcela correspondente a 66,67% dos bens imóveis que vieram a gerar MV em 2016.

 

A Declaração de IRS na origem da liquidação em crise foi apresentada pelos Requerentes em substituição da Declaração inicialmente apresentada, na sequência de procedimento por divergências.

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à AT a 05.12.2017.

 

Nos termos do disposto na al. b) do n.º 1 do art.º 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do Tribunal Arbitral singular a ora signatária, que atempadamente aceitou o encargo.

 

A 22.01.2018 as partes foram notificadas da designação de árbitro e não manifestaram intenção de a recusar (cfr. art.º 11º, n.º 1, al. a) e b) do RJAT e art.ºs 6.º e 7.º do Código Deontológico).

 

Nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 do art.º 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 14.02.2017.

 

Notificada para o efeito, a AT apresentou Resposta, pugnando pela improcedência do Pedido, reconhecendo embora que assiste, em parte, razão aos Requerentes. A saber, no que se refere ao cálculo do valor das MV sujeitas a imposto. Entende a Requerida, em suma, que a liquidação de MV em sede de IRS no caso é devida, por efeito da doação de quinhão hereditário ocorrida em 2014, mas que houve efectivamente um erro de cálculo no apuramento do montante sujeito a tributação. E que a correcção do erro de cálculo incorrido conduz a um montante sujeito inferior ao constante da liquidação. Aqui acompanhando, genericamente, o pedido subsidiário dos Requerentes.

 

Com efeito, entende que, diferentemente do que sucedeu na liquidação em crise, o montante a sujeitar a tributação de MV em sede de IRS é o correspondente a 33,34% (e não a 66,66%) do valor de realização na alienação dos imóveis geradora das mais-valias, por cada uma das duas fracções alienadas. O que se traduz, expõe, num montante de € 63.346,00 a inscrever, por cada fracção, no Anexo G (sujeito a tributação em sede de IRS  - Mais-Valias/Anexo G) porque correspondente à quota-parte da herança adquirida pela Requerente Mulher em 2014, e não aquando do falecimento do de cujus. Valor que é inferior ao constante da liquidação em crise.

 

Por Despacho de 26.03.2018 decidiu este Tribunal dispensar a reunião prevista no art.º 18.º do RJAT e que o processo prosseguisse com alegações escritas facultativas.

 

Os Requerentes não apresentaram alegações. A Requerida limitou-se nas suas a telegraficamente reiterar aquilo que já havia exposto na Resposta e concluiu pela improcedência do Pedido de Pronúncia Arbitral (doravante “PPA”).

 

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, é competente e as partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (cfr. art.s 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e art.º 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março). Relativamente à legitimidade refira-se desde já que se verifica uma situação de litisconsórcio necessário activo (cfr. art.º 33.º do CPC, aplicável ex vi art.º 29.º, n.º 1 do RJAT), pressuposto processual que se encontra cumprido.

 

O Processo não enferma de nulidades e não existe matéria de excepção.

 

2. Matéria de facto

 

2.1. Factos provados

Consideram-se provados os factos que seguem:

 

a) Os Requerentes são casados entre si sob o regime de comunhão de adquiridos;

b) No ano de 2016 os Requerentes optaram pela tributação conjunta em IRS;

c) A Requerente Mulher adquiriu por via de herança aberta por óbito de seu pai vários imóveis;

d) C..., pai da Requerente Mulher, faleceu em 11 de Dezembro de 1988 no estado de casado com a mãe da Requerente Mulher;

e) À data da abertura da sucessão em Dezembro de 1988 foram habilitados três herdeiros em partes iguais;

f) Os herdeiros habilitados eram a cônjuge do falecido, o filho e a filha do casal;

g) A ora Requerente Mulher é a filha do falecido, referida em f);

h) Cada um dos três herdeiros ficou, à data referida em d), a deter uma percentagem da herança de 33,33%;

i) Em Julho de 2014 a herdeira cônjuge do falecido doou a sua quota parte de 1/3 na herança a favor dos outros dois herdeiros, seus filhos, em partes iguais;

j)  A doação referida em i) foi formalizada por Escritura Pública de 23 de Julho de 2014,  cuja cópia se encontra junta aos autos pelos Requerentes como doc. n.º 5, dando-se aqui como reproduzido o respectivo teor, e em que se refere, além do mais, e quanto ao primeiro acto - que é a cessão gratuita e em partes iguais do quinhão hereditário pertencente à mãe da Requerente Mulher na herança - o que segue: “PELA PRIMEIRA OUTORGANTE FOI DITO: I - Que, pela presente escritura e por conta da quota disponível, cede, gratuitamente e em partes iguais, ao segundo outorgante marido [o irmão da Requerente Mulher] e à terceira outorgante mulher [a Requerente Mulher], o quinhão hereditário que lhe pertence na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seu marido, C..., (…). (…) Que o referido quinhão hereditário corresponde a 1/3 da herança, atribuindo-lhe, para efeitos da presente doação, o valor global de duzentos e oito mil quinhentos e trinta e três euros e trinta e três cêntimos. PELOS SEGUNDO OUTORGANTE marido e TERCEIRA OUTORGANTE mulher FOI DITO: Que aceitam a presente doação, nos termos exarados.” (sublinhados nossos)

k) Na mesma Escritura Pública referida em j) os herdeiros filhos (a Requerente Mulher e seu irmão) procederam, em acto posterior ao referido em j), à partilha da herança;

