Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 799/2019-T
Data da decisão: 2020-11-29  IRS  
Valor do pedido: € 175.010,99
Tema: IRS – Crédito por dupla tributação internacional; Prova
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SUMÁRIO: A prova do imposto pago no estrangeiro, para efeitos do apuramento do crédito por dupla tributação jurídica internacional, pode ser feita por qualquer meio de prova admitido em direito.

 

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Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), Nuno Pombo e Diogo Feio, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral, na seguinte:

 

DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

 

I – RELATÓRIO

 

1.            No dia 27 de Novembro de 2019, A..., contribuinte n.º ... e B..., contribuinte n.º ..., residentes na Rua ..., n.º..., ..., ...-... Porto, apresentaram pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade do acto de liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) n.º 2019... e da liquidação de juros compensatórios, referente ao ano de 2015, no valor global de €175.010,99.

 

2.            Para fundamentar o seu pedido alegam os Requerentes, em síntese, o seguinte:

i.             o artigo 128.º, n.º 1 do Código do IRS não impõe o recurso a meios probatórios específicos, designadamente, a apresentação de declarações emitidas pelas autoridades fiscais dos Estados da fonte dos rendimentos, pelo que a interpretação da AT segundo a qual existe nesta matéria uma restrição ao princípio da admissibilidade de todos os meios gerais de prova, encontra-se ferida de inconstitucionalidade por violação dos artigos 268.º, n.º 4 e 20.º da CRP;

ii.            a necessidade de apresentação de declarações emitidas pelas autoridades fiscais dos Estados da fonte dos rendimentos decorre apenas do Ofício-Circulado n.º 20.124, de 9 de Maio de 2007 e da Portaria n.º 404/2015, de 16 de Novembro, não sendo estes instrumentos aptos a criar na esfera dos Requerentes quaisquer obrigações tributárias em sede de IRS, pelo que incorreu a AT na violação do princípio da legalidade ínsito nos artigos 103.º, n.º 2 e n.º 3, 165.º, n.º 1, alínea i) e 112.º, n.º 1 e n.º 5 da CRP e artigo 8.º da Lei Geral Tributária (LGT);

iii.           a prova de acesso ao crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional não figura entre os pressupostos de aplicação das normas convencionais em causa, não sendo legítimo que o Estado português invoque o incumprimento de uma obrigação apenas prevista no seu direito interno para afastar a aplicação das Convenções internacionais, em violação do artigo 8.º, n.º 2 da CRP;

iv.           a AT tinha ao seu dispor a faculdade de provocar a aplicação dos mecanismos de trocas de informações e, através deles, confirmar a veracidade dos elementos declarados pelos Requerentes. Não o tendo feito, a AT incorreu na violação do princípio do inquisitório e da verdade material, desdobramentos dos princípios da legalidade e da igualdade, previstos nos artigos 103.º, n.º 3, 13.º e 266.º, n.º 2 da CRP;

v.            a determinação de uma obrigação como aquela que parece resultar, no entender da AT, do disposto no artigo 128.º, n.º 1 do CIRS, não se mostra necessária à satisfação dos interesses de controlo do preenchimento das condições de acesso ao crédito de imposto por dupla tributação internacional, pelo que é manifestamente desproporcionada a cominação de não dedução à coleta do IRS do imposto correspondente a tal crédito.

 

3.            No dia 28-11-2019, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

4.            Os Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

5.            Em 20-01-2020, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

6.            Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 19-02-2020.

 

7.            No dia 02-09-2020, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.

 

8.            Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.

 

9.            Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelos Requerentes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.

 

10.          Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT, com as prorrogações determinadas nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.

 

11.          O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir:

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1-            No ano de 2015, os Requerentes foram residentes para efeitos fiscais em território nacional.

