Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 784/2019-T
Data da decisão: 2020-09-22   Outros 
Valor do pedido: € 1.867.700,56
Tema: Derrama estadual; Constitucionalidade. Reforma de acórdão
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DECISÃO ARBITRAL

Acordam em tribunal arbitral

 

I – Relatório

 

                               1. A… S.A., pessoa coletiva n.º …, com sede no Pólo Industrial da …, …, …, sociedade dominante do grupo …, e B… S.A., anteriormente designada A… S.A, sociedade participante do Grupo, pessoa colectiva n.º …, com sede na R…, …, vêm requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade do ato de autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) relativo ao exercício de 2018, correspondente à declaração Modelo 22 de IRC individual da …, consubstanciada na liquidação n.º 2019 …, na parte relativa à liquidação da derrama estadual, no montante de € 1.867.700,56, bem como do despacho de indeferimento da reclamação graciosa deduzida contra esse acto, requerendo ainda a condenação da Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios e o no reembolso do imposto pago.

Fundamenta o pedido nos seguintes termos.

 

                               A derrama estadual, criada pela Lei n.º 12-A/2010, de 16 de Janeiro, que aditou os artigos 87.º-A e 104.º-A ao Código de IRC, foi instituída originalmente como um imposto contingente, acessório e proporcional, com uma taxa única, que, por virtude de sucessivas alterações legislativas, evoluiu para um imposto progressivo, materializado em três escalões de tributação e com  agravamento das taxas, que, com a Lei do Orçamento de Estado para 2018, passou a prever uma taxa marginal máxima para 9%.

 

                               Tendo surgido num momento de emergência financeira - como foi sublinhado pelo legislador nas exposições de motivos da Proposta de Lei n.º 26/XI, que deu origem à Lei n.º 12-A/2010, e da Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, que procedeu à reforma do IRC, e ainda no Relatório do Orçamento do Estado para 2018 -, existia fundada e legítima expectativa do carácter de  transitoriedade da derrama estadual, pelo que a manutenção da sua vigência no ordenamento jurídico português deixou de ser admissível, uma vez que cessaram já as razões que legitimaram a consagração legal do imposto.

                 

                               Configurando-se como um imposto acessório ou adicionamento ao IRC, que incide sobre os lucros tributáveis, a derrama estadual acaba por consubstanciar uma dupla tributação, correspondendo a uma situação de concurso de normas, em que o mesmo facto tributário se integra no âmbito de incidência de duas normas tributárias diferentes, que, ainda que possa considerar-se, em termos genéricos constitucionalmente legítima, envolve, no caso,  a violação de normas e  princípios jurídico-constitucionais.

 

           Incidindo sobre o lucro tributável e passando a conter um regime progressivo, a derrama estadual viola o princípio da tributação segundo o rendimento real, bem como o princípio da capacidade contributiva, que apontam para a necessidade de ter em consideração do rendimento líquido e permitir a dedução dos prejuízos fiscais das empresas.

                 

                               Por outro lado, a norma do artigo 87.º-A, n.º 3, do Código do IRC, ao estabelecer que o imposto incide “sobre o lucro tributável apurado na declaração periódica individual de cada uma das sociedades do grupo, incluindo a da sociedade dominante”, e não sobre o lucro tributável do grupo, ou seja, a “soma algébrica dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais apurados nas declarações periódicas individuais de cada uma das sociedades pertencentes ao grupo”, viola ainda o princípio da capacidade contributiva do grupo, que constitui um dos fundamentos do regime especial de tributação dos grupos de sociedades.

 

                                               Além de que a introdução da progressividade da tributação do rendimento das empresas, que não se encontra constitucionalmente prevista - ao contrário do que sucede com a tributação do rendimento das pessoas singulares - revela-se inapta para promover a igualdade e a justiça social, tendo implicações na eficiência da economia.

 

                Acresce que a derrama estadual é selectiva, não incidindo de forma idêntica sobre todas as empresas, originando uma desvantagem competitiva para algumas delas, sem qualquer justificação racional, o que provoca uma distorção da concorrência e a frustração dos princípios jurídicos e económicos estruturantes do funcionamento do mercado, designadamente o princípio da igualdade, tal como põe em causa a liberdade de gestão fiscal dos particulares e a neutralidade fiscal que ao Estado compete assegurar (artigo 81.º, alínea f), da CRP).

 

                Com efeito, a incidência a partir de um limiar do lucro fixado em € 1,5 milhões, e a aplicação de taxas progressivas, indicia o propósito de submeter um grupo perfeitamente identificado ou identificável de empresas a um sacrifício fiscal maior do que aquele que é exigido à restante colectividade, violando o princípio da igualdade, na vertente da proibição do arbítrio, bem como os princípios da segurança jurídica, da capacidade contributiva e da tributação pelo lucro real.

 

                A derrama estadual também não passa o crivo da proporcionalidade na sua vertente de necessidade ou indispensabilidade, em que se torna necessário questionar “se não haverá, relativamente ao meio efetivamente escolhido, um outro meio que sendo, em princípio, tão eficaz ou idóneo como aquele para atingir o fim pretendido, seja menos agressivo, bem como na vertente da adequação, idoneidade ou aptidão, indispensabilidade ou necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, quando é certo que as circunstâncias de facto que presidiram à introdução da medida restritiva já não subsistem na actualidade, e ainda no que se refere à proporcionalidade em sentido estrito, se se tiver como ponto de referência a comparação entre a vantagem que a solução adoptada proporciona para o interesse público e o sacrifício que é imposto aos destinatários da medida.

 

                Conclui pela procedência do pedido com exclusivo fundamento na inconstitucionalidade da norma legal em que se suporta a cobrança às pessoas colectivas da derrama estadual.

 

                A Autoridade Tributária, na sua resposta, começa por suscitar a incompetência do tribunal arbitral para conhecer do pedido, por considerar que, embora a Requerente formule um pedido de anulação da autoliquidação em IRC, tem apenas em vista atacar a constitucionalidade da norma que prevê a derrama estadual, não assacando qualquer vício próprio ao acto de liquidação, sendo que não cabe  à Autoridade Tributária nem ao tribunal arbitral a apreciação da inconstitucionalidade das normas.

 

                Em sede de impugnação, a Autoridade Tributária sustenta que, embora a derrama estadual, a par de outras medidas fiscais excepcionais, nomeadamente em sede de IRS, tenham surgido num quadro de uma grave crise orçamental e de dívida pública, o certo é que para essa específica medida não foram definidas as metas macroeconómicas que, uma vez atingidas, poderiam justificar a sua gradual eliminação.

 

                               Embora se tenha verificado alguns progressos ao nível do saldo das contas públicas, a verdade é que Relatório do Conselho das Finanças Públicas n.º 9/2017 (Novembro de 2017) dedicado à análise da Proposta de Orçamento do Estado para 2018  revelava que Portugal continuava sujeito ao cumprimento de metas relacionadas com o equilíbrio das contas públicas, e também o Relatório da Proposta do Orçamento do Estado para 2018 dá conta do esforço que se torna ainda necessário realizar para fazer à crise económica e financeira, sobretudo no que se refere à evolução da dívida pública, que em 2018 se situava em 123,5% do PIB.

 

                               Por sua vez, no Documento de Trabalho dos Serviços da Comissão (Relatório relativo a Portugal de 2018), que acompanhava a avaliação dos progressos realizados em matéria de reformas estruturais, prevenção e correção dos desequilíbrios macroeconómicos, sublinhava-se que o nível muito elevado da dívida pública implica um esforço de ajustamento significativo que exige a manutenção das condições conducentes à redução da dívida durante as próximas décadas, incluindo um crescimento económico sustentado, e vincava a necessidade de esforços adicionais de consolidação orçamental e reformas que fomentem o crescimento, a salvaguarda da sustentabilidade orçamental e a continuação da redução da dívida a um ritmo suficiente.

 

                               Na mesma linha, o Documento de Trabalho dos Serviços da Comissão (Relatório relativo a Portugal de 2019) reitera que o elevado rácio dívida/PIB constitui um encargo duradouro para as finanças públicas portuguesas, que reduz a capacidade da política orçamental para absorver os choques macroeconómicos e reduzir as flutuações do ciclo económico.

 

                               De todas essas análises pode retirar-se a conclusão de que, apesar da tendência continuada de redução do deficit orçamental e do rácio da dívida pública, subsistem  obrigações de consolidação orçamental a que o Estado português se encontra vinculado, por força das regras aplicáveis no quadro da União Económica e Monetária, que naturalmente teriam de contar com o contributo das receitas fiscais,  nomeadamente em sede de IRC.

 

                               Assim se compreendendo que o legislador não tenha delimitado ab initio, nem a posteriori, um horizonte temporal para a vigência da derrama estadual e que se mantenha ainda a razão de ser deste novo imposto, não podendo dizer-se que foram criadas expectativas fundadas, na esfera dos agentes económicos, quanto à abolição da derrama estadual, de tal modo que estes fossem induzidos a planear as suas actividades com base nesse pressuposto.

 

                               Sendo certo que outras medidas adoptadas pelo legislador no contexto da crise financeira foram sendo gradualmente eliminadas, mormente em sede de IRS, como por exemplo no tocante à sobretaxa extraordinária, por se ter entendido ser de atribuir maior prioridade à supressão de medidas que afectavam directamente o rendimento disponível das famílias. 

 

Conclui no sentido da improcedência do pedido.

 

2. No seguimento do processo, por despacho arbitral de 1 de Julho de 2020 foi determinada a notificação da Requerente para se pronunciar quanto à matéria de excepção.

