Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 802/2019-T
Data da decisão: 2020-12-02  IRS  
Valor do pedido: € 160.048,29
Tema: IRS – Mais valias; Não residente.
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SUMÁRIO: A legislação nacional ao prever uma limitação da tributação a 50% das mais-valias realizadas apenas para os residentes em Portugal, e não para os não residentes, constitui uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo artigo 56.º do Tratado que instituiu a Comunidade Europeia, sendo o n.º 2 do art. 43.º do CIRS, assim interpretado, incompatível com o referido art. 56.º do TJUE.

 

Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), Adelaide Moura e Nina Aguiar, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral, na seguinte:

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

1.            No dia 28 de Novembro de 2019, A..., contribuinte n.º..., residente em ... ..., ... Madrid, Espanha, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade do acto de liquidação de IRS n.º 2019..., referente ao ano de 2018, no valor de €160.048,29. 

 

2.            Para fundamentar o seu pedido alega o Requerente, em síntese, que a Administração Tributária ao considerar a totalidade do saldo positivo da mais-valia realizada em cumprimento do disposto no artigo 43.º, n.º 2 do Código do IRS, e não apenas 50% do seu valor, praticou uma discriminação negativa injustificada relativamente a um não residente, em violação da liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º, n.º 1 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

 

3.            No dia 29-11-2019, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

4.            A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

5.            Em 20-01-2020, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

6.            Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 19-02-2020.

 

7.            No dia 16-03-2020, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.

 

8.            Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.

 

9.            Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.

 

10.          Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT, eventualmente prorrogado nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.

 

11.          O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir:

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1-            O Requerente é residente em Espanha.

2-            Por escritura datada de 29-11-2004, o Requerente adquiriu em partes iguais com a sua esposa, à data pelo preço global de €400.000,00, a fracção autónoma designada pela letra “L”, correspondente ao apartamento designado por “...”, Bloco A, para habitação, do prédio urbano denominado “Condomínio ...”, freguesia do ..., concelho de Cascais, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o n.º ... da dita freguesia, inscrito na respectiva matriz sob o artigo n.º... .

3-            O valor de aquisição em 2004, atribuído ao Requerente, corresponde a €200.000,00.

4-            Em 2007, o Requerente adquiriu por herança a quota-parte do imóvel que pertencia à sua esposa.

5-            O valor patrimonial tributário da quota-parte do imóvel à data da transmissão gratuita era de €186.150,00.

6-            O valor de aquisição do imóvel foi de €386.150,00.

7-            Em 31-07-2018, através de escritura pública de compra e venda, o Requerente procedeu à alienação do imóvel, pelo valor global de €1.036.800,00.

8-            O Requerente apresentou a declaração modelo 3 de IRS, referente ao ano de 2018, tendo declarado no anexo G a mais valia decorrente da alienação do imóvel.

9-            O Requerente inscreveu no campo relativo ao valor de aquisição o montante de €386.150,00 e, no campo referente ao valor de alienação, o montante de €1.036.800,00, assim como a quantia de €12.849,44 referente a despesas e encargos com a aquisição e alienação do imóvel.

10-         No quadro 8B da declaração modelo 3 de IRS foi assinalado o campo 4 (não residente), o campo 6 (residência em país da UE) e o campo 7 (pretende a tributação pelo regime aplicável aos não residentes).

11-         O Requerente não obteve, no ano de 2018, quaisquer outros rendimentos em território nacional.

12-         A Autoridade Tributária procedeu à emissão do acto de liquidação de IRS n.º 2019..., relativa ao ano de 2018, no valor de €160.048,29.

13-         No âmbito da referida liquidação, a Autoridade Tributária tributou a totalidade do saldo positivo da mais-valia imobiliária realizada, à taxa de 28%.

14-         Em 20-08-2019, o Requerente procedeu ao pagamento da liquidação de IRS n.º 2019..., relativa ao ano de 2018, no valor de €160.048,29.

 

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

B. DO DIREITO

Nos presentes autos está em causa aferir se, no caso de mais-valias resultantes da alienação de bens imóveis, o regime diferenciado de tributação aplicável a residentes e a não residentes no território nacional, tal qual resulta do disposto no CIRS, configura uma situação de discriminação no domínio da liberdade de circulação de capitais, inadmissível à luz do artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

Na verdade, o legislador consagra no CIRS uma limitação da incidência de imposto, para os residentes, a qual onera apenas 50% do saldo das mais-valias. A questão é a de saber se, a não aplicação deste princípio aos não residentes, quando residam noutro Estado membro da UE, nos exactos termos em que está previsto para os residentes, configura uma situação de discriminação no domínio da liberdade de circulação de capitais, inadmissível à luz do artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

A este propósito veio a AT invocar a necessidade de proceder a reenvio prejudicial para o TJUE. Assim, cumpre decidir previamente esta questão, a qual é necessariamente prejudicial.

 

*

A) Quanto à questão do Reenvio Prejudicial:

O thema decidendum no presente processo refere-se ao regime de tributação autónoma incidente sobre as mais-valias imobiliárias, auferidas por não residentes em território português mas residentes em território de outro Estado da União Europeia (no caso, na Espanha), decorrente do disposto nas disposições conjugadas dos artigos 10.º, n.º 1, alínea a), 13.º, n.º 1, 18.º, n.º 1, alínea h), 43.º, n.ºs 1 e 2 e 72.º, n.º 1, alínea a), todos do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS). Está, concretamente, em causa determinar se, atento o disposto no artigo 43.º, n.º 2, do Código do IRS, o saldo positivo apurado a título de mais-valias, no ano de 2018, deverá ou não ser considerado em apenas 50% do seu valor, uma vez que o Requerente é residente em Espanha.

