Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 774/2019-T
Data da decisão: 2020-12-22  IRC  
Valor do pedido: € 395.635,75
Tema: Rendimentos de capitais pagos a quem não se identifique como beneficiário efetiva. Retenção na fonte. Artº. 87º. nº. 4 alínea a), do CIRC. Pagamento por conta ou retenção definitiva. Artº. 94º., nº. 3 do CIRC.
Versão em PDF

SUMÁRIO:

 

I. Os rendimentos de capitais, pagos ou colocados à disposição em contas abertas em nome de um ou mais titulares mas por conta de terceiros não identificados estão sujeitos a retenção na fonte à taxa de 35%, nos termos da alínea h), do nº. 4 do artº. 87º. do CIRC.

II. Assim não será no caso do beneficiário efetivo se identificar junto da entidade custodiante, antes desta proceder ao pagamento do rendimento e à retenção na fonte do imposto, que, neste caso, será efetuada, de acordo com a regra geral, à taxa de 25%.

III. Quando o beneficiário efetivo dos rendimentos não se identifica junto da entidade pagadora dos mesmos, a retenção na fonte de imposto, que é feita à taxa de 35%, não tem a natureza de pagamento por conta do imposto devido a final, de acordo com a exceção prevista na alínea c), do nº. 3 do artº. 94º. do CIRC.

 

Acordam os Árbitros Carlos Alberto Fernandes Cadilha designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) como Árbitro Presidente, Rui Duarte Morais, designado pela Requerente e Jorge Carita designado pela Requerida, para formarem Tribunal Arbitral na seguinte

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

1.            Em 18 de novembro de 2019, A..., S.A., NIPC..., com sede na ..., n.º ...-..., ..., no Porto, doravante designada por “Requerente”, solicitou a constituição de tribunal arbitral e procedeu a um pedido de pronúncia arbitral, nos termos das alíneas a) do n.º 1 do artigo 2.º e alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), com vista:

a)            à declaração de ilegalidade do ato de liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) relativo ao exercício de 2014, do ato de liquidação de juros compensatórios n.º 2018... e de acerto de contas n.º 2018..., no montante total de € 395.635,75 (trezentos e noventa e cinco mil, seiscentos e trinta e cinco euros e setenta e cinco cêntimos), e, consequentemente à sua respetiva anulação,

b)           bem como destinada a obter: 

i)             a revogação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2019... que correu termos na Direção de Finanças do Porto;

ii)            a declaração do direito da Requerente ao pagamento da indemnização prevista nos artigos 53.º da LGT e 171.º do CPPT, «em face da prestação indevida de garantia para suspensão do processo executivo instaurado para cobrança coerciva do montante contestado» e

iii)           a declaração do direito da Requerente, previsto no artigo 43.º da LGT, de «receber juros indemnizatórios devidos pelo pagamento do imposto liquidado e dos juros compensatórios, o que sucedeu no dia 23/09/2019».

2.            A Requerente é representada, no âmbito dos presentes autos, pelos seus mandatários, Dr. B... e Dr. C..., e a Requerida, a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada por AT) é representada pelos juristas, Dr. D... e Dr. E... .

3.            Verificada a regularidade formal do pedido apresentado, a Requerente e Requerida procederam à nomeação de árbitro, nos termos do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 6.º do RJAT. Com efeito, nomeou a Requerente o Professor Doutor Rui Duarte Morais como árbitro, a Requerida nomeou o Dr. Jorge Carita e o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o Conselheiro Carlos Alberto Fernandes Cadilha, para exercer as funções de árbitro-presidente. Os signatários aceitaram o cargo no prazo legalmente estipulado.

4.            O presente Tribunal foi constituído no dia 2 de março de 2020, na sede do CAAD, sita na Av. Duque de Loulé, n.º 72 A, em Lisboa, conforme comunicação do Tribunal Arbitral Coletivo que se encontra junta aos presentes autos.

5.            A Requerida, depois de notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta, no dia 22 de junho de 2020.

6.            O Tribunal, por despacho de 1 de julho de 2020, e na sequência das questões prévias suscitadas pela Requerida, na sua douta Resposta, por um lado, convidou a Requerente para apresentar procuração ou substabelecimento que permitisse a sua representação por ambos os advogados que subscreveram o pedido de pronúncia arbitral, e por outro, determina a desnecessidade de se proceder à tradução, requerida pela Autoridade Tributária, dos documentos em língua estrangeira juntos com o pedido, bem como a sua legalização, nos termos do artigo 440.º do CPC, por se tratar de documentos em número reduzido, pela sua natureza e pelo facto de se encontrarem transcritos em língua inglesa, considerando o tribunal que não se justifica o cumprimento, no caso, dessas formalidades, e por último, notifica a Requerente, sem embargo, da oposição da Requerida, para dizer, no prazo de cinco dias, se mantém interesse na prova testemunhal, dada a sua aparente desnecessidade, e, em caso afirmativo, indicar os pontos de facto sobre que deve incidir.

7.            No dia 13 de julho de 2020, a Requerente, em resposta ao despacho identificado em 6 supra, por um lado, apresenta Procuração passada a favor de ambos os mandatários subscritores do pedido de pronúncia arbitral, e por outro, vem indicar a matéria de facto para a qual indicou a prova testemunhal.

8.            O Tribunal, através de despacho de 4 de setembro de 2020, procedeu à prorrogação do prazo para a decisão dos presentes autos, pelo período de 2 meses, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 21.º do RJAT, face à suspensão dos prazos determinados pela Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, no quadro da situação epidemiológica.

9.            No dia 8 de setembro de 2020, o Tribunal, por despacho, designou o dia 6 de outubro de 2020 para a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, e para a produção de prova testemunhal indicada pela Requerente.

10.          No dia 5 de outubro de 2020, a Requerente, através de requerimento dirigido aos autos, solicitou o adiamento da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, por impossibilidade de comparência, pedido a que o Tribunal, por despacho de 7 de outubro de 2020, anuiu e aceitou, adiando, em consequência a referida reunião.

11.          No referido despacho, o Tribunal notificou, ainda, as partes da prorrogação do prazo para proferir decisão, pelo período de dois meses, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 21.º do RJAT e designou o dia 11 de novembro de 2020 para a realização da reunião a que se refere ao artigo 18.º do RJAT, também destinada à produção de prova testemunhal.

