Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 48/2023-T
Data da decisão: 2023-06-30  IRS  
Valor do pedido: € 119.505,76
Tema: Mais valias; Artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88; momentos da aquisição de imóvel mortis causa e inter vivos
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Sumário: 

I – A não sujeição da alienação de imóveis a tributação de mais valias depende de o momento da sua aquisição (pelo alienante) preceder a entrada em vigor do Código do IRS. 

II – Ficciona-se que, na sucessão mortis causa, os herdeiros que partilham os bens do de cujus os adquirem na data da abertura da sucessão, ainda que excedendo a sua quota e ainda que a partilha seja muito posterior a essa data.

III – Salvo, eventualmente, o regime da colação, tal ficção só pode valer para a partilha dos direitos da herança e não para direitos próprios que algum dos intervenientes na partilha já detivesse nessa data e transaccione na altura. 

IV – A responsabilidade pelas custas afere-se pelo decaimento no pedido, não pela amplitude da improcedência das pretensões das partes

 

DECISÃO ARBITRAL

I.              RELATÓRIO

 

1.     No dia 24 de Janeiro de 2023 a Senhora A..., com o NIF..., com domicílio fiscal na ..., n.º ..., ...-... Espinho (Requerente), apresentou, por si e em representação do falecido marido B..., com o NIF..., requerimento de constituição de tribunal arbitral, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º, n.º 1, al. a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária - RJAT).

2.     Pretendia que fosse declarada a ilegalidade e se procedesse à consequente anulação do acto de liquidação adicional de IRS n.º 2022 ... (que inclui as liquidações de juros compensatórios com os ns. 2022 ... e 2022 ...) referente a IRS do ano de 2019, e que – através da demonstração de Acerto de Contas n.º 2022 ... –, determinou um valor a pagar no montante de € 119.505,76. 

3.     Nomeados os árbitros que constituem o presente Tribunal, que aceitaram a designação no prazo aplicável, e não tendo a Requerente, nem a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT ou Requerida), suscitado qualquer objecção, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 3 de Abril de 2023.

4.     Seguindo-se os normais trâmites, em 26 de Abril a AT apresentou resposta e juntou o processo administrativo (PA).

5.     Em 16 de Maio, foi proferido despacho a dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e a produção de alegações e a indicar como data previsível para a pronúncia da decisão arbitral a fixada no n.º 1 do artigo 21.º do RJAT.  

 

 

II.            PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

 

6.     O tribunal arbitral foi regularmente constituído e o pedido de pronúncia contém-se no âmbito das suas atribuições.

7.     As Partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, são legítimas, e encontram-se regularmente representadas.

8.     O pedido de pronúncia arbitral foi tempestivo.

9.     Não foram suscitadas excepções, nem a aferição dos pressupostos processuais levou à identificação de qualquer fundamento que obste ao conhecimento do mérito.

 

III.          MATÉRIA DE FACTO

III.1. FACTOS PROVADOS

a)     A..., Requerente, viúva de B..., é irmã de C..., sendo ambas filhas de D... e de E... (ou E...), casados em primeiras núpcias em regime de comunhão geral.

b)    D... morreu, intestatus, em 2 de Janeiro de 1964, sendo suas herdeiras as suas duas filhas.

c)     Em 10 de Julho de 2003 as herdeiras de  D... e a sua viúva celebraram uma escritura de partilha do prédio urbano com 5 pavimentos para indústria, com área coberta de 3.580m2 e logradouro com 850m2, sito no ..., freguesia de..., concelho de Espinho, inscrito na matriz predial da respectiva freguesia com o n.º U-..., com valor patrimonial atribuído de € 210.284,99.

d)    Nos termos dessa escritura de partilhas, tal prédio foi atribuído à Requerente, mediante o pagamento de tornas no valor de € 157.713,74, sendo estas divididas nos seguintes termos: “Do referido valor pertence à viúva a quantia de cento e cinco mil cento e quarenta e dois euros e quarenta e nove cêntimos, correspondente à sua meação e a cada uma das filhas a quantia de cinquenta e dois mil quinhentos e setenta e um euros e vinte e cinco cêntimos, correspondente aos seus quinhões”.

e)     Em 5 de Maio de 2020 a Requerente apresentou, conjuntamente com o seu marido, a declaração Modelo 3 de IRS, declarando no Anexo G-1 a alienação de três imoveis excluídos de tributação em sede de IRS por terem sido adquiridos antes de 1989:

 

f)      No âmbito da acção inspectiva OI2022..., de âmbito parcial IRS/2019, para “Controlo de Mais-Valias”, iniciada em 1 de Junho de 2022, foi apurado que, no exercício em causa, os declarantes omitiram a declaração da venda do imóvel identificado em c).  

g)    A AT tinha informação de que esse mesmo prédio:

i)      tinha sido partilhado por escritura de 10 de Julho de 2003, por óbito do pai da Requerente; 

ii)    tinha sido alienado por escritura pública de 5 de Fevereiro de 2019 à sociedade F..., S.A. - NIF ..., pelo preço de 500.000,00€, totalmente liquidado na data desse acto. 

h)    Consequentemente, foi apurada em sede inspectiva a seguinte mais-valia imobiliária:

i)      No projecto de Relatório de Inspecção Tributária escreveu-se, quanto ao “Valor de Realização”, que este “foi repartido pelas duas datas de aquisição (…) (25% em 1964 e 75% em 2003)”;

j)      No exercício do seu direito de audição prévia, a Requerente defendeu que “A aquisição reporta, na sua totalidade, a 2 de janeiro de 1964, não sendo relevante a data da partilha.”, citando em abono vária jurisprudência e a Circular n.º 21, de 19/10/1992, da então DGCI;

k)     Ponderados os argumentos invocados no direito de audição, o Relatório de Inspecção Tributária (RIT) que instruiu a decisão do procedimento, notificada à Requerente por carta registada com data de 9 de Novembro de 2022, manteve o mesmo entendimento quanto aos dois momentos de aquisição e valores relativos;

l)      Esse RIT deu origem ao acto de liquidação adicional de IRS n.º 2022 ... (que inclui as liquidações de juros compensatórios com os ns. 2022... e 2022...) referente a IRS do ano de 2019, que, através da demonstração de Acerto de Contas n.º 2022..., determinaram um valor a pagar de € 119.505,76 (sendo € 109.203,20 do valor da liquidação adicional de IRS, € 10.160,38 de juros compensatórios por atraso na liquidação, € 129,97 a título de estorno do reembolso do IRS anterior e € 11,21 de juros compensatórios calculados sobre esse);

m)   A Requerente procedeu ao pagamento dos montantes assim apurados (conforme Doc. n.º 1 junto com o Pedido de Pronúncia Arbitral);

n)    Não se conformando, porém, com o entendimento da AT, a Requerente apresentou um Pedido de Pronúncia Arbitral no CAAD no dia 24 de Janeiro de 2023. 

 

            III.2. FACTOS NÃO PROVADOS

            Tendo em conta as posições das partes e, consequentemente, a matéria relevante para a decisão da presente causa, não há factos não provados. 

 

            III.3. FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO EM MATÉRIA DE FACTO

Os factos dados como provados resultam dos documentos disponíveis nos autos e, ou, do acordo das Partes. 

 

IV.          DIREITO

IV.1. Questões a decidir 

A primeira questão a esclarecer é a do momento da aquisição pela Requerente do prédio identificado na alínea c)dos factos provados, uma vez que, contra a opinião daquela, a AT entende que essa aquisição se verificou em dois tempos: no momento da abertura da sucessão, quanto à sua quota hereditária; e no momento da escritura de partilhas, quanto à meação da sua mãe no bem comum do casal (dado o regime de bens do casamento, que era o da comunhão geral).

Estabelecido(s) que seja(m) o(s) momento(s) da aquisição do dito imóvel, assim se seguirá a aplicação do Direito transitório que o legislador do Código do IRS estabeleceu para a tributação de mais-valias. No caso de este ser aplicável à totalidade da aquisição do imóvel, haverá que se determinar o reembolso das importâncias pagas e o pagamento dos juros indemnizatórios que lhe estarão associados. No caso de este ser aplicável a uma parte da aquisição do imóvel diferente (e maior) do que aquela que a AT já considerou, também, mas suscitar-se-á a questão de saber se a anulação dos actos de liquidação deve ser total ou parcial.