2-            No ano de 2015, o Requerente marido obteve rendimentos de capitais, de origem estrangeira, no montante de €480.277,21, distribuídos da seguinte forma:

a)            €14.772,55 a título de rendimentos de valores mobiliários, colocados à disposição pela instituição financeira Banco F..., S.A.;

b)           €66.038,89, a título de rendimentos de capitais, colocados à disposição pelas instituições financeiras C... (LUXEMBOURG), S.A., D... (SUISSE), S.A. e E... (SUISSE), S.A.;

c)            €2.489,19 a título de rendimentos de capitais, colocados à disposição pela instituição financeira F..., S.A.;

d)           €391.246,03, a título de dividendos, colocados à disposição pelas instituições financeiras BANCO F..., S.A., D... (SUISSE), S.A., G..., S.A. e E... (SUISSE), S.A.

3-            No ano de 2015, o Requerente marido declarou, como obtidos no estrangeiro, os seguintes montantes, e como retidos os seguintes valores, a título de imposto:

 

4-            Em 30-05-2016, os Requerentes apresentaram a declaração de rendimentos Modelo 3 de IRS, relativa ao ano de 2015, na qualidade de sujeitos passivos residentes, com domicílio fiscal no continente, tendo submetido os anexos A, F, G, H e J.

5-            No anexo J da declaração Modelo 3 de IRS, os Requerentes declararam os rendimentos obtidos no estrangeiro pelo Requerente, nomeadamente, os rendimentos de capitais, assim como os respectivos impostos pagos no estrangeiro e imposto retido em Portugal.    

6-            Os Requerentes fizeram constar do Anexo J – Quadro 8 (Rendimentos de capitais), rendimentos de capitais ilíquidos obtidos no estrangeiro, no montante de €480.277,21 e declararam imposto pago no estrangeiro no valor de €55.605,90. 

7-            Os impostos pagos no estrangeiro foram considerados pelos Requerentes, para efeitos do artigo 81.º do CIRS.                                                                             

8-            Na sequência da entrega da declaração de rendimentos, foi emitida a liquidação de IRS n.º 2016..., da qual resultou imposto a pagar no montante de €125.021,11.

9-            Os Requerentes procederam ao pagamento da referida liquidação.

10-         Através do Ofício n.º 2018..., de 27 de Junho de 2018, da Direcção de Finanças do Porto, o Requerente foi notificado para “no prazo de 15(QUINZE) DIAS, SE ASSIM O ENTENDEREM, exercer o direito de audição preferencialmente POR ESCRITO, sobre as correções propostas, referentes ao IRS de 2015, tendo V. Exa. inscrito, no Anexo J da declaração modelo 3 de IRS, rendimentos auferidos e imposto pago no estrangeiro, beneficiou de um crédito de imposto por dupla tributação internacional, na liquidação de imposto em Portugal, para o(s) ano(s) de 2015.

Assim, nos termos do artigo 128.º, n.º 1 do Código do IRS, deverá apresentar documentos emitidos pela autoridade fiscal do Estado da fonte dos rendimentos (documentos originais ou cópias autenticadas, sempre que não se encontrem em português, espanhol, francês, inglês ou alemão deverão ser acompanhados de tradução autenticada) comprovativos dos montantes inscritos no respectivo anexo J, conforme determinado nas instruções de preenchimento deste anexo.”

11-         No dia 16-07-2018, em resposta àquele Ofício, o Requerente apresentou extractos emitidos pelas instituições financeiras, atestando os rendimentos de capitais de fonte estrangeira por si auferidos e o imposto suportado no respectivo país da fonte.

12-         Através do Ofício n.º 2019..., de 6 de Março de 2019, da Direcção de Finanças do Porto, o Requerente foi notificado do despacho de 27-02-2019, do Director de Serviços de Relações Internacionais e, para querendo, exercer direito de audição.

13-         Da referida notificação constava o seguinte:

 

14-         O Requerente exerceu direito de audição prévia, nos termos do artigo 60.º da LGT.

15-         Através do Ofício n.º 2019..., de 02-07-2019, os Requerentes foram notificados da decisão da AT proceder à elaboração de declaração de correcção oficiosa de IRS/2015, com a seguinte fundamentação:

 

16-         Em Agosto de 2019, os Requerentes foram notificados da liquidação adicional de IRS n.º 2019..., relativa ao ano de 2015, no montante de €175.010,99. 

17-         Em 02-09-2019, os Requerentes procederam ao pagamento da referida liquidação.

