Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 69/2023-T
Data da decisão: 2023-12-06  IRS  
Valor do pedido: € 6.231,30
Tema: IRS. Mais-valias de imóveis. Falta de concretização da intenção de reinvestimento. Liquidação adicional. Direito de audição. Fundamentação do acto tributário.
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SUMÁRIO:
 

1. Quando o sujeito passivo de IRS inscreve, na declaração de rendimentos, em sede de mais-valias, a intenção de reinvestir o valor de realização obtido com a transmissão onerosa de imóvel em ano posterior e não concretiza o anunciado reinvestimento, a AT não está obrigada a proceder à notificação do sujeito passivo, para audição prévia à prática da liquidação adicional na sequência do não-reinvestimento.

 

2. Quando o sujeito passivo de IRS inscreve, na declaração de rendimentos, em sede de mais-valias, a intenção de reinvestir o valor de realização obtido com a transmissão onerosa de imóvel em ano posterior e não concretiza o anunciado reinvestimento, a AT não está obrigada a elaborar e a notificar a fundamentação da liquidação adicional praticada na sequência do não-reinvestimento.

 

 

DECISÃO ARBITRAL:

 

Martins Alfaro, designado pelo Conselho Deontológico do CAAD para formar o Tribunal Arbitral, profere a seguinte Decisão:

 

A - RELATÓRIO

 

A.1 - Requerentes da constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAMT): A..., com o NIF ... e cônjuge, B..., com o NIF..., ambos residentes na Rua de ..., n.° ..., ..., ...-... Matosinhos.

 

A.2 - Requerida: Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

A.3 - Objecto do pedido de pronúncia arbitral: A apreciação da legalidade da liquidação adicional de IRS n.º 2022..., respeitante ao ano de 2018, no montante de € 6.231,30, bem como a Demonstração de Acerto de Contas n° 2022..., também respeitante ao ano de 2018.

 

A.4 - Pedido: Que seja declarada ilegal a liquidação adicional de IRS respeitante ao ano de 2018, no montante de € 6.231,30, bem como a Demonstração de Acerto de Contas n° 2022..., também respeitante ao ano de 2018, com todas as consequências legais e que seja condenada a AT no reembolso da importância de € 6.231,30 paga em excesso, acrescida de juros indemnizatórios contados nos termos legais.

 

A.5 - Fundamentação do pedido: Os Requerentes sustentam que o acto tributário objecto do pedido de pronúncia arbitral enferma do vício de falta de fundamentação, determinante da sua anulabilidade, dado que não enuncia as razões determinantes (bem como os cálculos) que implicaram a correcção da matéria tributável que lhe está subjacente.

 

O referido acto tributário consiste numa liquidação correctiva emitida pela AT que tem por base uma declaração apresentada pelos Requerentes (Modelo 3), porém, corrigida.

 

Contudo, havendo correcções aos valores inscritos na declaração apresentada pelo contribuinte que estão na origem do acto tributário, este deverá ser fundamentado, devendo conter, ainda que sumariamente, «as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo» - cfr. n° 2 do art. 77° da Lei Geral Tributária (LGT).

Não existe nem foi facultado aos Requerentes qualquer documento que exteriorize as razões que conduziram à correcção dos elementos constantes da Declaração Modelo 3, nem tão pouco as normas jurídicas em que tal correcção assentou, pelo que efectivamente foi violado o disposto no n° 2 do art. 77° da LGT.

 

Os Requerentes alegam ainda que não foram notificados para o exercício do direito de audição prévia em momento anterior à emissão da liquidação adicional impugnada. Uma vez que, não estamos no âmbito da aplicação da alínea a) do n° 2 do art. 60° da LGT,  o contribuinte devia ter sido ouvido antes da liquidação nos termos da alínea a) do n° 1 daquele mesmo preceito legal, o que determina a ilegalidade do acto tributário impugnado.