 

 

IV.2. Posição da Requerente

No seu PPA, a Requerente defendeu, essencialmente, que: 

a)    A partilha da herança não tem natureza constitutiva ou translativa de direitos, limitando-se a distribuir os bens que já tinham transitado para o património dos herdeiros à data da abertura da sucessão;

b)    Razão pela qual os efeitos da partilha retroagem à data do óbito, “incluindo na parte em que, eventualmente, exceda o(s) quinhão(ões) hereditário(s)”;

c)     Como resulta do Acórdão de uniformização de jurisprudência proferido pelo STA no proc. n.º 08/22.5BALSB, de 26 de Maio de 2022; 

d)    E como resulta da jurisprudência do CAAD (procs. 344/2021-T e 698/2021-T);

e)     Pelo que se aplica a norma do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, e a respectiva exclusão de tributação de mais-valias;

f)      Inexistindo facto tributário algum que “caia no âmbito de aplicação das normas de incidência tributária do Código do IRS.”;

g)    Padecendo de ilegalidade, portanto, a liquidação impugnada e sendo devidos o estorno dos montantes pagos e o pagamento de juros indemnizatórios.

 

IV.3. Posição da Requerida

Em contrapartida, a Requerida entendeu, em resposta, no que ora releva, que:

 

a)    Para efeitos de “valor de aquisição” foram tidos em consideração dois momentos distintos:

I - Herança de D... por óbito ocorrido em 02/01/1964, em que são herdeiros a R. A..., a sua irmã  C... e a mãe de ambas E... correspondendo, nos termos da escritura de partilha, à R. e à sua irmã, a cada uma delas, um quinhão de 25% (da meação do pai).

II – Escritura de partilha celebrada em 10/07/2003 através da qual foi adjudicado à R. A... a totalidade do prédio, mediante um preço que foi sujeito a SISA, determinando-se o valor de aquisição nos termos do art. 46.º, n.º 1 do CIRS, ou seja, 157.713,74€.”;

b)    Em 02/01/1964, por morte do pai da R., esta, a sua irmã e a sua mãe, herdaram uma quota ideal desse imóvel que corresponde a uma percentagem sobre a meação do pai nesse mesmo prédio.”;

c)     Em 10/07/2003, ainda em vida da mãe da R., o que foi partilhado, pelo óbito ocorrido em 02/01/1964, foi a parte do imóvel correspondente à meação do pai.

d)    A parte do imóvel que, corresponde à meação da mãe foi adquirida pela R. a título oneroso, através da mesma escritura de 10/07/2003.”;

e)     A jurisprudência invocada pela R, seja a arbitral, seja a que decorre do acórdão nº 08/22.5BALSB, de 16/05/2022, não têm aplicação integral no caso dos presentes autos.”;

f)      Tal jurisprudência debruçou-se sobre uma factualidade em que os bens alienados tinham sido adquiridos totalmente pela via sucessória, entendendo-se como determinante para o apuramento de mais-valias imobiliárias geradas pela alienação desses bens, a data da abertura da sucessão. Segundo essa jurisprudência, se a abertura da sucessão for anterior ao CIRS, as mais-valias estão excluídas de tributação, ao abrigo do art. 5º do Decreto-Lei nº 442-A/88, de 30/11, independentemente da escritura de partilha ter sido celebrada na vigência do CIRS.”;

g)    Ora, como já se referiu e está evidenciado na escritura de partilha, à data desta, em 10/07/2003, a R. apenas adquiriu uma parte do prédio, pela via sucessória, na decorrência da morte do pai, em 1963, a qual, perfilhando a jurisprudência citada pela R., foi, efetivamente, considerada pela AT como um momento aquisitivo não sujeito a tributação (oficiosamente inscrito no Anexo G1)

h)    Mesmo que se entenda que o valor de aquisição se deve cingir ao valor da meação da mãe ou seja, 105.142,49€, o que não se concede, sempre o momento aquisitivo terá de ser o devido em 10/07/2003, em plena vigência do CIRS e, portanto, as mais-valias resultantes da alienação são tributáveis em sede daquele imposto.

i)      Consequentemente, não haveria lugar a devolução das importâncias pagas nem ao pagamento de juros indemnizatórios.

 

IV.4. Decidindo

Está em causa a aplicação da norma de Direito transitório constante do n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro (Aprova o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares - IRS), que, no que ora importa, tinha originariamente a seguinte redacção: “Os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias (…) só ficam sujeitos ao IRS se a aquisição dos bens ou direitos de cuja transmissão provêm se houver efectuado depois da entrada em vigor deste Código.[1] Daí que o regime tributário das mais-valias dependa do momento – ou dos momentos – da aquisição do bem. 

É o que se vai apurar.