 

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7 do CPPT, e a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

B. DO DIREITO

Em causa nos presentes autos está, exclusivamente, dar resposta à questão de saber se a liquidação adicional de IRS do ano de 2015, que desconsiderou o crédito de imposto por dupla tributação internacional, previsto no artigo 81.º do CIRS vigente à data, é, ou não, legal.

Sustentam os Requerentes que o artigo 128.º, n.º 1 do Código do IRS não impõe o recurso a meios probatórios específicos, designadamente, a apresentação de declarações emitidas pelas autoridades fiscais dos Estados da fonte dos rendimentos, pelo que, em seu entender, a interpretação da AT segundo a qual existe, nesta matéria, uma restrição ao princípio da admissibilidade de todos os meios gerais de prova, encontra-se ferida de inconstitucionalidade por violação dos artigos 268.º, n.º 4 e 20.º da CRP. 

Referem, ainda, os Requerentes que a prova de acesso ao crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional não figura entre os pressupostos de aplicação das normas que decorrem das Convenções para Evitar a Dupla Tributação, não sendo legítimo que o Estado português invoque o incumprimento de uma obrigação apenas prevista no seu direito interno para afastar a aplicação de tais convenções, em violação do artigo 8.º, n.º 2 da CRP.

Mais alegam os Requerentes que a AT tinha ao seu dispor a faculdade de provocar a aplicação dos mecanismos de trocas de informações e, através deles, confirmar a veracidade dos elementos declarados pelos Requerentes, pelo que, não o tendo feito incorreu na violação do princípio do inquisitório e da verdade material. 

Por seu turno, sustenta a Requerida que “apenas as administrações estrangeiras estão em posição de poder declarar o montante total de rendimento auferido e o montante total de imposto efectivamente pago a final”, pelo que não sendo os documentos apresentados pelos Requerentes documentos emitidos pela autoridade fiscal do Estado da fonte dos rendimentos, nem resultando deles nenhuma evidência de se tratar efectivamente do imposto total e final para o ano em causa, não poderão servir de suporte à prova do imposto pago no estrangeiro, para efeitos da aplicação do artigo 81.º do CIRS.

Vejamos então.

*

Dispõe o artigo 81.º, n.º 1 referido:

“1 - Os titulares de rendimentos das diferentes categorias obtidos no estrangeiro têm direito a um crédito de imposto por dupla tributação internacional, dedutível até à concorrência da parte da coleta proporcional a esses rendimentos líquidos, considerados nos termos da alínea b) do n.º 6 do artigo 22º, que corresponderá à menor das seguintes importâncias:

a) Imposto sobre o rendimento pago no estrangeiro;

b) Fração da coleta do IRS, calculada antes da dedução, correspondente aos rendimentos que no país em causa possam ser tributados, líquidos das deduções específicas previstas neste Código.

2 - Quando existir convenção para eliminar a dupla tributação celebrada por Portugal, a dedução a efetuar nos termos do número anterior não pode ultrapassar o imposto pago no estrangeiro nos termos previstos pela convenção.”

Nos termos do disposto no artigo 74.º, n.º 1, da LGT, o ónus da prova no caso sub iudice recai sobre os Requerentes, ou seja, são os Requerentes que têm o ónus de demonstrar o direito a deduzir à colecta o montante do imposto pago no estrangeiro.

A prova a realizar pelos Requerentes, inexistindo – e nem sendo, sequer, invocada – qualquer norma que imponha uma prova legal, poderá ser feita por qualquer meio de prova admitido em direito, conforme, para além do mais, resulta dos art.ºs 50.º e 115.º, n.º 1 do CPPT, e 72.º da LGT.

Ora, e desde logo, entre tais meios, como se escrevia já no Ac. do STJ de 31-03-1987, proferido no processo 0744623 , “figura a prova por presunção”.

Nos termos do artigo 75.º, n.º 1 da LGT:

“Presumem-se verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal.”.

Resulta dos factos dados como provados que na sua declaração para efeitos de IRS, oportunamente apresentada, os Requerentes fizeram constar, devidamente e no local próprio, o crédito de imposto ora em litígio.