 

Por fim, os Requerentes alegam que resultou do acto tributário impugnado o pagamento de um valor de imposto superior ao que seria devido sem a prática das ilegalidades apontadas, pelo que são devidos juros indemnizatórios.

 

A.6 - Resposta da Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira:

 

Notificada para apresentar Resposta, a Requerida veio dizer o seguinte, por impugnação:

 

Relativamente à alegação de falta de audição prévia, a AT não estava legalmente obrigada à audição dos Requerentes antes da liquidação, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 60.º da LGT, considerando que a liquidação foi efectuada com base nas declarações apresentadas pelos contribuintes.

 

Relativamente à alegação de falta de fundamentação da liquidação, foram os Requerentes que declararam, no ano 2018, a intenção de reinvestir o valor de € 149.146,21 e foram os Requerentes que declararam apenas ter reinvestido, em 2019, o valor de € 53.000,00, pelo que não podem vir agora alegar desconhecer a falta de concretização de parte do valor a reinvestir.

 

 

A AT limitou-se a efectuar a liquidação de IRS do ano 2018 com base nos elementos constantes das declarações de rendimentos apresentadas pelos Requerentes, e com base nas disposições legais aplicáveis, sendo certo que a Administração Tributária está adstrita ao cumprimento do princípio da legalidade enunciado no artigo 266.º, n.º 2, da Constituição e concretizado nos artigos 55.º, da LGT e 3.º, do CPA.

 

Conclui que o pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado improcedente.

 

 

B - SANEAMENTO:

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira, nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto dos artigos 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea b), ambos do RJAMT, o Conselho Deontológico designou o signatário como árbitro do Tribunal Arbitral, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAMT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAMT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 12-04-2023.

 

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, atenta a conformação do objecto do processo e face ao preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do RJAMT.

 

Embora notificada para o efeito, a Requerida não juntou aos autos o processo administrativo.

O Tribunal Arbitral decidiu dispensar a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAMT, bem como a produção de alegações, sem oposição das partes.

 

O prazo para prolação da decisão arbitral foi prorrogado por dois meses, por despacho proferido em 11-10-2023.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas.

 

O processo não enferma de nulidades.

 

Cumpre assim apreciar e decidir, o que se fará de seguida.

 

 

C -  FUNDAMENTAÇÃO:

 

C.1 - Matéria de facto - Factos provados:

 

Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes:

 

Na declaração de rendimentos entregue pelos Requerentes, em 04-06-2019, referente ao ano de 2018, estes indicaram no Anexo G a alienação onerosa do imóvel ...-U-...-C, com os seguintes elementos:

- SP A (50%) Realização 2018 04 € 154.000,00 // Aquisição 2015 08 € 105.750,00 // Despesas e encargos € 15.559,17

- SP B (50%) Realização 2018 04 € 154.000,00 // Aquisição 2015 08 € 105.750,00 // Despesas e encargos €15.559,17 Valor em dívida do empréstimo à data da alienação do bem referido: € 158.853,79 Valor de realização que pretende reinvestir: € 149.146,21 - Resposta da Requerida, não impugnada.

 

Esta declaração de rendimentos originou a liquidação n.º 2019..., de 05-06-2019, no valor (a reembolsar) de € 6.775,61 - Resposta da Requerida, não impugnada.

 

Na declaração de rendimentos entregue pelos Requerentes em 02-06-2020, referente ao ano de 2019, os Requerentes indicaram no Anexo G os seguintes elementos:

Valor de realização reinvestido no primeiro ano seguinte (sem recurso ao crédito): € 53.000,00 IDENTIFICAÇÃO MATRICIAL DO IMÓVEL OBJETO DE REINVESTIMENTO (NO TERRITÓRIO NACIONAL): ...-U-...-S - Resposta da Requerida, não impugnada.