 

Em resposta, a Requerente alega que visou com o pedido arbitral obter a anulação do acto tributário de liquidação em IRC e que a competência para fiscalizar as normas com fundamento em inconstitucionalidade se encontra atribuída a todos os tribunais, quer por via da suscitação da inconstitucionalidade pelas partes, quer por apreciação oficiosa do juiz (artigos 204.º e 277.º da Constituição), competência essa que é extensiva aos tribunais arbitrais, e que o vício que a Requerente assaca ao acto de liquidação é o de inconstitucionalidade da norma que prevê a derrama estadual, que se traduz numa forma de violação de lei.

 

Por despacho arbitral de 16 de Julho de 2020, foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT bem como a apresentação de alegações, por não haver novos elementos sobre que as partes se devam pronunciar.

 

Em 16 de Julho, a Requerente foi ainda notificada para apresentar o parecer jurídico que na petição inicial protestou juntar e, em 20 de Julho seguinte, na sequência dessa junção, foi notificada a parte contrária para se pronunciar sobre o parecer, em aplicação do disposto no artigo 427.º do CPC.

 

Nessa mesma data, a Autoridade Tributária veio dizer que tinha já emitido pronúncia sobre o parecer com na resposta ao pedido arbitral.

 

Considerando que o prazo concedido à Requerida para se pronunciar sobre o parecer terminava em 7 de Setembro, já após o decurso do prazo inicial para a prolação da decisão arbitral, foi determinada a prorrogação do prazo para decidir por dois meses, nos termos do artigo 21.º, n.º 2, do RJAT.

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 6.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, os árbitros foram designados pelas partes, tendo o Conselho Deontológico designado o árbitro presidente, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 28 de Fevereiro de 2019.

 

Cabe apreciar e decidir.

 

II - Fundamentação

 

Saneamento

 

4. O tribunal arbitral foi regularmente constituído.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades e foi invocada excepção da incompetência do tribunal arbitral que será apreciada de seguida.

 

Incompetência do tribunal arbitral

 

5. A Autoridade Tributária invoca a excepção da incompetência do tribunal arbitral por considerar que a Requerente não imputa um vício específico ao acto de liquidação impugnado, mas suscita apenas a questão da constitucionalidade da norma que prevê a derrama estadual, questão essa que não cabe ao tribunal arbitral apreciar face ao disposto no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT quanto ao elenco das pretensões que podem ser atribuídas à arbitragem.

Como facilmente se compreende, a excepção é manifestamente improcedente.

Os tribunais arbitrais, nos casos submetidos ao seu julgamento, podem recusar a aplicação de normas com fundamento na sua inconstitucionalidade, assim como devem pronunciar-se sobre as questões de constitucionalidade que tenham sido suscitadas pelas partes durante o processo, pelo que haverá sempre possibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional, em fiscalização concreta, de decisões positivas ou negativas de constitucionalidade proferidas pelos tribunais arbitrais. Nesse sentido, aponta o disposto no artigo 204.° da CRP, que, ao admitir o controlo difuso da constitucionalidade refere-se genericamente aos tribunais, não distinguindo entre tribunais estaduais e tribunais arbitrais, e no artigo 280.° da CRP, que, ao definir o âmbito da fiscalização concreta de constitucionalidade, admite o recurso de constitucionalidade relativamente a decisões dos tribunais, referindo-se a decisões de quaisquer tribunais.

De resto, a admissibilidade do recurso de constitucionalidade de decisões dos tribunais (incluindo os tribunais arbitrais) decorre diretamente do próprio texto constitucional (artigo 280.° da CRP) e de lei de valor reforçado (artigo 70.° da LTC), e não depende de disposição legal que o especificamente o preveja em sede de arbitragem, e, nesse sentido, é irrelevante que o artigo 2.º do RJAT, ao definir a competência dos tribunais arbitrais no âmbito da arbitragem tributária, não faça expressa menção ao recurso de constitucionalidade.

 

O Tribunal Constitucional tem, aliás, vindo a afirmar que os tribunais arbitrais (necessários ou voluntários) são também tribunais, dispondo do poder-dever de verificar a conformidade constitucional de normas aplicáveis no decurso de um processo arbitrais e de recusar a aplicação das que considerem inconstitucionais (entre outros, o acórdão n.º 181/2007) e esse é também o entendimento da doutrina (cfr. MIGUEL GALVÃO TELES, "Recurso para Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais arbitrais", in Estudos em homenagem ao Prol. Doutor Sérvulo Correia, vol. 1, FDUNL, 2010, págs. 645 e segs.; PEDRO GONÇALVES, "Administração Pública e arbitragem — em especial, o princípio da irrecorribilidade de sentenças arbitrais", in Estudos em homenagem a António Barbosa de Melo, Coimbra, 2013, pág. 797; ANTÓNIO PEDRO PINTO MONTEIRO, "Do recurso de decisões arbitrais para o Tribunal Constitucional", in Thémis, ano IX, n.º 16, 2009, pág. 201).

 

Matéria de facto

 

6. Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes.

 

A)           No período de tributação de 2018, a Requerente … era a sociedade dominante de um grupo de sociedades submetido ao RETGS do qual a Requerente … fazia parte;

B)           Em cumprimento do disposto no artigo 87.º-A, n.ºs 3 e 4, do Código do IRC, a Requerente …, na declaração Modelo 22 de IRC individual, apurou um montante de derrama estadual individual de € 1.867.700,56;

C)           Esse montante que foi adicionado às derramas estaduais calculadas individualmente pelas restantes sociedades do grupo e inscrito, depois, na declaração periódica do grupo submetida pela Requerente …;

D)           O pagamento da derrama foi realizado pela Requerente … enquanto sociedade dominante do grupo para efeitos do RETGS;  

E)            As Requerentes apresentaram, em 12 de agosto de 2019, junto da Unidade de Grandes Contribuintes, reclamação graciosa tendo por objecto exclusivo a autoliquidação de IRC de 2018 individualmente realizada pela Requerente …, na parte respeitante à derrama estadual.

F)            A reclamação graciosa foi indeferida por despacho do Chefe de Divisão de Justiça da Unidade dos Grandes Contribuintes, de 25 de setembro de 2019, notificado por ofício da Divisão de Justiça Tributária da UGC da mesma data;

G)                          Na informação que serviu de base ao despacho de indeferimento reconhece-se que a reclamação graciosa constitui “o meio próprio para reagir contra o acto tributário de liquidação, mas argumenta-se que “todos os fundamentos da reclamação graciosa se reconduzem a questões de inconstitucionalidade” e, como tal, “não podem ser apreciados em sede de reclamação graciosa”;

H)           O pedido arbitral tem por objecto o acto de autoliquidação em IRC constante da declaração Modelo 22 de IRC individual da …, consubstanciada na liquidação n.º 2019 …, na parte relativa à liquidação da derrama estadual, no montante de € 1.867.700,56, bem como o despacho de indeferimento da reclamação graciosa n.º … contra ele deduzida. 

                O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta.

 

                Matéria de direito

 

7. A única questão em debate refere-se à constitucionalidade da derrama estadual.

 

A derrama estadual foi criada pela Lei n.º 12-A/2010, de 30 de junho, que, nesse âmbito, aditou  três novos artigos ao Código de IRC: os artigos 87.º-A, que institui a derrama estadual, 104.º-A, que estabelece as regras de pagamento da derrama estadual, e 105.º-A, que se reporta ao cálculo do pagamento adicional por conta.

 

Na sua versão originária, o artigo 87.º-A, sob a epígrafe “Derrama estadual”, estipulava o seguinte.

 

1 — Sobre a parte do lucro tributável superior a € 2 000 000 sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas apurado por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e por não residentes com estabelecimento estável em território português, incide uma taxa adicional de 2,5 %.

2 — Quando seja aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades, a taxa a que se refere o número anterior incide sobre o lucro tributável apurado na declaração periódica individual de cada uma das sociedades do grupo, incluindo a da sociedade dominante.

3 — Os sujeitos passivos referidos nos números anteriores devem proceder à liquidação da derrama adicional na declaração periódica de rendimentos a que se refere o artigo 120.º»

 

                 O n.º 1 desse preceito foi sucessivamente alterado pelas Leis nºs 64-B/2011, de 30 de Dezembro de 2011, 66-B/2012, de 31 de Dezembro de 2012, 2/2014, de 16 de Janeiro, e 114/2017, de 29 de dezembro.

 

                A Lei n.º 64-B/2011 reduziu para € 1 500 000,00 o montante a partir do qual se torna exigível o adicional ao IRC, e, através de um novo n.º 2, estabeleceu dois escalões a que se aplicam taxas diferenciadas: o quantitativo da parte do lucro tributável que exceda € 1 500 000, quando superior a € 10 000 000 foi dividido em duas partes, uma, igual a € 8 500 000, à qual se aplica a taxa de 3 %, e outra, igual ao lucro tributável que exceda € 10 000 000, à qual se aplica a taxa de 5 %.

 

                A Lei n.º 66-B/2012, através da nova redacção dada ao n.º 2, alterou os limiares mínimos a que são aplicáveis as taxas diferenciadas: o quantitativo da parte do lucro tributável que exceda € 1 500 000, quando superior a € 7 500 000, é dividido em duas partes, sendo uma igual a € 6 000 000, à qual se aplica a taxa de 3 % e outra igual ao lucro tributável que exceda € 7 500 000, à qual se aplica a taxa de 5 %.