Assim, devendo presumir-se verdadeira tal declaração, da mesma (facto conhecido), por presunção, em obediência ao referido artigo 78.º, n.º 1 da LGT, dever-se-á ter como provado o facto (desconhecido) relativo pagamento de imposto no estrangeiro.

Efectivamente, não tendo sido demonstrado – ou, sequer, alegado – qualquer das circunstâncias descritas nas diversas alíneas do n.º 2 daquele artigo 78.º, a presunção em questão terá plena aplicação .

Sustenta a Requerida, em sede de resposta ao pedido arbitral, que em muitas situações os valores que constam dos avisos de pagamento dos rendimentos emitidos pelas entidades gestoras dos rendimentos, não têm correspondência com os valores declarados no anexo J. Porém, a Requerida não concretiza quais as alegadas discrepâncias, os valores, os países, os períodos, em relação aos quais se verificará essa falta de correspondência, nem sequer o faz relativamente ao caso que nos ocupa.

Acresce que, conforme  tem sido jurisprudência consolidada a vários níveis, “É exclusivamente à luz da fundamentação externada pela AT quando da prática da liquidação (...) que deve aferir-se a legalidade desse acto tributário” , pelo que não constando quer do acto de liquidação adicional ora impugnado, quer do processo administrativo qualquer concretização das discrepâncias que a AT entende existir entre os valores declarados no anexo J e os documentos apresentados, não caberá a este Tribunal Arbitral, pronunciar-se sobre as mesmas.

Por outro lado, no processo n.º 91-2012-T do CAAD , escreveu-se:

“No caso em apreço, tendo a administração tributária concluído que não se podia apurar que serviços foram efectuados e sua quantificação, adoptou um entendimento que se reconduz a que nenhum dos serviços prestados, que desconhecia, era necessário para realização dos rendimentos ou manutenção da fonte produtora.

Este entendimento não tem correspondência com a realidade, pois foram prestados alguns serviços, como resulta da matéria de facto fixada, pelo que os actos de liquidação relativos aos anos de 2007 e 2008, na parte em que assentaram nas correcções relativas aos «Management fees», enfermam de erro nos pressupostos de facto.”

Não sendo as situações em questão nos presentes autos, e naquele processo, directamente transponíveis, entende-se que o critério normativo subjacente àquela decisão é, esse sim, ora aplicável, considerando-se que nos casos em que a AT não tenha dúvidas, fundadas, da ocorrência de uma componente negativa (entendida amplamente) do rendimento tributável, mas, unicamente, da sua quantificação, não poderá, por força de princípios como o da capacidade contributiva, a nível substantivo, e do inquisitório, a nível procedimental, simplesmente desconsiderar na totalidade aquela mesma componente negativa, devendo, se necessário, proceder à sua determinação por métodos indirectos.

Mas mesmo que assim não se entendesse, e que se considerasse que a veracidade presumida da declaração não abrange o crédito de imposto declarado, julga-se que sempre se deverá considerar ilegítima a rejeição pela AT da documentação apresentada pelos Requerentes.

Com efeito, estes, no cumprimento do seu dever de colaboração (cujo inadimplemento, de resto, poderia legitimar o afastamento da presunção acima referida, nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 78.º da LGT), apresentou vários comprovativos de rendimentos pagos e de imposto retido na fonte, emitidos por entidades bancárias que disponibilizam os rendimentos –F..., C..., D... Suisse, G... e E... Suisse -  nas quais se identificam a entidade pagadora dos rendimentos, o beneficiário dos rendimentos, o valor total dos rendimentos e o montante do imposto retido na fonte.

Note-se que a AT não coloca em causa nem a autenticidade nem a veracidade daqueles documentos, aceitando-os como bons no que concerne ao montante de rendimentos pagos ao Requerente, e não duvidando, fundadamente, de que a retenção declarada haja sido, efectivamente, feita.

Essencialmente, o que a AT questiona, e aí radica o fundamento do acto tributário impugnado, é se as retenções em questão operaram a título definitivo, ou, antes, se as mesmas foram meras retenções por conta, sujeitas a um qualquer acerto, com reembolso a favor dos contribuintes, exigindo, para seu esclarecimento, que seja apresentado “original ou cópia autenticada de documento emitido pela entidade fiscal do Estado onde os rendimentos foram auferidos e o imposto foi pago”, para, no fundo, fiscalizar a quantificação do imposto pago no estrangeiro declarado pelos Requerentes, e não para comprovar a existência de imposto pago por aquele.