 

Na ausência do reinvestimento por parte dos Requerentes, a AT procedeu, em 28-11-2022, a uma liquidação adicional, à qual coube o n.º 2022..., referente ao IRS do ano 2018, tendo sido apurado um valor (a reembolsar) de € 544,31, liquidação essa que constitui o objecto do presente pedido de pronúncia arbitral - Resposta da Requerida, não impugnada.

 

Anteriormente à prática do acto impugnado, os Requerentes não foram notificados para audição prévia - Facto alegado pelos Requerentes e não impugnado.

 

A liquidação objecto do pedido de pronúncia arbitral foi notificada, desacompanhada de qualquer fundamentação - Facto alegado pelos Requerentes e não impugnado.

 

O prazo para pagamento voluntário da dívida de IRS em causa nos presentes autos terminou em 11-01-2023 - Doc. n.º 1. junto pelos Requerentes e não impugnado.

 

A liquidação impugnada foi integralmente paga em 10-01-2023 - Doc. n.º 3, junto pelos Requerentes e não impugnado.

 

O presente pedido de pronúncia arbitral foi apresentado em 02-02-2023 - Informação constante do Sistema Informático de Gestão Processual (SGP) do CAAD.

 

O Tribunal Arbitral foi constituído em 12-04-2023 - Informação constante do Sistema Informático de Gestão Processual (SGP) do CAAD.

 

O prazo para prolação da decisão arbitral foi prorrogado por dois meses, por despacho proferido em 11-10-2023 - Informação constante do Sistema Informático de Gestão Processual (SGP) do CAAD.

 

C.2 - Matéria de facto - Factos não provados:

 

Não existem factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.

 

C.3 - Motivação quanto à matéria de facto:

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram seleccionados em função da sua relevância jurídica, face às soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi o artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAMT.

 

Com efeito, o Tribunal não está obrigado a pronúncia sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de seleccionar apenas a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamentam o pedido formulado pelo autor (cfr. artigos 596.º, n.º 1 e 607.º, n.ºs 2 a 4, do Código do Processo Civil) e consignar se a considera provada ou não provada (cf. ainda o artigo 123.º, n.º 2, do Código do Processo e Procedimento Tributário, ex vi o artigo 29º, do RJAMT).

 

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação à prova produzida, na sua convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e de conhecimento das pessoas - artigo 607.º, n.º 5 do CPC.

 

Somente quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na lei (v.g. força probatória plena dos documentos autênticos - artigo 371.º, do CPC), é que não prevalece, na apreciação da prova produzida, o princípio da livre apreciação.

 

Por outro lado, nos termos do artigo 16.º, alínea e), do RJAMT, vigora no processo arbitral tributário o princípio da livre apreciação dos factos, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção dos árbitros.

 

A matéria de facto dada como provada refere-se aos documentos juntos pelos Requerentes, que não foram impugnados e os quais, analisados de forma crítica, constituíram a base da convicção do Tribunal, quanto à realidade dos factos descrita supra.

 

A convicção do Tribunal fundou-se igualmente nos factos articulados pelas partes e que não foram infirmados ou impugnados pela contraparte.

 

O acervo probatório carreado para os autos foi objecto de uma análise crítica e de adequada ponderação, à luz das regras da racionalidade, da lógica e da experiência comum e segundo juízos de normalidade e de razoabilidade.

 

C.4 - Matéria de direito:

 

C.4.1 - Questões a decidir.

 

São as seguintes, as questões a decidir:

 

Primeira questão a decidir: Quando o sujeito passivo de IRS inscreve, na declaração de rendimentos, em sede de mais-valias, a intenção de reinvestir o valor de realização obtido com a transmissão onerosa de imóvel em ano posterior e não concretiza o anunciado reinvestimento, está a AT obrigada a proceder à notificação do sujeito passivo, para audição prévia à prática da liquidação adicional na sequência do não-reinvestimento?