               

                Através de uma nova alteração ao n.º 2, a Lei n.º 2/2014 introduziu um novo escalão para o lucro tributável superior a € 35 000 000, passando a dividir em duas partes o lucro tributável não superior a esse montante e em três partes o lucro tributável superior a esse montante. Quando exceda € 7 500 000 e até € 35 000 000, o lucro tributável é dividido em duas partes: uma, igual a € 6 000 000, à qual se aplica a taxa de 3 %; outra, igual ao lucro tributável que exceda € 7 5000 000, à qual se aplica a taxa de 5%. Quando superior a € 35 000 000, o lucro tributável é dividido em três partes: uma, igual a € 6 000 000, à qual se aplica a taxa de 3%, outra igual a € 27 500 000, à qual se aplica a taxa de 5 %, e outra igual ao lucro tributável que exceda € 35 000 000, à qual se aplica a taxa de 7 %.

 

                Finalmente, a Lei n.º 114/2017 aumentou a taxa aplicável ao último escalão, isto é, ao lucro tributável superior a € 35 000 000, que passou de 7% para 9%.

 

                De reter que se manteve, em qualquer caso, o regime aplicável aos grupos de sociedades, que provinha inicialmente do n.º 2 do artigo 87.º-A, e que transitou para o n.º 3 desse artigo com a redacção introduzida pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, pelo qual, quando seja aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades, a derrama incide sobre o lucro tributável individual de cada uma das sociedades do grupo, incluindo o da sociedade dominante. Regra essa que é igualmente enunciada no artigo 105.º-A, n.º 3, do CIRC.

 

8.  Como se depreende da exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 26/XI/1.ª, que originou a Lei n.º 12-A/2010, este diploma teve em vista adoptar um conjunto adicional de medidas fiscais, no quadro de uma conjuntura económico-financeira excepcional de instabilidade, de modo a reforçar e a acelerar a estratégia de consolidação orçamental prevista no PEC 2010-2013, tendo como meta a redução do défice orçamental, em 2010, de 9,3% para 7,3% do PIB (anteriormente 8,3%), e, em 2011, para 4,6% (anteriormente  6,6%). Entre essas medidas contava-se a implementação de uma tributação adicional em sede de IRC, aplicando uma sobretaxa correspondente a uma derrama de 2,5 pontos percentuais às empresas cujo lucro tributável seja superior a 2 milhões de euros.

 

O adicional ao IRC que veio a ser instituído por essa lei, sob a designação de derrama estadual, através do aditamento do artigo 87.º-A ao CIRC, não foi acompanhada de um limite temporal de vigência e a única referência que é feita a esse propósito surge na exposição de motivos constante da Proposta de Lei nº 175/XII, no âmbito do procedimento legislativo de aprovação da Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, que procedeu à reforma do Código do IRC.

 

Reconhecendo que existe um amplo consenso a nível internacional no sentido de que o IRC é o imposto com o impacto mais significativo nas decisões de investimento dos agentes económicos e que a tributação direta sobre as empresas é o instrumento fiscal mais adequado para promover o investimento em geral e o investimento direto estrangeiro em particular e que a  Reforma do IRC é um elemento decisivo para o relançamento da economia nacional, esse documento refere a dado passo o seguinte:

 

Com este propósito, a reforma do IRC visa corrigir um conjunto de problemas crónicos que penalizam a competitividade do nosso sistema fiscal. Desde logo, o elevado nível das taxas aplicáveis. Atualmente, a taxa de IRC é de 25%. A esta acrescem a derrama municipal, cuja taxa pode ir até 1,5% do lucro tributável e a derrama estadual que incide, a uma taxa de 3%, sobre lucro tributável superior a 1,5M€ e até 7,5M€ e de 5% sobre lucro tributável superior a 7,5M€.

No âmbito da reforma do IRC propõe-se uma redução gradual da taxa de IRC para 23% em 2014, com o objetivo final de a fixar entre 17% e 19% em 2016. Simultaneamente, propõe-se a eliminação da Derrama municipal e da Derrama Estadual em 2018, de forma a que as taxas de tributação em Portugal sejam competitivas em termos internacionais, nomeadamente com os países que concorrem com Portugal na atração de investimento estrangeiro.

 

Não obstante, a Lei do Orçamento para 2018 (Lei n.º 114/2017), não só manteve a derrama estadual, como agravou a taxa aplicável ao último escalão (correspondente ao lucro tributável que exceda € 35.000.000), que passou de 7% para 9%.

 

Para explicar a manutenção da derrama estadual (e o seu agravamento), interessa reter o que se refere, na parte mais relevante, no prefácio do Relatório do Orçamento do Estado para 2018:

 

Portugal está novamente a convergir com os seus parceiros europeus. A economia  portuguesa recuperou da severa recessão  de  2011  a 2013,  e do  abrandamento  do  segundo  semestre de  2015, e tem hoje condições  impares,  desde a adesão ao Euro,  para crescer de forma sustentável, duradoura e inclusiva.

Cabe à política orçamental assumir um papel crucial na recuperação da confiança interna e externa na economia portuguesa. A continuação do processo de  consolidação   orçamental,   alicerçada na recuperação da economia e do mercado de trabalho, tem permitido a  implementação de  reformas essenciais, de onde se destaca a estabilização do sistema  financeiro.

[…]

Com esta política, Portugal registará, em 2017, o maior crescimento desde o ano 2000 - 2,6%.  A taxa de desemprego recuará para mínimos de 2009, prevendo-se que a taxa média de 2017 se situe em 9,2%. A economia cresce sustentada pelas exportações e pelo investimento. As exportações de bens e serviços deverão registar um aumento de 8,3% em 2017, com um ganho de quota de mercado superior 3 p.p., mantendo-se a balança comercial  positiva. O investimento  cresce  7,7%,  com  uma  dinâmica  muito  forte em todas as suas componentes.

[…]

Mas ainda há um longo percurso a fazer. A crise económica e financeira retirou à economia e à sociedade portuguesa um elevado número de recursos e desvalorizou os ativos produtivos nacionais numa dimensão que ainda não foi recuperada. A  emigração de  jovens   portugueses, que o país conseguiu reverter em 2016,  a perda permanente  de empregos,  que apenas parcialmente foi recuperada, e o nível da atividade económica, que permanece  abaixo dos máximos do período  anterior  a crise,  são questões  que continuamos a combater.

[…]

O presente Orçamento do Estado encontra-se alinhado com os objetivos estabelecidos no Programa Nacional de Reformas 2017-2021, promovendo a  implementação das reformas   necessárias  para continuar a superar os bloqueios  estruturais que caracterizam  a economia  nacional.

               

                No contexto legislativo e económico-financeiro em que se insere a derrama estadual, pode concluir-se que se trata de um imposto contingente, pelo qual se procura obter  uma fonte adicional de receitas destinada à consolidação orçamental com vista à redução do défice excessivo e ao controlo do crescimento da dívida pública.

 

                No plano estritamente jurídico, a derrama estadual caracteriza-se como um imposto acessório relativamente ao IRC, e que, não obstante ser definido pela lei como adicional, reveste a modalidade de adicionamento, na medida em que incide sobre a matéria coletável do imposto principal e não sobre a sua coleta (CASALTA NABAIS, Manual de Direito Fiscal, 8ª edição, Coimbra, 2015, pág. 81). Por outro lado, tendo sido instituída como um imposto  proporcional, no ponto em que se previa a aplicação de uma taxa uniforme de 2,5% sobre a parte do lucro tributável superior a € 2 000 000, com as alterações introduzidas pelas Leis n.ºs 64-B/2011 e 2/2014 transformou-se num imposto progressivo mediante a aplicação de taxas crescentes relativamente a cada um dos escalões em que passou a dividir-se a matéria tributável, significando que o imposto aumenta mais que proporcionalmente em função dos rendimentos que os contribuintes aufiram.

 

                9. A Requerente começa por considerar que o legislador, ao instituir a derrama estadual num momento de emergência financeira, tinha gerado nos contribuintes a legítima expectativa de se tratar de um imposto transitório que apenas se manteria em vigor enquanto subsistissem as razões que justificaram a sua implementação. Incidindo sobre o lucro tributável de cada uma das sociedades do grupo, sem possibilidade de dedução dos prejuízos fiscais das demais empresas que o integram, a derrama estadual viola o princípio da tributação segundo o rendimento real, bem como o princípio da capacidade contributiva. Além disso, por efeito da progressividade da tributação do rendimento das empresas, trata-se de um imposto selectivo, afrontando os princípios da concorrência e do eficiente funcionamento do mercado, bem como o princípio da igualdade, na vertente da proibição do arbítrio. No entender da Requerente, a derrama estadual viola ainda o princípio da proporcionalidade, nas suas vertentes de adequação ou idoneidade, necessidade ou indispensabilidade e proporcionalidade em sentido estrito.

 

Para dar resposta a estas questões deve começar por efectuar-se, ainda que em termos sucintos, a caracterização dos princípios constitucionais da progressividade, da igualdade fiscal e da capacidade contributiva.

 

Como o Tribunal Constitucional tem sublinhado, um dos objectivos essenciais constitucionalmente definidos do sistema fiscal, a par da satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas, é o da repartição justa dos rendimentos e da riqueza, como se depreende do artigo 103.º, n.º 1, da Constituição.

É esta vinculação do sistema fiscal à ideia de justiça social e à diminuição da desigualdade na distribuição social dos rendimentos e da riqueza que exige que o mesmo seja progressivo. Essa exigência está expressamente consagrada no âmbito da tributação do rendimento pessoal: de acordo com o n.º 1 do artigo 104.º, o imposto sobre o rendimento pessoal visa «a diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar».