l) Pela partilha foram adjudicados à Requerente Mulher quatro imóveis por conta do preenchimento do respectivo quinhão hereditário de 1/2 da herança, referindo-se na Escritura Pública quanto ao acto de partilha, entre o mais, o seguinte: “V - Que, pela presente escritura, procedem à partilha dos identificados bens do seguinte modo: a) Ao SEGUNDO OUTORGANTE marido, (…); b) À TERCEIRA OUTORGANTE mulher, B..., são adjudicados os bens identificados sob as verbas DOIS, TRÊS, SEIS e SETE, no valor global de trezentos e doze mil e oitocentos euros, ficando assim preenchido o seu quinhão.” (sublinhados nossos)

m) Entre os quatro imóveis adjudicados à Requerente Mulher pela partilha incluem-se os dois imóveis por si alienados em 2016;

n) Pela partilha não houve lugar ao pagamento de tornas nem atribuição de qualquer excesso;

o) Os dois imóveis alienados pela Requerente Mulher em 2016 correspondem às fracções “G” e “C” do prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo..., freguesia de..., concelho de Lisboa;

p) Os dois imóveis alienados pela Requerente Mulher em 2016 geraram mais-valias;

q) Os Requerentes apresentaram a Declaração de IRS referente a 2016 no prazo legal;

r) Na Declaração de IRS referida em q) os Requerentes inscreveram no Anexo G - “Mais-Valias e outros Incrementos Patrimoniais” - os rendimentos (MV) obtidos com a alienação dos dois imóveis referidos em o), com uma quota parte sujeita correspondente a 33,33%;

s) No Anexo G1 - “Mais-Valias Não Tributadas” - os Requerentes inscreveram a quota parte das mais valias realizadas correspondente a 66,67%;

t)  Após a apresentação da Declaração de IRS, a AT abriu procedimento de divergências;

u) As divergências respeitavam aos montantes inscritos nos Anexos G e G1 como sujeitos e não sujeitos a tributação;

v) Em Julho de 2017 os Requerentes apresentaram Declaração de substituição;

w) A Declaração de substituição foi apresentada após contactos informais com a Requerida AT e conforme aconselhamento da mesma; 

x) A Declaração de IRS na origem da liquidação em crise é a Declaração de substituição;

y) Na Declaração de substituição os Requerentes inscreveram no Anexo G - “Mais-Valias e outros Incrementos Patrimoniais” – a quota parte das mais valias geradas correspondente a 66,67%;

z) Os Requerentes foram notificados da liquidação de IRS com prazo para pagamento voluntário até 31 de Agosto de 2017;

aa) A 29 de Agosto de 2017 os Requerentes procederam ao pagamento da liquidação, no valor de € 24.062,05;

bb) Em 29 de Novembro de 2017 os Requerentes apresentaram o PPA que originou o presente processo.

 

 

2.2. Factos não provados

Com relevo para a decisão da causa não existem factos não provados.

 

2.3. Fundamentação da matéria de facto

Os factos dados como provados foram-no com base nos documentos juntos com o PPA e no Processo Administrativo, documentos que se dão por integralmente reproduzidos, e, bem assim, com base nas posições manifestadas pelas partes nos articulados, não existindo controvérsia quanto a eles.

Ao Tribunal cabe seleccionar, de entre os alegados pelas partes, os factos que importam à apreciação e decisão da causa (v. art.º 16.º, al. e) e art.º 19.º do RJAT e, ainda, art.º 123.º, n.º 2 do CPPT e art.º 596.º do CPC[1]).

 

 

3. Matéria de Direito

 

Preliminarmente e a respeito da legitimidade refira-se apenas que, uma vez que os Requerentes apresentam a respectiva Declaração de IRS conjuntamente, estamos no presente processo arbitral perante um caso de pluralidade de partes com unicidade da relação material controvertida, configurando-se assim litisconsórcio. Verifica-se o pressuposto processual de litisconsórcio necessário activo decorrente da natureza da relação jurídica (cfr. art.º 33.º, n.ºs 2 e 3 do CPC, aplicável ex vi art.º 29.º, n.º 1 do RJAT), sendo essencial a intervenção de todos os interessados para que a decisão a proferir produza o seu efeito útil normal. Pressuposto que se encontra, pois, cumprido como devido.

 

Relativamente à tempestividade do PPA não se levanta também qualquer questão, tendo o mesmo sido apresentado dentro do prazo legal de 90 dias - cfr. al.s z) e bb) dos factos provados e ao abrigo do art.º 10.º, n.º 1 al. a) do RJAT.

 

 

3.1. Questões a decidir

 

São essencialmente as seguintes as questões a decidir:

 

            A) Os rendimentos ou mais-valias (cfr. art.º 10.º, n.º 1, al. a) do CIRS) gerados pela alienação onerosa dos dois imóveis adquiridos gratuitamente pela Requerente Mulher (identificados na al. o) dos factos provados), e por esta alienados em 2016, estão ou não sujeitos a tributação (e, condicionante desta, a questão de qual a data de aquisição desses imóveis pela Requerente Mulher);

            B) Em caso de resposta afirmativa à questão A), qual a quota-parte das MV geradas em 2016 que deverá ter-se por sujeita a tributação;

 

Por fim, haverá que decidir quanto a:

 

            (i) reembolso das quantias pagas e, se a reembolsar, em que medida;

            (ii) juros indemnizatórios.