12.          No dia 11 de novembro de 2020, realizou-se a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, tendo a mesma tido lugar com a presença, nas instalações do CAAD do árbitro Dr. Jorge Carita, e por via Cisco Webex Meeting, dos árbitros Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha e Professor Doutor Rui Duarte Morais, bem como dos representantes da Requerente e da Requerida.

13.          Na supramencionada reunião, o Tribunal notificou a Requerente e Requerida para, por esta ordem e de modo sucessivo, apresentarem alegações escritas no prazo de 10 dias, e deliberou que a decisão final seria proferida até ao fim do prazo fixado no artigo 21.º, n.º 2 do RJAT.

14.          No dia 24 de novembro de 2020, a Requerente apresentou alegações escritas. A Requerida não contra-alegou.

 

II. A Requerente sustenta o seu pedido, em síntese, no seguinte:

 

15.          A Requerente sustenta o seu pedido de declaração de ilegalidade do ato de liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) relativo ao exercício de 2014, do ato de liquidação de juros compensatórios n.º 2018 ... e de acerto de contas n.º 2018 ..., no montante total de € 395.635,75 (trezentos e noventa e cinco mil, seiscentos e trinta e cinco euros e setenta e cinco cêntimos), e requer a sua respetiva anulação, bem como a revogação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2019... que correu termos na Direção de Finanças do Porto, invocando o vício de violação do disposto na alínea h) do n.º 4 do artigo 87.º e no n.º 3 do artigo 94.º, ambos, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC).

16.          Defende a Requerente que, ao contrário do que é sustentado pela AT, designadamente que «este regime deve ser interpretado no sentido de que, se a comprovação da identidade do beneficiário dos dividendos não estiver feita no momento do pagamento ou colocação à disposição dos mesmos, então tem de se aplicar inevitavelmente a retenção na fonte a título definitivo e à taxa de 35%,» «(…) essa comprovação pode ser feita em momento posterior, e que nesse caso se aplica o regime regra-retenção na fonte à taxa de 25% e por conta do imposto retido a final.».

 

17.          Refere que «[n]em o artigo 87.º nem o artigo 94.º do Código do IRC prevêem em que momento deve ser feita a identificação do beneficiário efectivo.» Pois, «se o beneficiário tivesse de estar obrigatoriamente identificado no momento do pagamento ou colocação à disposição dos dividendos, sem possibilidade de identificação posterior, então não teria qualquer lógica a previsão expressa da excepção («excepto quando seja identificado o beneficiário efetivo, termos em que se aplicam as regras gerais»).»

18.          Na verdade, considera a Requerente que «[n]ão poderia ser de outra maneira: esta é a única solução que se admite, à luz dos princípios fundamentais que enformam o nosso sistema jurídico-tributário-designadamente, o princípio da tributação pelo lucro real, o princípio comunitário de circulação de capitais, etc- e, ainda, do princípio da prevalência da substância sobre a forma: apurando-se em determinado momento em que a entidade que sofreu a retenção se encontra identificada enquanto beneficiária efectiva dos rendimentos correspondentes, deixa de legitimar-se a sua tributação à taxa agravada de 35%.»

19.          Aduz, complementarmente, que «se a AT reconhece que a A... foi a beneficiária dos dividendos sujeitos a retenção e, para além disso, reconhece ainda que, aquando do pagamento desses dividendos, houve lugar à dedução do montante de € 349.105,55, que sabe ter recebido do F...– tendo esta instituição, assim como a G..., apresentado os elementos necessários para conduzir à plena e cabal identificação da A...– não se vislumbram quaisquer motivos – excepto motivos absolutamente formais, desligados da verdade dos factos e dos princípios constitucionais acima mencionados [princípio da capacidade contributiva e princípio da igualdade previstos no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa e artigo 4.º da Lei Geral Tributária, princípio da prevalência da substância sobre a forma]– para rejeitar a pretensão da Requerente. Sabendo a AT – pois tem de sabê-lo, tanto mais que acaba até por reconhecê-lo no Relatório de Inspeção Tributária – que os aludidos rendimentos foram auferidos pela A..., entidade residente no território português, impõe-se-lhe aplicar o enquadramento fiscal correspondente em matéria de retenção na fonte, não lhe sendo legítimo impedi-lo por via da utilização de argumentos relativos à falta de assinaturas em documentos electrónicos, à falta (já explicada) de correspondência de valores ou outros argumentos meramente formais, sob pena de a AT agir até – com o devido respeito – em abuso de direito, pois que considera estar comprovado o que é favorável ( a imputação à A... dos rendimentos) mas não o que lhe seria já menos conveniente (a imputação à A... da retenção na fonte, que teria então de ser reembolsada), quando um e outro resultaram dos mesmos documentos e informações ao dispor das autoridades nacionais.»

20.          Peticiona, a final, a anulação do «ato de liquidação adicional de IRC contra o qual foi deduzida a Reclamação Graciosa n.º ...2019..., cujo indeferimento, caso a pronúncia ora requerida resulte na consideração da ilegalidade do acto tributário em causa, deve ser anulado (…) e os consequentes actos de liquidação de juros compensatórios n.º 2018 ... e de acerto de conta n.º 2018...»;

 

III. Na sua Resposta a Requerida, invocou, em síntese, o seguinte:

 

21.          Rebate a Requerida os argumentos do Requerente, nomeadamente quanto aos vícios invocados, impugnando pela improcedência dos mesmos, mencionando, por um lado, que «[p]ara além da interpretação não violar qualquer princípio invocado pela Requerente ou outro, dizemos mesmo que a interpretação dada pela Requerente é violadora daqueles mesmo princípios já que tenta ocultar rendimentos e propriedade de valores mobiliários e quando é descoberta quer o mesmo tratamento que tiveram os contribuintes que sempre declararam tudo e pagaram os impostos que eram legalmente devidos alegando que se assim não for então está a ser violado o princípio da igualdade na vertente da capacidade contributiva e tributação pelo rendimento real.», e por outro que, «(…) a Requerente nunca demonstrou que é a proprietária/beneficiária efectiva dos rendimento que alega e  montante que alega.».