Segunda questão a decidir: Quando o sujeito passivo de IRS inscreve, na declaração de rendimentos, em sede de mais-valias, a intenção de reinvestir o valor de realização obtido com a transmissão onerosa de imóvel em ano posterior e não concretiza o anunciado reinvestimento, está a AT obrigada a elaborar e a notificar a fundamentação da liquidação adicional praticada na sequência do não-reinvestimento?

 

Terceira questão a decidir: Deve a Requerida AT ser condenada no pagamento de juros indemnizatórios?

 

Vejamos:

 

C.4.2 - Primeira questão a decidir: Quando o sujeito passivo de IRS inscreve, na declaração de rendimentos, em sede de mais-valias, a intenção de reinvestir o valor de realização obtido com a transmissão onerosa de imóvel em ano posterior e não concretiza o anunciado reinvestimento, está a AT obrigada a proceder à notificação do sujeito passivo, para audição prévia à prática da liquidação adicional na sequência do não-reinvestimento?

 

Invocam os Requerentes, como vício do acro impugnado, a falta de notificação para exercer o direito de audição, previamente à prática do acto de liquidação impugnada.

 

Para os Requerentes, a liquidação impugnada não foi precedida da sua audiência prévia, em violação do disposto no art.º 60.º, n.º 1, alínea a) da LGT.

 

Nos termos do artigo 60.º, n.º 1, da LGT, que concretiza o princípio da participação dos particulares nas decisões administrativas que lhes digam respeito:

 

1 - A participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito pode efectuar-se, sempre que a lei não prescrever em sentido diverso, por qualquer das seguintes formas:

a) Direito de audição antes da liquidação;

b) Direito de audição antes do indeferimento total ou parcial dos pedidos, reclamações, recursos ou petições;

c) Direito de audição antes da revogação de qualquer benefício ou acto administrativo em matéria fiscal;

d) Direito de audição antes da decisão de aplicação de métodos indirectos, quando não haja lugar a relatório de inspecção;

e) Direito de audição antes da conclusão do relatório da inspecção tributária.

 

De acordo com a alínea a), do n.º 1, do artigo 60.º, da Lei Geral Tributária, parecerá que assiste razão aos Requerentes.

 

Com efeito, o direito de participação dos particulares na formação das decisões que lhes digam respeito resulta, desde logo, do artigo 267.º, n.º 5, da Constituição.

 

No domínio tributário, este direito encontra consagração no artigo 60.º, n.º 1, da LGT.

 

Ainda que a propósito do procedimento de inspecção tributária, com JOAQUIM FREITAS DA ROCHA e JOÃO DAMIÃO CALDEIRA,[1] diremos que « O direito de audição é por natureza um direito essencial em qualquer procedimento, assumindo o mesmo em sede de inspecção uma dimensão e intensidade ainda maior, na medida em que no momento em que o mesmo deve ser exercido - na comunicação do projecto de conclusões do relatório de inspecção - ainda não existe verdadeiramente um litígio entre a Administração tributária e o contribuinte. Quando muito existe um potencial litígio, pelo que a audição nesta sede pode ter um carácter preventivo quanto à conflitualidade emergente».

 

É pacificamente aceite que o direito de participação dos particulares na formação das decisões que lhes digam respeito tem a dupla função de permitir ao particular defender-se de um possível acto impositivo lesivo por parte da administração pública - no caso, da AT -  e de assegurar ao particular a possibilidade de influenciar a decisão final do procedimento.

 

Perante uma determinada intenção concreta da Administração pública, tem o particular o direito de influenciar a decisão final do procedimento, quer no plano dos factos - apresentando factos e produzindo prova -, quer no plano do Direito - apresentando argumentos jurídicos, susceptíveis de levar a uma decisão de direito, diversa daquela que consta no respectivo projecto.

 

O contributo do particular para o procedimento é desejável, não apenas porque conhece melhor do que ninguém a realidade factual - já que se trata de factos pessoais -, mas também porque tal contributo permitirá que a decisão a tomar pela Administração pública seja mais fundamentada, completa e acertada, dos pontos de vista factual e legal.