 

 

Como segue.

 

 

3.1.1. Da sujeição ou não a tributação das mais-valias geradas pela alienação em 2016 dos imóveis adquiridos pela Requerente Mulher gratuitamente

 

E referimos “adquiridos gratuitamente” e não ainda “adquiridos por via sucessória”, pois entendemos dever começar por colocar aqui uma outra questão, a saber:

Em 2014 houve, por via de doação e, portanto, gratuitamente, (i) uma transmissão de bens, ou houve, diferentemente, (ii) uma transmissão de um quinhão hereditário de uma herança ilíquida e indivisa?

Em (i) teremos uma aquisição gratuita de bens determinados, e em (ii) uma aquisição gratuita de uma quota ideal de herança indivisa, herança essa da qual fazem parte bens, bens esses que se encontram por partilhar.

 

Não se nos suscitam dúvidas de que a situação dos autos é a última: a doação ocorrida em 2014 configura a transmissão gratuita não de determinados bens imóveis, mas sim de uma quota ideal de uma herança ainda por partilhar e, por isso, ilíquida e indivisa. Como se passará a demonstrar.

 

Que em 2014, pela referida doação, não estamos perante uma transmissão de bens, imóveis, é bom de ver, desde logo, se atentarmos no próprio conceito de direito de propriedade. Para ser considerada, a doação em causa nos autos, causa de transmissão de bens imóveis, teríamos que identificar, nesse acto, a transmissão do conteúdo próprio do direito de propriedade. Ora, diz-nos o art.º 1305.º do Código Civil (doravante “CC”)[2], que aí se integra o gozo de modo pleno e exclusivo - pelo proprietário - dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem.

 

Estaria a mãe da Requerente Mulher, por ser titular de um quinhão da herança correspondente a 1/3 da mesma (e na qual ocupava uma posição em tudo idêntica à de cada um dos demais dois herdeiros) no gozo de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição de “coisas que lhe pertencem”, e que seriam, no caso, os bens imóveis que a Requerente Mulher viria mais tarde, em 2016, a vender? Claramente que não, como melhor veremos infra. Pelo que também os não poderia ter então, pela doação do quinhão hereditário, transmitido.

 

Ou seja, logo por aqui fica afastada a possibilidade de aderência ao entendimento, seguido pela Requerida, de que os imóveis em causa foram transmitidos pela doação em apreço.

 

Note-se que embora o art.º 10.º, n.º 1, al. a) do CIRS[3] se refira genericamente a “direitos reais sobre bens imóveis” estamos, no nosso caso, claramente perante transmissão - onerosa, em 2016 - do direito de propriedade sobre bens imóveis. Se dúvidas houvesse, v. o teor da respectiva Escritura Pública de compra e venda das fracções autónomas em causa, outorgada em Fevereiro de 2016, junta aos autos pelos Requerentes como doc. nº 2, onde se lê, entre o mais: “(…) que, pelo preço de (…) vende (…) livre de quaisquer ónus ou encargos, as seguintes frações autónomas (…)”. E veja-se, ainda, o art.º 874.º do CC, nos termos do qual “Compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa (...)” e o art.º 879.º do mesmo Diploma legal, onde se estipula que a compra e venda tem como efeitos essenciais “a) A transmissão da propriedade da coisa (...)”.

 

É a transmissão desse direito de propriedade que gera, no caso, mais valias (em 2016). Pelo que é esse mesmo direito de propriedade ou, melhor, o momento em que esse mesmo direito de propriedade ingressou na esfera jurídica da Requerente Mulher, o ponto essencial a apreciar nos autos, e do qual decorrerá o sentido da nossa Decisão.

 

Isto porque, para que os ganhos decorrentes da transmissão onerosa de tal direito de propriedade, por compra e venda em 2016, fiquem sujeitos a IRS, esse mesmo direito de propriedade terá que ter ingressado na esfera jurídica da proprietária e vendedora dos respectivos bens (a Requerente Mulher) em momento posterior à entrada em vigor do CIRS (que ocorreu a 01 de Janeiro de 1989)[4].

O que, no nosso caso, a ter ocorrido só o poderia eventualmente ter sido, mesmo que apenas parcialmente (no sentido de apenas quanto a uma quota parte desses bens), aquando da doação em 2014. Como entende a Requerida.

 

Vejamos então mais uma vez a questão. Agora pelo prisma da própria natureza e conceito de quinhão hereditário.

 

Conceito e natureza de quinhão hereditário

 

Estamos, em 2014, perante uma doação de quinhão hereditário. Se atentarmos, antes de mais, na Escritura Pública junta aos autos como doc. n.º 5 (doravante “Escritura Pública” ou “Escritura”), já por nós transcrita na parte relevante (v. supra alíneas j) e l) dos factos provados), apreendemos com relativa facilidade o conteúdo transmitido pela doação em causa. Como ali se pode ler, no que ao primeiro acto outorgado se refere: “PELA PRIMEIRA OUTORGANTE FOI DITO: I - Que, pela presente escritura (…)  cede, gratuitamente e em partes iguais, (…) e à terceira outorgante mulher [a Requerente Mulher], o quinhão hereditário que lhe pertence na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seu marido (…). (…) Que o referido quinhão hereditário corresponde a 1/3 da herança, atribuindo-lhe, para efeitos da presente doação, o valor global de (...). PELOS SEGUNDO (...) e TERCEIRA OUTORGANTE mulher FOI DITO: Que aceitam a presente doação, nos termos exarados.” (sublinhados nossos)