22.          Entende a Requerida que os rendimentos de capitais obtidos pela Requerente estão sujeitos a retenção na fonte à taxa de 35%, nos termos da alínea h), do nº. 4 do artº. 87º. do CIRC.

23.          Só assim não seria se a Requerente, como beneficiária efetiva do rendimento em causa, se tivesse identificado junto da entidade custodiante, antes desta proceder ao pagamento do rendimento e à retenção na fonte do imposto, esta seria efetuada, de acordo com a regra geral, à taxa de 25%.

24.          Assim sendo, quando o beneficiário efetivo dos rendimentos não se identifica junto da entidade pagadora dos mesmos, a retenção na fonte de imposto, que é feita à taxa de 35%, não tem a natureza de pagamento por conta do imposto devido a final, como pretende a Requerente, de acordo com a exceção prevista na alínea c), do nº. 3 do artº. 94º. do CIRC.

25.          Por outro lado, a Autoridade Tributária releva, para fixar a sua posição, algumas incongruências quanto à documentação apresentada pela Requerente, que oscilou ao longo do processo e que, por outro lado, padece de melhor formalismo.

26.          Veja-se, para melhor se compreende a posição da Autoridade Tributária o teor do Despacho de indeferimento da Reclamação graciosa apresentada pela Requerente, pontos 19, 20 e 21 (págs 16 e 17 da Resposta), que transcrevemos:

 

“19. O que acabou de se expor acerca do desconhecimento por parte da instituição depositária da identidade dos clientes do intermediário financeiro, que movimenta contas de gestão de activo para realização de operações relativas a uma pluralidade de investidores, de forma indistinta e não segregada, suscitando questões sobre propriedade dos ativos depositados, justifica que a retenção pela instituição depositária do IRC devido por rendimentos gerados assuma natureza definitiva.

20. Nessas condições, a circunstância de os rendimentos serem pagos ou colocados à disposição de beneficiários não identificados é um elemento constitutivo do facto tributário do imposto de obrigação única, e, portanto, da natureza definitiva que a retenção na fonte assume quando é efectuada, que equivale a um mecanismo de liquidação do imposto. A não identificação do beneficiário efectivo dos rendimentos de capitais pagos ou colocados à disposição em contas globais, como sucedeu no caso em apreço, é elemento constitutivo do facto tributário e determina o nascimento de uma obrigação única de imposto, cumprida por retenção na fonte a título definitivo, de acordo com a al. c) do nº3 do art.º 94º do CIRC, na redacção então em vigor.

21. A natureza de imposto de obrigação única que o IRC devido pelo pagamento ou colocação à disposição desses rendimentos revela, e a retenção a título definitivo por meio da qual é efectuado o seu pagamento justificam-se por razões de controlo e eficiência fiscal, penalizando atividades financeiras “marcadas por uma especial opacidade”, como nota a própria reclamante (cfr. ponto 93º do seu requerimento), em que há grande dificuldade em conhecer com segurança que rendimentos foram obtidos por quais investidores. Como tal, entende-se que, após o momento do pagamento ou colocação à disposição dos rendimentos, portanto da retenção na fonte, fica precludida a possibilidade de identificar o beneficiário efetivo desses DIREÇÃO DE SERVIÇOS DE CONSULTADORIA JURÍDICA E CONTENCIOSO DocBaseV/2020 17 / 37 rendimentos, e de alterara natureza da retenção de definitiva para por conta do imposto devido a final, bem como a natureza da obrigação da obrigação de imposto inerente ao facto tributário de obrigação única para periódico.”

 

27.          Conclui, assim, no sentido de que «a liquidação ora em crise não padece de qualquer erro de interpretação e aplicação das normas legais como pretende fazer crer a Requerente. A AT apenas agiu em conformidade com o legalmente estipulado, em estrito cumprimento com a lei, não existindo qualquer erro que seja imputável aos serviços.», em resposta, assim, também ao pedido de indemnização pela garantia indevidamente prestada e do pagamento os juros indemnizatórios.

 

IV. Em alegações, a Requerente manteve a sua anterior posição. A Requerida não contra-alegou.

 

 V. SANEAMENTO

 

O Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2º e dos artigos 5º e 6º, todos do RJAT.

 

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas, encontram-se regularmente representadas e o processo não enferma de nulidades.

 

VI. MATÉRIA DE FACTO

 

1.            Relativamente à matéria de facto, importa, antes de mais, salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e distinguir a matéria provada da não provada, tudo conforme o artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e o artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

2.            Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 511.º, n.º 1, do anterior CPC, correspondente ao artigo 596.º do atual CPC).

3.            Assim, atendendo às posições assumidas pelas partes nos respetivos articulados (pedido de constituição arbitral e alegações da Requerente e Resposta e alegações da Requerida), à prova documental e ao processo administrativo juntos aos autos, consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

 

a.            Factos dados como provados

 

1.            Com interesse para a decisão, dão-se por provados os seguintes factos:

A.           A Requerente dedica-se à prestação de serviços de consultadoria financeira e de gestão, gestão de ativos financeiros próprios, bem como à promoção e gestão de projetos de investimento. – cfr. facto não impugnado;

B.            No exercício de tal atividade, a Requerente socorre-se, entre outros, dos serviços de H... – cfr. facto não impugnado;

C.            Conforme declaração de 5 de novembro de 2018 da I... LLC, uma sociedade integrante desse grupo, está-lhe confiada a conta da Requerente, com o número 434-00010, , sendo que alguns serviços relativos à administração dos ativos depositados em tal conta são prestados por outra sociedade do grupo, a J..., com sede no Reino Unido.– cfr. Doc. n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral -;

D.           As referidas sociedades prestam à Requerente serviços de prime brokerage, os quais consistem, entre outros, em custódia de ativos, financiamentos de curto prazo, securities, lending, apoio operacional e tecnológico, risk management, consultoria, etc. – cfr. facto não impugnado;

E.            A I... LLC estava autorizada pela Requerente a ceder temporariamente a terceiros ativos sua propriedade, para estes resolverem situações pontuais desfavoráveis de mercado, mas ficando responsável pelos prejuízos causados. – facto não impugnado -