A progressividade fiscal requer que a relação entre o imposto pago e o nível de rendimentos seja mais do que proporcional, o que só pode alcançar-se aplicando aos contribuintes com maiores rendimentos uma taxa de imposto superior. Por outras palavras, há progressividade quando o valor do imposto aumenta em proporção superior ao incremento da matéria coletável.

Consequentemente, a Constituição exige uma progressividade com a virtualidade intrínseca de contribuir para uma diminuição da desigualdade de rendimentos (sobre todos estes aspectos, veja-se o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 187/13, n.ºs 97, 98 e 99).

A progressividade do sistema fiscal constitui também uma exigência do princípio da igualdade material.

Conforme refere CASALTA NABAIS, o princípio da igualdade fiscal tem ínsita sobretudo «a ideia de generalidade ou universalidade, nos termos da qual todos os cidadãos se encontram adstritos ao cumprimento do dever de pagar impostos, e da uniformidade, a exigir que semelhante dever seja aferido por um mesmo critério - o critério da capacidade contributiva. Este implica assim igual imposto para os que dispõem de igual capacidade contributiva (igualdade horizontal) e diferente imposto (em termos qualitativos ou quantitativos) para os que dispõem de diferente capacidade contributiva na proporção desta diferença (igualdade vertical)» (Direito Fiscal, 8ª edição, Coimbra, 2009, págs. 151-152).

Configurando-se o princípio geral da igualdade como uma igualdade material, o princípio da capacidade contributiva – segundo o mesmo autor - enquanto tertium comparationis da igualdade no domínio dos impostos, não carece dum específico e directo preceito constitucional. O seu fundamento constitucional é o princípio da igualdade articulado com os demais princípios e preceitos da respectiva “constituição fiscal” e, em especial, aqueles que decorrem já dos princípios estruturantes do sistema fiscal que constam dos artigos 103º e 104º da Constituição (ob. cit., pág. 152).

Como pressuposto e critério da tributação, o princípio da capacidade contributiva – dentro da mesma linha de entendimento - «afasta o legislador fiscal do arbítrio, obrigando-o a que na selecção e articulação dos factos tributários, se atenha a revelações da capacidade contributiva, ou seja, erija em objecto e matéria colectável de cada imposto um determinado pressuposto económico que seja manifestação dessa capacidade e esteja presente nas diversas hipóteses legais do respectivo imposto» (ob. cit., pág. 154).

Também o Tribunal Constitucional, mais recentemente, tem analisado o princípio da igualdade fiscal sob o prisma da capacidade contributiva, como se pode constatar designadamente no acórdão n.º 142/2004, onde se consigna que «[o] princípio da capacidade contributiva exprime e concretiza o princípio da igualdade fiscal ou tributária na sua vertente de uniformidade – o dever de todos pagarem impostos segundo o mesmo critério – preenchendo a capacidade contributiva o critério unitário da tributação».

O reconhecimento do princípio da capacidade contributiva como critério destinado a aferir da inadmissibilidade constitucional de certa ou certas soluções adoptadas pelo legislador fiscal, tem conduzido também à ideia, expressa por exemplo no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 348/97, de que a tributação conforme com o princípio da capacidade contributiva implicará «a existência e a manutenção de uma efectiva conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico selecionado para objeto do imposto, exigindo-se, por isso, um mínimo de coerência lógica das diversas hipóteses concretas de imposto previstas na lei com o correspondente objecto do mesmo».

O Tribunal Constitucional tem vindo, portanto, a afastar-se de um controlo meramente negativo da igualdade tributária, passando a adoptar o princípio da capacidade contributiva como critério adequado à repartição dos impostos; mas não deixa de aceitar a proibição do arbítrio como um elemento adjuvante na verificação da validade constitucional das soluções normativas de âmbito fiscal, mormente quando estas sejam ditadas por considerações de política legislativa relacionadas com a racionalização do sistema.

Em suma, o princípio da igualdade tributária pode ser concretizado através de vertentes diversas: uma primeira, está na generalidade da lei de imposto, na sua aplicação a todos sem exceção; uma segunda, na uniformidade da lei de imposto, no tratar de modo igual os contribuintes que se encontrem em situações iguais e de modo diferente aqueles que se encontrem em situações diferentes, na medida da diferença, a aferir pela capacidade contributiva; uma última, está na proibição do arbítrio, no vedar a introdução de discriminações entre contribuintes que sejam desprovidas de fundamento racional (cfr. acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 306/2010 e n.º 695/2014).

Por sua vez, o princípio da tributação segundo o lucro real das empresas é também uma decorrência necessária do princípio da capacidade contributiva (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 162/04) e a sua  principal concretização traduz-se em afastar a tributação das empresas pelo seu lucro normal, isto é, tributar o rendimento que estas poderiam ter obtido em condições normais de exploração, independentemente das condições concretas em que desenvolveram a sua atividade (XAVIER DE BASTO, “O princípio da tributação do rendimento real e a Lei Geral Tributária, Fiscalidade, n.º 5, 2001, pág. 10). E, nesse sentido, a tributação segundo o lucro real pretende garantir que possa ser estabelecida uma conexão entre a matéria coletável e o imposto que se torna exigível ao contribuinte.

 

10. Ainda que a progressividade se encontre apenas prevista para o imposto sobre o rendimento pessoal, como um objectivo destacado da diminuição da desigualdade económica entre os cidadãos (artigo 104.º, n.º 1, da CRP), não está constitucionalmente vedado que um imposto incidente sobre as empresas possa igualmente assumir um carácter progressivo, o que só por si não é susceptível de violar o princípio da igualdade, da capacidade contributiva ou da tributação segundo o rendimento real.

 

Importa começar por fazer notar que a derrama estadual, não obstante incidir também sobre o rendimento das empresas, apenas se aplica às empresas que apresentem lucros tributáveis superiores a € 1.5000.000 (sendo o limiar mínimo, na versão originária, de € 2.0000.000) e à parte do lucro tributável superior ao estabelecido para cada um dos escalões, que se encontra actualmente fixado em € 6 000 000 e 7 500 000, quando o lucro atinja  € 35 000 000, e em € 6 000 000, € 27 500 000 e € 35 000 000, quando o lucro exceda aquele valor.

 

Assim, a derrama tem por universo de destinatários um grupo circunscrito de empresas com um nível de ganhos de valor considerável, e que, em grupos societários, se afere a partir da matéria colectável mencionada na declaração individual de rendimentos de cada uma das sociedades do grupo. E embora não haja lugar à dedução dos eventuais prejuízos apurados por outras sociedades do grupo, não pode concluir-se – como já se decidiu no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 430/2016 – que há uma violação do princípio da capacidade contributiva das empresas ou do princípio da tributação segundo o rendimento real.

 

Com efeito, é possível estabelecer uma efetiva relação entre o imposto, tal como se encontra configurado pelo legislador, e o pressuposto económico que constitui a sua base de incidência, e que se traduz numa parte do lucro tributável auferido por empresas que apresentam uma maior índice de rentabilidade, e, portanto, uma maior capacidade contributiva.

 

Por outro lado, incindindo o imposto sobre o lucro individualizado de cada sociedade, não pode afirmar-se que é posto em causa o princípio da tributação segundo o rendimento real, visto que o que é objecto de tributação é o lucro efectivo apurado por cada uma das empresas do grupo e, como tal, inscrito na sua declaração de rendimentos.

 

O que pode dizer-se é que a não dedutibilidade dos prejuízos fiscais de outras empresas integrantes constitui um mecanismo destinado a evitar que uma receita fiscal adicional, que é justificada por razões de natureza conjuntural e assenta em resultados económicos positivos, possa ser neutralizada pelos resultados negativos que possam ser imputados a outros membros do grupo societário.  

 

Importa a este respeito sublinhar que a assunção da substância económica do grupo de sociedades e, consequentemente, a possibilidade de determinação de uma base de tributação comum, não se assume, no ordenamento interno, como um modelo de consolidação total e pleno. O modelo existente é de Group Pooling, isto é, permite-se a agregação dos resultados individuais de cada membro do grupo societário (rendimentos e perdas) por forma a permitir-se a compensação, sendo a gestão dessa agregação da competência da sociedade dominante, sem que se verifique a perda da existência jurídica individual e das obrigações fiscais individuais de cada uma das sociedades dominadas. E, nesse sentido, o regime especial de tributação de grupos de sociedades apenas admite um reconhecimento parcial da agregação das contas do grupo de sociedades, nada obstando a que o legislador possa instituir para situações fiscais específicas um regime jurídico que afaste a possibilidade de compensação entre ganhos e perdas no âmbito do grupo (cfr. neste sentido, acórdão proferido no Processo n.º 133/2019-T).

 

Recorde-se ainda que o regime especial de tributação de grupos de sociedades é de aplicação facultativa e de acesso condicionado aos requisitos estabelecidos na lei, não abrangendo todas ou outras possíveis realidades de empresas plurissocietárias e o legislador não prescinde da entrega individualizada das declarações de rendimentos de cada uma das sociedades que compõem o grupo, mesmo que estabeleça o cálculo da matéria coletável do IRC a partir da soma algébrica dos lucros e prejuízos declarados pelas várias sociedades. E a própria modelação deste regime especial de tributação revela a ampla margem de conformação do legislador na definição da matéria tributável.

 

                Conclui-se que progressividade do imposto e a não dedutibilidade dos prejuízos fiscais no âmbito do grupo societário não afrontam os parâmetros de constitucionalidade considerados.