 

A)   Quanto ao(s) momento(s) da aquisição, pela Requerente, do imóvel em causa

Como se referiu, a AT argumentou na sua Resposta que a aquisição do imóvel ocorreu em dois momentos, mas não foi explícita quanto à parcela do todo que teria sido adquirida em cada um desses momentos. Tal irreleva, porquanto no Relatório de Inspecção Tributária isso ficou claramente estabelecido. Como aí se escreveu “em 02-01-1964, data do falecimento (…) A... herdou 25% do imóvel” e os restantes 75% foram adquiridos pela escritura de partilha realizada em 10 de Julho de 2023, quando “E... e C... (…) cedem a A... (…) os seus quinhões hereditários (50% e 25% respetivamente) pelo preço (tornas) de € 157.713,74 (€ e € )” (tendo sido sobre esses valores que a Requerente se pronunciou no exercício do seu direito de audição prévia). 

Dá-se o caso de os valores tomados em consideração pela AT – embora decalcados dos valores de tornas que constavam da escritura de partilha (e influenciados pela convergência nesta de dois negócios) – não poderem corresponder aos valores sujeitos a imposto de mais-valias. Daí que os actos de liquidação e acerto de contas identificados na alínea l) dos Factos Provados sejam parcialmente desconformes com o Direito aplicável, nos termos que seguidamente se explicitam:

A AT entendeu, correctamente, que havia uma parcela do imóvel que não foi transmitida mortis causa – e que, portanto, não podia beneficiar do regime aplicável à aquisição sucessória. Errou, porém, ao cifrar tal valor em 75%, somando aquilo que era a meação da mãe da Requerente no bem comum do casal (50%) – a que nada acresceu por morte do marido porque, na data de falecimento do de cujus, em 1964, vigorava ainda o Código de Seabra[2] (que integrava os descendentes no primeiro grau dos herdeiros legitimários e o cônjuge apenas no quarto[3]) –, somando, dizia-se, essa metade própria do cônjuge do de cujus (adquirida pela Requerente, necessariamente, por transmissão inter vivos), ao quinhão da metade do bem comum que estava a ser transmitida por falecimento do de cujus e que cabia à irmã da Requerente (que, justamente por a mãe de ambas ser preterida[4], era de metade da metade que era transmitida mortis causa[5], ou seja, era de 25% do total[6]). É que, nesta parte, está consolidado o entendimento de que a partilha tem meros efeitos declarativos, ficcionando-se que a transferência da titularidade das relações jurídicas do de cujus retrotrai ao momento da morte do autor da sucessão, ainda que nos termos declarativamente fixados na partilha (que pode ser muito posterior – como no caso foi). Nada havendo que somar à meação da mãe, que a Requerente adquiriu inter vivos, conclui-se:

- contra o entendimento desta, que houve dois momentos de aquisição: o da morte do seu pai, em 1964, para a aquisição de ¼ do imóvel que lhe cabia, e do ¼ do imóvel que cabia à sua irmã (ainda que mediante as tornas pagas em 2003); e o da celebração, em 2003, de uma dita “escritura de partilha” que, na verdade, incluiu um negócio autónomo de aquisição inter vivos da meação de sua mãe no bem comum do casal – o que é especialmente óbvio porque, não sendo a mãe da Requerente herdeira do de cujus (segundo o regime vigente à data da abertura da sucessão), nada adquiriu com o seu falecimento; e que, 

- contra o entendimento da AT, a Requerente adquiriu, por sucessão mortis causametade dos seus direitos sobre o imóvel em causa, em 1964 (nos termos da jurisprudência uniformizada), e outra metade em 2003, por aquisição inter vivos a sua mãe.

Ou seja: por um lado, o regime da sucessão por morte só pode valer para o que está na herança; por outro, a redistribuição de direitos dentro desse património transferido mortis causa não constitui uma nova aquisição de direitos, ainda que, no limite – e levando a tese às suas últimas consequências –, um único dos herdeiros fique com todo o património, pagando tornas a todos os demais. Esse entendimento, que nada tem de necessário[7], foi o que ganhou o favor da jurisprudência e que acabou por ser consagrado no invocado acórdão uniformizador do STA (proferido em 26 de Maio de 2022 no proc. 08/22.5BALSB), que, por sua vez, remeteu para um anterior acórdão uniformizador do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do STA (proferido em 24 de Fevereiro de 2021 no proc. 05/09.6BESNT) e que, por sua vez, se louvou no acórdão fundamento do STA (proferido em 7 de Março de 2018 no proc. 0917/17) que foi apreciado nesse acórdão de Fevereiro e onde se escreveu, designadamente, o seguinte[8]:

“Em questão neste recurso está a apreciação sobre se estão verificados os pressupostos da exclusão de tributação em IRS relativamente às mais-valias obtidas pelos impugnantes em resultado da alienação onerosa de um bem imóvel durante o ano de 2008. Decisiva para esta questão é a forma e momento de aquisição do referido imóvel, por parte da impugnante, na sequência de óbito de seu pai, de quem era uma das herdeiras, verificado em 01.02.1987.