 

Trata-se, pois, de transmissão de algo que necessariamente integrava então a esfera jurídica da doadora, mãe da Requerente Mulher. E que não poderia senão ser um direito, que era até então seu, a quinhoar na herança do respectivo falecido marido. Precisamente o dito quinhão hereditário, que correspondia a 1/3 da herança, à qual havia sido chamada ex lege juntamente com os demais herdeiros legítimos, os dois filhos, todos da mesma classe sucessória e que assim sucederam por cabeça ou em partes iguais (cfr. art.º 2136.º do CC).

 

Refira-se ainda que é com a abertura da sucessão, no momento da morte do seu autor, ou seja, no caso dos autos, em 11 de Dezembro de 1988, que se dá o chamamento dos sucessíveis à titularidade das relações jurídicas do falecido, cfr. art.ºs 2031.º e 2032.º, n.º 1 do CC. E os efeitos da aceitação retroagem ao momento da abertura da sucessão, cfr. art.º 2050.º, n.º 2 do CC.

 

A doadora, que aceitou a herança tal como os demais dois herdeiros, estava pois investida na titularidade de um quinhão hereditário desde 11 de Dezembro de 1988. E foi esse quinhão hereditário que foi objecto de doação em 2014.

 

Vimos já que um quinhão hereditário não se traduz num direito de propriedade sobre bens determinados. Mas aprofundemos ainda um pouco mais a natureza e conceito do mesmo.

 

Sob a epígrafe “Espécie de sucessores”, define-se no art.º 2030.º do CC herdeiro como segue: “2. Diz-se herdeiro o que sucede na totalidade ou numa quota do património do falecido e legatário o que sucede em bens ou valores determinados.(sublinhados e negrito nossos)

 

Querendo o legislador referir, pois, que o herdeiro sucede no património enquanto universalidade. Herdeiro é o sucessor universal. Aquilo que o herdeiro recebe é, sempre, uma universalidade. Seja ela no seu todo, i. e., correspondente à totalidade do património do de cujus, seja ela universalidade numa sua quota, numa quota do património do de cujus. Veja-se, neste sentido, Inocêncio Galvão Telles[5], que defende que o legislador podia ter sido mais feliz designadamente se tivesse seguido a versão do artigo 5.º do projecto, em que se referia expressamente que “a sucessão pode ser universal ou singular” e que “a sucessão universal chama-se herança e versa sobre a universalidade ou uma quota dos bens do falecido (…).” 

 

Com clareza escreve o mesmo Autor[6] assim: “(...) em resumo (...) herdeiro é o que sucede no “universum ius” do falecido ou numa quota desse “universum ius”, entendendo por este o património como unidade jurídica. Num caso ou noutro há sucessão universal. A diferença está em que no primeiro caso a universalidade fica a pertencer a um só herdeiro, ao passo que no segundo fica a pertencer a dois ou mais, e então cada um tem uma quota.”

 

E por aqui já se vê como surge, no âmbito da sucessão universal, o conceito de quinhão hereditário. Os herdeiros sucedem no património considerado no seu todo, uno, património como universalidade. Sendo vários herdeiros, sucedem numa quota parte dele. Mas, sempre, quota parte de uma universalidade.

 

Assim, e novamente nas palavras de Inocêncio Galvão Telles a este respeito[7]: “Pode haver um só herdeiro e então recebe sozinho a universalidade. (…) Pode pelo contrário haver dois ou mais herdeiros, e nesta hipótese a universalidade é adquirida por todos. O património torna-se comum a todos eles. Além, a um sucede um, aqui a um sucede uma pluralidade. A existência de uma pluralidade faz surgir a ideia de quota: quota do conjunto abstracto que é o património como “universitas”. A cada herdeiro toca uma parte desse conjunto. (…) A quota exprime uma relação numérica com o conjunto, (…) Se os herdeiros são chamados por lei (…) Divide-se directamente o conjunto em tantas partes quantos os herdeiros e as partes são todas do mesmo valor. Cada quota é proporcional ao número de herdeiros: metade se são dois, um terço se são três, etc. É o que se chama sucessão por cabeças (per capita) (art.º 2136.º). (...)” (sublinhados nossos)

 

Ora, só é possível a um herdeiro transmitir a sua quota parte na universalidade -  universalidade que é o património uno e indiviso do de cujus, conjunto abstracto - enquanto se permanecer em tal indivisão. Ou seja, a alienação do quinhão hereditário só é possível até à partilha da herança. Uma vez partilhada a herança (e sendo a partilha o acto pelo qual são adjudicados bens concretos da herança a cada herdeiro para preenchimento do respectivo quinhão) por definição deixa de existir quinhão hereditário. Desde logo porque, por efeito da partilha, os bens que tiverem vindo preencher o respectivo quinhão hereditário confundem-se, então, com o património pessoal do herdeiro.