Para o Requerente, o valor apurado a título de mais valia deve ser considerado em apenas 50% do seu valor, pois entende que o disposto no artigo 43.º, n.º 2, do Código do IRS é também aplicável aos não residentes em Portugal, mas residentes num Estado-membro da União Europeia, sob pena de violação da liberdade de circulação de capitais prevista no n.º 1 do artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. Invoca a favor deste entendimento diversa jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (STA) e arbitral, ambas ancoradas na jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), nomeadamente, no processo C-443/06, em 11 de outubro de 2007 (caso Hollmann). A este propósito, alega o Requerente, no seu pedido arbitral o seguinte:

“Este tem sido, aliás, o entendimento seguido pelos tribunais constituídos no Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”), em particular nos tribunais arbitrais n.ºs 45/2012-T, 127/2012T; 748/2015-T; 89/2017-T; 617/2017-T; 583/2018-T e 74/2019-T.”.

                O Requerente refere, também, jurisprudência proferida pelo Supremo Tribunal Administrativo no âmbito do processo n.º 1013/10, de 22-03-2011, que considerou que “(...) foi a Administração Fiscal que, perante a declaração dos contribuintes, lhes liquidou o imposto que considerou devido (como aliás sempre sucede no IRS): à taxa prevista para os não residentes (25% nos termos do artigo 72.º n.º 1 do Código do IRS) e sobre o montante total da mais-valia realizada e não apenas sobre 50% deste valor (artigo 43.º, n.º2 do Código do IRS), assim ignorando a juruisprudência comunitária e a deste Supremo Tribunal que a acolheu (cf. o Acórdão de 16 de janeiro de 2008, rec. n.º 439/06) quanto à incompatibilidade daquela disposição legal, assim aplicada, com o (então) artigo 56.º do TJCE (actual artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia), sujeitando deste modo, como veio a acontecer, a ver anulada nessa parte a liquidação impugnada, dado o primado do direito comunitário”.

                E o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, no âmbito do processo n.º 0439/06, de 16-01-2008 no sentido de que “O n.º 2 do artigo 43,º do Código do IRS, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 109.º-B/2001, de 27 de dezembro, que limita a incidência de imposto a 50% das mais-valias realizadas apenas para residentes em Portugal, viola o disposto no art.º 56.º do Tratado que institui a Comunidade Europeia, ao excluir dessa limitação as mais valias que tenham sido realizadas por um residente noutro Estado membro da União Europeia.”.

                E ainda o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, no processo n.º 01172/14, que sustentou que “As disposições do Tratado CE que rege a União Europeia prevalecem sobre as normas de direito ordinário nacional, nos termos definidos pelos órgãos do direito da União, desde que respeitem os princípios fundamentais do Estado de democrático”.

Neste enquadramento, conclui o Requerente que o regime de tributação das mais valias, decorrente do disposto nos artigos, 10º e 43º, nº 2 do CIRS, é incompatível com o direito europeu, não sendo de considerar sanada tal incompatibilidade com o aditamento ao artigo 72.º do Código do IRS dos seus números 7 e 8 (atuais números 9 e 10), pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro (OE 2008), porquanto persiste uma situação de discriminação no tratamento de residentes e não residentes, com prejuízo para estes últimos, ainda que residam em país da EU.

A Requerida, por seu turno, entende que o quadro legal, assim como a obrigação declarativa, já não é aquele que existia à data da prolação do acórdão Hollman (C-443/06) pelo TJUE, tendo em conta a predita alteração legislativa ao artigo 72.º do Código do IRS; assim, segundo a Requerida, o acórdão Hollmann refere-se a situações ocorridas na vigência do artigo 72.º do Código do IRS, na redação anterior à introduzida pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro.

A Requerida afirma, ainda, que a questão sub judice não corresponde ao chamado ato aclarado, pela decisão proferida no acórdão Hollmann, uma vez que a referenciada alteração legislativa não foi ainda objeto de apreciação pelo TJUE, em sede de reenvio prejudicial, para efeitos de apreciação do cumprimento das disposições conjugadas dos artigos 18.º, 63.º, 64.º e 65.º do TFUE. Em suma, entende a Requerida que o Tribunal Arbitral deve considerar que a aludida jurisprudência não é vinculativa, em face do actual quadro legal nacional, bem como julgar não verificada a hipótese de acto claro ou de acto aclarado, pelo que se tem necessariamente de considerar que existem dúvidas suficientes que obstam à aceitação do entendimento preconizado pelo Requerente, sem prévia consulta ao TJUE. Assim, a Requerida defende que o Tribunal Arbitral deverá suspender a presente instância arbitral e sujeitar a questão em apreço ao TJUE, por via de reenvio prejudicial, nos termos do disposto no artigo 267.º do TFUE.

Cumpre apreciar e decidir.

*

Tudo visto, não temos dúvidas que não se verificam os pressupostos de que depende a admissibilidade do reenvio prejudicial para o TJUE, estatuídos no artigo 267.º do TFUE, e, face à vasta jurisprudência nesta matéria, dado que o caso em apreço não configura “um caso novo ou diferenciado a decidir num quadro total ou parcialmente novo”. Por outro lado, o próprio TJUE já se pronunciou sobre o caráter discriminatório de um regime de opção como o que aqui está em causa, no acórdão Gielen, proferido em 18/03/2010, no processo C-440/08, sendo aplicável neste caso a teoria do acto claro, ao contrário do que vem alegado pela AT, como a seguir melhor se esclarecerá.