Não dispondo o direito tributário de norma própria sobre esta matéria, ao abrigo do disposto no art.º 11.º da Lei Geral Tributária, teremos que nos socorrer das normas de direito sucessório constantes do Código Civil – art.º 2119.º - que estabelece que;« Feita a partilha, cada um dos herdeiros é considerado, desde a abertura da herança, sucessor único dos bens que lhe foram atribuídos, sem prejuízo do disposto quanto a frutos.» e art.º 2031.º - «A sucessão abre-se no momento da morte do seu autor e no lugar do último domicílio dele ».

Assim a impugnante adquiriu o bem que vendeu no momento em que ocorreu o decesso da pessoa de quem o herdou, sem que tal sofra qualquer alteração por a partilha da herança ter decorrido em momento posterior, ou pela circunstância de nessa partilha lhe ter cabido o bem cujo valor excedia a sua quota hereditária. O momento de aquisição do imóvel é um e um único, o momento da morte do autor da sucessão, sendo a partilha apenas uma forma de distribuir os bens pelos herdeiros em conformidade com a lei, a vontade do de cujus e os interesses dos herdeiros, em preenchimento dos respectivos quinhões hereditários, sempre, em todas as situações, com efeitos retroagidos àquele momento inicial da sucessão hereditária.

O legislador tributário, nem para tributação de mais valias veio legislar de modo diverso.

A Administração Tributária em informação vinculativa, referenciada nas alegações, e já analisada detalhadamente pelo Supremo Tribunal Administrativo no acórdão proferido no processo: 053/15, de 26-10-2016 também assim considerou, em interpretação vinculativa, para os serviços da Administração Tributária.”

Tenha-se bem presente que o “momento de aquisição do imóvel” que é considerado um único ocorre por efeito e por causa “da morte do autor da sucessão” e que é por isso que qualquer transacção realizada entre os herdeiros tem “efeitos retroagidos àquele momento inicial da sucessão hereditária” – ao “momento em que ocorreu o decesso da pessoa de quem o herdou”. Ora, como seria especialmente evidente se se tratasse da herança de um prédio pertencente a comproprietários não unidos por laços familiares, a simultânea aquisição, em partilhas, da parcela do comproprietário sobrevivo (de todo alheio à transmissão mortis causa da outra parte do bem) constituiria, necessariamente, uma transacção autónoma. O caso é aqui o mesmo, ainda que a incorrecta percepção da posição do cônjuge sobrevivo – mas, segundo a lei aplicável, não herdeiro – tenha propiciado a diluição desse negócio numa mera partilha. 

De modo algum resulta outra coisa da jurisprudência uniformizadora do STA: tirando eventuais casos em que bens doados em vida do autor da herança sejam chamados à colação, o que se partilha são, estritamente, os bens do de cujus. Logo, bens – ou quotas de bens – que pertençam a terceiros (sejam eles mais ou menos próximos do autor da sucessão) não podem beneficiar da ficção de retroactividade que pretende evitar hiatos na titularidade desses bens. Que os interessados na sua aquisição os tenham transaccionado em partilhas e os tenham pagos com o que chamaram “tornas” é irrelevante para a sua natureza jurídica. 

 

B)   Quanto ao regime jurídico das mais valias aplicável à aquisição de cada uma dessas parcelas

Do que se escreveu já resulta que, quanto à parte (metade) do imóvel a que a Requerente acedeu por herança – quer por direito próprio, quer por troca (pagamento de tornas) –, não haverá lugar a pagamento de mais-valias na subsequente venda, uma vez que, não obstante se ter concretizado em 10 de Julho de 2003, é feita remontar a 2 de Fevereiro de 1964 ex vi legis e, portanto, preenche a condição do n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88 para não ficar sujeita a essa tributação.