Em todo o caso, e mesmo que assim não fosse, verifica-se que as dúvidas em que a AT laborou, assentam, conforme resulta quer do processo administrativo, quer das respectivas peças processuais destes autos, nos seguintes entendimentos:

- O comprovativo do imposto pago, a atender em sede do crédito fiscal que se discute, teria de ser necessariamente um documento emitido pela entidade fiscal do Estado onde os rendimentos foram auferidos e o imposto foi pago; e

- Deveria ter sido apresentada prova de que o imposto pago é o imposto total e final para o ano.

Ora, ressalvado o respeito devido, julga-se que nenhum daqueles entendimentos tem cabimento legal.

Nos termos do artigo 128.º, n.º 1, do CIRS:

“As pessoas sujeitas a IRS devem apresentar, no prazo de 15 dias, os documentos comprovativos dos rendimentos auferidos, das deduções e de outros factos ou situações mencionadas na respetiva declaração, quando a Autoridade Tributária e Aduaneira os exija”.

O preceito legal em apreço não impõe o recurso a meios probatórios específicos, designadamente, a apresentação de declarações emitidas pelas autoridades fiscais dos Estados da fonte dos rendimentos.

Sustenta a Requerida, a exigência de documentos originais (ou fotocópias autenticadas) emitidos pela autoridade fiscal do país de origem desses rendimentos que comprovem o imposto pago no estrangeiro, no disposto no n.º 2 do Ofício Circulado 20124 de 09-05-2007.

Os Ofícios Circulados integram as chamadas orientações administrativas que constituem “regulamentos internos que, por terem como destinatário apenas a administração tributária, só esta lhes deve obediência, sendo, pois, obrigatórios apenas para os órgãos situados hierarquicamente abaixo do órgão autor dos mesmos” . Por isso, não são vinculativos nem para os particulares nem para os tribunais. É certo que eles densificam, explicitam ou desenvolvem os preceitos legais, definindo previamente o conteúdo dos actos a praticar pela AT aquando da sua aplicação, mas isso não os converte em padrão de validade dos actos que suportam. Na verdade, a aferição da legalidade dos actos da AT deve ser efectuada através do confronto directo com a(s) norma(s) legal(is) que os suportam, e não com o regulamento interno, que se interpôs entre a norma e o acto.

Conclui-se, portanto, como aponta a Requerente, que o Ofício-Circulado invocado pela Requerida, com vista a fundamentar o acto tributário ora contestado, não é apto a criar quaisquer obrigações acessórias que condicionem a aplicação do artigo 81.º do CIRS.

Assim, não sendo o Ofício-Circulado vinculativo para os particulares e, inexistindo qualquer norma que legitime aquilo que a AT sustenta, relativamente à limitação dos meios de prova do imposto pago no estrangeiro, como, de resto, se reconheceu no Acórdão do TCA-Norte de 14-04-2005, proferido no processo n.º 00107/03 , não poderá proceder a tese da AT.

Note-se, a este propósito, que mesmo o art.º 51.º-B do CIRC, que impõe no seu n.º 1 que “A prova do cumprimento dos requisitos previstos no artigo 51.º deve ser efetuada através de declarações ou documentos confirmados e autenticados pelas autoridades públicas competentes do Estado, país ou território onde a entidade que distribui os lucros ou reservas tenha a sua sede ou direção efetiva.”, admite, no seu n.º 4 que “Na ausência das declarações e documentos mencionados no n.º 1, o cumprimento dos requisitos previstos no artigo 51.º pode ser demonstrado através de quaisquer outros meios de prova.”.

Tendo, a propósito desta norma, a própria AT emitido o Ofício Circulado n.º 20225, 2020-07-02 , no qual, com toda a propriedade, e para além do mais, esclarece qual o procedimento adequado neste tipo de situações, em termos perfeitamente transponíveis para a situação sub iudice, a saber:

“5. A enumeração efetuada no ponto anterior não tem caráter exaustivo, pelo que podem ser apresentados pelo sujeito passivo ou, quando necessário, exigidos pela Autoridade Tributária e Aduaneira outros elementos para além dos aí indicados.