 

                10. A Requerente alega ainda que a derrama estadual é selectiva, não incidindo de forma idêntica sobre todas as empresas, originando uma desvantagem competitiva para algumas delas, sem qualquer justificação racional, o que provoca uma distorção da concorrência e viola os princípios estruturantes do funcionamento dos mercados, e, designadamente, o princípio da igualdade, a liberdade de gestão fiscal dos particulares e a neutralidade fiscal que ao Estado.

 

                Como se deixou dito, o princípio da igualdade tributária concretiza-se através de diversas vertentes e, entre elas, na uniformidade da lei de imposto e na proibição do arbítrio. A uniformidade pressupõe o tratamento igualitário dos contribuintes que se encontrem em situações iguais e o tratamento diferenciado daqueles que se encontrem em situações diferentes e possam revelar uma maior capacidade contributiva; a proibição do arbítrio veda a introdução de discriminações entre contribuintes que sejam desprovidas de fundamento racional.

 

                Como resulta da exposição de motivos da Lei n.º 12-A/2010, a que já se fez referência, a tributação adicional em IRC mediante a aplicação de uma sobretaxa correspondente a uma derrama a empresas cujo lucro tributável a € 2 000 000 (depois, a partir de € 1 500 000) foi motivada pelo interesse geral, numa conjuntura económico-financeira excepcional de instabilidade e de ataques especulativos nos mercados financeiros, e teve em vista, a par de um conjunto de outras de medidas fiscais, reforçar e a acelerar a estratégia de consolidação orçamental prevista no PEC 2010-2013.

 

                 Não se pode afirmar, por conseguinte, que a implementação da derrama estadual se mostre como uma medida arbitrária, desprovida de fundamento razoável ou de justificação objectiva e racional. Por outro lado, ao afectar as empresas com um lucro tributável muito considerável e ao estabelecer, através de sucessivas alterações legislativas, a progressividade do imposto, a lei continua a salvaguardar o princípio da capacidade contributiva, exigindo um maior esforço do ponto de vista fiscal às empresas que auferem mais elevados rendimentos e de acordo com um escalonamento diferenciado em função dos rendimentos auferidos.

 

                Certo é que na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 175/XII, que esteve na base do diploma que procedeu à reforma do Código do IRC (Lei n.º 2/2014), se propõe uma redução gradual da taxa de IRC para 23% em 2014, com o objetivo final de a fixar entre 17% e 19% em 2016, e simultaneamente, a eliminação da derrama municipal e da derrama estadual em 2018. O objectivo era assegurar que as taxas de tributação das empresas se tornem competitivas em termos internacionais, em vista à atração de investimento estrangeiro.

                No entanto, a Lei n.º 2/2014, embora tenha reduzido a taxa de IRC para 23%, mediante a nova redacção dada ao artigo 87.º, n.º 1, do CIRC (que foi fixada em 21% com a Lei do Orçamento de Estado para 2015), manteve a derrama estadual e até produziu um agravamento fiscal através da criação de um novo escalão (superior a € 35 000 000), a que se tornou aplicável a taxa de 7%.

 

                Neste contexto, o anúncio da eliminação da derrama a partir de 2018, inserindo-se na mesma finalidade central de aumentar a competividade da economia, não é mais do que uma medida programática, tal como a pretendida redução da taxa de IRC entre 17% e 19% para o ano de 2016, que não teve qualquer reflexo no plano normativo, nem pode ser encarada como gerando a legítima expectativa da efectiva supressão da derrama nesse mesmo ano ou representando a violação do princípio da segurança jurídica.

               

                E embora o Relatório do Orçamento do Estado para 2018 tenha dado indicação de um progresso da economia portuguesa, mediante o registo, em 2017, do aumento do crescimento, sustentado pelas exportações e o  investimento, e a redução da taxa de desemprego, que permitiu uma recuperação relativamente à recessão de 2011 a 2013, o documento não deixa de assinalar a necessidade de  implementação das reformas  para continuar a superar os bloqueios  estruturais que caracterizam  a economia  nacional, em parte determinados pela anterior crise económica e financeira.

 

                É a todos os títulos evidente e de conhecimento geral que, em 2018, ainda se colocavam constrangimentos de política fiscal determinados pela necessidade de consolidação orçamental, centrada na diminuição da despesa e no aumento da receita, e de redução dos níveis de endividamento público.

               

                Assim se compreende que a Lei do Orçamento do Estado para 2018, não só não tenha abolido a derrama estadual, como tenha ainda procedido um agravamento fiscal, ao aumentar a taxa aplicável ao último escalão, que passou de 7% para 9%.

 

                Por outro lado, não cabe ao tribunal declarar, substituindo-se ao poder legislativo, que em 2018 cessaram as razões de contingência que tinham justificado a criação da derrama estadual – o que, aliás, seria hoje desmentido pela grave situação económica e social gerada pela situação epidemiológica -, e o que importa reter é que  a medida se encontra legitimada por poderosas razões de política fiscal – o que afasta a violação do princípio da igualdade na vertente de proibição do arbítrio – e, pela sua específica configuração, não afronta o princípio da capacidade contributiva.

 

                11. A Requerente refere ainda que a derrama estadual ofende o princípio da proporcionalidade nas suas diferentes vertentes de necessidade ou indispensabilidade, de adequação e idoneidade e de proporcionalidade em sentido estrito. Questiona se não haveria um outro meio que sendo, em princípio, tão eficaz ou idóneo para atingir o fim pretendido, pudesse ser menos agressivo, e argumenta que as circunstâncias de facto que presidiram à introdução da medida restritiva já não subsistem na actualidade. Por outro lado, considera que a medida é excessiva tendo como ponto de referência a comparação entre a vantagem que a solução adoptada proporciona para o interesse público e o sacrifício que é imposto aos destinatários da medida.

 

É esta a questão que cabe agora analisar.

No que respeita à adequação do meio usado para a prossecução dos fins que são visados pela lei, sublinha-se que o princípio da idoneidade ou da aptidão significa que as medidas legislativas devem ser aptas a realizar o fim prosseguido ou contribuir para o alcançar. No entanto, “o controlo da idoneidade ou adequação da medida, enquanto vertente do princípio da proporcionalidade, refere-se exclusivamente à aptidão objetiva e formal de um meio para realizar um fim e não a qualquer avaliação substancial da bondade intrínseca ou da oportunidade da medida. Ou seja, uma medida é idónea quando é útil para a consecução de um fim, quando permite a aproximação do resultado pretendido, quaisquer que sejam a medida e o fim e independentemente dos méritos correspondentes. E, assim, a medida só será suscetível de ser invalidada por inidoneidade ou inaptidão quando os seus efeitos sejam ou venham a revelar-se indiferentes, inócuos ou até negativos tomando como referência a aproximação do fim visado” (neste sentido, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 188/2009).

               

                O princípio da indispensabilidade exige que as medidas restritivas se tornem necessárias por não poderem ser obtidos por outros meios menos onerosos e o princípio da proporcionalidade em sentido estrito significa que os meios e os fins a atingir se devem situar na justa medida, impedindo a adopção de medidas desproporcionas ou excessivas relativamente aos fins visados. Como refere JORGE REIS NOVAIS, o princípio da indispensabilidade e o princípio da proporcionalidade em sentido estrito partem de perspectivas distintas. “Enquanto que o critério de indispensabilidade  se baseia numa comparação e opção entre meios condicionada pela comparação dos respectivos efeitos restritivos, já o controlo da proporcionalidade se baseia, essencialmente, numa relação de meio-fim, ou mais precisamente, numa relação de adequação ou inadequação entre o agravo produzidos na esfera dos particulares afectados com a restrição e o fim que justifica essa restrição ou o benefício que ela pretende proporcionar” (Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra, 2004, pág. 176).

 

                Ora, não pode deixar de reconhecer-se que a criação da derrama estadual constitui objectivamente uma medida idónea para o fim se pretendia atingir que era o de aumentar a receita fiscal numa conjuntura especialmente negativa, e, nesse sentido, permite a aproximação ao resultado pretendido, satisfazendo, por isso, o princípio da idoneidade ou da aptidão.

 

                Acresce que a derrama estadual foi instituída conjuntamente com outras medidas de obtenção adicional de receita em sede de IRC, no quadro de uma estratégia de consolidação orçamental, tendo em vista a correção do défice excessivo e a redução da dívida pública,  e não tinha limite temporal de vigência, não podendo afirmar-se que, em 2018, se encontravam já ultrapassadas as condicionantes, sobretudo no plano do endividamento externo e da recuperação da economia e do mercado do trabalho, que tinham justificado essa solução legislativa, ou que, a essa data, já não fosse necessário prosseguir com o processo de consolidação orçamental, quando se constata que o Relatório do Orçamento do Estado para 2018 tinha justamente apontado esse como um dos objectivos da lei orçamental para esse ano.

 

                Por outro lado, o controlo da indispensabilidade tem de se basear em critérios objectivos, tornando-se necessário identificar os meios restritivos alternativos que possuíssem idêntica aptidão para a prossecução do mesmo fim (JORGE REIS NOVAIS, ob. e loc. cit.). A Requerente não indica quais os meios que poderiam ser mais eficazes e menos agressivos para as empresas com avultados rendimentos, sendo que a comparação apenas pode ser realizada de acordo com um princípio de evidência, e sempre seria complexo detectar a violação do princípio da indispensabilidade quando a Lei n.º 12-A/2010, para atingir os seus objectivos de política fiscal, igualmente veio prever uma tributação adicional em IVA, com o aumento de um ponto percentual em todas as taxas, normal, intermédia e reduzida, e uma tributação adicional em sede de IRS, mediante o aumento, em 1 ponto percentual, das taxas gerais deste imposto aplicáveis até ao 3.º escalão de rendimentos e em 1,5 pontos percentuais a partir do 4.º escalão, bem como um aumento correspondente nas taxas liberatórias de IRS.  