 Já quanto à parte (metade) do imóvel a que a Requerente não acedeu por herança (porque pertencia a sua mãe – que nem sequer nada herdou por morte do marido), é devido o pagamento de mais-valias, por o momento de aquisição dessa (outra) metade do imóvel nada ter a ver com o falecimento do pai da Requerente: ocorreu em 10 de Julho de 2003, no contexto de uma divisão da herança, mas não por causa dela

 

C)   Quanto às consequências desta disjunção de efeitos jurídicos resultantes da “partilha” realizada em 2003

Como os tribunais arbitrais não têm a faculdade de determinar os valores apropriados para os actos de liquidação que invalidam, não caberá, no caso, calcular o valor das mais-valias devidas (porque o serão) e dos respectivos juros compensatórios (porque também o serão) em face da alteração das parcelas do bem transaccionado que foram adquiridas pela Requerente antes (50%) e depois (50%) da entrada em vigor do Código do IRS. Caberá à AT, após a anulação da liquidação impugnada, refazer tais cálculos e emitir novos actos de liquidação.

Tal implica que, muito embora a pretensão da Requerente estivesse mais distante da solução que o presente Tribunal Arbitral tem por juridicamente adequada (uma vez que a Requerente reclamava a total isenção de mais valias) do que a que foi defendida pela AT (supondo que esta pretendia cobrar mais valias sobre 75% da diferença entre o valor actualizado da aquisição e o valor de venda), a AT decai inteiramente na sua pretensão de manter o acto impugnado e a Requerente logra a sua pretensão de o invalidar. 

Ora, como se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Abril de 2021[9],

Em suma, como afirmam Lebre de Freitas e Isabel Alexandra, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 3.ª ed., pág. 419, o critério para determinar quem dá causa acção, incidente ou recurso prescinde, em princípio, de qualquer indagação autónoma: dá-lhe causa [qu]em perde. Quanto à acção, perde-a o réu quando é condenado no pedido; perde-a o autor quando o réu é absolvido do pedido ou da instância.

Por outras palavras, a regra geral em matéria de custas, consagrada no artigo 527º do Código de Processo Civil, é a de que paga as custas quem tiver ficado vencido na lide, a parte que perdeu a acção, que nela decaiu, e na proporção do respectivo decaimento.

A condição de vencido, e a correspondente responsabilização pelo pagamento de custas, decorre e é definida pela decisão da causa, decisão de mérito ou decisão que lhe ponha termo (…)”

 

IV.5. Pedido de reembolso e juros indemnizatórios

O artigo 43.º, n.º 1, da LGT estabelece que

São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou

impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento

da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

Tendo em conta que a liquidação dos montantes de mais valias e dos respectivos juros compensatórios padece de vício de ilegalidade que é imputável aos serviços da Administração Tributária[10], os juros são devidos.

Como a Requerente procedeu ao pagamento dos montantes liquidados, tem direito, segundo a jurisprudência uniforme do CAAD, à devolução do que pagou, bem como ao recebimento dos correspondentes juros indemnizatórios, nos termos do n.º 1 do artigo 43.º da LGT e do artigo 61.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

 

V.            DECISÃO

a)     Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, e, em consequência, anular o acto de liquidação adicional de IRS n.º 2022... (que inclui as liquidações de juros compensatórios com os ns. 2022... e 2022...) referente a IRS do ano de 2019, bem como a subsequente demonstração de Acerto de Contas n.º 2022..., que determinaram um valor a pagar no montante de € 119.505,76 (cento e dezanove mil quinhentos e cinco euros e setenta e seis cêntimos);

b)    Condenar a Requerida a devolver esse montante acrescido dos juros indemnizatórios;

c)     Condenar a Requerida nas custas do processo, nos termos infra referidos.

.

VI.          VALOR DO PROCESSO

Competindo ao Tribunal fixar o valor da causa (artigo 306.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT) e devendo ele, correspondendo à utilidade económica do pedido, equivaler à importância cuja anulação se pretende (alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário, ex vi da alínea a) do artigo 6.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária - RCPAT), fixa-se o valor do processo em €119.505,76 (cento e dezanove mil quinhentos e cinco euros e setenta e seis cêntimos), montante indicado pela Requerente e não contestado pela AT. 

 

VII.        CUSTAS

Custas a cargo do Requerida, no montante de € 3.060,00 (três mil e sesenta euros), nos termos da Tabela I do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e do disposto no seu disposto nos seus artigos 3.º, n.º 2, e 4.º, n.º 5, e nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, dado que o presente pedido foi julgado inteiramente procedente. 