 

Acresce que - e como se sumariou no acórdão do STA, proferido em 14-05-2003, no processo n.º 317/03 -:

«1 - O art° 60° da LGT mais não é do que a transposição do princípio da participação dos cidadãos na formação das decisões e deliberações que lhe dizem respeito e que encontra consagração expressa no art° 267°, n° 5, da CRP.

2 - Desde que ocorra qualquer das hipóteses previstas no predito preceito legal, é obrigatória a audição do contribuinte, sob pena de ter sido preterida formalidade essencial do procedimento tributário, que afecta a decisão que nele for tomada (cfr. art° 135° e 136°, n° 2, do CPA).

3 - É de anular a liquidação de imposto de sisa e juros compensatórios em que foi preterida a audiência prévia do contribuinte, quando esta possa servir, precisamente, para o interessado procurar induzir a Administração Tributária a compatibilizar a observância da legalidade na elaboração do acto de liquidação com a situação efectivamente existente».[2]

 

Contudo, resulta do probatório que o acto tributário impugnado foi praticado na sequência  da não-concretização do reinvestimento, por parte dos Requerentes.

 

Ora, nos termos do artigo 60.º, n.º 2, da LGT, é dispensada a audição dos particulares, nos seguintes casos:

2 - É dispensada a audição:

a) No caso de a liquidação se efectuar com base na declaração do contribuinte ou a decisão do pedido, reclamação, recurso ou petição lhe seja favorável;

[…]

 

Resulta assim do artigo 60.º, n.º 2, alínea a), primeiro segmento, da LGT, que, caso a liquidação seja efectuada com base na declaração do contribuinte, é dispensada a sua audição.

 

Como se escreveu no Acórdão do STA, de 15-11-2006, processo n.º 0759/09, que julgou um caso idêntico ao dos presentes autos: [3]

 

A participação do contribuinte também não sai prejudicada, por não poder exercer o direito de audição, que é dispensado pela lei, “no caso de a liquidação se efectuar com base na declaração do contribuinte” – artigo 60.º, n.º 2, primeira parte, da LGT.

É que, nesta última situação, a intervenção da administração tributária é também realizada de acordo com o declarado pelo contribuinte. Daí que a lei “dispense” o direito de audição, já que o conteúdo deste direito seria idêntico ao conteúdo da declaração ao abrigo da qual a administração tributária age.

Cfr. Pedro Machete, Problemas Fundamentais de Direito Tributário, pp. 322-324, e Diogo Leite Campos e outros, Lei Geral Tributária anotada, 2.ª edição, p. 254.
Como escrevem estes últimos autores, “nos termos do n.º 2, nos casos de liquidação, a audiência poderá ser dispensada se aquela for efectuada ‘com base na declaração do contribuinte’.

Por força do referido reconhecimento constitucional do direito de audiência, a audição não pode ser dispensada quando se decidir em sentido divergente da posição do contribuinte e em sentido desfavorável em relação a esta posição.
Por isso, aquela fórmula ‘com base na declaração do contribuinte’ deve ser interpretada com o alcance de apenas dispensar a audição quando a liquidação for efectuada em sintonia com a posição que decorre da declaração do contribuinte, nos aspectos factual e jurídico.

 

Prossegue o citado aresto:

 

Ora, na declaração de rendimentos relativa ao ano de 1998, o recorrente declarou a intenção de reinvestir o produto da alienação de um imóvel na aquisição de outro.
Sendo que, nos termos do n.º 5 do artigo 10.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, na redacção dada pela Lei n.º 10-B/96, de 23 de Março, “são excluídos da tributação os ganhos provenientes da transmissão onerosa de imóveis destinados a habitação do sujeito passivo ou do seu agregado familiar” se – alínea a) – “no prazo de 24 meses contados da data da realização, o produto da alienação for reinvestido na aquisição de outro imóvel, de terreno para a construção de imóvel, ou na construção, ampliação ou melhoramento de outro imóvel exclusivamente com o mesmo destino, e desde que esteja situado em território português”.