 

                Também não parece que a norma do artigo 87.º-A da Lei n.º 12-A/2010 afronte um princípio da proporcionalidade em sentido estrito quando o controlo da proporcionalidade, nesse plano, tem como critério orientador a comparação entre a gravidade da restrição e a importância ou premência dos interesses que justificam a restrição. Incidindo a derrama estadual sobre empresas com lucros tributáveis superiores a € 1.500.000 (ou € 2.000.000, na versão originária), com taxas progressivas em função do lucro tributável apurado, e, portanto, sobre empresas com maior capacidade contributiva, não se vê em que termos é que a medida se mostra ser desproporcionada em razão do interesse público em presença quando esse mesmo interesse geral determinou um agravamento fiscal da população em geral, seja através de impostos indirectos, seja através do imposto sobre o rendimento pessoal.

 

                12. A Requerente alega ainda que a derrama estadual viola o princípio do funcionamento dos mercados, a liberdade de gestão fiscal dos particulares e o princípio da neutralidade fiscal, fazendo referência a esse propósito ao artigo 81.º, alínea f), da Constituição.

 

                O artigo 81.º insere-se na constituição económica onde se encontram definidos os princípios essenciais da organização económica do Estado e enuncia especificamente as incumbências prioritárias do Estado no âmbito económico e social, aludindo a tarefas ou directivas políticas de carácter heterógeno e não imediatamente determináveis.

 

                A alínea f), referindo-se à tarefa de assegurar o funcionamento eficiente dos mercados de modo a garantir a equilibrada concorrência entre as empresas tem em vista a defesa da concorrência, que constitui um dos princípios essenciais do direito da união europeia e que tem como principais objectivos a proibição de práticas restritivas,  a repressão de abusos de posição dominante e o controlo preventivo de operações de concentração (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol I, 4.ª edição, Coimbra, págs. 969-970).

 

                Por seu turno, a liberdade de gestão fiscal pode ser entendida como uma expressão da liberdade económica e de empresa, que tem assento no artigo 86.º, n.º 2, da Constituição, que postula essencialmente a liberdade de escolha e planificação da vida económica e empresarial por parte dos operadores económicos e a proibição ou limitação de ingerência na gestão das empresas privadas.

 

Poderá entender-se que esses dois princípios – eficiente funcionamento dos mercados e liberdade de empresa – consubstanciam a exigência de neutralidade fiscal, de modo a que o próprio sistema fiscal não constitua um condicionamento desproporcionado da liberdade de iniciativa económica e um elemento de distorção dos mercados (CASALTA NABAIS, Manual de Direito Fiscal, cit., págs. 159-160).  

 

Não está, no entanto, evidenciado de que modo é que a derrama estadual, incindindo sobre empresas com rendimentos avultados que dispõem de capacidade contributiva para suportar o imposto, possa afectar especialmente o direito à concorrência, como emanação da incumbência estadual de assegurar o eficiente funcionamento dos mercados, ou a liberdade de iniciativa empresarial.

 

Por todo o exposto, entende-se não julgar inconstitucional a norma do artigo 87.º-A do Código do IRC, na redação introduzida pela Lei n.º 114/2017, 29 de Dezembro, vigente à data dos factos, e, consequentemente, julgar improcedente o pedido arbitral, e prejudicado o conhecimento do pedido de condenação da Autoridade Tributário no reembolso do imposto e no pagamento de juros indemnizatórios.

 

III – Decisão

Termos em que se decide julgar improcedente o pedido arbitral e manter a liquidação a que vem impugnada, bem como a decisão de indeferimento da reclamação graciosa contra ela deduzida.

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 1.867.700,56, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Notifique.

 

Lisboa, 22 de Setembro de 2020,

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

Carlos Fernandes Cadilha

 

O Árbitro vogal

Sérgio Vasques

 

O Árbitro vogal

Fernando Borges de Araújo

(vencido, junta declaração de voto)

 

DECLARAÇÃO DE VOTO (PROCESSO Nº 784/2019-T)

 

 

1.            A Derrama Estadual criada através da Lei n° 12-A/2010, de 30 de Junho, destinou-se expressamente a reforçar e acelerar, “com urgência”, a redução de défice excessivo e o controlo do crescimento da dívida pública previstos no Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC).

2.            Em 2018, em vésperas de uma consolidação orçamental que gerou um superavit (em 2019), a razão de ser da Derrama Estadual, tinha, pura e simplesmente, desaparecido.

3.            Havendo superavit não há défice, e muito menos défice “excessivo”, e menos ainda a “urgência” ditada por qualquer iminência de colapso.

4.            Antes disso já tinha terminado o Programa de Assistência Económica e Financeira que envolveu Portugal, o FMI e a União Europeia, entre Maio de 2011 e Junho de 2014.

5.            E em 2017 a União Europeia tinha encerrado o procedimento relativo ao défice excessivo de Portugal, por reconhecer que o défice de Portugal tinha diminuído para um valor inferior a 3% do PIB.

6.            Resta, portanto, saber se cabe num Direito Fiscal normal a admissão de um acto de força, paredes-meias com o confisco, que perpetua uma cobrança de receitas tributárias extraordinárias quando a única justificação para essa cobrança desapareceu, pública e notoriamente – e oficialmente.

7.            Que um Estado tenha o poder, a força, de cometer uma iniquidade e perpetuá-la, todos o sabemos; mas também sabemos que é em reacção a isso que, há muitos séculos, muito antes de se regressar a formas de organização republicana ou democrática, os impostos estiveram sujeitos a uma exigência adicional de legitimação popular – “no taxation without representation” – e de justificação da sua existência, caso a caso; ligando-se, a tais exigências, a própria génese do Direito Fiscal como ramo da Ciência Jurídica.

8.            Sem um Direito Fiscal adequado, o aparelho tributário continua, ou continuará, exposto à tentação da multiplicação de “alcavalas” que aumentem a receita tributária por todas as formas oblíquas – incluindo esta da tributação por motivos excepcionais que, uma vez lançada, se converte numa tributação rotineira, numa receita ordinária que, por puro “efeito de catraca”, evolui no sentido da expansão e jamais da retracção (é unilateral, só opera num sentido), defraudando o quadro geral que é apresentado ao contribuinte, e removendo as ponderações e equilíbrios simbióticos dos quais depende a própria sustentabilidade da receita.

9.            Mesmo antes de ponderarmos as questões de constitucionalidade, cabe meditar, mais especificamente, se tributações deste tipo não representam a morte da Reforma Fiscal que instituiu entre nós a tributação sobre o rendimento, e que tinha por objectivo primário terminar com a fragmentação e sobreposição metastáticas de impostos, e com as injustiças e ineficiências que esse sistema causava, substituindo tudo isso por um sistema compacto, simples e único.

10.          Um sistema que não apenas habilitava o contribuinte a entender que oneração tributária correspondia a cada forma de rendimento que gerasse, mas um sistema que sobretudo instituía aquilo que poderia designar-se por uma espécie de “lealdade deontológica”: passavam a ser aquelas as regras do jogo, e proscrevia-se para futuro a “batota tributária” das extravagâncias “ad hoc”, ou seja, a secular, ou milenar, prática das “alcavalas”, dos impostos “complementares”, das tributações “sobrepostas” e outras surpresas fiscais do mesmo tipo – mais ou menos recobertas da legitimação formal da legalidade, como se esta bastasse para sanar os entorses materiais.

11.          Trinta anos volvidos, a Reforma Fiscal está tão distante que as “alcavalas”, como é caso flagrante esta Derrama Estadual, campeiam de novo no nosso ordenamento, aliás com grande apoio em iniciativas similares no seio da União Europeia – como pululavam em vésperas daquela notável Reforma.

12.          Regressámos à fragmentação e à sobreposição de tributos sobre os mesmos rendimentos, e este exercício cru de poder Estatal não parece encontrar travão idóneo numa argumentação jurídica que – insiste-se – nasceu com a vocação primária de se soerguer contra este tipo de desmandos, precisamente porque tais abusos eram os mais recorrentes e arreigados na já longa tradição tributária.

13.          Pior ainda, aos critérios jurídicos parece querer sobrepor-se, crescentemente, uma lógica político-económica que enaltece os fins e menospreza os meios, naquilo que poderia caracterizar-se como uma “arrecadação maquiavélica”.

14.          Este caso ilustra-o, porque uma maioria política entendeu ser possível perpetuar uma tributação excepcional pela única razão de que ela incide sobre “alvos de oportunidade” que a ideologia identificou e segregou (um pequeno, ínfimo, número de empresas, demarcadas por critérios mais ou menos arbitrários ou proibidos por lei, por assentarem alguns deles em presunções inilidíveis de capacidade contributiva) – ao mesmo tempo que essa maioria política, por outra ordem de razões, entendeu não ser possível perpetuar uma outra tributação excepcional, a das sobretaxas de IRS (como antes colocara um termo a várias tributações contingentes, e recuara de regimes excepcionais de oneração, como a redução dos vencimentos dos trabalhadores do sector público).