F.            Em 2014, entre os ativos financeiros pertença da Requerente, geridos pelas referidas sociedades do grupo G..., encontrava-se um lote de ações da K..., parte das quais se encontravam depositadas num banco, por estas escolhido, o F... (sucursal em Portugal). – cfr. Doc. n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral e depoimento da testemunha L...- ;

G.           Tais ações encontravam-se depositadas numa Conta de Clientes, titulada pela I... LLC no exercício das referidas funções de broker. cfr. Doc. n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral e depoimento da testemunha L...- ;

H.           Ignorando o banco quem era, em cada momento, o titular de cada um dos ativos depositados. – cfr. facto não impugnado -;

I.             Em maio de 2014, a K... procedeu à distribuição de um dividendo de euros 0,10 (ilíquido) por ação. – facto não impugnado e público -;

J.             Na sequência, a I... LLC creditou, a favor da Requerente, o valor de euros 1.005.225,90. - cfr. Doc. n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral e depoimento da testemunha L...- ;

K.            Valor esse correspondente ao dividendo ilíquido relativo a 10.052.259 ações da K... .

L.            A I... LLC declarou à Requerente, com data de 5 de novembro de 2018, que, deste valor, euros 997.444,40 correspondiam ao montante ilíquido de dividendos recebidos da K... através do F..., montante que havia sido depositado por este banco na referida Conta de Clientes. - cfr. Doc. n.º 12 junto com o pedido de pronúncia arbitral –

M.          E que a diferença entre o montante cobrado através do F... e o creditado havia sido suportada pela própria I... LLC, porquanto, à data do pagamento dos dividendos, 77.815 ações, propriedade da Requerente, haviam sido cedidas, em empréstimos de curto prazo, a outros clientes.

N.           O F... efetuou retenções na fonte, por aplicação da taxa de 35%, relativamente aos montantes brutos correspondentes a dividendos distribuídos pela K... creditados na conta de clientes da I... LLC, EUA, Nova Yorque, com o NIF ... (português), num total de € 349.105,54, tendo debitado tal valor em tal conta. – cfr. Doc. n.º 8 junto com o pedido de pronúncia arbitral -

O.           Por seu lado, a I... LLC, EUA, debitou na conta da Requerente, a título de retenções na fonte, um total de € 351.829,06. - cfr. facto não impugnado -;

P.            Ou seja, na conta de Requerente junto da G... foi também debitado o valor de imposto correspondente aos dividendos relativos às ações da K..., propriedade da Requerente, que haviam sido cedidos temporariamente a terceiros. - cfr. facto não impugnado -;

Q.           Na sua declaração de IRC relativa ao exercício de 2014, a Requerente declarou como retenções na fonte efetuadas pelo F... o referido valor de 351.829,06, considerando tais retenções sujeitas ao regime regra (retenções por conta do imposto devido a final). – cfr. processo administrativo -

R.            Uma vez que, em 2014, a Requerente apresentou prejuízos fiscais, o valor de tais retenções originou o direito a reembolso, que foi realizado pela AT. – cfr. processo administrativo –

S.            Posteriormente, em sede de procedimento inspetivo, foram consultadas, no sistema informático da AT, as declarações do F...– Sucursal em Portugal – adiante F...) em que este discriminou as retenções na fonte por si efetuadas (mod. 30 - rendimentos pagos ou colocados à disposição de não residentes). De tal consulta não resultou a identificação da Requerente como tendo sido destinatária de qualquer pagamento de dividendos, ou que tenha sofrido qualquer retenção na fonte por parte daquele intermediário financeiro. – cfr. processo administrativo –

T.            Em sede de procedimento inspetivo, para justificar a retenção na fonte deduzida, a Requerente exibiu um documento, com data de 2015-03-27, emitido pela J... Limited, segundo o qual esta havia procedido ao pagamento de dividendos da K..., no montante de € 1.005.225,90, sobre a qual incidiu uma retenção na fonte no valor de € 351.829,06, que corresponde a uma taxa de retenção de 35%. – cfr. processo administrativo e Doc. n.º 14 junto com o pedido de pronúncia arbitral –

U.             Posteriormente, a Requerente juntou aos autos do procedimento administrativo uma declaração da I... LLC, segundo a qual tinha sido ela (e não a J... Limited) quem havia efetuado o pagamento dos dividendos em causa. – cfr. processo administrativo e Doc. n.º 15 junto com o pedido de pronúncia arbitral –

V.           No extrato da conta da Requerente junto da G... consta um movimento de diminuição do saldo, no valor de “351.829,06”,  resultante de “Div Wth” com a descrição “K... SGPS, S. A.-RE”. – cfr. processo administrativo –

W.          Na sua contabilidade, a Requerente registou como rendimento financeiro (ilíquido) € 1.005.225,90 e como diminuição patrimonial resultante de retenção na fonte € 351.829,06. – cfr. processo administrativo -

X.            Em 18 de outubro de 2019, o F... emitiu uma declaração segundo a qual havia procedido à entrega de uma nova declaração MOD 30, corrigindo o valor da retenção na fonte, relativa do pagamento de dividendos correspondentes a 9.974, 444 ações da M... SGPS, para 349, 105,55 euros (em lugar dos euros 348.959.95 antes declarados), com as referências NIF ...  e emitente ... – cfr. Doc. n.º 16 junto com o pedido de pronúncia arbitral –

Y.            A Requerente reclamou graciosamente das liquidações que agora impugna, tendo tal reclamação sido expressamente indeferida em 19/08/2019. – cfr. Docs. n.ºs 3 e 4 juntos com o pedido de pronúncia arbitral –

Z.            A Requerente prestou garantia bancária, no valor de € 500.219, 66, emitida pelo N... com data de 01/03/2019, para lograr a suspensão do processo de execução fiscal das quantias correspondentes às liquidações que ora impugna, tendo suportado e continuando a suportar os correspondentes encargos. – cfr. Doc. n.º 17 junto com o pedido de pronúncia arbitral -;

AA.        A I... LLC, EUA, Nova York não identificou junto do banco depositário, quem era o beneficiário efetivo dos rendimentos em causa.