Assim, para beneficiar da exclusão da tributação, o recorrente deveria demonstrar, “no prazo de 24 meses”, que havia reinvestido o valor realizado na venda.

Não bastava, pois, a mera intenção de reinvestir, constante na declaração de rendimentos relativa ao ano de 1998.

Contudo, nas declarações de 2000 e de 2001, o recorrente não demonstrou ter efectuado tal reinvestimento, pois que não apresentou o competente anexo G, motivando a liquidação adicional.

Que, assim, se efectuou “com base nas declarações do contribuinte” de 1999, 2000 e 2001, pelo que, nos termos do artigo 60.º, n.º 2, da LGT, não era necessária, por dispensada, a sua audição.

 

Assim sendo e no caso dos presentes autos, os Requerentes, que não concretizaram a intenção de reinvestimento, viram a liquidação ser efectuada de acordo com a posição que decorre, nos aspectos factual e jurídico, da respectiva declaração de rendimentos relativa ao ano de 2018.


Daí que se conclua que não era necessária, por dispensada, a audição dos Requerentes, de harmonia com o disposto no artigo 60.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária.

 

A este propósito podem ainda ver-se, entre outras, as seguintes decisões do STA:

 

Acórdão de 30-06-2010, processo n.º 0364/10: [4]

 

III. Tendo o contribuinte feito constar na sua declaração de rendimentos, relativa ao ano de 2003, a venda de um prédio e a intenção de reinvestir a totalidade da mais-valia obtida - nos termos da alínea a) do n.º 5 do artigo 10.º do CIRS (na redacção, aqui aplicável, anterior ao Decreto-Lei 361/2007, de 2 de Novembro) –, a liquidação adicional de IRS, operada, por falta de reinvestimento, nos dois anos seguintes, não carece de audição prévia do contribuinte declarante, por, nos termos dos n.ºs 1, alínea a), e 2 do artigo 60.º da Lei Geral Tributária, «a liquidação se efectuar com base na declaração do contribuinte».

 

 

Acórdão de 14-03-2012, processo n.º 0155/12: [5]

 

I - Nos termos do n.º 2 do artigo 60.º da Lei Geral Tributária, a audição é dispensada “no caso de a liquidação se efectuar com base na declaração do contribuinte ou a decisão do pedido, reclamação, recurso ou petição lhe for favorável”.

II - Tendo o contribuinte feito constar na sua declaração de rendimentos, relativa ao ano de 2000, a venda de um prédio e a intenção de reinvestir o respectivo preço, a liquidação adicional, efectuada com base na falta de declaração, nos dois anos seguintes, desse reinvestimento, não precisa de ser precedida da audição do contribuinte nos termos dos ns.1, alínea a), e 2 do artigo 60.º da Lei Geral Tributária.

 

E, na doutrina, por todos, ANA OLINDA PINTO MORAIS: [6]

 

Na verdade, atendendo ao facto de estarmos perante uma decisão da Autoridade Tributária que não pode ser outra que não a da liquidação adicional de imposto, seja por força de uma atividade vinculada por lei seja por resultar de mera operação aritmética, entendemos que está dispensada a audição do sujeito passivo. Conforme Diogo Leite Campos, Benjamim Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, a dispensa da audição com base na declaração do contribuinte «deve ser interpretada com o alcance de apenas dispensar a audição quando a liquidação for efetuada em sintonia com a posição que decorre da declaração do contribuinte, nos aspetos factual e jurídico» (Campos, Rodrigues & Sousa, 2014, p. 508).

 

 

 

Nestes termos, o Tribunal considera que a AT não tinha o dever jurídico de ouvir os Requerentes previamente à prática do acto impugnado, pelo que não se verifica o vício invocado, assim improcedendo o pedido de pronúncia arbitral nesta parte.