15.          A “catraca” da alcavala bloqueia para uns, desbloqueia agilmente para os demais, de acordo com critérios injustos de estigmatização e vulnerabilização ideológica – em frontal violação do princípio da igualdade horizontal que deveria decorrer do respeito pela capacidade contributiva.

16.          Restará, para que o Direito Fiscal não caia numa inaceitável, e inexplicável, apatia perante tão flagrante recuo jurídico, buscarmos na âncora constitucional os argumentos que possam defender o contribuinte do regresso às “alcavalas” e à sua multiplicação – na esperança de que, nesse plano constitucional, a consideração da substância, da materialidade, dos valores envolvidos não se deixe enredar pelas legitimações formais com as quais, no plano legiferante, a tributação extravagante procura sempre recobrir-se.

17.          Admitir-se-á – de novo – que a margem de conformação do legislador seja ampla quando se vislumbre um fundamento racional para a tomada de medidas excepcionais, seja no tempo, seja na forma, seja no conteúdo – como, por exemplo, a ocorrência ou persistência de razões de interesse público, desde que sejam compreensíveis e transparentes.

18.          Mas esse fundamento racional há-de encontrar-se, por razões de hierarquia das fontes mas também por razões de segurança jurídica, nos imperativos constitucionais.

19.          Não se encontrando esse fundamento, a margem de conformação do legislador eclipsa-se, porque toda a excepcionalidade passa, ipso facto, a ser irracional e arbitrária; a “vigência” decretada injustificadamente, extemporaneamente, por sucessivos diplomas, e por mais ardilosa que seja a auto-justificação, representará não mais do que um desvio de poder legislativo, ele próprio atentatório de princípios constitucionais.

20.          Nesse ponto, e para não alongarmos desnecessariamente esta declaração, louvamo-nos no que se contém no douto parecer de Gomes Canotilho, junto ao processo, no que se refere à incompatibilidade da Derrama Estadual com os princípios constitucionais da tributação pelo rendimento real, da neutralidade fiscal, da igualdade, da proporcionalidade, da segurança jurídica, da protecção da confiança, de defesa do direito de propriedade privada perante restrições emergentes de sobreposições tributárias, e de vedação de impostos sectoriais.

21.          Interessa ainda assim sublinhar que o próprio Tribunal Constitucional reconheceu que a Derrama Estadual e outras sobretaxas coevas eram “impostos contingentes”, tributações suplementares exclusivamente justificadas por um contexto passageiro e excepcional – e que por isso mesmo o próprio legislador manifestou a intenção de eliminar a Derrama Estadual; ainda que, num bizarro passe de “acrasia política”, tenha pelo contrário mantido e agravado o peso desse tributo.

22.          Um imposto que sobrevive à sua própria justificação é, por definição, um imposto injusto, no sentido de “injustificado”, arbitrário: deixa de obedecer ao princípio constitucional da proporcionalidade “lato sensu”, tornando-se inadequado e juridicamente desnecessário – uma crua imposição de poder contra a qual devem manifestar-se o Direito Constitucional e o Direito Fiscal.

23.          Convirá também realçar que, à boa moda das alcavalas de antanho, a Derrama Estadual é um “adicionamento”, isto é, e sem eufemismos, uma sobreposição ao IRC.

24.          Significa que a Derrama Estadual incide sobre o mesmo rendimento das pessoas colectivas, mas o faz com critérios próprios, começando por desconsiderar a própria colecta do IRC.

25.          Nesse critérios próprios ressalta a progressividade das taxas, em contradição aberta com os propósitos da Reforma Fiscal que criou o IRC; e ressalta ainda mais a tributação por um “lucro tributável” que, afastando-se do conceito-base de “rendimento real”, bloqueando o reporte de prejuízos fiscais das empresas de acordo com a solidariedade dos exercícios (a ponto de, no limite, permitir tributar mesmo na ausência de colecta de IRC), fazendo tábua-rasa do regime de tributação dos grupos de sociedades, faz esta Derrama Estadual regressar às velhas práticas da tributação de um rendimento “normal”, desligado da consideração do rendimento real e da capacidade contributiva – o que bastaria para tornar inconstitucional este tributo.

26.          Além disso, a multiplicação da tributação extravagante, “ad hoc”, sobreposta, e mormente aquela que assume, como o tem feito esta Derrama Estadual, a forma de uma “alcavala de catraca”, ou seja, de uma oneração adicional que começa por apresentar-se como provisória mas que, com o passar do tempo, vai apertando o garrote da oneração financeira sem qualquer alívio – como se se tratasse de uma armadilha –, não pode deixar de considerar-se como um atentado aos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança, ou a corolários destes como o princípio da regularidade e boa-fé da atuação estadual, ou os subjacentes valores da verdade e da integridade.

27.          Ora esses são valores e princípios aos quais um cidadão, uma empresa, os contribuintes, se apegam para continuarem a acreditar nas afirmações constitucionais relativas ao sistema fiscal, para poderem continuar a fazer escolhas e a tomar deliberações como se existisse uma ordem constitucional estruturada na qual é possível confiar, como se existisse respeito pela igualdade fiscal e pela liberdade de gestão fiscal das empresas e dos grupos de sociedades.

28.          A sublinhar a anormalidade deste expediente de “adicionamento” ao IRC para lá de todos os limites da sua justificação excepcional e contingente, sublinhe-se que não é vedado ao soberano fiscal aumentar a receita do IRC através do aumento das suas taxas – que é a via normal, a juridicamente válida, aquela que ficou prometida como a única na Reforma Fiscal de 1989, na génese do próprio IRC.

29.          Só que se adivinha que, por razões políticas – novamente por empolamento dos fins em detrimento dos meios –, se tenha preferido manter refém desta Derrama Estadual o referido grupo segregado de “alvos de oportunidade”, de “especialmente onerados”, mantendo a aparência de manutenção de uma taxa de IRC, ainda que à custa da lesão da coerência sistémica, da simplicidade, da certeza jurídica, da previsibilidade e do respeito dos princípios da universalidade, da igualdade e da concorrência que proíbem a discriminação selectiva de grupos de contribuintes.

30.          Se, como se diz no parecer de Gomes Canotilho, “a Constituição exprime o compromisso solene de uma comunidade politicamente organizada com determinados valores, princípios e regras” (p. 26), é no escrutínio jurisdicional da inconstitucionalidade de excessos cometidos que as prerrogativas da autoridade, mesmo as da soberania tributária, mesmo as da legiferação pelas maiorias parlamentares, encontrarão o seu limite; e é nesse escrutínio que, respeitado o “compromisso solene”, poderão rebrilhar, ainda que momentaneamente turvados pela congénita sofreguidão arrecadadora e pelas sempiternas alcavalas, aqueles valores que o Direito Fiscal nasceu para defender.

31.          Eis as razões pelas quais não posso acompanhar a posição maioritária que concluiu pela não-inconstitucionalidade da norma do artigo 87º-A do CIRC, na redacção introduzida pela Lei nº 114/2017, 29 de Dezembro, em vigor no exercício de 2018, e consequentemente julgou improcedente o pedido arbitral.

 

(Fernando Araújo – 22/09/2020)

 

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

1. A…, S.A., já identificada nos autos, apresentou impugnação perante o Tribunal Central Administrativo Sul da decisão arbitral 22 de Setembro de 2020, ao abrigo do disposto nos artigos 27.º e 28.º do RJAT, invocando a omissão de pronúncia em dois aspectos: a) por um lado, nada consta da decisão impugnada atinente à sobreposição da derrama estadual ao IRC, que redunda numa ilegítima duplicação de tributação ou duplicação de coleta, alegada nos artigos 84.º a 97.º e 252.º a 292.º do articulado inicial; b) por outro lado, nada consta na decisão arbitral em termos de a compatibilidade (ou não) com o princípio da igualdade em sentido estrito, bem como com o seu corolário da capacidade contributiva, deste adicional progressivo ao IRC, quando analisado sob  a óptica da sua repercussão sobre indivíduos cuja capacidade contributiva nada tem a ver com a da empresa.

 

Por acórdão de 11 de Fevereiro de 2021, o TCA Sul deu como não verificada a nulidade por omissão de pronúncia quanto a este segundo ponto e também quanto à alegada arbitrariedade da tributação paralela em sede de IRC e em sede de derrama estadual.

 

Acrescentou, no entanto, o seguinte:

 

Já quanto à ilegalidade por dupla tributação jurídica ou duplicação de coleta, alegada pelas Impugnantes, a mesma, per se, não foi analisada, não obstante ter sido expressamente invocada.

Com efeito, como resulta designadamente do art.º 93.º do pedido de pronúncia arbitral, as Impugnantes referem que “[i]ntimamente relacionado com este tema está, depois, a duplicação de colecta que este regime normativo encerra, uma vez que estão verificadas as condições que a jurisprudência tem surpreendido como sendo necessárias para chegar a essa conclusão”, concluindo no art.º 98.º: “[r]azões pelas quais a duplicação de colecta se revela flagrante e, nessa estrita medida, ilegal”.

Ou seja, para além do alegado a propósito da inconstitucionalidade do regime, as Impugnantes invocaram autonomamente um vício de violação de lei, que não foi conhecido pelo Tribunal arbitral, não decorrendo da decisão impugnada que tal questão resulte prejudicada pelo conhecimento da demais.

 

Em cumprimento do julgado, cabe proceder à reforma da decisão arbitral, suprindo a omissão de pronúncia, o que se faz nos seguintes termos.