Lisboa, 30 de Junho de 2023

 

 

O Árbitro Presidente e relator

 

 

Victor Calvete

 

A Árbitro Adjunta

 

 

Rita Guerra Alves

 

 

O Árbitro Adjunto

 

José Luís Ferreira

(com declaração de voto de vencido)

 

A redacção da presente decisão segue a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990 execepto em transcrições que o sigam. 

Declaração de voto

Com todo o respeito pela posição que saiu vencedora neste tribunal arbitral colectivo, voto vencido a presente decisão.

Começando pelo probatório, entendo que a matéria de facto está perfeitamente estabelecida e não é disputada pelas Partes.

Concretamente, partindo do relatório de inspecção que fundamenta a liquidação de IRS controvertida, a mais-valia decorrente da transmissão onerosa do prédio em 5 de Fevereiro de 2019, pela Requerente à sociedade «F..., S. A.», foi apurada nos seguintes termos:

·      O valor de realização de € 877.294,78 foi fixado por referência ao valor patrimonial tributário do prédio;

·      O valor de aquisição do prédio foi fixado em € 157.713,74, conforme escritura de partilha;

·      O coeficiente de desvalorização de 1,24 é o que consta da Portaria 362/2019, de 9 de Outubro, por se tratar da correcção monetária aplicável em 2019 relativamente a activos adquiridos em 2003;

·      A mais-valia de € 462.406,05 é o produto natural da diferença positiva entre o valor de realização e o valor de aquisição corrigido pelo factor de 1,24, tendo sido considerada em 50%, i. e. € 231.203,02;

·      A inclusão desse valor no rendimento global da Requerente, para efeitos de apuramento do IRS devido no ano de 2019, originou a nota de liquidação controvertida no valor de € 119.375,79 (que inclui juros compensatórios de € 10.172,59);

·      Foi ainda estornado o reembolso de € 129,97 (cujos juros compensatórios de € 12,21 já estão incluídos na nota de liquidação).

Estes valores, que constam do relatório de inspecção, foram admitidos (confessados) pela Requerente, tanto no pedido de pronúncia arbitral (designadamente nos artigos 8.º e 9.º do pedido de pronúncia arbitral), como na peça em que exerceu o direito de audição prévia.

Constam aliás da formulação do pedido de pronúncia arbitral (na 1ª página).

 

 

Os valores supra referidos reportam-se tão somente às parcelas do prédio que a Requerente adquiriu na escritura de partilha de 10 de Julho 2003, mediante o pagamento de tornas à irmã e mãe. Operação esta que constitui o objecto controvertido do pedido de pronúncia arbitral.

Com efeito, é incontroverso para ambas as Partes que a parcela do prédio correspondente ao quinhão hereditário da Requerente foi adquirida à data da abertura da sucessão, pelo que a mais-valia apurada na transmissão onerosa de 2019 se encontra abrangida pelo regime de isenção previsto no regime transitório do diploma que aprovou o Código do IRS.

O que separa as Partes é uma questão de direito: a Requerente entende que a data de aquisição dos quinhões hereditários da irmã e mãe retroagem à data da abertura da sucessão (1964), ao passo que a Requerida pugna pela existência de uma transacção autónoma em 2003.

A Requerente pede a anulação total da nota de liquidação controvertida, com a consequente devolução dos valores pagos acrescidos de juros indemnizatórios. A Requerida pugna pela manutenção do acto de liquidação controvertido.

Passando para o enquadramento de direito estabelecido pelo tribunal arbitral colectivo, estou plenamente de acordo com o mesmo: a abertura da sucessão ocorreu na vigência do Código de Seabra, pelo que ao cônjuge, que não era herdeiro legitmário, caberia apenas a respectiva meação.

O parágrafo do decisório, que transcrevo, resume, na perfeição, o referido enquadramento:

Já quanto à parte (metade) do imóvel a que a Requerente não acedeu por herança (porque pertencia a sua mãe – que nem sequer nada herdou por morte do marido), é devido o pagamento de mais-valias, por o momento de aquisição dessa (outra) metade do imóvel nada ter a ver com o falecimento do pai da Requerente: ocorreu em 10 de Julho de 2003, no contexto de uma divisão da herança, mas não por causa dela. 

Ou seja, a liquidação de IRS reporta-se à aquisição de 2 parcelas: uma à irmã (1/4 do imóvel) e outra à mãe (1/2 do imóvel).

A primeira beneficia do regime de isenção de tributação de mais-valia. O mesmo não sucede quanto à segunda.