BB.         No dia 23 de setembro de 2019, a Requerente procedeu ao pagamento do imposto impugnado e respetivos juros compensatórios – cfr. Doc. n.º 18 junto com o pedido de pronúncia arbitral –

CC.         No dia 18 de novembro de 2019, a Requerente apresentou pedido de constituição do presente Tribunal Arbitral.

 

b.            Factos dados como não provados

 

Como referido, relativamente à matéria de facto dada como assente, o tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada tal como dispõe o artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e o artigo 607.º, n.ºs 2, 3 e 4, do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

 

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa foram, como acima se referiu, escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, não existindo outra factualidade alegada que seja relevante para a correta composição da lide processual.

 

VII- DO DIREITO

 

1. A única questão em debate traduz-se em saber se as disposições dos artigos 87º, n.º 4, alínea h), e 94.º, n.º 3, alínea c), do CIRC impõem que a identificação do beneficiário efetivo de pagamentos de rendimentos de capitais, efetuados através de conta aberta em nome de terceiros, seja feita, junto da entidade pagadora, prévia ou simultaneamente à distribuição dos rendimentos ou poderá sê-lo posteriormente.

A disposição do 87.º, referindo-se às taxas aplicáveis em sede de IRC, prescreve, no seu n.º 4, alínea h), nos seguintes termos:

 

4 — Tratando-se de rendimentos de entidades que não tenham sede nem direção efetiva em território português e aí não possuam estabelecimento estável ao qual os mesmos sejam imputáveis, a taxa do IRC é de 25%, exceto relativamente aos seguintes rendimentos:

(…)

h) Rendimentos de capitais sempre que sejam pagos ou colocados à disposição em contas abertas em nome de um ou mais titulares mas por conta de terceiros não identificados, em que a taxa é de 35%, exceto quando seja identificado o beneficiário efetivo, termos em que se aplicam as regras gerais;

Por sua vez, o artigo 94.º, sob a epígrafe “Retenção na fonte”, estatui, no seu n.º 3, do seguinte modo:

3 — As retenções na fonte têm a natureza de imposto por conta, exceto nos seguintes casos em que têm carácter definitivo:

(…)

c) Quando se trate de rendimentos de capitais que sejam pagos ou colocados à disposição em contas abertas em nome de um ou mais titulares mas por conta de terceiros não identificados, exceto quando seja identificado o beneficiário efetivo, termos em que se aplicam as regras gerais.

Numa primeira aproximação, os artigos 87.º, n.º 4, alínea h), e 94.º, n.º 3, alínea c), contêm uma idêntica formulação verbal, mas para atingir diferentes efeitos jurídicos. Perante um mesmo facto tributário, qual seja o pagamento ou colocação à disposição de rendimentos de capitais em contas abertas em nome de um ou mais titulares mas por conta de terceiros não identificados, no primeiro caso (artigo 87.º, n.º 4, alínea h)), agrava-se a taxa de IRC, salvo quando  seja identificado o beneficiário efetivo, e no segundo caso (artigo 94.º, n.º 3, alínea c)), a retenção na fonte passa a ter carácter definitivo (e não a natureza de pagamento por conta), salvo quando seja identificado o beneficiário efetivo.

Ou seja, na mesma circunstância factual (pagamento ou colocação à disposição de rendimentos de capitais em contas abertas em nome de um ou mais titulares mas por conta de terceiros não identificados), a não identificação do beneficiário efetivo tem consequências em dois diferentes planos: agravamento da taxa de IRC e impossibilidade de dedução à coleta da retenção na fonte do imposto.

Cabe recordar que as referidas disposições legais foram introduzidas pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2011) e uma explicitação dos objetivos pretendidos pelo legislador encontra-se plasmada no ponto III.2.2.2.4. (pág. 71) do Relatório do Orçamento do Estado para 2011, em que, sob a epígrafe “Controlo das ´contas-jumbo` em sede de IRS e de IRC, se refere:

Ainda no contexto do combate à fraude e evasão fiscal, a Proposta de Lei do Orçamento do Estado para 2011 vem introduzir, quer em sede de IRS quer em sede de IRC, regras de controlo das chamadas contas-jumbo, contas bancárias que servem de veículo de investimento em fundos e valores mobiliários mas cujos beneficiários últimos, geralmente não residentes, permanecem não identificados. O recurso a contas desta natureza inviabiliza a aplicação da retenção na fonte por parte das instituições bancárias, desconhecendo estas a identidade e natureza jurídica dos investidores por conta de quem a conta foi aberta e o regime fiscal que lhes é aplicável, impossibilitando-as, também, de dar cumprimento a obrigações fiscais acessórias, desde logo, a de informar a Administração Fiscal sobre os titulares dos rendimentos.

Em face do exposto, reconheceu-se a necessidade de introduzir duas soluções legais que permitam o controlo dos rendimentos veiculados para estas contas. As soluções traduzem-se: i) na transferência para as Sociedades Gestoras de Patrimónios a obrigação de retenção na fonte do imposto e o cumprimento das obrigações acessórias, quer em sede de IRS, quer em sede de IRC, sempre que a conta-jumbo seja aberta em seu nome mas por conta de outrem; e ii) outra, a de determinar que, nos casos em que a ―conta-jumbo seja aberta por outras entidades, as instituições depositárias devam proceder à aplicação de taxa de retenção na fonte de 30%, a mais elevada taxa aplicável a rendimentos de capitais, a menos que sejam identificados os beneficiários efetivos, isto é, os terceiros por conta de quem a conta está a ser gerida. 

Perante o referido quadro legal e os objetivos visados pelo legislador, a Requerente mobiliza, em favor do entendimento de que a identificação do beneficiário pode ser feita em momento posterior ao do pagamento ou colocação à disposição dos rendimentos de capitais, o elemento teleológico, literal e sistemático da interpretação das normas, dizendo, em suma, o seguinte: (a) a opção do legislador - centrando-se aí a razão de ser da lei - foi no sentido de se realizar uma primeira tributação à taxa agravada de 35%, que seria afastada se e quando deixasse de justificar-se por ter sido identificado o titular dos rendimentos; (b) a obrigatoriedade de comprovação do beneficiário no momento do pagamento ou colocação à disposição não consta como requisito expresso em nenhum segmento das normas em causa; (c) esse entendimento é, por outro lado, aquele que melhor se enquadra no sistema jurídico, especialmente no direito tributário, ao qual interessa fundamentalmente a realidade material.