Dispõe o artigo 19.º, n.º 3, do TUE o seguinte:

“3. O Tribunal de Justiça da União Europeia decide, nos termos do disposto nos Tratados:

a) Sobre os recursos interpostos por um Estado membro, por uma instituição ou por pessoas singulares ou colectivas;

b) A título prejudicial, a pedido dos órgãos jurisdicionais nacionais, sobre a interpretação do direito da União ou sobre a validade dos actos adoptados pelas instituições;

c) Nos demais casos previstos pelos Tratados.

No artigo 267.º do TFUE é estatuído o seguinte:

“O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial:

a) Sobre a interpretação dos Tratados;

b) Sobre a validade e a interpretação dos actos adoptados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.

Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie.

Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal.

Se uma questão desta natureza for suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional relativamente a uma pessoa que se encontre detida, o Tribunal pronunciar-se-á com a maior brevidade possível.”

A primeira questão que aqui se coloca prende-se com a competência para submeter questões prejudiciais ao TJUE, a qual pertence aos órgãos jurisdicionais dos Estados-membros da União Europeia; contudo, a qualidade de órgão jurisdicional não está densificada em qualquer dos Tratados da União, sendo tal conceito interpretado pelo TJUE.

Relativamente aos tribunais arbitrais, sempre que estes cumpram os requisitos elencados na jurisprudência do TJUE – a origem legal do órgão que lhe submeteu o pedido, a usa permanência, o caráter obrigatório da sua jurisdição, a natureza contraditória do processo, a aplicação, por esse órgão, das regras de Direito e a sua independência –, este Tribunal não tem hesitado em qualificá-los como órgãos jurisdicionais para efeitos do disposto no artigo 267.º do TFUE. No preâmbulo do diploma legal que institui o RJAT é referido o seguinte: “Nos casos em que o tribunal arbitral seja a última instância de decisão de litígios tributários, a decisão é susceptível de reenvio prejudicial em cumprimento do §3 do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.”

De resto, esta questão é hoje pacífica face à jurisprudência do TJUE, vertida no acórdão “Ascendi”, prolatado em 12/06/2014, no processo C-377/13, no qual o TJUE concluiu pela qualificação dos tribunais arbitrais em matéria tributária, constituídos sob a égide do CAAD, como órgãos jurisdicionais de um Estado-membro, para efeitos do artigo 267.º do TFUE.

Assim, actualmente é inquestionável que os tribunais arbitrais em matéria tributária portugueses são qualificados como órgãos jurisdicionais de um Estado-membro e, por isso, é-lhes admitida a possibilidade de submeterem questões prejudiciais ao TJUE, desde que tal se afigure necessário e adequado à luz dos pressupostos de base para operacionalizar o reenvio prejudicial.

Sucede, porém, que no caso em apreço não se vislumbra qual a necessidade de proceder a esse reenvio. Como bem resulta da jurisprudência do TJUE sobre esta questão, “o reenvio prejudicial é um instrumento de cooperação judiciária (…) pelo qual um juiz nacional e um juiz comunitário são chamados no âmbito das competências próprias, a contribuir para uma decisão que assegure a aplicação uniforme do Direito Comunitário no conjunto dos Estados membros” (acórdão Schwarze, de 01/12/1965, processo n.º 16/65).

Assim, entende-se como questão prejudicial, no âmbito do processo de reenvio, toda e qualquer questão que um órgão jurisdicional nacional considere necessária à resolução de um litígio pendente; essas questões prejudiciais submetidas ao TJUE poderão ser, por um lado, de validade ou de interpretação e, por outro lado, de reenvio obrigatório ou facultativo. Sempre que a questão prejudicial seja suscitada no âmbito de um processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial, previsto no direito interno, o reenvio prejudicial é obrigatório. Se da decisão do órgão jurisdicional nacional couber recurso ordinário, nos termos do direito interno, então o reenvio é em princípio facultativo.

As decisões arbitrais proferidas pelos tribunais arbitrais tributários constituídos sob a égide do CAAD são, em regra, irrecorríveis quanto ao mérito; com efeito, a recorribilidade permitida circunscreve-se aos casos de violação de normas constitucionais (recurso para o Tribunal Constitucional) ou de desrespeito pela jurisprudência do Tribunal Central Administrativo ou do Supremo Tribunal Administrativo (recurso por oposição de acórdãos para o Supremo Tribunal Administrativo), bem como de contradição com outras decisões arbitrais. Acontece, porém, que, como decidido pelo TJUE (acórdão Cilfit, de 06/10/1982, processo C-283/81), a aludida obrigatoriedade de reenvio não se verifica “quando, sendo a questão prejudicial de interpretação, (a) exista já jurisprudência na matéria – e desde que o quadro eventualmente novo não suscite nenhuma dúvida real quanto à possibilidade de aplicação dessa jurisprudência ao caso concreto – ou (b) sempre que o correcto modo de interpretação da norma jurídica em causa seja inequívoco, ou (c) a questão prejudicial não seja necessária nem pertinente para o julgamento do litígio no órgão jurisdicional nacional.”