6. O referido nos pontos anteriores não prejudica a apreciação pela Autoridade Tributária e Aduaneira de quaisquer elementos de prova apresentados nos termos dos números 3 e 4 do artigo 51.º-B do Código do IRC, designadamente quanto à respetiva suficiência, pertinência e garantias de fidedignidade, bem como a utilização dos mecanismos de cooperação administrativa ao abrigo dos instrumentos jurídicos de direito europeu e internacional em vigor para verificar o cumprimento dos requisitos previstos no artigo 51.º do Código do IRC.”

O entendimento da AT, segundo o qual o comprovativo do imposto pago, a atender em sede do crédito fiscal, teria de ser necessariamente um documento emitido pela autoridade fiscal do Estado onde os rendimentos foram auferidos e o imposto foi pago, e que é necessária prova de que o imposto pago é o imposto total e final para o ano, tem, aliás, subjacente uma mundividência que pressupõe que todos os Estados estrangeiros são organizados em quadros burocráticos e legais análogos ao nacional/europeu ocidental, o que, notoriamente, e sobretudo, mas não só, em países menos desenvolvidos não é sempre o caso.

Por outro lado, assume também que as administrações tributárias estrangeiras, a nível global, estão ao dispor de todos quantos aí auferem rendimentos, para emitir as declarações e certidões que a AT portuguesa entenda necessárias.

Acresce ainda, e já no que diz respeito à possibilidade de uma eventual liquidação final, também esta assume um quadro legal – não demonstrado, todavia – análogo ao nacional, onde existem retenções na fonte liberatórias e por conta. Assim, e para que, no mínimo, se pudesse conceder algum fundamento à dúvida em causa suscitada pela AT, sempre seria necessário que a mesma demonstrasse que nos países-fonte do rendimento, o quadro legal previa a possibilidade de retenções por conta/liberatórias, e quais os concretos circunstancialismos que condicionassem a qualificação das retenções como de um ou outro tipo.

Com efeito, e nos termos do art.º 348.º, n.º 1 do Código Civil:

“Àquele que invocar direito consuetudinário, local, ou estrangeiro compete fazer a prova da sua existência e conteúdo”.

Por fim, e sem prejuízo de tudo quanto até aqui se referiu, sempre se entende que, face aos elementos documentais apresentado pelos Requerentes, também por via de uma presunção natural sempre se chegaria ao resultado da demonstração do imposto suportado pelos Requerentes no estrangeiro, em conformidade com o declarado.

Como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22-04-2009, proferido no processo 259/07.2PBSCR.L1 3ª Secção :

“I. A presunção permite que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente (id quod plerumque accidit) certos factos são a consequência de outros. No valor da credibilidade do id quod, e na força da conexão causal entre dois acontecimentos, está o fundamento racional da presunção, e na medida desse valor está o rigor da presunção.

II. Na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido, têm de intervir juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido.”

Com efeito, os Requerentes, contribuintes residentes em território português, no ano de 2015, declararam oportunamente os valores constantes dos extractos emitidos pelas instituições financeiras pagadoras dos rendimentos, quer no que diz respeito ao rendimento bruto, quer ao imposto retido e entregue aos Estados de fonte do rendimento.

Não há qualquer indício de fraude ou de fuga.

A dúvida que a AT levanta relaciona-se com a possibilidade de os Requerentes terem obtido algum reembolso e, consequentemente estarem a ocultar rendimentos (na parte correspondente a esse suposto reembolso).

Ora, se assim fosse, ou seja, se o propósito dos Requerentes fosse subtrair/ocultar parte dos rendimentos efectivamente auferidos à AT portuguesa, o natural seria ocultar a totalidade dos rendimentos auferidos no estrangeiro, e não declarar a maior parte, e ocultar uma pequena porção, já que a AT teria, precisamente, a mesma facilidade ou dificuldade em detectar uma ou outra das omissões.