 

Como escreve R. Capelo de Sousa[8], “(...) sendo vários os herdeiros e antes de se efectuar a partilha, cada um deles, embora não tenha um direito real sobre os bens em concreto da herança, nem sequer sobre uma quota parte em cada um deles, detém todavia um direito de quinhão hereditário, ou seja, à respectiva quota-parte ideal da herança global em si mesma. Direitos estes de que tais herdeiros têm a propriedade, (…).” (sublinhados e negritos nossos)

 

Ou seja, aquilo que neste âmbito (v. art.º 2124.º do CC) o herdeiro transmite é, e só isso poderá ser, o direito - que é seu, que integra a sua esfera jurídica - à herança ou, na expressão de R. Capelo de Sousa “direito de quinhão hereditário” (cfr. supra). Que traduz, afinal, uma quota-parte ideal da herança como um todo. E pode fazê-lo seja onerosa, seja, como no caso dos autos, gratuitamente.

 

Novamente nas palavras de R. Capelo de Sousa[9], “Pela alienação de quinhão hereditário indiviso transfere-se para o adquirente o direito de quinhão em causa, que abrange, v. g., direitos de gestão (art.º 2091.º do CC), direitos à recepção de rendimentos (art.º 2092.º do CC) e direitos de exigir a partilha e de composição da quota (art.º 2101.º do CC).(...)” (sublinhados nossos)

 

Pela doação ocorrida em 2014, a favor da Requerente Mulher, transmitiu-se pois um direito a quinhoar na herança aberta por morte de seu falecido pai, direito esse que integrava até então a esfera jurídica da doadora, sua mãe. Pela doação do seu quinhão hereditário a mãe da Requerente Mulher abdicou, afinal, a favor dos dois filhos e em partes iguais, do seu direito a uma quota parte ideal na herança aberta por óbito de seu falecido marido.

 

Foi este, e tão só este, o direito adquirido pela Requerente Mulher em 2014.

 

Neste sentido veja-se, de resto, a demais Doutrina em matéria de Direito Sucessório, que é essencialmente uniforme a este respeito, e, ainda, a Jurisprudência constante nestas mesmas matérias, a que faremos alguma referência[10].

 

Veja-se, entre outros, o Acórdão do STA de 28.01.2015, proferido no processo n.º 0450/14, onde se lê, entre o mais: “(...) Embora cada um dos herdeiros tenha desde a abertura da sucessão direito a uma parte ideal da herança, é apenas com a partilha que esse direito se concretiza tornando certos e determinados os bens que couberem ao herdeiro. E só após a partilha é que o herdeiro se torna pleno titular dos direitos que por ela lhe couberem. E, ainda que a herança seja constituída por bens imóveis, só com a partilha passa a ser titular do direito de propriedade sobre eles e nessa qualidade a poder exercer os direitos correspondentes. (...)"

 

Estamos, pois, no caso, sempre e apenas, em sede de aquisição de bens - pela Requerente Mulher - por via sucessória. E não perante transmissão gratuita de parte deles por doação.

 

Assim sendo e aqui chegados, cabe perguntar como se processa uma aquisição de bens por via sucessória. Com vista a esclarecermos qual o momento em que os imóveis são, no caso, adquiridos pela Requerente Mulher.

 

 

Aquisição de bens por via sucessória

 

O direito de propriedade adquire-se, entre outras formas, pela sucessão por morte (v. art.º  1316.º do CC), sendo que o momento da respectiva aquisição é, nesse caso, o da abertura da sucessão (v. 1317.º, al. b) do CC).

 

A abertura da sucessão coincide com o momento da morte do de cujus (cfr. art.º 2031.º do CC), como vimos. E é por força da partilha da herança que cada um dos herdeiros passa a ser considerado desde esse mesmo momento, da morte e abertura da herança, como o sucessor único dos bens que lhe vierem então (aquando da partilha) a ser atribuídos, cfr. art.º 2119.º do CC.

 

Quanto ao que isto mesmo significa, escrevem Pires de Lima e Antunes Varela[11] como segue: “A ideia de que os herdeiros que participam na partilha são titulares dos bens desde o momento da morte do autor da herança significa que os outros não são titulares desses bens ou direitos em nenhum momento do fenómeno sucessório, salvo pelo que respeita aos frutos (…).”

 

A mãe da Requerente Mulher não foi pois, como vimos já, titular do direito de propriedade dos imóveis só depois adjudicados, pela partilha, à sua filha e aqui Requerente Mulher.

E voltando àqueles insignes Autores, continuam os mesmos assim: “Todavia, ter a partilha eficácia retroactiva é uma coisa – que basta, aliás, para condenar a ideia (de raiz romanista) de que é só com a partilha que nasce o direito do herdeiro sobre a coisa hereditária./ Outra coisa, muito diferente, é a partilha possuir um efeito meramente declarativo, ou recognitivo, como se o direito exclusivo do herdeiro sobre coisa certa e determinada da herança existisse desde o momento da morte do de cujus. E não é assim./ Duas coisas são inegáveis a propósito da partilha. Por um lado, o direito do herdeiro sobre a herança existe desde o momento da abertura dela – não nasce apenas no momento da partilha. Por outro lado, se não é um negócio atributivo ou constitutivo, também é certo que a partilha não constitui um puro acto declarativo ou recognitivo, pois se trata de um verdadeiro acto modificativo ou de conversão. A partilha converte os vários direitos a uma simples quota (indeterminada) de um todo (determinado) em direito exclusivo a uma parcela determinada do todo.” (sublinhados nossos)

 

Não há, não pode haver, uma transmissão (seja onerosa, seja gratuita) de bens concretos e determinados integrantes da herança enquanto esta permanecer indivisa. Pela própria natureza das coisas e na sequência do que vimos de apreciar.