 

C.4.3 - Segunda questão a decidir: Quando o sujeito passivo de IRS inscreve, na declaração de rendimentos, em sede de mais-valias, a intenção de reinvestir o valor de realização obtido com a transmissão onerosa de imóvel em ano posterior e não concretiza o anunciado reinvestimento, está a AT obrigada a elaborar e a notificar a fundamentação da liquidação adicional praticada na sequência do não-reinvestimento?

 

Entendem os Requerentes que a AT violou o dever de fundamentação do acto impugnado.

 

É sabido que a lei impõe o dever de fundamentação, enquanto direito consagrado e constitucionalmente garantido dos cidadãos - artigo 268.°, n.° 3, da Constituição) e acto definidor da posição da Administração tributária perante os particulares, de modo que o sujeito passivo da relação jurídico-tributária consiga aferir o raciocínio seguido pela AT para decidir em determinado sentido e não em outro.

 

O dever de fundamentação visa, deste modo, permitir a um destinatário normal aperceber-se do itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo autor do acto para proferir a decisão, de modo que aquele possa conhecer as razões pelas quais o autor do acto decidiu como decidiu e, a partir dessa percepção, poder desencadear os mecanismos administrativos ou contenciosos de impugnação dessa mesma decisão proferida pela AT.

 

Assim se justifica que o artigo 77.°, n.° 2, da Lei Geral Tributária, imponha que a decisão do procedimento contenha as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo, pois que apenas desta forma pode o sujeito passivo do imposto apreender a razão de ser do acto tributário e ponderar eventual reacção face a tal decisão da administração.

 

Contudo, a liquidação impugnada decorreu directamente dos elementos constantes da declaração modelo 3, de IRS, apresentada pelos Requerentes.

 

Em tal situação e tal como se escreveu no Acórdão do STA, de 15-11-2006, processo n.º 0759/09, que julgou um caso idêntico ao dos presentes autos:[7]

 

O dever legal da fundamentação tem, a par de uma função exógena - dar conhecimento ao administrado das razões da decisão, permitindo-lhe optar pela aceitação do acto ou pela sua impugnação -, uma função endógena consistente na própria ponderação do ente administrador, de forma cuidada, séria e isenta.

Ora, na hipótese sub judice, a liquidação em causa foi efectuada com base em documentos fornecidos pelo contribuinte – as suas declarações de rendimentos relativas aos anos de 1998, 1999 e 2000.

Elementos que a Administração aceitou, tomando como válido o quantitativo expresso na declaração de 1999 – cfr. ponto I do probatório – e procedendo a uma liquidação adicional que “teve por base a falta de reinvestimento do valor de realização no montante de € 49.879,79 constante do anexo G da declaração de rendimentos do referido ano de mil novecentos e noventa e oito” – cfr. ponto VII do probatório.

Sustenta o recorrente – 10.ª alegação – que “o único motivo invocado para a liquidação é o facto de não se verificar o reinvestimento integral do valor de realização, motivo este que, para um qualquer destinatário médio, não é apreensível e esclarecedor a ponto de terem-se por satisfeitas as exigências de fundamentação legalmente estabelecidas”.
Mas, como se afirma na decisão ora em crise, “ao manifestar expressamente, no anexo G da declaração de rendimentos, a intenção de reinvestir, o impugnante sabia que o podia fazer ao abrigo de uma determinada norma legal cujos pressupostos de aplicação conhecia. Sabia, por via disso, igualmente, as consequências do não reinvestimento no prazo legal”. Aliás, no artigo 8.º da petição inicial, o ora recorrente afirma que “a liquidação desconsidera a declaração do impugnante no que respeita ao reinvestimento, desaplicando o disposto no artigo 10.º, n.º 5, do CIRS”, pelo que o Tribunal a quo entendeu que o impugnante, ora recorrente, “revela perfeito conhecimento do fundamento de direito da liquidação”.