No caso concreto, estão preenchidas duas das três elencadas excepções à obrigatoriedade de reenvio prejudicial para o TJUE. Por um lado, existe uma vasta jurisprudência nesta matéria, sendo disso exemplo as diversas decisões arbitrais proferidas por tribunais arbitrais tributários constituídos sob a égide do CAAD, citadas pelo Requerente.

Por outro lado, também não subsistem dúvidas sobre a correcta interpretação das normas jurídicas em causa nestes autos; com efeito, as normas são perfeitamente claras e, por isso, não está já em causa interpretá-las, mas sim aplicá-las, o que é da competência do Tribunal Arbitral, tendo aqui total cabimento a teoria do acto claro.

O próprio TJUE já teve oportunidade de se pronunciar sobre todas as questões que a Requerida coloca ao nível do direito comunitário.

Assim, no que diz respeito à existência de um regime de opção em tudo igual ao introduzido no artigo 72.º do Código do IRS, pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro, pronunciou-se o TJUE no acórdão Gielen, proferido em 18/03/2010, no processo C-440/08, a que acima fizemos referência.

É certo que aquele referido Acórdão tem como tema de fundo a liberdade de circulação de pessoas, e não a liberdade de circulação de capitais, onde se enquadra a matéria em discussão nos presentes autos.

Não obstante, o ali vertido é transponível para a matéria relativa à liberdade de circulação de capitais, designadamente quando se afirma que “o Tribunal de Justiça precisou que, perante uma vantagem fiscal cujo benefício é recusado aos não residentes, uma diferença de tratamento entre estas duas categorias de contribuintes pode ser qualificada de discriminação, na acepção do Tratado FUE, quando não haja nenhuma diferença objectiva de situação susceptível de justificar diferenças de tratamento, quanto a este aspecto, entre as referidas categorias de contribuintes (acórdãos, já referidos, Talotta, n.° 19 e a jurisprudência citada, e Renneberg, n.° 60).”

Ora, esta segunda questão, relativa à existência ou não de uma “diferença objectiva de situação susceptível de justificar diferenças de tratamento” na matéria que ora nos ocupa, foi também ela já objeto de resposta pelo TJUE no Acórdão proferido no processo C‑184/18, onde se pode ler que “não existe nenhuma diferença objetiva das situações dessas duas categorias de contribuintes (...) que justifique a desigualdade de tratamento fiscal no que respeita à tributação de mais‑valias por eles realizadas em resultado da alienação de um bem imóvel situado em Portugal. Por conseguinte, a situação em que se encontram os contribuintes não residentes, (...) é comparável à dos contribuintes residentes.”

Acresce ainda que do referido Acórdão Gielen resulta claramente que é ao órgão de reenvio que compete aferir, designadamente, se o regime aplicável “está ligada à capacidade pessoal dos contribuintes” , e que o entendimento de que a jurisprudência comunitária na matéria é suficientemente clara na matéria, é igualmente confirmado pela jurisprudência do STA, que no Acórdão de 20-02-2019, proferido no processo 0901/11.0BEALM 0692/17 , decidiu questão idêntica à que se coloca no processo sub judice, sem proceder a qualquer reenvio prejudicial.

Nestes termos, conclui-se pela inexistência de qualquer fundamento para proceder ao peticionado reenvio prejudicial para o TJUE que, por isso, é indeferido.

 

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B) Da Questão de Direito a decidir nos presentes autos

Resolvida a questão relativa ao reenvio prejudicial, constata-se que a questão de fundo a decidir nos presentes autos é, assim, a de saber se a diferenciação, estabelecida pela legislação nacional, no artigo 43º, nº 2 do CIRS, para residentes e não residentes em território nacional, da base de incidência em IRS das mais-valias derivadas da alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis é ou não incompatível com a liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. A questão coloca-se, naturalmente, para os não residentes em Portugal que residam noutro Estado membro da UE, por força da proibição de discriminação, quer da proibição genérica, tal como resulta do disposto no artigo 18º do Tratado, quer da proibição de qualquer restrição (directa ou indirecta) à liberdade de circulação de capitais, por força de tal discriminação se traduzir num regime fiscal menos favorável para os não residentes.

No caso em apreciação nos presentes autos, ficou provado que a AT considerou, para efeitos de determinação do rendimento colectável e consequente liquidação do IRS ao Requerente, não residente em Portugal mas num outro Estado-Membro da UE, no caso na Espanha, a totalidade da mais-valia realizada na alienação do imóvel identificado nos autos. Ou seja, no caso dos presentes autos foi declinada a aplicação do regime preceituado no n.º 2, do artigo 43.º do Código do IRS, segundo o qual: “O saldo referido no número anterior, respeitante às transmissões efetuadas por residentes previstas nas alíneas a), c) e d) do n.º 1 do artigo 10.º, positivo ou negativo, é apenas considerado em 50% do seu valor”.

Entende a AT, que tal disciplina apenas é aplicável aos sujeitos passivos que se sujeitem às especificidades do regime interno de tributação das pessoas singulares, vigente em Portugal, assente no princípio do englobamento e da progressividade. Nesse contexto, vem a AT alegar que o Requerente poderia beneficiar do mesmo benefício e que se isso não sucede não é por serem não residentes, mas sim por não optarem pelo englobamento e aplicação do regime normal de tributação aplicável aos residentes. Ora, não podemos aceitar tal argumento, pois isso seria exigir uma condição impossível ao Requerente, bem assim como a todos os cidadãos europeus residentes noutro país da EU, pois nunca estariam em condições de se submeter a tal condição. Dito de outro modo, a seguir o entendimento da AT apenas os residentes podem, efectivamente, beneficiar do disposto no artigo 43º, nº2 do CIRS. Aliás, nisso mesmo consiste a discriminação.