Analisando estas vertentes da interpretação da lei, deve começar por dizer-se que o texto da lei é o ponto de partida da atividade do intérprete, exercendo a função negativa de eliminar os sentidos que não tenham qualquer apoio ou correspondência na letra da lei. Mas para definir o sentido literal da norma deve ainda atender-se ao seu contexto significativo no âmbito do sistema jurídico, devendo dar-se prevalência, de entre as interpretações possíveis segundo o sentido literal, àquela que dá garantia de concordância material com outra disposição dentro de uma mesma regulação (KARL LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, Fundação Calouste Gulbenkian, 7.ª edição, págs. 458-462).

As normas dos artigos 87.º, n.º 4, alínea h), e 94.º, n.º 3, alínea c), têm, desde logo, um referente temporal. Reportam-se ao momento em que os rendimentos de capitais sejam pagos ou colocados à disposição em contas abertas em nome de um ou mais titulares mas por conta de terceiros não identificados, o que necessariamente é aplicável à situação de exceção referenciada no segmento final da norma.

A identificação do beneficiário efetivo não pode deixar de ser feita até ao momento em que a entidade devedora deva cumprir a sua obrigação fiscal, visto que é esse o momento em que terá de definir a taxa aplicável à retenção na fonte. E essa é a necessária decorrência da própria natureza jurídica da retenção na fonte enquanto mecanismo de substituição tributária: a identificação do beneficiário efetivo, para efeito de evitar a aplicação da taxa agravada (artigo 87.º, n.º 4, alínea h)) ou de impedir que a retenção na fonte passe a revestir carácter definitivo (artigo 94.º, n.º 3, alínea c)), há de ocorrer quando haja lugar à retenção de imposto, ou seja, no momento em que as entidades devedoras dos rendimentos sujeitos a retenção pagam ou colocam à disposição os rendimentos.

Isso porque é nesse momento que se concretiza a obrigação de retenção na fonte e se hão de encontrar reunidos os pressupostos de que depende a taxa de tributação aplicável. Nesse mesmo sentido, aponta o disposto no artigo 94.º, n.º 6, onde se refere que “a obrigação de efetuar a retenção na fonte de IRC ocorre na data que estiver estabelecida para obrigação idêntica no Código do IRS ou, na sua falta, na data da colocação à disposição dos rendimentos, devendo as importâncias retidas ser entregues ao Estado até ao dia 20 do mês seguinte àquele em que foram deduzidas (…)”.

E sendo a responsabilidade pela tributação imputável ao substituto tributário, que é o destinatário do comando jurídico contido na norma que prevê a retenção do imposto, dificilmente se compreende que a taxa de 35% deva ser aplicada a título provisório e fique dependente da condição futura e incerta de vir a ocorrer a identificação de beneficiário efetivo dos rendimentos. Não pode entender-se, por conseguinte, que a opção do legislador – que, como vimos, tinha como principal objectivo favorecer a identificação dos titulares dos rendimentos – fosse o de permitir uma primeira tributação a uma taxa agravada que poderia ser depois corrigida em função da possível identificação do beneficiário, o que, desde logo, poria em causa a própria operacionalidade do instituto jurídico da retenção da fonte.

De resto, como resulta da matéria de facto dada como assente, a Requerente, tendo registado prejuízos fiscais no ano de 2014, inscreveu na respetiva declaração de rendimentos o valor de € 351.829,06, correspondente à retenção na fonte à taxa de 35%, para efeito da dedução do imposto retido a título de reembolso. E é contra a correção efetuada nesse exato montante pela Autoridade Tributária, no âmbito do procedimento inspetivo, por se ter como ilegítima a dedução, que a Requerente se insurge no presente pedido arbitral, por considerar que o beneficiário efetivo dos rendimentos sempre poderia ser identificado em momento ulterior à retenção na fonte.

Ou seja, a Requerente não põe em causa que a retenção na fonte deva ser mantida à taxa agravada de 35% por não se encontrar identificado o beneficiário efetivo à data da retenção, e o que propugna é que a retenção, tal como foi realizada a essa taxa agravada, passe a ser tida como pagamento por conta do imposto, à luz do disposto no artigo 94.º, n.º 4, alínea c), por efeito da ulterior identificação do beneficiário efetivo.

Uma tal pretensão assenta numa interpretação que é inteiramente contrária à unidade do sistema jurídico.

Como se deixou entrever, tendo as referidas normas dos artigos 87.º, n.º 4, alínea h), e 94.º, n.º 3, alínea c), visado instituir diferentes consequências para o mesmo facto tributário, não é  possível interpretar o mesmo segmento normativo, que ambas as normas reproduzem, em sentido antinómico de modo a que num caso (artigo 87.º, n.º 4, alínea h)), a identificação do beneficiário efetivo deva ser feita até ao momento da retenção na fonte e noutro caso (artigo 94.º, n.º 3, alínea c)) o possa ser em momento posterior.

Com efeito, as normas encontram-se necessariamente correlacionadas, visaram concretizar uma certa intenção legislativa em dois aspetos da regulação jurídica que estão conexionados e não podem ser objeto de interpretação diversa quanto ao mesmo segmento normativo. Isso porque, como se deixou esclarecido, mesmo o sentido literal da norma terá se ser entendido no seu contexto significativo, não podendo ser atribuída à norma uma interpretação que ponha em causa a concordância objetiva com outra disposição do sistema. E sendo assim, por efeito da ulterior identificação do beneficiário, não só não é possível a redução da taxa de tributação aplicável, como não pode passar a atribuir-se à retenção na fonte a natureza de imposto por conta. 

Por tudo o que antes se expôs, não parece que possa convocar-se como elemento racional de interpretação as eventuais dificuldades que a prévia comunicação do beneficiário efetivo à entidade pagadora possa trazer para os interesses comerciais das partes e o próprio modelo de gestão das contas jumbo. Tendo o legislador pretendido implementar uma medida anti-evasiva mediante o agravamento da taxa de retenção na fonte para os casos em que não seja identificado o beneficiário efetivo, o que poderá dizer-se é que o legislador não valorou os interesses das entidades intervenientes nos movimentos de capitais, mas quis antes assegurar uma maior transparência nas operações para melhor garantir o cumprimento das obrigações fiscais, e pretendeu realizar esse objetivo por duas vias complementares: o agravamento da taxa de retenção de retenção e a desconsideração da retenção como imposto por conta.