 

                2. A Requerente refere-se à dupla tributação jurídica e à duplicação da colecta, embora não de forma autonomizada, nos artigos 84.º a 98.º da petição inicial, e intitula o capítulo V do mesmo articulado, nos artigos 252.º a 292.º, como “Da violação da capacidade contributiva (logo, em simultâneo, da igualdade tributária) e da dupla tributação/duplicação da colecta”, mas nada diz nesse capítulo sobre a dupla tributação ou duplicação da colecta, limitando-se a analisar os parâmetros constitucionais da capacidade contributiva, da igualdade fiscal e da progressividade.

 

Interessa considerar, por isso, o que se alega nos ditos artigos 84.º a 98.º do pedido arbitral, que, com destaques da Requerente, são do seguinte teor:

 

84.º

Por outro lado, a justaposição da derrama estadual ao IRC – em relação ao qual funciona como um apêndice – conduz a uma dupla tributação jurídica deveras sui generis,

85.º

Dupla tributação essa que só em circunstâncias especiais se revela legítima, conforme a nossa melhor doutrina já sublinhou.

86.º

Na realidade, a “dupla tributação jurídica, [que se] concretize numa acumulação de impostos autónomos ou de impostos numa relação de dependência ou acessoriedade (…) pode justificar-se plenamente, seja pela existência de pluralidade de titulares do poder tributário (estado federal, estados federados ou regiões autónomas, autarquias locais), em que teremos a chamada dupla tributação vertical ou concurso de poderes tributários, seja por razões da própria estruturação do sistema fiscal ou de técnica tributária, entre as quais se contam as que se prendem com a autonomia financeira dos diversos níveis da atual descentralização administrativa (as autarquias locais, maxime os municípios), a reclamar a consignação de determinadas receitas fiscais, caso em que estamos perante a chamada dupla tributação horizontal ou dupla tributação tout court” (-).

87.º

Acontece que aqui, no contexto da derrama estadual, estamos bem longe de qualquer daquelas circunstâncias especiais que habilitariam uma dupla tributação jurídica.

88.º

É que nenhuma dessas situações – i.e. pluralidade de titulares do poder tributário ou consignação de receitas – se encontra minimamente verificada,

89.º

Nem o titular do poder tributário é diferente: as receitas do IRC e da derrama estadual pertencem ao mesmo sujeito ativo da relação tributária (-), o Estado-administração.

90.º

Nem tão-pouco existe um qualquer propósito de proceder à consignação de receitas tributárias da derrama estadual por motivações de descentralização financeira.

91.º

Daí que esta dupla tributação que a derrama estadual vem introduzir se revele arbitrária quanto ao âmbito – limitado – de sujeitos passivos abrangidos, pois submete a uma carga fiscal determinados contribuintes, e não outros, não obstante a idêntica ou inclusive maior capacidade contributiva dos últimos (-).

92.º

O que é equivalente a derrogar qualquer propósito de igualdade horizontal.

93.º

Intimamente relacionado com este tema está, depois, a duplicação de coleta que este regime normativo encerra, uma vez que estão verificadas as condições que a jurisprudência tem surpreendido como sendo necessárias para chegar a essa conclusão(-).

94.º

A saber, e em primeiro lugar, a unicidade de factos tributários – tanto o IRC como a derrama estadual incidem sobre o rendimento das pessoas coletivas.

95.º

Em segundo lugar, a identidade de natureza entre os impostos – ambos incidem sobre o rendimento das pessoas coletivas.

96.º

Por fim, a coincidência temporal do IRC e a derrama estadual.

97.º

Razões pelas quais a duplicação de coleta se revela flagrante e, nessa estrita medida, ilegal.

98.º

Mas não obstante a identidade matricial da derrama estadual com o IRC – tributo sobre o qual foi construída – há dois pontos de enorme divergência com aquele, para além da já referida progressividade.

 

Passando a analisar a questão, deve começar-se por relembrar que o está em causa, segundo o TCA Sul, é não ter sido analisada de per se a questão da dupla tributação jurídica ou da duplicação da colecta.

Dispõe ao artigo 205.º do CPPT, sob a epígrafe “Duplicação de colecta”, que “haverá duplicação de colecta para efeitos do artigo anterior quando, estando pago por inteiro um tributo, se exigir da mesma ou de diferente pessoa um outro de igual natureza, referente ao mesmo facto tributário e ao mesmo período de tempo” (n.º 1).

A norma apenas explicita o que se entende por duplicação da colecta para efeito de ser invocada como fundamento da oposição à execução fiscal, a que se refere a alínea g) do artigo 204.º. Entende-se, no entanto, que este fundamento pode também ser invocado em sede de impugnação judicial, em aplicação do disposto no artigo 99.º do CPPT, quando seja susceptível de afectar a legalidade do acto de liquidação.

Como é entendimento jurisprudencial e doutrinal corrente, a duplicação de colecta só se verifica quando se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos: (a) que esteja pago um tributo; (b) que se exija da mesma ou de diferente pessoa um outro tributo de igual natureza; (c) que tal tributo se refira ao mesmo período de tempo (cfr. entre outros, o acórdão do STA de 18 de Dezembro de 2013, Processo n.º 01181/12). Nessa mesma linha de orientação, o acórdão do STA de 8 de Outubro de 2014 (Processo n.º 01703/13) refere que a duplicação de colecta ocorre quando se verifique a aplicação do mesmo preceito legal por mais de uma vez ao mesmo facto tributário ou à mesma situação tributária em concreto.

E no mesmo exacto sentido se pronuncia JORGE LOPES DE SOUSA, acrescentando que para que se possa concluir pela duplicação da colecta se torna necessário concluir que a realidade fáctica que está subjacente à pluralidade de liquidações seja a mesma, o que não acontecerá, por exemplo, no caso de liquidações adicionais em que se pretende cobrar um tributo que, indevidamente, não foi liquidado inicialmente” (Código de Procedimento e Processo Tributário Anotado e Comentado, 6ª edição, 2011, vol. III, pág. 526).

Por outro lado, como se assinala no acórdão do STA de 12 de Julho de 2006 (Processo nº 0126/06), diferente da duplicação da colecta é a figura da dupla tributação pois que nesta, ao contrário daquela, são várias as normas de incidência que se aplicam ao mesmo facto tributário e que não só não é ilegal como corresponde à própria intenção legislativa.

Ora, como se esclarece na decisão arbitral de 22 de Setembro de 2020, que foi objecto de impugnação, a derrama estadual foi criada pela Lei n.º 12-A/2010, de 30 de Junho, que aditou  três novos artigos ao Código de IRC: os artigos 87.º-A, que institui a derrama estadual, 104.º-A, que estabelece as regras de pagamento da derrama estadual, e 105.º-A, que se reporta ao cálculo do pagamento adicional por conta.

 

E como se depreende da exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 26/XI/1.ª, que originou a Lei n.º 12-A/2010, este diploma teve em vista adoptar um conjunto adicional de medidas fiscais, no quadro de uma conjuntura económico-financeira excepcional de instabilidade, de modo a reforçar e a acelerar a estratégia de consolidação orçamental. Entre essas medidas contava-se a implementação de uma tributação adicional em sede de IRC, aplicando uma sobretaxa correspondente a uma derrama de 2,5 pontos percentuais às empresas cujo lucro tributável seja superior a € 2 000 000,00 (depois, a partir de € 1 500 000,00).

 

                No contexto legislativo e económico-financeiro em que se insere a derrama estadual, pode concluir-se que se trata de um imposto contingente, pelo qual se procura obter uma fonte adicional de receitas com vista à redução do défice excessivo e ao controlo do crescimento da dívida pública.

 

                No plano estritamente jurídico, a derrama estadual caracteriza-se como um imposto acessório relativamente ao IRC, e que, não obstante ser definido pela lei como adicional, reveste a modalidade de adicionamento, na medida em que incide sobre a matéria coletável do imposto principal e não sobre a sua colecta.

Ou seja, não só estamos perante uma tributação adicional, justificada por razões de política legislativa, que resulta de normas de incidência específicas que se não confundem com as normas de incidência geral de IRC, como também essa tributação adicional se baseia num novo facto tributário, visto que, não obstante incidir também sobre o rendimento das empresas, apenas se aplica às empresas que apresentem lucros tributáveis superiores a € 1.5000.000 (sendo o limiar mínimo, na versão originária, de € 2 000 000,00) e que tem por universo de destinatários um grupo circunscrito de empresas com um nível de ganhos de valor considerável.

               

Além de que a derrama estadual resulta da aplicação de uma sobretaxa à matéria colectável, pelo que o tributo que é pago por efeito da incidência da sobretaxa não é o mesmo que é pago em IRC segundo as regras gerais de liquidação de imposto que constam do artigo 90.º do Código do IRC.

 

 Não se verificam, por conseguinte, os requisitos da duplicação da colecta e, a entender-se que existe uma dupla tributação sobre os rendimentos das empresas, na medida em que se trata de uma tributação adicional ao IRC, esta não é arbitrária nem viola qualquer dos invocados parâmetros constitucionais, como se explanou desenvolvidamente na decisão arbitral.

 

O pedido arbitral mostra-se ser assim improcedente quanto a este fundamento.

               

4. Por todo o exposto, mantém-se a decisão de improcedência do pedido arbitral quanto ao acto tributário de autoliquidação impugnado.

 

Notifique.

 

Lisboa, 30 de Abril de 2021,

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

Carlos Fernandes Cadilha

 

O Árbitro vogal

Sérgio Vasques

 

O Árbitro vogal

Fernando Araújo

(Com ressalva de quanto ficou consignado com o meu voto de vencido e respectiva declaração de voto)