Com efeito, não se vê como seja possível o recorrente não estar ciente das razões e factos que deram causa à liquidação, logo em face do respectivo teor: se conhece os pressupostos da não tributação dos ganhos provenientes da transmissão onerosa de imóvel destinado a habitação – pois que externou, no dito modelo G, a intenção de reinvestir -, não pode ignorar as consequências da falta de reinvestimento no prazo de 24 meses contados da data da realização – cfr. artigo 10.º, n.º 5, alínea a), do CIRS -, falta que esteve na base da liquidação.

Assim, em termos de fundamentação do acto e dadas as expressas circunstâncias em que foi praticado, tem-se a mesma por suficiente - conceito relativo que é, nos apontados termos.

 

O Tribunal perfilha este entendimento.

 

Com efeito, não é plausível que os Requerentes, tendo manifestado, na declaração de rendimentos relativa ao ano de 2018, a intenção de reinvestimento e não a tendo concretizado no prazo legal, possam ter sido surpreendidos ou ficado com dúvidas sobre qual a razão para a liquidação aqui impugnada.

 

Aliás, o mesmo se passa com as liquidações de IRS que são efectuadas na sequência da apresentação da declaração modelo 3: a AT encontra-se dispensada de fundamentar a liquidação porque ela resulta directamente dos elementos declarados pelos próprios sujeitos passivos.

 

E o certo é que a liquidação objecto do pedido de pronúncia arbitral resultou - ela também - directamente dos elementos declarados pelos próprios sujeitos passivos em 2018.

 

Assim sendo, considera o Tribunal que a AT não tinha o dever jurídico de fundamentar o acto impugnado, pelo que não se verifica o vício invocado, assim improcedendo o pedido de pronúncia arbitral nesta parte.

 

C.4.4 - Terceira questão a decidir: Deve a Requerida AT ser condenada no pagamento de juros indemnizatórios?

 

Peticionam os Requerentes que a Requerida AT seja condenada no pagamento de juros indemnizatórios, calculados nos termos constantes do n.º 4, do artigo 43.º, da LGT.

 

O artigo 43.º, n.º 1, da LGT, estatui que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido».

 

Decorre da resposta dada às precedentes questões que inexistiu qualquer erro na liquidação objecto do pedido de pronúncia arbitral.

 

Assim sendo, considera o Tribunal que o pedido dos Requerentes não preenche os pressupostos plasmados no artigo 43.º, n.º 1, da LGT, pelo que improcede o pedido de pronúncia arbitral nesta parte.

 

 

D - DECISÃO:

 

De harmonia com o exposto, este Tribunal Arbitral decide julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral, absolvendo a Requerida da totalidade do pedido.

 

 

 

 

E - VALOR DA CAUSA:

 

Os Requerentes indicaram como valor da causa o montante de € 6.231,30, correspondente ao imposto resultante da liquidação que entendem dever ser anulado.

 

O valor indicado pelos Requerentes não foi impugnado pela Requerida e considera o Tribunal não existir fundamento bastante para o alterar, pelo que se fixa à presente causa o valor de € 6.231,30.

 

 

F - CUSTAS:

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAMT, e da Tabela I, anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 612,00, indo os Requerentes, que foram vencidos, condenados nas custas do processo.

 

Notifique.

 

Lisboa, 06 de Dezembro de 2023.

 

 

O Árbitro,

 

 

(Martins Alfaro)

Assinado digitalmente



[1] Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária, Anotado e Comentado, Coimbra - 2013, Coimbra Editora, pág. 302.

[6] Sobre o Reinvestimento nas Mais-Valias Imobiliárias Auferidas por Pessoas Singulares - Regime e Especialidades, Lisboa, 2017, pág. 65, disponível em:
https://comum.rcaap.pt/bitstream/10400.26/22183/1/Ana%20Pinto%20Morais%20-%20ISG.pdf