 Assim sendo, o ato tributário de liquidação, ao afastar a possibilidade de reembolso do imposto retido em virtude de o beneficiário efetivo se não encontrar identificado à data da retenção, com base no entendimento de que a retenção não constitui pagamento por conta, não enferma de qualquer ilegalidade.

 

2. A Requerente alega, no entanto, que a desconsideração da ulterior identificação do beneficiário efetivo viola o princípio da capacidade contributiva, o princípio da verdade material e o princípio da prevalência da substância sob a forma.

  Não se vê, todavia, em que termos é que a exigência legal de identificação do beneficiário efetivo até ao momento que seja realizada a retenção na fonte pode pôr em causa qualquer um desses princípios.

Como se deixou dito, as referidas disposições do CIRC visaram implementar duas soluções legais, no contexto do combate à fraude e evasão fiscal, em vista a permitir o controlo dos rendimentos gerados pelas contas jumbo, sendo um elemento fulcral do regime legal a identificação do beneficiário efetivo, que, sendo feita antes ou no momento do pagamento dos rendimentos ou da sua colocação à disposição, tem como consequência a aplicação de taxa de IRC não agravada e a consideração das importâncias sujeitas a retenção na fonte como imposto por conta.

O que distingue o contribuinte que não procedeu à sua atempada identificação como beneficiário efetivo dos rendimentos de qualquer outro que o tenha feito é que esse contribuinte, por incumprimento de um requisito legalmente previsto, está sujeito a um tratamento fiscal menos favorável. No entanto, essa situação de desfavor encontra-se justificada por ter resultado de uma opção livre do sujeito passivo e, por outro lado, o regime legal, ao instituir essa diferenciação, tem um fundamento material bastante que se traduz na necessidade de implementação de medidas anti-evasivas quanto aos rendimentos gerados pelas contas jumbo.

Não está em causa, por outro lado, como é evidente, uma qualquer violação do princípio da verdade material e ou do princípio da prevalência da substância sob a forma. Do que se trata não é obstar à descoberta da verdade, mas da observância por parte dos investidores de um requisito de transparência que tem de ser satisfeito, na perspetiva da lei, até um determinado momento (retenção na fonte). Porque é nesse momento que as instituições bancárias que pagam ou colocam à disposição os rendimentos devem proceder à retenção na fonte e fixar a taxa aplicável.

Assim sendo, face ao regime legal, a tributação que corresponde à verdade material é aquela que é definida pelas disposições dos artigos 87.º, n.º 4, alínea h), e 94.º, n.º 3, alínea c), consoante o interessado tenha ou não procedido à identificação como beneficiário efetivo dos rendimentos.

Por todo o exposto, os apontados fundamentos de ilegalidade do ato de liquidação são igualmente improcedentes.

 

VII. DECISÃO

 

Pelos fundamentos factuais e jurídicos expostos, decide-se:

 

a). Considerar totalmente improcedente o pedido de pronuncia arbitral e manter o ato de liquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, no montante € 395.635,75 (trezentos e noventa e cinco mil seiscentos e trinta e cinco euros setenta e cinco cêntimos), bem como a decisão da Autoridade Tributária de indeferimento da reclamação graciosa apresentada pela Requerente contra aquela liquidação;

b). Considerar improcedente o pedido apresentado pela Requerente para pagamento da indemnização prevista nos artigos 53º. da LGT e 171º. do CPPT;

c). Considerar improcedente o pedido apresentado pela Requerente para pagamento de juros indemnizatórios, previsto no artº. 43º. da LGT

 

Valor do Processo

Fixa-se o valor do processo em € 395.635,75 (trezentos e noventa e cinco mil seiscentos e trinta e cinco euros setenta e cinco cêntimos), nos termos artigo 97.º-A, n.º 1, c), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 22 de dezembro de 2020

***

 

Os Árbitros

 

Carlos Alberto Fernandes Cadilha (Árbitro Presidente),

Rui Duarte Morais (vencido, conforme declaração anexa)

Jorge Carita

 

 

 

Declaração de voto

 

Salvo o devido respeito pela opinião diversa, não posso subscrever o entendimento que fez vencimento, pelas razões que passo a sumariar:

 

1 - A decisão arbitral inicia o seu ponto VII – Do Direito - da forma seguinte: a única questão em debate traduz-se em saber se as disposições dos artigos 87º, n.º 4, alínea h), e 94.º, n.º 3, alínea c), do CIRC, impõem que a identificação do beneficiário efetivo de pagamentos de rendimentos de capitais, efetuados através de conta aberta em nome de terceiros, seja feita, junto da entidade pagadora, prévia ou simultaneamente à distribuição dos rendimentos ou poderá sê-lo posteriormente [negrito nosso].

 

Salvo o devido respeito – repito -, entendo que a interrogação está mal formulada: a questão, de direito, que, a meu ver, se coloca é a da natureza da retenção na fonte praticada pela entidade pagadora (questão que é diferente da da taxa a ser aplicada) quando o beneficiário efetivo, não se tendo identificado no momento do pagamento, tem a obrigação legal de se identificar em momento posterior (e cumpre com tal obrigação).

 

A posição vencedora parte do pressuposto que, relativamente aos rendimentos pagos através de contas tituladas por terceiros, existe uma opção, para todos os sujeitos passivos de IRC: declará-los ou não; ou, utilizando, por facilidade, expressões mais próprias do IRS – optarem por os englobar ou por aceitarem a tributação a uma taxa liberatória.

                Ora, em IRC, uma tal opção existe apenas para alguns sujeitos passivos, nomeadamente para os não-residentes e, eventualmente, para os residentes cuja base do imposto seja a definida na al. b) do n.º 1 do art. 3º do CIRC, isto é pessoas coletivas e outras entidades que não exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola.