Resta saber se o tribunal arbitral colectivo dispõe dos elementos, carreados para o processo por ambas as Partes, para concretizar o respectivo valor.

Vejamos:

·      O valor constante da escritura da partilha é idêntico, ou seja, a Requerente pagou o mesmo valor à irmã e mãe. Naturalmente, com a diferença de o quinhão da mãe ser o dobro do quinhão da irmã. Com base na escritura de partilha, pagou € 105.042,49 à mãe e € 52.071,25 à irmã;

·      Ou seja, o valor de aquisição foi dividido da seguinte forma: 1/3 e 2/3 para, respectivamente, as parcelas adquiridas à irmã e à mãe. O mesmo sucede com o valor de realização, que, uma vez retirada a parcela adquirida pela Requerente em 1964, é dividido nos mesmos termos (1/3 e 2/3).

A partir daqui o cálculo do valor que, de acordo com a fundamentação de direito estabelecida pelo tribunal arbitral, origina a procedência parcial do pedido é directo, dado assentar em matéria de facto carreada para o processo e admitida por ambas as Partes:

·      Ao valor total de € 119.505,76 deve ser retirado o estorno de € 129,97 € e o juro compensatório de € 12,21, dado que este valor é sempre devido. Com efeito, a Requerente recebeu um reembolso que simplesmente não é devido (note-se que o desdobramento destes valores consta do próprio pedido de pronúncia arbitral, pelo que é admitido e confessado pela Requerente);

·      O valor remanescente de € 119.363,58 corresponde ao imposto liquidado pela transmissão onerosa do imóvel em 2019, sabendo que está distribuído entre 1/3 que beneficia de isenção e 2/3 que não beneficia de isenção.

Donde entendo que a decisão deveria ser a procedência parcial do pedido de pronúncia arbitral no valor de € 39.787,86 (1/3 de € 119.363,58), acrescido de juros indemnizatórios.

É este o ponto da minha discordância.

Condenar a Requerida na totalidade do pedido, incluindo a parcela relativamente à qual o próprio tribunal arbitral colectivo considera não assistir razão à Requerente, poderá, no limite, configurar uma oposição entre a matéria provada, os fundamentos de direitos estabelecidos pelo tribunal e a decisão.

O mesmo sucede na condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios sobre a totalidade do valor, incluindo a parcela relativamente não se verifica o regime de isenção de imposto.

 



[1]  No trecho citado, o Decreto-Lei n.º 141/92, de 17 de Julho, alterou a parte final: “só ficam sujeitos a IRS se a aquisição dos bens ou direitos a que respeitam tiver sido efectuada depois da entrada em vigor deste Código.

[2] O actual Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de Novembro, só entrou em vigor em 1 de Junho de 1967. Mesmo nos termos do actual Código, os direitos dos herdeiros ficam estabelecidos no momento da abertura da sucessão (artigo 2031.º).

 

[3] Artigo 1969.º, cuja redacção era, no que ora importa, a seguinte: 

            “A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

1.º Aos descendentes;

2.º Aos ascendentes, salvo no caso do artigo 1236.º;

3.º Aos irmãos e seus descendentes;

4.º Ao cônjuge sobrevivo;

(…)”.

 

[4] Artigo 1970.º do Código de Seabra: “O parente mais próximo em grau excluirá o mais remoto (…).” Não havendo concurso de cônjuge com descendentes, já se vê ser incorrecto parte do que a AT escreveu no trecho reproduzido supra (em b)) da sua Resposta.

 

[5] Artigo 1971.º do Código de Seabra: “Os parentes, que se acharem no mesmo grau, herdarão por cabeça ou em partes eguais.

 

[6]  Tal como o quinhão da Requerente era de 25% do total (mas, tal como o da sua irmã, 50% do que foi transmitido por herança, que era a metade do bem comum que pertencia ao seu pai).

[7]  Como o demonstra, desde logo, a necessidade de o STA se ter pronunciado repetidas vezes sobre a mesma questão.

 

[8]  Mantém-se o itálico do original, mas acrescentam-se os destaques a negrito, que são comentados a seguir.

[9]  Proferido no proc. 3167/17.5T8LSB.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f78a35774ba29550802586b7003a68e2?OpenDocument Corrigiu-se uma gralha no seu texto.

 

[10] Desinteressa apurar se os serviços se conformaram com as instruções genéricas da AT: do mesmo modo, o erro é imputável à AT (não ao legislador).