 

Assente que ficou já que pela doação em 2014 não ocorreu transmissão do direito de propriedade sobre os bens imóveis de cuja alienação em 2016 resultaram as mais valias, e aferindo quando foram os mesmos afinal adquiridos pela Requerente Mulher, não nos restam dúvidas.

 

Voltamos ao art. 2119.º do CC que sob a epígrafe “Retroactividade da partilha” estipula que feita a partilha “cada um dos herdeiros é considerado, desde a abertura da herança, sucessor único dos bens que lhe foram atribuídos (…).” E a abertura da sucessão, vimos já também, dá-se no momento da morte do seu autor, cfr. art.º 2031.º do CC.

 

Só depois de feita a partilha – mas desde a abertura da herança - a Requerente Mulher passou a ser considerada a sucessora única dos imóveis em causa[12].

 

Os imóveis em causa foram pois integralmente adquiridos pela Requerente Mulher, integrando-se na sua esfera jurídica por via sucessória, a 11 de Dezembro de 1988. Por força da partilha da herança.

 

Com entendimento no mesmo sentido da apreciação que vimos de fazer, veja-se, entre outros, o Acórdão do STJ de 30.01.2013, proferido no proc.º 1100/11.7TBABT, no qual se  lê: “I – Tanto a Jurisprudência, como a mais balizada doutrina da especialidade, apontam decisivamente no sentido de que só se pode dividir os bens da herança de que se seja proprietário, ou seja, que tenham sido atribuídos aos herdeiros em partilha previamente realizada. II – A ratio de tal solução é muito simples: é que, até à partilha, os coherdeiros de um património comum, adquirido por sucessão “mortis causa”, não são donos dos bens que integram o acervo hereditário, nem mesmo em regime de compropriedade, pois apenas são titulares de um direito sobre a herança (acervo de direitos e obrigações) que incide sobre uma quota ou fracção da mesma para cada herdeiro, mas sem que se conheça quais os bens concretos que preenchem tal quota. III- É pela partilha(...) que serão adjudicados os bens dessa universalidade que é herança e que preencherão aquelas quotas. Por isso, assim se ponderou no aresto deste Supremo Tribunal, de 04.02.1997 supra citado: “A compropriedade pressupõe um direito de propriedade comum sobre uma coisa ou bem concreto e individualizado, ao invés do que sucede na contitularidade do direito à herança que recai sobre uma universalidade de bens, ignorando-se sobre qual ou quais deles o direito hereditário se concretizará”. (...)”

 

Quadro normativo – norma de incidência

 

Vimos já supra[13] que da determinação da data de aquisição dos imóveis em causa pela Requerente Mulher depende a sujeição ou não a tributação das mais valias em sede de IRS.

 

Vimos já que tal aquisição não ocorreu, sequer parcialmente, em 2014. Ocorreu sim em Dezembro de 1988.

Vimos também que a norma de incidência do art.º 10.º, n.º 1 al. a) do CIRS não suscita dúvidas de interpretação quanto ao respectivo sentido.[14]

 

Nos termos conjugados dos art.ºs 9.º, n.º 1 al. a) e 10.º, n.º 1 al. a), ambos do CIRS, os ganhos gerados com a venda dos imóveis pela Requerente Mulher em 2016 constituem mais valias tributáveis em sede de IRS, Categoria G, pois que resultam de alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis e não se enquadram em qualquer outra categoria de rendimentos.

 

Assim, as mais valias no caso estariam, à partida, sujeitas a tributação por enquadradas na norma de incidência do referido art.º 10.º do CIRS.[15]

 

Contudo, entendeu o legislador, por via do art.º 5.º do DL n.º 442-A/88 (DL que, vimos já, aprovou o CIRS), estabelecer um regime transitório de tributação na Categoria G, que se mantém em vigor, e nos termos do qual os ganhos que não estavam, antes da entrada em vigor do CIRS, sujeitos a tributação de mais valias (pelo Código do Imposto de Mais Valias, doravante “CIMV”, v. Decreto-Lei n.º 46 673, de 9 de Junho de 1965) só passam a ficar sujeitos a IRS caso a aquisição dos bens ou direitos a que respeitam tenha ocorrido já na vigência do CIRS.

 

Ora, no âmbito do CIMV, em matéria de ganhos com a alienação de bens imóveis apenas os ganhos obtidos com a alienação de terrenos para construção se encontravam sujeitos[16].

 

Não sendo este o caso nos autos, em que estamos perante fracções autónomas de prédio urbano, forçoso é concluir que - sendo a aquisição dos imóveis, a 11 de Dezembro de 1988, anterior à entrada em vigor do CIRS, em 1 de Janeiro de 1989 – as mais valias em causa nos autos não se encontram sujeitas a tributação, por beneficiarem do referido regime transitório.