                Parece-me seguro afirmar que a lei proíbe tal opção (proíbe o anonimato) aos demais sujeitos passivos, pelo menos àqueles cuja matéria coletável seja determinada com base em contabilidade organizada. A totalidade dos rendimentos obtida por estes sujeitos passivos tem que ser registada na contabilidade (bem como as operações donde decorreu a obtenção de rendimentos, no caso a entrega ao broker de determinado capital), sob pena de a contabilidade não traduzir a sua verdadeira situação patrimonial, ou seja, sob pena de violação da lei contabilística aplicável.

Os factos dados como provados mostram que a Requerente é uma sociedade comercial com sede em Portugal, sendo, portanto o seu rendimento tributável apurado com base no lucro apurado pela sua contabilidade. E ficou provado que a Requerente cumpriu com a obrigação legal de registar como rendimento os valores em causa (os montantes recebidos através do seu broker, titular da conta bancária), bem como as deduções, correspondentes a retenções na fonte, que tais rendimentos sofreram.

Em resumo, a possibilidade de opção pelo anonimato – e, consequentemente por um tributação por aplicação de uma taxa liberatória, ainda que agravada -, cuja existência entendo estar subjacente posição vencedora, só existiria, no caso concreto, num cenário de ilegalidade.

 

2- A meu ver, não existe também qualquer relação de dependência entre o disposto nos art. 87º, n.º 4, alínea h) e 94.º, n.º 3, do CIRC.

É certo que está em causa a mesma questão, a da identificação do beneficiário efetivo, mas – entendo - referida a dois momentos temporais distintos: o do pagamento dos rendimentos e o do auto-apuramento do lucro tributável (da apresentação da declaração de rendimentos).

Será normal – penso – que o beneficiário efetivo não se identifique aquando do pagamento, até, porque, em casos como o concreto, a liberdade de gestão atribuída ao broker implica que aquele não saiba, em cada momento, quais os títulos (no caso, ações) que este adquiriu e, consequentemente, o momento em que são pagos os rendimentos (dividendos) deles decorrentes.

Nestas situações, dispõe a primeira das disposições legais referidas, o “anonimato” tem como resultado a aplicação de uma retenção na fonte feita a uma taxa mais gravosa, tal qual aconteceu no caso concreto.

 

A segunda norma refere-se - a meu ver - a um momento posterior, àquele em que o beneficiário efetivo é obrigado a identificar-se (ou, em outras situações que não a do caso concreto, em que pode escolher por manter o anonimato), momento que é o da apresentação da declaração do lucro tributável.

Estando em causa dois diferentes momentos temporais, não existirá qualquer risco de antinomia entre as normas em causa.

 

3 – A meu ver, os diferentes elementos a serem considerados na interpretação da lei apontam no sentido que perfilho.

Primeiro, o elemento literal da alínea c) do n.º 3 do art. 94º do CIRC: se o legislador tivesse querido afirmar a natureza definitiva da retenção na fonte feita em decorrência da não identificação do beneficiário efetivo no momento do pagamento, então, certamente, teria escrito que a taxa agravada prevista na al. h) do n.º 4 do art. 87º tem carácter definitivo, ou seja, não teria voltado a referir – por então desnecessário - a questão do anonimato.

 

O elemento racional da norma aponta, também - a meu ver - no mesmo sentido: primeiro porque o legislador, que teve o cuidado de criar uma norma especial relativa aos rendimentos obtidos através das chamadas «contas jumbo», certamente não ignoraria as dificuldades práticas que se colocariam caso o beneficiário efetivo fosse sempre obrigado a se identificar antes do pagamento.

Acresce que o objetivo de combate à evasão fiscal, apontado no acórdão arbitral, é melhor prosseguido quando os beneficiários de rendimentos se identificam, pelo que há que não “dificultar” a identificação. Donde não me parecer coerente o entendimento de que tal identificação tenha que acontecer necessariamente em determinado momento .

Finalmente, quanto ao elemento sistemático, temos a questão da consideração dos «lugares paralelos».

No nosso sistema de tributação do rendimento (que é um “sistema”, apesar da sua divisão em dois diferentes impostos, IRS e IRC, aliás com numerosas interligações e remissões mútuas), existe a previsão, no CIRS, de numerosas retenções na fonte, feitas por aplicação de taxas que serão definitivas (liberatórias) - não havendo, então, identificação, para efeitos fiscais, do contribuinte - salvo se este, no momento em apresenta a sua declaração de rendimentos, optar por englobar os rendimentos em questão .

Porquê um entendimento diferente, a afirmação de um desvio à regra geral na situação em análise ?

 

A importância da consideração dos lugares paralelos é bem clara no ensinamento do saudoso mestre BAPTISTA MACHADO: nomeadamente, o recurso aos “lugares paralelos” pode ser de grande utilidade, pois que, se um problema de regulamentação jurídica fundamentalmente idêntico é tratado pelo legislador em diferentes lugares do sistema, sucede com frequência que num desses lugares a fórmula legislativa emerge mais clara e explícita. Em tal hipótese, porque o legislador deve ser uma pessoa coerente e porque o sistema jurídico deve por igual formar um todo coerente, é legítimo recorrer á norma mais clara e explícita para fixar a interpretação de outra norma (paralela) mais obscura ou ambígua (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, p. 183).

 

4- Finalmente, e porventura o mais importante, não se poderá deixar de frisar a tributação em cascata que esta decisão arbitral consente.

Os rendimentos em causa foram tributados a uma taxa de 35% por retenção na fonte, na pessoa do titular da conta bancária, foram, depois, sujeitos a tributação em IRC , na pessoa da Requerente, e, finalmente, serão tributados em IRS, a título de rendimentos de capitais, quando forem distribuídos aos sócios desta, a título de dividendos.

Esta cascata de tributações não pode ser havida como correspondendo a uma intencionalidade legislativa. Bastará somar o valor de imposto exigível em cada uma destas “etapas” para, facilmente, nos apercebermos que o valor total da tributação corresponderá à quase totalidade do rendimento.

Somos assim – a meu ver - colocados perante uma situação de verdadeiro confisco por via tributária, a qual temos por não conforme com os princípios estruturantes do nosso sistema fiscal - os quais revestem dignidade constitucional –, um entendimento que considero violador, entre outros, dos princípios da capacidade contributiva, da verdade material, dimensões do princípio básico da justiça na tributação.

 

Rui Duarte Morais