A questão em apreço foi já apreciada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), no Acórdão, de 11 de outubro de 2007, proferido no processo C-443/06, designado por “Acórdão Hollmann”. Na sequência deste Acórdão, o Supremo Tribunal Administrativo (STA) português concluiu que “o n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS, (…) que limita a incidência de imposto a 50% das mais-valias realizadas apenas para residentes em Portugal, viola o disposto no art. 56.º do Tratado que Institui a Comunidade Europeia, ao excluir dessa limitação as mais-valias que tenham sido realizadas por um residente noutro Estado membro da União Europeia.”

A Jurisprudência invocada pelo Requerente não é questionada pela AT, embora defenda uma outra interpretação, por considerar que a introdução, pela Lei de Orçamento de Estado para 2008 (Lei n.º 67-A/2007 de 31 de Dezembro) da possibilidade de opção do não residente pela tributação de acordo com as taxas previstas no artigo 68º do CIRS, embora nesse caso, sejam considerados todos os rendimentos, incluindo os auferidos fora do território nacional. Este regime, constante do artigo 72º do CIRS, repõe a igualdade de tratamento entre residentes e não residentes, pelo que, do ponto de vista da AT, qualquer discriminação estaria dirimida. De notar que os nºs 9 e 10 do artigo 72º do CIRS foram introduzidos com a LOE para 2008. Alega, assim, a AT que para além do regime geral que se manteve idêntico, o legislador nacional instituiu, por via da Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro, posterior à jurisprudência do Acórdão Hollmann, um regime de opção, alegadamente, para equiparação dos não residentes aos residentes, com o objectivo de obviar ao tratamento diferenciado dos não residentes comunitários e do espaço económico europeu que realizem mais-valias imobiliárias em Portugal.

Chegados aqui, importará aferir se com esta alteração estará dirimida a causa que está na origem do tratamento discriminatório entre residentes e não residentes, quando estes últimos sejam residentes em algum estado da UE.

O princípio da não discriminação, previsto no Tratado, é um princípio fundamental na construção da União Europeia, imperativo desde a constituição do projecto europeu, e deve ser lido como imposição de tratamento igual entre cidadãos europeus, independentemente da sua nacionalidade ou residência. Este princípio está, aliás, bem sedimentado na jurisprudência do Tribunal de Justiça, que ao longo das últimas décadas o vem afirmando com clareza e determinação. Também a jurisprudência do STA tem vindo a ser firme nas decisões proferidas nesta matéria, bem assim como a jurisprudência arbitral já proferida nesta matéria.

Neste enquadramento, não oferece dúvidas que o disposto no nº 2, do artigo 43º do CIRS constitui, objectivamente, uma discriminação de tratamento entre residentes e não residentes. A própria AT, entidade requerida, nos presentes autos, está consciente dessa discriminação, como se retira da análise dos articulados juntos aos autos.

Não obstante, alega a AT, que a introdução da opção pela tributação ao abrigo do regime geral das taxas previstas no artigo 68º do CIRS, repõe a necessária igualdade de tratamento, bastando para tal que o sujeito passivo opte pela tributação nesses termos. Daqui conclui que, se existiu discriminação no caso dos presentes autos, tal se deveu exclusivamente à decisão do Requerente, por não ter exercido a opção legal ao seu dispor. Segundo a AT, esta opção de equiparação, a que se refere a AT, permite aos não residentes em Portugal, mas residentes em algum dos Estados membros da UE, a opção pela tributação desses rendimentos em condições similares às aplicáveis aos residentes em Portugal, eliminando qualquer discriminação. Será isso suficiente para concluirmos pela não violação do princípio da não discriminação?

Se assim fosse, porque não teria optado o legislador português pela pura e simples eliminação da referência aos “residentes”, no texto do artigo 43º, nº 2 do CIRS, com os ajustamentos eventualmente necessários? Teria sido mais simples e resolveria o problema sem margem para qualquer dúvida.

É entendimento deste Tribunal arbitral que a solução adoptada pelo legislador português não garante, como alega a AT, a eliminação da discriminação resultante do disposto no nº2, do artigo 43º.

Dispõem os n.ºs 8 e 9 do artigo 72.º do Código do IRS (versão introduzida pela Lei nº 66-B/2012 de 31 de dezembro – LOE para 2013):

“8 – Os rendimentos previstos nos nºs 4 a 7 podem ser englobados por opção dos respetivos titulares residentes em território português.

9- Os residentes noutro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal, podem optar, relativamente aos rendimentos referidos nos n.ºs 1 e 2, pela tributação desses rendimentos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português

10 - Para efeitos de determinação da taxa referida no número anterior são tidos em consideração todos os rendimentos, incluindo os obtidos fora deste território, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes.”

Ora, tal regime, julga-se, não resolve a questão.

Isso mesmo resulta claro na decisão Hollmann, sobre a aplicação exclusiva a residentes em Portugal do limite da incidência de IRS a 50% das mais-valias imobiliárias, prevista no n.º 2 do artigo 43.º do respectivo Código, e a sua desconformidade com o disposto no artigo 56.º do Tratado que institui a Comunidade Europeia (atual artigo 63.º do TFUE). De notar que o TJUE, no Acórdão proferido no processo C‑184/18, veio dizer que mesmo relativamente a não residentes no espaço da UE a limitação não será aceitável.