Assim, apreciada globalmente a situação e tendo em conta as regras da experiência, não restarão dúvidas razoáveis que o imposto suportado pelos Requerentes  no estrangeiro (Estados Unidos da América, Luxemburgo, Suíça, Curaçau, Ilhas Caimão, França, Reino Unido, Países Baixos, Alemanha, Espanha, Brasil, Rússia, Irlanda, Itália, Austrália e Finlândia), relativo aos rendimentos ali auferidos e por si declarados, foram, efectivamente, os constantes da sua declaração de rendimentos, oportunamente apresentada.

De resto, existe entre a grande maioria dos Estados nos quais os Requerentes auferiram rendimentos (à excepção de Curaçau, Ilhas Caimão e Austrália) e a República Portuguesa, Convenção para Evitar a Dupla Tributação em Matéria de Impostos sobre o Rendimento.

Todas as Convenções para Evitar a Dupla Tributação celebradas entre a República Portuguesa e os Estados nos quais os Requerentes obtiveram rendimentos – Estados Unidos da América, Luxemburgo, Suíça, França, Reino Unido, Holanda, Alemanha, Espanha, Brasil, Rússia, Irlanda, Itália e Finlândia - contêm uma disposição normativa que prevê que as autoridades competentes dos Estados Contratantes troquem entre si as informações necessárias para aplicar a Convenção e as leis internas dos Estados Contratantes relativas aos impostos abrangidos pela Convenção.

                Ora, como se escreveu no Acórdão do TCA-Sul de 03-05-2018, proferido no processo n.º 344/10.3BELRS, convocando artigo análogo da Convenção entre a República Portuguesa e a República Federal da Alemanha para Evitar a Dupla Tributação em Matéria de Impostos sobre o Rendimento e sobre o Capital:

“No caso em exame, a pretensão impugnatória da liquidação em apreço assenta na existência na esfera jurídica dos impugnantes de crédito de imposto liquidado na Alemanha, por existência de dupla tributação, dado que sobre o mesmo exercício e sobre o mesmo rendimento, os sujeitos passivos em causa liquidam imposto de rendimento na Alemanha e imposto sobre o mesmo rendimento em Portugal.

Factualidade que se mostra devidamente comprovada nos autos, mas que em caso de dúvida, cabia à AT apurar (artigo 27.º/1, da CDT). Tal circunstância origina a constituição de crédito de imposto a deduzir em face da AT portuguesa.

A desconsideração do crédito de imposto e do regime de evitação da dupla tributação que o sustenta, acima mencionado - independentemente dos valores concretos que lhe são de imputar, os quais, de resto, cabe à AT, apurar -, torna a liquidação impugnada inválida por vício de violação de lei, por ofensa ao crédito de imposto dos impugnantes em virtude da dupla tributação ocorrida.”.

Deste modo, e face a todo exposto, incorreu a liquidação a que se refere o presente processo em erro nos pressupostos de facto, e consequente erro de direito, devendo, como tal, ser anulada.

*

Os Requerentes pedem ainda que seja condenada a Requerida no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT.

De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até o termo do prazo previsto para execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”, o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

Já o n.º 5 do artigo 24.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, que refere que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário” mais não é do que o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

No caso em apreço, tendo sido declarada a ilegalidade do acto de liquidação, por motivo imputável à AT, que o praticou em violação da lei, há lugar ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT e do artigo 61.º do CPPT, calculados sobre a quantia que o Requerente pagou indevidamente.

Tais juros serão de considerar devidos desde a data do pagamento indevido até ao momento do respectivo reembolso.

 *

C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência,

a)            Anular o acto de liquidação de IRS n.º 2019... e respectiva liquidação de juros compensatórios;

b)           Condenar a AT no reembolso do imposto indevidamente pago, ora anulado, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos acima indicados;

c)            Condenar a Requerida nas custas do processo, abaixo fixadas.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em €175.010,99, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 3.672,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi totalmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 29 de Novembro de 2020

 

O Árbitro Presidente

(José Pedro Carvalho)

 

O Árbitro Vogal

(Nuno Pombo)

 

O Árbitro Vogal

(Diogo Feio)