 

Com interesse, veja-se a este respeito o recente Acórdão do STA de 07.03.2018, proferido no proc.º n.º 0971/17, onde se lê, entre o mais: “(...) II- A impugnante adquiriu o bem que vendeu no momento em que ocorreu o decesso da pessoa de quem o herdou, sem que tal sofra qualquer alteração por a partilha da herança ter decorrido em momento posterior (…). III – O momento da aquisição do imóvel é um e único, o momento da morte do autor da sucessão, sendo a partilha apenas uma forma de distribuir os bens pelos herdeiros em conformidade com a lei (…) em preenchimento dos respectivos quinhões hereditários, sempre, em todas as situações, com efeitos retroagidos àquele momento inicial da sucessão hereditária.”

 

 

 

3.1.2.   Qual a quota-parte das MV geradas em 2016 que deverá ter-se por sujeita a            tributação

 

Respondida que está a questão que antecede em sentido negativo, fica prejudicada esta segunda questão.

 

 

4. Reembolso das quantias pagas e juros indemnizatórios

 

A liquidação em crise encontra-se, pois, ferida de ilegalidade, por erro na aplicação do Direito. Deve em consequência ser anulada, o que pela presente se decide, e as respectivas quantias, indevidamente pagas, restituídas aos Requerentes.

 

Peticionam ainda os Requerentes juros indemnizatórios. Vejamos se, neste particular, lhes assiste também razão.

 

Estabelece o art.º 24.º, n.º 5 do RJAT a obrigação do pagamento de juros, qualquer que seja a respectiva natureza, nos termos previstos na LGT e no CPPT.

 

Conforme disposto no n.º 1 art.º 43.º da LGT, a obrigação de pagamento de juros indemnizatórios tem lugar quando se determine ter havido erro, imputável aos serviços, do qual resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

 

Vimos já que houve erro, de direito, donde resultou pagamento indevido. Resta aferir se tal erro é imputável aos serviços.

 

O n.º 2 do mesmo artigo estipula que se considera também haver erro imputável aos serviços “nos casos em que, apesar de a liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.

 

No caso dos autos, a liquidação em crise foi efectuada pela AT com base na Declaração de substituição apresentada pelos Requerentes. Porém, estes apresentaram a Declaração de substituição na sequência de a Requerida ter aberto procedimento por divergências e, nesse contexto, ter aconselhado os Requerentes a apresentar a Declaração de substituição em conformidade com o entendimento por si, Requerida, perfilhado para a situação. Factos alegados pelos Requerentes e não colocados em crise pela Requerida. A própria Requerida refere, aliás, que “Questionada a Direcção de Serviços de IRS, aquando da interposição do presente PPA, verificou-se ter havido um lapso nos valores indicados na declaração de substituição, reconhecendo-se, em parte, razão aos Requerentes.”[17]

 

Da letra da lei, em particular do n.º 2 do art.º 43.º da LGT, não decorre directamente a obrigação de pagamento de juros indemnizatórios no caso dos autos. Pois que, não obstante os Requerentes terem seguido orientações da Requerida, as mesmas foram-lhes prestadas informalmente, não constando de orientações genéricas publicadas. Contudo, e não devendo o intérprete cingir-se na interpretação à letra da lei, cfr. art.º 9.º do CC, é nosso entendimento que numa situação como a dos autos o erro de direito é, ainda assim, imputável aos serviços.

 

Com efeito, os Requerentes apresentaram a Declaração de substituição por aconselhamento da Requerida e aderindo ao entendimento manifestado pela mesma no procedimento de divergências. Tendo em conta os factores a que o n.º 1 do art.º 9.º do CC manda atender na interpretação da lei, e considerando nós que não pode deixar de entender-se que há no n.º 2 do art.º 43.º um mínimo de correspondência verbal a permitir ali enquadrar uma situação como a do presente processo, entendemos que são devidos juros indemnizatórios pois que não pode deixar de entender-se ter havido erro dos serviços. Erro que é imputável aos serviços. E para efeitos do que, como é sabido, se não requer a verificação de culpa[18].

 

Neste sentido veja-se como escreve Jorge Lopes de Sousa[19]: “Fora dos casos em que é o contribuinte a determinar o montante do imposto a pagar, a liquidação é feita pelos serviços e, por isso, os erros de direito, consubstanciados na aplicação da lei a determinados factos, serão imputáveis à Administração tributária. Porém, mesmo nestes casos, poderá suceder que a errada aplicação da lei tenha por base uma errada informação do sujeito passivo e, nesses casos, não poderá imputar-se à Administração Tributária a responsabilidade pelo erro que afecte a liquidação.

(…) Aliás, à face destes deveres [deveres de informação atribuídos por lei à AT de informar os sujeitos passivos sobre a interpretação das leis tributárias e sobre a forma de lhes dar cumprimento], não será só nos casos de actuação de acordo com orientações genéricas, mas também em todos os outros em que o sujeito passivo actue de acordo com instruções da Administração Tributária e de boa fé que deverá entender-se que o erro é imputável aos serviços. Na verdade, se o erro que afecta a declaração ou a liquidação for derivado de instruções incorrectas da Administração Tributária, ele não poderá deixar de considerar-se imputável a esta, pois, naturalmente, o que a lei lhe impõe é a prestação de informações correctas e, ao não as prestar, haverá uma actuação da sua parte de incumprimento dos seus deveres, que apenas a ela pode ser imputado.