A questão em apreciação deve ter em conta, ainda, os princípios do primado do direito europeu e da prevalência da interpretação do TJUE sobre o direito de fonte comunitária, como aliás resulta do disposto no n.º 4 do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Neste enquadramento, diga-se que a jurisprudência Hollmann, proferida pelo TJUE concluiu que a norma nacional, contida no n.º 2, do artigo 43.º do Código do IRS, viola o artigo 63.º do TJUE (antigo art. 56º do TUE), por revestir carácter discriminatório (menos favorável) para os não residentes e ser, em consequência, restritiva da liberdade de circulação de capitais entre Estados membros. Esta interpretação é, pois, inequívoca e clara.

A decisão proferida, no supracitado Acórdão, assenta nos seguintes tópicos argumentativos:

“- Uma operação de liquidação de um investimento imobiliário constitui um movimento de capitais, prevendo o Tratado uma norma específica que proíbe todas as restrições aos movimentos de capitais;

- No caso de venda de um bem imóvel sito em Portugal, ocorrendo a realização de mais-valias, os não residentes ficam sujeitos a uma carga fiscal superior àquela que é aplicada a residentes, encontrando-se, portanto, numa situação menos favorável que estes últimos;

- Com efeito, enquanto a um não residente é aplicada uma taxa de 25% sobre a totalidade das mais-valias realizadas, a consideração de apenas metade da matéria colectável correspondente às mais-valias realizadas por um residente permite que este beneficie sistematicamente, a esse título, de uma carga fiscal inferior, qualquer que seja a taxa de tributação aplicável sobre a totalidade dos seus rendimentos, visto que a tributação do rendimento dos residentes está sujeita a uma tabela de taxas progressivas cujo escalão mais elevado é de 42%;

- Este regime torna a transferência de capitais menos atractiva para os não residentes e constitui uma restrição aos movimentos de capitais proibida pelo Tratado;

- A discriminação da norma nacional não é justificável pelo objectivo de evitar penalizar os residentes (que se encontram sujeitos a uma tabela de taxas progressivas que podem ser muito superiores e são tributados sobre uma base mundial, ao contrário dos não residentes, que são tributados à taxa proporcional de 25%, não ocorrendo o englobamento), porque, como acima salientado, sendo o escalão mais elevado 42% conduz sempre, nas mesmas condições, a uma tributação mais gravosa do não residente, tendo em conta a redução a 50% do rendimento colectável do residente, não existindo, objectivamente, nenhuma diferença que justifique esta desigualdade de tratamento fiscal no que respeita à tributação de mais-valias, entre as duas categorias de sujeitos passivos.”

Ainda a este propósito, como bem se refere nas decisões arbitrais nº 45/2012-T e 127/2012-T, entre outras, considerando o disposto no artigo 43º, n.º 2 do CIRS, deparamo-nos, com um regime discriminatório e incompatível com o Direito Comunitário, por violação do artigo 63.º do TFUE. Este entendimento tem sido mantido em diversas decisões arbitrais posteriores. Entendimento esse, por sua vez, confirmado pela jurisprudência do STA. É que, aos olhos da jurisprudência arbitral citada pelo Requerente e corroborada pelos nossos tribunais superiores a opção de equiparação, introduzida no sistema tributário português, após a prolação do Acórdão Hollmann, constante dos n.ºs 8 a 10 do artigo 72.º do Código do IRS, vigentes à data do facto tributário, não permite afastar o juízo de discriminação do TJUE sobre a previsão restritiva do n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS a sujeitos passivos residentes.

Desde logo, há que registar que a solução introduzida pelo legislador para obviar à discriminação contida na supramencionada norma nacional, não garante que o saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano, respeitante às transmissões efetuadas por não residentes previstas nas alíneas a), c) e d) do n.º 1 do artigo 10.º, positivo ou negativo, seja apenas considerado em 50% do seu valor, tal como acontece com os residentes, por força do disposto no art.º 43.º/1 e 2 do CIRS.

Efectivamente, o regime dos n.ºs 9 e 10 do art.º 72.º do CIRS não dispõe sobre a base da incidência, mas apenas sobre a taxa aplicável aos rendimentos referidos nos n.ºs 1 e 2 do mesmo art.º 72.º, sendo por isso verdade, como reitera a Requerida em sede arbitral, que aquele regime não implica a tributação de todos os rendimentos auferidos pelos não residentes, mas apenas da mais valia.

Com efeito, do regime em questão, não resulta uma alteração da base de incidência, sendo os rendimentos tributados os mesmos, e estando apenas prevista uma alteração da taxa aplicável, que deixa de ser a dos n.ºs 1 e 2 daquele art.º 72.º, e passa a ser a que resulta do art.º 68.º, nº1 do CIRS (o que quer dizer, desde logo, que tal taxa pode ser inferior à consagrada nos n.ºs 1 e 2 daquele art.º 72.º - desde que a taxa média seja inferior a 28% - ou superior).

Todavia, assim sendo, como é, continua a verificar-se a discriminação proscrita pelo Acórdão Hollmann, entre residentes e não residentes.

É que, se os n.ºs 9 e 10 do art.º 72.º dispõem sobre a taxa, e não sobre a base de incidência, a mesma não é alterada pela opção consagrada nos mesmos, ou seja: a base de incidência será - quer seja exercida a opção prevista naquelas normas, quer não - a mesma, o que quer dizer que quer exerçam aquela ou opção, quer não, os não residentes não verão, em qualquer caso, o saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias por si realizadas no mesmo ano, respeitante às transmissões previstas nas alíneas a), c) e d) do n.º 1 do artigo 10.º, positivo ou negativo, ser considerado apenas em 50% do seu valor.

Assim, se como entendeu a AT no acto tributário sub judice, não for aplicável o art.º 43.º, nº 2 do CIRS aos não residentes, para efeitos da sua tributação nos termos do n.º 1 do art.º 72.º, a mesma norma continuará a não ser aplicável, caso os mesmos exerçam a opção consagrada no n.º 9 e 10 do mesmo artigo 72.º, porquanto estas normas, como se referiu, não alteram a base de incidência do imposto, mas apenas a taxa a aplicar àquela.

Concretizando, como o n.º 10 do art.º 72.º apenas releva a aplicação das normas aplicáveis aos residentes, para efeitos da determinação da taxa, e não para efeitos da determinação da base tributável, a mais-valia, nos termos desse regime, relevará, em 50% unicamente para efeitos do cômputo dos rendimentos que determinará a taxa a aplicar nos termos do art.º 68.º nº 1 do CIRS, mas a taxa assim determinada continuará a ser aplicada a 100% das mais valias, uma vez que, segundo a AT, o art.º 43.º, nºs 1 e 2, do CIRS não será aplicável aos não residentes, por se reportar apenas a residentes, e não resulta, como se viu, dos n.ºs 9 e 10 do art.º 72.º a aplicação daquelas normas (nºs 1 e 2 do art.º 43.º do CIRS) , para efeitos da determinação da base tributável.

Ora, este entendimento, traduz, precisamente, a discriminação de tratamento entre residente e não residente censurada pelo acórdão Hollmann, já que os residentes pagarão sempre a taxa que resulta do art.º 68.º, nº 1 sobre 50% das mais valias, enquanto que os não residentes pagarão ou aquela taxa, determinada de acordo com as regras aplicáveis aos residentes, ou awj, 28%, sempre sobre 100% das mais valias.

A isto acresce um outro reparo que resulta da complexidade de funcionamento do imposto, agravado pela “opção pelo englobamento” de todos os rendimentos obtidos no outro país, para além de outras questões relevantes associadas ao princípio da territorialidade previsto artigo 15º do CIRS, às condições de pessoalização e à progressividade do imposto, dificilmente compatível com uma adequada consideração dos valores auferidos noutro estado membro, no estado atual do direito comunitário. O que vale por dizer que a alteração legislativa operada assenta em pressupostos inquinados pela intenção de manter uma tributação mais onerosa sobre os não residentes, mesmo que estes residam no espaço da EU, o que se afigura inaceitável aos olhos da referida jurisprudência do TJUE.

Dito de outro modo, a AT não demonstrou (nem conseguiria) que a opção pelo englobamento, como forma de equiparação, tal qual foi introduzida nos nºs 9 e 10 do artigo 72º do CIRS, seja suficiente para excluir a discriminação em causa.

Acresce ainda, como dissemos supra, que sempre ficaria a dúvida de sobre a razão que levou o legislador a não optar pela via da eliminação directa da discriminação contida na norma do artigo 43º, n.º 2 do CIRS. Alega a AT que a solução adoptada no artigo 72º, nºs 8 a 10 é bastante, porquanto também para os residentes em território português, estes rendimentos estão sujeitos ao englobamento. Ora, tal argumento não parece adequado porquanto não leva em linha de conta todas as outras condições de tributação inerentes ao funcionamento de um imposto com as características do imposto sobre os rendimentos das pessoas singulares e evidencia uma intenção de tributação em função dos rendimentos auferidos no outro país (quando englobados) bem sabendo que se trata de realidades incomparáveis, facilmente falseadas por toda uma realidade de base que escapa à soberania fiscal do estado português.

Não temos, pelo exposto, dúvida que a solução adotada pelo legislador português não elimina o caráter discriminatório no tratamento de residentes e não residentes, em matéria de mais-valias decorrentes de alienação de imóveis.

Neste sentido, impõe-se a referência a um outro Acórdão do TJUE, no qual o Tribunal se pronunciou sobre questão semelhante à que resulta nos presentes autos, quanto à apreciação da opção introduzida pelo legislador português. Assim, se pronunciou o TJUE, no Acórdão, de 18 de Março de 2010, proferido no processo C-440/08, designado por “Acórdão Gielen”, numa situação idêntica à que agora apreciamos, com a única diferença de que neste processo estava em causa a violação do artigo 49.º e não a do artigo 63.º do TFUE .

Ora, neste Acórdão salienta o TJUE que “a opção de equiparação permite a um contribuinte não residente, (…) escolher entre um regime fiscal discriminatório e um outro regime supostamente não discriminatório”.

Considera, ainda, o TJUE no mesmo Acórdão que tal opção não é passível de excluir todos os efeitos discriminatórios do primeiro desses dois regimes fiscais, acrescentando que “o reconhecimento de um efeito dessa natureza à referida escolha teria por consequência (…) validar um regime fiscal que continuaria, em si mesmo, a violar o artigo 49.° TFUE em razão do seu carácter discriminatório.”