Trata-se de uma situação substancialmente idêntica, a nível de imputabilidade do erro, à das instruções incorrectas constantes de orientações genéricas, (…) o estabelecimento daqueles deveres de assistência e de informação para a Administração Tributária não poderá deixar de ter como corolário a atribuição a esta da imputabilidade do erro, se o contribuinte segue as instruções recebidas. (…) Quando não existirem tais instruções [orientações genéricas], o direito do contribuinte a indemnização pelo pagamento indevido da prestação tributária de dependerá da prova da existência das instruções incorrectas que lhe tenham sido dadas pela Administração Tributária. Mas, o que não poderá questionar-se, por força do preceituado no referido art.º 22.º da CRP, será o direito dos contribuintes a indemnização por actuações da Administração Tributária que os lesem e sejam levadas a cabo com violação dos deveres que a lei lhe impõe.(...)”[20]

5. Decisão

Termos em que decide este Tribunal Arbitral julgar procedente o PPA, e assim:

a)  Anular a liquidação de IRS dos Requerentes referente ao ano de 2016;

b)  Condenar a Requerida na restituição aos Requerentes do valor indevidamente pago, de € 24.062,05;

c)  Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios contados desde a data do pagamento indevido (29.08.2017) até emissão da respectiva nota de crédito (cfr. art.º 61.º, n.º 5 do CPPT e art.º 43.º da LGT, sendo a taxa cfr. art.ºs 43.º, n.º 4 e 35.º, n.º 10 da LGT e art.º 559.º, n.º 1 do CC).

 

 

6. Valor do processo

Nos termos conjugados do disposto nos art.ºs 3.º, n.º 2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, 97.º-A, n.º 1, al. a) do CPPT, e 306.º, n.º 2 do CPC, fixa-se o valor do processo em € 24.062,05.

 

 

7. Custas

Conforme disposto no art.º 22.º, n.º 4 do RJAT, no art.º 4.º, n.º 4 do Regulamento já referido e na Tabela I a este anexa, fixa-se o montante das custas em € 1.530,00, a cargo da Requerida.

 

 

Lisboa, 25 de Maio de 2018

 

O Árbitro

 

 

(Sofia Ricardo Borges)

 

 



[1]             Estes últimos Diplomas legais aplicáveis ao nosso processo ex vi art.º 29.º, n.º 1 do RJAT (e assim sempre que para eles se remeter na presente Decisão).

[2]             V. art.º 11.º, n.º 2 da LGT, aplicável ex vi art.º 29.º, n.º 1, al. a) do RJAT, nos termos do qual “Sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei.” O que (outro sentido decorrer da lei), manifestamente, não é o caso. E, acrescente-se, nem se suscitam dúvidas quanto ao sentido da norma do art.º 10.º, n.º 1. al a) do CIRS, pelo que fica desde logo afastada a aplicabilidade da estatuição contida no art.º 11.º, n.º 3 da LGT.

[3]             Que é a norma de incidência em causa nos autos, e à qual voltaremos adiante.

[4]             Cfr. art.º 5.º do DL 442.A/88, a que mais adiante voltaremos.

[5]             Telles, Inocêncio Galvão, “Direito das Sucessões”, Noções Fundamentais, 6.ª Ed., Coimbra Editora, 1991, p. 189.

[6]             idem.

[7]             ibidem, p. 187.

[8]             Sousa, Rabindranath Capelo de, “Lições de Direito das Sucessões”, Vol. II, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 1997, pp. 89 e ss.

[9]             ibidem, p. 98.

[10]           Na Jurisprudência e quanto a este particular da transmissão de quinhão hereditário veja-se, com interesse, entre outros, o Acórdão do STJ de 14.04.2013, no proc.º 2044/08.5TBPVZ, no qual a propósito de um contrato-promessa de compra e venda de quinhão hereditário e decidindo pela respectiva validade se escreve: “(...) É válido o contrato-promessa (…) pois que esta não está a renunciar à sucessão de pessoa viva, nem a regular a sua própria sucessão, nem a dispor da sucessão de terceiro ainda não aberta; está a dispor, isso sim, do seu próprio direito à herança de outra pessoa.

[11]           Lima, Pires de e Varela, Antunes, Código Civil Anotado, Vol. VI, Coimbra Editora, 1998, pp. 194 e ss.

[12]           Neste sentido, v. Lima, Pires de e Varela, Antunes, ibidem, p. 196, em anotação ao art.º 2120.º do CC.

[13]           Pág. 10.

[14]           V. Nossa Nota n.º 2, supra pág. 9.

[15]           A este propósito pode ler-se no Preâmbulo do CIRS, ponto 12.: “Alarga-se a tributação a ganhos não sujeitos ao actual imposto de mais-valias, tais como os gerados pela transmissão onerosa de qualquer forma de propriedade imóvel.”

[16]           Sem considerarmos aqui a situação dos imóveis afectos ao exercício de actividades profissionais.

[17]           Ponto 10. da Resposta.

[18]           Em relação à questão da culpa, veja-se Sousa, Jorge Lopes de, “Código de Procedimento e de Processo Tributário”, Áreas Ed., 6.ª Edição, 2011, Vol. 1, pp. 537 e ss.

[19]           ibidem, pp. 536-537.

[20]           Veja-se também o Acórdão do STA de 10.07.2002, proc.º 026688, em que foi relator Jorge Lopes de Sousa e onde se lê: “(...) V - Para efeitos da obrigação de pagamento de juros indemnizatórios (…), havendo um erro de direito na liquidação e sendo ela efectuada pelos serviços, é à administração que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte (...)”.