Como bem se refere na Decisão arbitral nº45/2012-T, as consequências do que se deixa exposto, em conformidade com a jurisprudência do TJUE supra referida, pode eventualmente resultar numa tributação mais favorável das mais-valias imobiliárias auferidas por não residentes em Portugal, que residam na União Europeia, do que por residentes, pois, para além de beneficiarem de igual modo da redução a 50% da base de incidência de IRS, são sujeitos a uma taxa de tributação, que será, na maioria dos casos, inferior às taxas progressivas dos residentes, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º do Código do IRS, a que acresce o facto de estes últimos terem de englobar todos os seus rendimentos. Porém, esta é uma consequência da fiscalidade directa ser um domínio da competência dos Estados membros, cabendo a estes resolver no plano interno este tipo de discrepâncias. Uma coisa é certa e incontornável, no actual estádio do Direito Comunitário: não se vislumbra um princípio ou norma que impeça a discriminação positiva dos não residentes face aos residentes , mas é clara a proibição de discriminação dos não residentes, nos termos supra explanados.

Este entendimento é, desde 2011, sufragado pelo STA, como se extrai da jurisprudência do Acórdão de 22 de Março de 2011, proferido no processo n.º 1031/10, que anulou o acto de liquidação emitido pela AT, que “perante a declaração dos contribuintes, lhes liquidou o imposto que considerou devido (como aliás sempre sucede no IRS): à taxa prevista para os não residentes (25%, nos termos do artigo 72.º n.º 1 do Código do IRS) e sobre o montante total da mais-valia realizada e não apenas sobre 50% deste valor (artigo 43.º, n.º 2 do Código do IRS), assim ignorando a jurisprudência comunitária e a deste Supremo Tribunal que a acolheu (cfr. o Acórdão de 16 de Janeiro de 2008, rec. n.º 439/06) quanto à incompatibilidade daquela disposição legal, assim aplicada, com o (então) artigo 56.º do TJCE (actual artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia), sujeitando deste modo, como veio a acontecer, a ver anulada nessa parte a liquidação impugnada, dado o primado do direito comunitário.”.

Acresce que, no Ac. do STA de 20-02-2019, proferido no processo 0901/11.0BEALM 0692/17, foi já decidida questão em tudo idêntica à que ora nos ocupa, tendo aquele Supremo Tribunal decidido no sentido da tributação de 50% das mais valias, concluindo-se pela sua aplicação aos não residentes, sem que seja feita a opção do n.º 9 do art.º 72.º.

No mesmo sentido, decidiu o TCA-Sul, no seu acórdão de 08-05-2019, proferido no processo 1358/08.9BESNT.

Ora, os tribunais em geral, e também os tribunais arbitrais, julga-se, estão vinculados ao dever de ter “em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.” (art.º 8.º/3 do Código Civil).

Por outro lado, e nos termos do art.º 25.º/2 do RJAT, “A decisão arbitral sobre o mérito da pretensão deduzida que ponha termo ao processo arbitral é ainda susceptível de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal Administrativo.”.

Daí que uma decisão, na matéria sub iudice, que vá contra a jurisprudência emitida pelo STA na matéria, verificando-se, como se verifica, identidade dos factos e do direito a aplicar a estes, entre o presente caso e o já julgado pelo STA, seria, não só susceptível de recurso nos termos do referido art.º 25.º/2 do RJAT, como, com um elevado grau de probabilidade, passível de ser revogada por aquele Alto Tribunal.

Assim, e em suma, não se crê que tivesse qualquer utilidade, pelo contrário (daria azo a tramitação processual adicional inútil e desnecessária), este Tribunal concluir de outra forma, no que diz respeito às correcções ora em apreço que não a afirmada pelo STA.

Nesta conformidade, a liquidação impugnada afigura-se ilegal, por incompatibilidade do n.º 2 do artigo 43.º com o artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, na parte em que restringe a redução a 50% das mais-valias sujeitas a IRS a sujeitos passivos residentes em Portugal, o que determina a sua anulação.

Em face do exposto, julga-se procedente o pedido de pronúncia arbitral, anulando a liquidação de IRS impugnada, com o consequente reembolso do valor pago em excesso.

 

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VI - Quanto a Juros indemnizatórios:

Cumula o Requerente, com o pedido anulatório da liquidação, o pedido de condenação no pagamento de juros indemnizatórios.

Face à procedência do pedido anulatório, deverá ser restituída a quantia paga indevidamente, em excesso, pelo Requerente, relativamente ao acto tributário anulado. No caso em apreço, é manifesto que a ilegalidade do acto de liquidação, cuja quantia o Requerente pagou, é imputável à AT, que, por sua iniciativa, o praticou sem suporte legal.

Consequentemente, o Requerente tem direito a juros indemnizatórios, nos termos dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT. Os juros indemnizatórios são devidos, desde a data dos pagamentos que se mostrem efectuados, e calculados com base no respectivo valor do excesso de imposto liquidado e pago, até à do processamento da nota de crédito, em que são incluídos (art.º 61.º, n.º 5, do CPPT), à taxa legal, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, 61.º do CPPT e 559.º do Código Civil.

 

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C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:

a)            Anular o acto de liquidação de IRS n.º 2019..., referente ao ano de 2018, no valor de €160.048,29;

b)           Condenar a AT a restituir ao Requerente o valor de imposto pago em excesso, acrescido de juros indemnizatórios, a contar da data em que foi efectuado o pagamento;

c)            Condenar a Requerida nas custas do processo, abaixo fixadas.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em €160.048,29, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 3.672,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela AT, uma vez que o pedido foi totalmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 02 de Dezembro de 2020

 

O Árbitro Presidente

(José Pedro Carvalho)

 

O Árbitro Vogal

(Adelaide Moura)

 

O Árbitro Vogal

(Nina Aguiar)